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Filosofia-Performance: uma introdução

Resumo:

Este artigo introduz a filosofia-performance, não obstante o risco de contradição performativa que tal ato envolve. Primeiramente, considera a filosofia-performance como um campo que questiona como a performance pensa e como o pensamento é performado (inclusive, especificamente como filosofia). A partir da não-filosofia de Laurelle, dirige-se à filosofia-performance como método, recortando-a como um paradigma alternativo, performativo, alternativo para a abordagem da filosofia da(s) arte(s) que, historicamente, dominou abordagens para a estética. Este conclui por afirmar a chamada para o campo para a abordar a ética-política nas dimensões da produção de conhecimento não apenas em termos disciplinares, mas também geopolíticos.

Palavras-chave:
Filosofia-Performance; Performance; Teatro; Filosofia; Performatividade

Abstract:

This article introduces performance philosophy, despite the risk of performative contradiction such an act involves. First, it considers performance philosophy as a field that questions how performance thinks and thought is performed (including, specifically as philosophy). Drawing from Laruelle’s non-philosophy, it then addresses performance philosophy as method, framing it as an alternative, performative paradigm to the philosophy of the arts approach that has historically dominated approaches to aesthetics. It concludes by affirming the call to the field to address the ethico-political dimensions of knowledge-production in not only disciplinary, but also geopolitical terms.

Keywords:
Performance Philosophy; Performance; Theatre; Philosophy; Performativity

Résumé:

Cet article introduit la philosophie de la performance, malgré le risque de contradiction performative que comporte un tel acte. Premièrement, il considère la philosophie de la performance comme un domaine qui remet en question la manière dont la performance est pensée et pensée (en tant que philosophie). S'inspirant de la non-philosophie de Laruelle, il aborde ensuite la philosophie de la performance en tant que méthode, la présentant ainsi comme un paradigme alternatif et performatif de l'approche de la philosophie des arts qui a historiquement dominé les approches de l'esthétique. Il conclut en affirmant l’appel lancé sur le terrain pour aborder les dimensions éthico-politiques de la production de connaissances en termes non seulement disciplinaires, mais géopolitiques.

Mots-clés:
Philo-performance; Performance; Théâtre; Philosophie; Performativité

Prólogo: Filosofia-Performance ‘em dois ou mais lugares ao mesmo tempo’19 1 Retiro esta frase da recente discussão de Jon McKenzie sobre a relação da filosofia-performance com questões de institucionalização e, especificamente, legitimidade institucional (McKenzie apud Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 123). McKenzie também usa essa noção para aludir à dupla tendência da performance como prática ao mesmo tempo normativa e de resistência: “A performance refere-se, assim, às práticas mais normativas e às mais experimentais, até transgressoras da vida contemporânea: está em dois lugares ao mesmo tempo. Como pensá-la? No entanto, esse borrão de instabilidade tem sido o núcleo ou o cristal em torno do qual eu construí – e pratiquei – uma impossível teoria geral da performance”. (McKenzie apud Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 85).

Este artigo é uma resposta ao convite feito por Luciana Dias para que eu assumisse a tarefa de apresentar a Filosofia-Performance (Performance Philosophy): um campo emergente, interdisciplinar e internacional de pensamento, prática criativa e pesquisa; aberto a todos os pesquisadores preocupados com o relacionamento entre performance e filosofia em sentido amplo20 2 Para esta definição inicial, juntei várias definições existentes da filosofia-performance, conforme apresentadas na introdução à série de livros sobre filosofia-performance <https://www.palgrave.com/gp/series/14558>, na revista Performance Philosophy Journal <http: //www.performancephilosophy.org/journal> e na rede Performance Philosophy <http://performancephilosophy.ning.com>. . Isto é, embora o desenvolvimento do campo possa ser rastreado até a identificação de uma ‘virada filosófica’ dentro dos Estudos do Teatro e da Performance (por volta de 2008-2009) - no qual pesquisadores da área passaram a ter um interesse crescente pela filosofia, se envolvendo com esta em profundidade e foco ainda não vistos dentro do campo - posteriormente se tornou claro que o crescimento de tal interesse pela relação entre performance e filosofia era um fenômeno interdisciplinar maior, advindo não só da Filosofia mas também de outras disciplinas como Dança, Música e Artes Visuais, tanto quanto do Teatro e da Performance. Essa ‘virada’ se manifestaria não só em algumas publicações chave, como também num leque de outras atividades incluindo conferências, festivais e edições especiais dedicadas ao tema em revistas. Em 2012, fui integrante de um grupo formado por 11 pessoas que fundou a associação profissional e a rede de pesquisa, também chamada Performance Philosophy network, em parte devido ao reconhecimento do fato de que os últimos 15 anos testemunharam esse aumento sem precedentes de interesse internacional e interdisciplinar na relação entre performance e filosofia. Porém, ao mesmo tempo, o lançamento da Filosofia-Performance foi também uma espécie de ato performativo em si mesmo, na medida em que, simultaneamente, procurou trazer um novo campo à existência por meio do ato de nomeá-lo como tal.

Introduzir o campo emergente da filosofia-performance é uma tarefa complexa - não menos porque é, e tem sido desde o começo, um empreendimento coletivo. Como meu colega Theron Schmidt observou, seria certamente um engano pensar que qualquer voz singular (tal como a minha) pudesse encapsular ou falar pelo campo per se. Como tal, esta introdução somente deve ser lida como uma introdução entre outras; um relato parcial a ser considerado em conjunto com outros que possam perceber e articular o campo - suas preocupações, contextos, intuições e limitações - de maneiras notadamente distintas e por meio de divergentes vocabulários. Embora talvez não seja preciso dizer, ainda parece importante reconhecer e reiterar, explicitamente, que meu próprio relato ou perspectiva sobre a filosofia-performance não é, de modo algum, representativa ou exaustiva; não se propõe a ser definitiva, e não deve ser considerada como detentora de mais autoridade do que relatos existentes em outros lugares ou ainda por vir21 3 Para outras introduções ao campo, leitores interessados podem procurar por Inter Views in Performance Philosophy: Crossings and Conversations (2017) editado por Anna Street, Julien Alliot, e Magnolia Pauker; por Encounters in Performance Philosophy (2014) editado por mim e por Alice Lagaay; ou pela edição inaugural da revista Performance Philosophy (2015) editada por mim, mas englobando contribuições de uma ampla gama de filósofos, artistas e acadêmicos. Embora ainda um tanto eurocêntrico, o vindouro Routledge Companion to Performance Philosophy, editado por mim e pela Alice Lagaay, trará algumas tentativas iniciais em direção a uma abordagem um pouco mais global. . De fato, mantenho firmemente a visão de que a grande vitalidade do campo reside em sua própria multiplicidade, mutabilidade e abertura à autoria colaborativa em andamento (até mesmo através de uma coprodução que procura manter juntas, inclusive, posições de discordância e mutuamente exclusivas, apesar de suas diferenças).

Há uma ironia em tentar se situar fora da filosofia-performance para descrevê-la, uma contradição performativa aparente em oferecer uma explicação para ou comentar sobre filosofia-performance dadas as críticas que eu e outros temos tecido à abordagem desta como se fosse uma ‘filosofia da performance’. Para outros, e decerto para mim mesma em outros contextos, o trabalho mais interessante e importante é tentar fazer filosofia-performance, para produzir um entendimento sobre filosofia-performance por meio de sua prática. De fato, como é o caso em certos contextos de pesquisa artística, pode haver até uma impaciência com os caminhos pelos quais as práticas de se ‘falar sobre X’ (seja a pesquisa artística ou a filosofia-performance) podem parecer ter precedência sobre ‘realmente continuar fazendo X’, na medida em que o último pode bem se provar mais instrutivo ou ao menos, potencialmente, deter um caráter menos circular que o primeiro. Minha ambivalência profunda ao escrever um artigo como este, então - que sempre parece correr o risco de postular uma ‘visão vinda do nada’ totalizante ou de contradizer performativamente a própria imanência do campo, por procurar descrevê-lo - é compensada apenas pela contraperspectiva de que talvez a filosofia-performance possa se beneficiar de uma abordagem ‘tanto/quanto’: não apenas procurando sempre produzir-se de forma consistente, mas também se envolver em encenações temporárias e provisórias de (auto) observação - que deve ser entendida como parte de si mesma e minimamente performativa à sua própria maneira22 4 E, no entanto, a preocupação permanece: este (tipo de) artigo, por si só, é precisamente o tipo de ato de institucionalização e autorização que McKenzie, por sua vez, sugere que a filosofia-performance deve evitar? .

Ainda assim, sou grata à Revista Brasileira de Estudos da Presença por me dar esta oportunidade de refletir sobre o campo neste momento em particular: quando parece que a principal organização e rede de pesquisa para o campo, Performance Philosophy, passa por um importante período de mudança e autorreflexão crítica. E, de fato, a escrita deste texto também se dá em um momento em que o próprio campo atingiu, talvez, um certo grau de maturidade - de tal forma que poderíamos até nos permitir descartar a noção de um campo ‘emergente’ em prol de um já ‘emergido’, se não fosse o valor, para muitos, em continuar a considerar este como algo perpetuamente emergente, em processo, necessariamente inacabado (como também, se discute dentro dos Estudos da Performance e em outras áreas). Isto é, este texto me forneceu um contexto bem-vindo para documentar um processo (de novo, um dentre outros) do qual em Língua Inglesa podemos chamar de taking stock (‘fazer um balanço’). Esta atividade, em si mesma, está propensa a expor alguns dos muitos problemas aos quais a filosofia-performance pode querer se dirigir em termos do que realmente conta, do que pode e do que não pode ser contado ou contabilizado nesses tipos de ‘balanço’. Minhas reflexões aqui, inevitavelmente, talvez deem mais peso ao que já foi dito sobre filosofia-performance - na literatura produzida sobre o tema desde seu surgimento, por exemplo - do que em como ela tem sido multiplamente performada e encenada numa ampla variedade de formas, que pode ser textual, mas, sobretudo, também como ela vem sendo “incorporada” [ou tem ganho corpo] através de eventos, interações digitais e ao vivo, sons, imagens e por aí vai. Como uma série multilocalizada, internacional e contínua de eventos simultâneos de pensamento - que são ocasionalmente documentados em texto ou em outras formas - alguém não pode simplesmente “fazer um balanço” da filosofia-performance.

Filosofia-performance: (in)definição, (a)disciplinaridade & instituições (alternativas)

O que é filosofia-performance?

Desde que surgiu pela primeira vez por volta dos anos 2011/2012, o termo e o campo da ‘filosofia-performance’ alcançaram (se esta for a palavra correta) um grau de reconhecimento - tanto institucional quanto mais amplamente comunitário - como uma área de pesquisa. Escrevendo em 2015, meus colegas norte-americanos Wade Hollinghaus e Will Daddario (2015HOLLINGHAUS, Wade; DADDARIO, Will. Performance Philosophy : Arrived Just in Time? Theatre Topics, v. 25, n. 1, p. 51-56, March 2015., p. 51) descreveram a filosofia-performance como “ainda se consolidando como disciplina, tentando determinar o que é e o que pode fazer”, enquanto Andrés Fabián Henao Castro a chama de “uma disciplina em seus primeiros devires” (Henao Castro 2017, p. 190). Apesar de sua infância, o campo já possui uma associação profissional com 3000 membros de mais de 56 países diferentes, uma revista, uma série de livros e uma Conferência bienal. Como tal, trabalhos recentes têm descrito a filosofia-performance como um campo que está ganhando ‘impulso pela Europa e América do Norte’ visto que “[...] um número crescente de acadêmicos estão contribuindo com seus pontos de vista de modo a dar suporte para abordagens inovadoras em práticas de performance e pensamento” (Street; Alliot; Pauker, 2017STREET, Anna; ALLIOT, Julien; PAUKER, Magnolia (Ed.). Inter Views in Performance Philosophy : Crossings and Conversations. London: Palgrave Macmillan, 2017., p. 5). De sua parte, Alex Pittman (2016PITTMAN, Alex. Encounters in Performance Philosophy ed. by Laura Cull and Alice Lagaay and: Adorno and Performance ed. by Will Daddario and Karoline Gritzner (review). TDR: The Drama Review , New York, v. 60, n. 2, p. 166-169, 2016.) nota o modo pelo qual a filosofia-performance opera contemporaneamente de forma “titular” em relação a uma comunidade composta por “aqueles que identificam seu trabalho sob esse título” (Pittman, 2016, p. 166). Tendo ou não sido enquadrados como tal pelos seus autores, agora vemos alguns livros sendo descritos como trabalhos de ‘filosofia-performance’ (Pittman, 201623 5 Por exemplo, Pittman diz sobre The Undercommons (2013) de Fred Moten e Stefano Harney: “Com seus modos insurgentes e cacofônicos de pensar que pressionam tanto o senso comum do presente que eu não sei mais do que chamá-lo senão de ‘filosofia-performance” (Pittman, 2016, p. 168). ; Goulish, 2014GOULISH, Matthew. Endorsement. In: READ, Alan. Theatre in the Expanded Field: Seven Approaches to Performance. London; New York: Bloomsbury, 2014.). Existem referências à filosofia-performance como um rótulo ou categoria que podem, conquanto, ser usados, também, de forma retrospectiva - ela poderia, ainda, ser usada para descrever figuras históricas ou práticas ‘avant la lettre’ (Lagaay, 2015LAGAAY, Alice. Minding the Gap - of Indifference: Approaching ‘Performance Philosophy ’ with Salomo Friedlaender (1871-1946). Performance Philosophy , Guildford, v. 1, p. 65-73, April 2015. Available at: <Available at: http://www.performancephilosophy.org/journal/article/view/27/81 >. Accessed on: 03 May 2019.
http://www.performancephilosophy.org/jou...
).

Para começar pelos termos mais básicos - e consciente da resistência contínua do campo em afirmar qualquer definição essencial de ‘filosofia-performance’ per se - o campo atual da filosofia-performance pode, no entanto, ser caracterizado, de forma inicial, de várias maneiras: por seus colaboradores, por suas principais preocupações e atividades - muitas das quais têm sido facilitadas pela organização internacional também conhecida como Performance Philosophy24 6 Ao longo deste ensaio, usarei o termo ‘filosofia-performance’ (sem maiúsculas) quando pretender indicar o campo, método ou ideia da filosofia-performance, e usarei o termo ‘Filosofia-Performance’ (com maiúsculas) para indicar a organização ou rede de pesquisa com esse nome, fundada em 2012. Da mesma forma, vou pôr o termo ‘Filosofia’ em letra maiúscula quando pretender me referir à disciplina e à ‘filosofia’ sem maiúsculas, a fim de indicar práticas filosóficas em um sentido mais amplo. . Colaboradores do campo - por exemplo - são internacionais e interdisciplinares, incluindo tanto acadêmicos como pesquisadores trabalhando fora de contextos acadêmicos ou afiliações institucionais, incluindo estudiosos independentes e praticantes freelancers25 7 Atualmente, a rede de pesquisa Performance Philosophy possui aproximadamente 3000 membros de mais de 56 países diferentes, inscritos no site e na lista de discussão. . Estes englobam pesquisadores com uma extensa variedade de formações disciplinares e que trabalham com um amplo espectro de disciplinas: mais predominantemente talvez com Filosofia, Estudos da Performance, Teatro, Dança e Música, mas também com Política, História da Arte, Estudos Culturais, Literatura e Escrita Criativa, e muitas outras. A esse respeito, a filosofia-performance tem procurado dar um ‘lar’ para aqueles que se acharam ‘entre’ disciplinas como Filosofia e Performance, para artistas-filósofos e filósofos-artistas que possuam treinamento em ambas as áreas e que queiram continuar a praticar ambas (frequentemente diante de narrativas dominantes a insistir que precisamos ‘escolher’, que precisamos nos ‘especializar’), e para aqueles cujos trabalhos se movem entre disciplinas ou, por outro lado, desafiam as classificações convencionais.

Enfatizando a natureza parcial desta “prestação de contas”, o campo tem examinado estas questões em e através de múltiplas atividades e projetos - um bom número deles iniciados pela rede Filosofia-performance (Performance Philosophy network) desde 2012, mas muitos outros que agora poderiam ser interpretados como vinculados ao campo, porém, surgiram inicialmente de forma independente. Atualmente, as principais atividades da rede são produzir uma série de livros, uma revista online de acesso aberto e uma série de eventos bienais26 8 De fato, os leitores podem ter uma noção de uma dimensão importante do que a filosofia-performance é (reiterando que esta é muitas coisas) participando de um desses eventos, assim como lendo um artigo que se propõe introdutório, como este. . Um centro de pesquisas dedicado ao campo - o Centro para Filosofia-performance (Centre for Performance Philosophy) - foi fundado na Universidade de Surrey, no Reino Unido, em 2016.

Novamente, sem qualquer pretensão de esgotar o tema, eu posso também sugerir que dentre suas preocupações principais, pesquisadores do campo investigam uma ampla variedade de problemas, inclusive (porém de forma alguma limitado a) a questionar como ideias e práticas oriundas dos campos da performance e da filosofia podem ser produtivamente conectadas em formas que sejam revigorantes e potencialmente transformadoras para ambos. Os pesquisadores de filosofia-performance estão engajados em questionar a natureza do ato de pensar em si mesmo; seja em termos de ‘pensamento pós-ideacional’ (McKenzie), seja em pensar o pensamento para além do Eu/sujeito do pensamento. A esse respeito, há preocupação quanto à natureza da relação entre formas de pensamento que incluam conceitos, textos e enunciados, mas também imagens, movimentos, sons, afetos, e objetos materiais; como também explorações das “noções de performance como um novo paradigma de práticas de conhecimento” (Street; Alliot; Pauker, 2017STREET, Anna; ALLIOT, Julien; PAUKER, Magnolia (Ed.). Inter Views in Performance Philosophy : Crossings and Conversations. London: Palgrave Macmillan, 2017., p. 7). Há pesquisadores investigando a relação entre escrita e performance, seja escrita/ texto em performance, seja filosofia como escrita - inclusive com considerações sobre a questão das mídias da filosofia e o papel futuro do livro. Há preocupações com questões relacionadas à política do conhecimento: conhecimento como meio de se ter domínio sobre o mundo; postular ideias sobre a especificidade local (site-specific) da produção do conhecimento versus um conhecimento universal que é parte de um discurso maior que sustenta estruturas opressivas de conhecimento / poder. O trabalho aborda como a prática performativa e filosófica pode sustentar a articulação de alternativas para as políticas de identidade, inclusive através da consideração dos relacionamentos entre diferenças sociais e ontológicas, explorando a produção de si mesmo / de sua identidade por meio de ações performativas, no que se refere a tensões entre o normativo e o experimental.

No meio desta miríade de preocupações, a filosofia-performance detém um interesse particular nas relações entre forma, conteúdo e meio (medium) no que se refere à filosofia, à teoria e ao pensamento. Como Anna Street observou, ‘a questão do meio (medium) persiste no centro do desenvolvimento desse empreendimento chamado Filosofia-Performance’ (Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 97) - juntamente com um desejo de se revisitar o que permanece em muitos contextos como formas-padrão inquestionáveis de como o pensamento é compartilhado - do congresso acadêmico ao livro. A esse respeito, a Filosofia-Performance como organização tendeu a compartilhar com agrupamentos como o SenseLab no Canadá (ver Manning; Massumi, 2014MANNING, Erin; MASSUMI, Brian. Thought in the Act: Passages in the Ecology of Experience. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014., p. 90-98), uma resistência ao ‘modelo de comunicação’ de pensamento em favor de um modelo performativo - por exemplo, por abarcar os ‘formatos sem papel’27 9 Por exemplo, para o primeiro evento do SenseLab, Dancing the Virtual, em 2005: “Foi proibida a apresentação de trabalhos já concluídos de qualquer tipo. Isso não significava que os participantes entrariam como folhas em branco. Pelo contrário, foram incentivados a trazer tudo, menos o trabalho concluído. Eles foram incentivados a apresentar todas as suas paixões, habilidades, métodos e, principalmente, suas técnicas, mas sem uma ideia pré-determinada de como elas entrariam no evento Dancing the Virtual” (Manning; Massumi, 2014, p. 97). . Esta questão sobre como a filosofia é performada, inclusive as formas de ‘Teoria’ na idade da mídia inteligente têm sido particularmente posta em primeiro plano por Jon McKenzie, que pergunta: “Como performaremos ou faremos teoria no século XXI? Que papel pode ter a Filosofia-Performance? E precisamos fazer filosofia pelas regras de sua tradição? Precisamos ficar presos ao livro e a escrita?28 10 Nota da tradução: Aqui foi usada uma expressão, And must one do philosophy by the book?, que se mostra como um trocadilho intraduzível, uma vez que fazer algo by the book (pelo livro) tem sentido, em inglês, basicamente de seguir as regras. Neste sentido, o autor questiona, ao mesmo tempo, se a filosofia precisa ficar presa às regras de sua tradição tanto quanto ao livro/ escrita como formato. Poderá a filosofia - assim como a teoria - sobreviver à incorporação pelo graphe, pela plasticidade, pela transmediação? Como poderão sobreviver?” (McKenzie apud Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 84, grifos meus). Isto é, pelo menos enquanto as editoras acadêmicas de larga distribuição, no Reino Unido e na América do Norte parecem, ao menos, estar se arrastando para repensar as possibilidades de publicação na era digital29 11 Como McKenzie explica: “A mídia inteligente (Smart media) faz surgir gêneros acadêmicos que incluem ensaios em vídeo, teoria comix, TED talks e dezenas de outras formas de mídia. Esses gêneros complementam os gêneros acadêmicos tradicionais de livros e artigos e emergem da cultura popular, dos negócios e dos contextos acadêmicos. Em geral, trabalhar com mídia inteligente envolve pensar em interatividade multimídia, apresentar-se em novos locais e envolver novos públicos. Em um nível mais profundo, a mídia inteligente implica um redesenho maciço de nossa experiência de conhecimento e uma reestruturação de sua arquitetura subjacente, pois a mídia inteligente abre um novo espaço para o pensamento” (McKenzie apud Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 86). .

Nas abordagens dominantes da Filosofia, pelo menos na esfera anglo-europeia, há poucas considerações sobre questões de forma. Como o especialista em Platão, MM McCabe, observou recentemente, por exemplo, o saber em Platão tende a focar mais no suposto ‘conteúdo’ dos diálogos do que em sua forma dramática30 12 Tomo essas ideias de uma contribuição de MM McCabe para uma oficina recente de filosofia-performance On Dialogue, co-organizado pelo Centro de Filosofia-Performance, em Surrey e pelo Center for Philosophy and the Visual Arts no King’s College London em abril de 2019. . Por sua vez, como enfatizado por Martin Puchner, essa falta de atenção à forma habilitou o estereótipo continuado de Platão como sendo simplesmente uma figura “anti-teatral” apesar do seu comprometimento contínuo com a exploração de ideias na forma teatral. O campo da filosofia-performance, em contraste, tem sido um lugar no qual pesquisadores, buscando investigar a relação entre a forma e o conteúdo filosófico, começaram a se congregar. Colegas na Alemanha, na Áustria e na República Checa têm talvez avançado em particular no nosso entendimento destas questões: por meio de projetos como o Filosofia no Palco, em Viena. Em muitos casos, essa é uma questão de pesquisadores oriundos da Filosofia, ou lotados em departamentos acadêmicos de Filosofia, procurando questionar como a filosofia é praticada, ensinada, disseminada e assim por diante. Essas considerações têm sido proeminentes nos eventos bienais organizados pela rede Filosofia-Performance desde 2013. Originalmente referida como uma ‘conferência’ bienal, estes eventos têm se tornado crescentemente preocupados com questões de forma, formato e estrutura - procurando abordar a própria ‘conferência’ como performance: a qual performativamente produz eventos do pensamento (ao invés de representar o pensamento já feito em outro lugar), e se põe como um lugar de experimento de como o pensamento pode ser performado para além dos formatos acadêmicos tradicionais. O clamor aqui não é a rejeição do formato acadêmico padrão de conferências/ comunicações como de algum modo necessariamente pacificador ou autoritário - mas sim um chamado para que prestemos maior atenção à forma adotada por modos de pensamento em particular, e para que se considere um formato como o da ‘comunicação’, como um dentre outros possíveis ao invés de um modelo padrão inquestionável.

Uma das minhas próprias preocupações principais na área tem sido pôr em primeiro plano uma agenda metodológica: buscar questionar, tanto em termos epistemológicos quanto ético-políticos, a primazia do paradigma no qual a filosofia é aplicada à performance, que se torna, assim, um objeto de estudo (seja via Filosofia, seja via Estudos Teatrais e/ou Estudos da Performance). Como desenvolverei na sequência, gostaria de sugerir que uma meta do campo deve ser abordar o encontro entre performance e filosofia como sendo um encontro performativo, capaz de transformar nosso entendimento de ambos os termos; mas também de demonstrar como implementar tal filosofia-performance na prática. Como a performance pensa? Como pode a filosofia pensar ao longo da performance (como uma filosofia-performance ao invés de uma filosofia da performance)? Como ela pode criar um novo pensamento a partir da performance ao invés de meramente aplicar conceitos prontos a ela? Como podemos praticar (como o pensador contemporâneo francês François Laruelle poderia chamar) uma ‘igualdade radical’ no pensamento? O que poderia significar ter uma ‘igualdade radical’ como demanda para a própria performance do pensamento? Dessa maneira, como Street, Alliot e Pauker (2017STREET, Anna; ALLIOT, Julien; PAUKER, Magnolia (Ed.). Inter Views in Performance Philosophy : Crossings and Conversations. London: Palgrave Macmillan, 2017.) sugerem, a rápida expansão da filosofia-performance e a ausência de uma linha temporal em seu projeto pode falar por um senso compartilhado de urgência em torno da necessidade de reinventar nossas práticas de conhecimento em relação às formas de pensamento que tendem a ser desvalorizadas, marginalizadas ou excluídas - inclusive o conhecimento baseado-em-artes31 13 Ver Street et al.: “Mais do que um mero experimento de pesquisa, este trabalho responde a uma urgência manifestada pela expansão da Filosofia-Performance – uma urgência para reinventar práticas de conhecimento, a fim de abordar e criar condições de possibilidade para o que é frequentemente marginalizado no Discurso acadêmico ocidental: intuição, emoção, gestos, pluralidade, discórdia. De todos os continentes e disciplinas, os textos aqui apresentados celebram essa diversidade, convidando-nos a pensar e trabalhar juntos por meio de atos performativos” (Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 21). .

Claro que um interesse na relação entre performance e filosofia não é algo novo em si mesmo. Como Nicolas Truong colocou, em entrevista recente com Alain Badiou, “Desde seu nascimento conjunto na Grécia, teatro e filosofia têm... vivido como um velho casal ao longo de 2.500 anos de história” (Truong apud Badiou, 2015BADIOU, Alain. In Praise of Theatre. Translated, with an introduction and notes by Andrew Bielski. Cambridge, UK; Malden, USA: Polity Press, 2015., p. 24). Por vezes, esse tem sido um relacionamento tenso, como no caso de Platão e o aparente paradoxo de que uma das críticas mais pesadas ao teatro tenha justamente adotado a forma teatral do diálogo para articular seu argumento, diálogos os quais seguiram em frente a ser performados como trabalhos teatrais a sua maneira. Por outras, têm sido um caso de entusiasmo mútuo bastante desenfreado: como no aceite Schopenhaueriano do teatro por Nietzsche - especificamente da tragédia grega - como tendo a capacidade de fornecer uma intuição privilegiada da realidade metafísica e a subsequente recepção estática de Nietzsche por dramaturgos modernos tais como Strindberg e Eugene O’Neill (Kornhaber, 2016KORNHABER, David. The Birth of Theater from the Spirit of Philosophy: Nietzsche and the Modern Drama. Evanston: Northwestern University Press, 2016.).

Nesse sentido, não estou sugerindo que estas questões - e em particular não quando tomadas isoladamente - sejam de algum modo exclusivas da filosofia-performance. Ao invés, como sugeri de início, aqueles que se dedicam à filosofia-performance podem fazê-lo paralelamente e conversando com trabalhos em andamento em outros campos nos quais perguntas semelhantes estão sendo feitas. E, no entanto, o que pode ser específico à filosofia-performance é a oportunidade que o campo oferece para “reunir recursos” em tais assuntos, mas também para chamar nossa atenção para as políticas e práticas de como essa “reunião” é performada: como diversos conhecimentos podem entrar em contato um com o outro sem reproduzir antigas hierarquias.

A novidade aqui, talvez, seja o esforço de aproximar, de fazer conversar entre si um conjunto de atividades, de outro modo, dispersas e, até agora, de algum modo isoladas - com base no senso de que compartilham uma série de questões sobrepostas, não apenas com o que os “filósofos de verdade” tinham a dizer sobre teatro e performance ou sobre como as teorias filosóficas podem nos ajudar a analisar as artes cênicas (embora sejam parte delas), e também com:

  • A definição destes termos chave: teatro, performance, filosofia, pensamento;

  • A natureza, função e formas possíveis ou modos de se fazer filosofia (ela própria entendida como uma prática e potencialmente como uma prática performativa);

  • Com as várias modalidades nas quais pode-se entender o ‘pensamento’ como tendo lugar - não apenas como o ato consciente na mente de um sujeito humano intencional, mas em termos de um pensamento através do corpo, ou do fazer-pensar da prática performativa, ou de uma ideia mais impessoal de pensamento como aquilo que produz um sujeito ao invés de ser autorado por um “eu” pré-existente, e até possivelmente de um pensamento animal não-humano ou até mesmo de uma assim chamada materialidade inanimada;

  • A relação entre esses modos e o pensamento que contamos como ‘filosófico’ - caso exista algo que diferencie o modo como o teatro e a performance pensam em relação à filosofia; o que isso pode significar em termos de ‘performance como filosofia’.

A esse respeito, a Filosofia-Performance não é apenas sobre interdisciplinaridade para seu próprio bem, mas, a partir da posição de que pode haver algo conceitual e talvez até politicamente importante sobre habilitar a pesquisa em performance para que esta contribua para debates mais amplos em relação à nossa compreensão da natureza do pensamento, explorar modos alternativos de se relacionar com a filosofia, que não seja a posição um tanto quanto diferencial em que a performance considera a si mesma como mero objeto ou ilustração de teorias filosóficas existentes.

Em termos da organização, os colaboradores fundadores escolheram o nome Performance Philosophy, de uma forma até deliberada, evitando a separação (em língua inglesa) dos dois termos por um ‘e’ ou um hífen ou uma barra, visando - assim esperamos - deixar aberta a questão da natureza do relacionamento entre elas32 14 Nota da tradução: A miríade de significados implícitos no termo Performance Philosophy torna sua tradução complexa em qualquer língua neolatina. Ao contrário da língua inglesa, na qual o hífen reduz a gama de significados possíveis, em português este pode ter o efeito contrário: uma vez que o hífen possibilita subtrair o da (of) da expressão filosofia da performance, acaba por manter, ao contrário, a relação entre os termos e seus significados possíveis em aberto. A respeito da escolha pela tradução de Performance Philosophy como Filosofia-Performance, sugere-se consultar outro artigo presente neste número, intitulado Crise da Representação, Virada Performativa e Presença: possibilidades rumo a uma Filosofia-Performance, no qual esta questão (da tradução) é aprofundada. . Para alguns críticos, como Martin Puchner, este gesto sinalizou uma ambição ao mesmo tempo ingênua e perigosa, a saber: fundir ou unir performance e filosofia às custas de se reconhecer as diferenças profundas e significativas entre elas. Exortando-nos a ter atenção ao vão que as separa (ou Mind the gap33 15 Nota da tradução: Mind the Gap é uma expressão corriqueira nos metrôs e trens dos países anglófonos, que pede aos passageiros extrema atenção ao vão entre o vagão e a plataforma, de modo a evitar acidentes. Puchner (2013) usa essa frase como um trocadilho para criticar o campo emergente, de modo a exortar uma necessária separação (vão ou lacuna) entre os termos, a qual, em sua crítica, estaria sendo deixada de lado. ), Puchner disse:

O que torna o estudo do teatro e da filosofia interessante, até excitante, é o próprio fato de que os dois são totalmente diferentes e irreconciliáveis. É o e que faz toda diferença; é o vão [the gap] entre o teatro e a filosofia que torna o estudo da relação entre eles interessante, e até possível, em primeiro lugar. O estudo do teatro e da filosofia deve tomar como ponto de partida este vão, e este vão deve permanecer à frente de nossa investigação (Puchner 2013PUCHNER, Martin. Afterword: Please Mind the Gap between Theatre and Philosophy. Modern Drama, v. 56, n. 4, p. 540-553, 2013. , p. 543).

Contudo, eu argumentaria que muito depende do que queremos dizer com ‘filosofia’ e ‘teatro’ ou ‘performance’ nesse contexto - como eles estão sendo identificados tal que possam ser declarados como fundamentalmente distintos. De sua parte, quando Puchner diz ‘filosofia’ e ‘teatro’, ele se refere a ambos entendidos como ‘tradições intelectuais’ e ‘disciplinas acadêmicas’ em seus arranjos institucionais, nos quais, como ele sugere, a filosofia possui substancialmente mais poder e prestígio arraigados a ela do que o teatro e a performance. E decerto, aceito que o uso do termo ‘filosofia’ para designar uma área acadêmica de estudo ou departamento institucional, tem uma história específica que pode ser contrastada com a história do uso do termo ‘teatro’, no mesmo contexto. De fato, claro que, em alguns contextos, os limites do que é considerado ‘filosofia de verdade’ ainda são rigorosamente policiados - embora isso também envolva a exclusão de algumas práticas minoritárias dentro da filosofia como disciplina acadêmica, tanto quanto daquelas originárias de outras disciplinas. Em outras palavras, não estou propondo uma agenda imperialista equivocada de substituição da Filosofia e dos Estudos da Performance - como disciplinas acadêmicas - pela Filosofia-Performance como ‘um campo unívoco de pesquisa compartilhado’ (o que parece ser a preocupação de Puchner). Pelo contrário, o que estou contestando é a ideia de que ‘performance’ e ‘filosofia’ sejam redutíveis às suas histórias institucionais; que somente o contexto acadêmico ou universitário condicionem suas respectivas identidades. Performance e Filosofia são muito mais do que isso. E, de fato, em parte por conta de seu excesso, não tenho certeza de que elas tenham identidades ou essências de todo, tal que pudéssemos fazer alegações duras e rápidas sobre sua distinção. E não estou sozinha nesta perspectiva.

O problema com/das definições

Como observei de início, a filosofia-performance tem sido bastante resistente a definições - seja para definir a si mesma ou em definir seus termos agregados, ‘performance’ e ‘filosofia’. Ou, de novo, o campo não buscou construir um conceito de filosofia-performance sobre a natureza da performance ou da filosofia, pois reconhece que nenhum dos termos oferece algo “estável ou determinado que possa atuar como base” (Cazeaux, 2017aCAZEAUX, Clive. Art, Research, Philosophy. London; New York: Routledge, 2017a., p. 34)34 16 Aqui estou adaptando o útil trabalho que o filósofo britânico Clive Cazeaux (2017a) realizou sobre o conceito de ‘pesquisa artística’ e sua relação com a definição de arte em seu livro mais recente. . Este senso de instabilidade é apenas aprimorado neste contexto multilíngue35 17 Da mesma forma, ao abordar a relação entre a Filosofia-Performance e o contexto francês, os editores da Inter Views observam que: “Nenhuma tradução verdadeiramente equivalente da palavra ‘performance’ existe no idioma francês” (Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 6). No entanto, eles continuam sugerindo que “[...] isso não vem ao caso, pois, como Derrida apontou em sua conversa com Searle, o pensamento francês transborda de características performativas e afinidades exuberantes às práticas artísticas e teatrais, enfatizando o meio por sobre o conteúdo” (Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 6). .

Em se tratando da filosofia, além das definições de caráter geral de filosofia como a ‘investigação racional preocupada em estabelecer conhecimento e verdade’, inúmeros filósofos têm procurado abordar a questão (filosófica) par excellence - ‘o que é filosofia?’ - retornando com respostas que vão desde ‘a criação de conceitos’ (Deleuze) até a ‘reaprender a olhar o mundo’ (Merleau-Ponty). Por sua vez, John Ó Maoilearca nota como para:

[...] o filósofo analítico Ilham Dilman, a filosofia genuína preocupa-se com o modo como pensamos, como estamos cientes de nosso ambiente, como falamos e nos comunicamos, com a natureza da linguagem, da matemática, das ciências empíricas, da psicologia, da sociologia e, é claro, da própria filosofia. Ela tenta ‘esclarecer’ esses tópicos, preocupando-se com ‘sentido ou significado’ o tempo todo (Ó Maoilearca, 2019).

Mas sem que consenso algum emerja, parece que o fato de a filosofia não ter nem um objeto definido nem uma abordagem específica para este contribui para sua crise de identidade em andamento. De sua parte, Jacques Derrida uma vez pontuou: “Devo dizer honestamente que agora, menos do que nunca, eu sei o que é a filosofia ... É tão impossível dizer o que a filosofia não é, quanto é dizer o que é” (apud Mullarkey, 2009MULLARKEY, John. Refractions of Reality: Philosophy and the Moving Image. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2009., p. xvi). Por sua vez, Judith Butler disse recentemente:

Tenho certeza de que não defino filosofia, mas aceito a filosofia como um campo em que sua definição é constantemente contestada. Acho que talvez me oponha a qualquer definição de filosofia, para que o campo de contestação sobre seu significado e direção possa permanecer aberto. Então, para mim, a filosofia assume formas institucionais e extra-institucionais, disciplinares e extra-disciplinares, e parece não haver maneira de contornar essa situação. Nem devemos tentar encontrar uma maneira de contorná-la. Os esforços para institucionalizar o que a filosofia deve ser produzem apenas ‘outra’ filosofia, aquela pela qual é assombrada. Então, onde quer que haja uma definição de filosofia, há vários fantasmas ativos em cena. Talvez seja importante, então, que a filosofia se torne uma cena desse tipo, implicada em um problema de teatro (Butler apud Street; Alliot; Pauker, 2017STREET, Anna; ALLIOT, Julien; PAUKER, Magnolia (Ed.). Inter Views in Performance Philosophy : Crossings and Conversations. London: Palgrave Macmillan, 2017., p. 220).

Os pesquisadores em filosofia-performance também observaram as diferentes maneiras pelas quais o termo ‘filosofia’ pode ser ouvido em diferentes contextos nacionais, e as maneiras pelas quais isso pode impactar na recepção do campo. A esse respeito, talvez possamos considerar adaptar a abordagem de Sara Ahmed (2017AHMED, Sara. Living a feminist life. Georgia: Duke University Press, 2017.) à questão do feminismo, perguntando a nós mesmos o que ouvimos quando ouvimos o termo ‘filosofia’ (e por quê). Mais comumente em meu próprio contexto, eu me pego tendo que lidar com suposições de que a filosofia é um empreendimento seco, acadêmico, preso a uma escrivaninha; algo praticado quase que exclusivamente por homens ocidentais brancos e a reforçar um cânone restrito de pensamento produzido quase que exclusivamente por outros homens ocidentais brancos (vivos ou mortos). E, de fato, dados os problemas em andamento com questões ligadas à igualdade e diversidade no campo profissional da Filosofia (pelo menos no Reino Unido e nos EUA), algumas dessas suposições não são infundadas.

Em termos de ‘performance’, isso se relaciona tanto à multiplicidade quanto à natureza interdisciplinar e experimental da performance no contexto das artes, mas também se refere à expansão e aplicação do conceito de performance para além das artes. Desde a virada performativa, e particularmente desde o trabalho de estudiosos de Estudos da Performance como Richard Schechner, argumenta-se que não há limite para os acontecimentos e comportamentos que podem ser considerados ‘como performance’. Jon McKenzie sugere que “performance será nos séculos XX e XXI o que disciplina foi para os séculos XVIII e XIX” (McKenzie, 2001MCKENZIE, Jon. Perform or Else: From Discipline to Performance. London; New York: Routledge , 2001., p. 18). De fato, vale a pena notar que empresas e corporações, por exemplo, frequentemente falam em ter uma filosofia, como a filosofia que rege o desempenho [ou a performance]36 18 Nota da tradução: Importante não perder de vista que, embora performance seja uma palavra incorporada a nosso vocabulário, trata-se de uma palavra originalmente de língua inglesa, cuja tradução ao pé da letra seria, justamente, a de desempenho. da empresa - significando algo como uma visão ou política de desempenho no sentido do comportamento individual dos funcionários e da organização. A performance [no sentido de desempenho] aqui alude à consecução de objetivos e metas de maneira eficaz e eficiente; o desempenho é algo que pode ser medido, gerenciado e ter como resposta recompensa ou punição, desde os extremos de um bônus até o impacto devastador de uma avaliação de ‘baixo desempenho’. Como o trabalho de McKenzie mostra, e como a experiência de todos nós em universidades cada vez mais corporativas deixa claro, este sentido do termo, ‘Performance Philosophy’ [como ‘filosofia de desempenho’], não pode e não deve ser separado do sentido que estou desenvolvendo aqui - embora se possa ter esperança que este venha a ser tão crítico e autorreflexivo quanto.

A esse respeito, se houver algum consenso surgindo nos Estudos da Performance, é o de que - como Shannon Jackson coloca - o termo performance permanece ‘resolutamente impreciso’ (Jackson, 2011JACKSON, Shannon. Social Works: Performing Art, Supporting Publics. London; New York: Routledge, 2011., p. 13). Ou seja - enquanto alguns, como Marina Abramović, continuam a definir performance e especificamente performance art de acordo com uma oposição simplista ao teatro - onde o primeiro é real e o último falso - meu senso é que a maioria dos pesquisadores está mais próxima da visão de RoseLee Goldberg (2001GOLDBERG, RoseLee. Performance Art: From Futurism to the Present. London: Thames and Hudson, 2001.) de que “qualquer definição estrita [de performance] negaria imediatamente a possibilidade de performance em si”. Em outras palavras, pode-se argumentar que é precisamente essa indefinibilidade ou uma resistência à identidade e identificação, paradoxalmente, que define a performance como tal. Nesse sentido, a falta de identidade ou essência não precisa ser vista como algo ruim - nem para a filosofia nem para a performance. Articulada positivamente, essa é simplesmente outra maneira de reconhecer suas multiplicidades ou pluralidades e suas contínuas transformações como processos e não como objetos; suas constantes mutações e autodiferenciações em relação a outros processos que encontram.

Essa recusa de definição, é claro, assim como esse propósito aparente da filosofia-performance de se manter, em algum grau, como selvagem ou mesmo como um campo aberto, deixará este exposto a críticas de modo similar às críticas dos Estudos da Performance realizadas por figuras como Gay McAuley (apud Schechner 2017SCHECHNER, Richard. Performance Studies: An Introduction. 3. ed. London; New York: Routledge , 2017.)37 19 Ver McAuley (apud Schechner 2017, p. 38): “Há uma tendência nos estudos da performance de difundir cada vez mais a rede, aceitando uma gama cada vez maior de práticas de performance como objetos legítimos de estudo. Embora essa abertura tenha suas atrações, há problemas com a noção de um “campo sem limites”; parece-me que, embora o entendimento do que se constitui como performance possa diferir de cultura para cultura ao longo do tempo, precisamos definir com algum cuidado o que queremos dizer com isso aqui e agora. Minha regra geral é que, para que uma atividade seja considerada performance, ela deve envolver a presença ao vivo dos artistas e daqueles que a testemunham, que deve haver alguma intencionalidade por parte do artista ou da testemunha ou de ambos, e que essas condições, por sua vez, requerem análise do local e da temporalidade que permitem que ambas as partes estejam presentes uma à outra, bem como o que pode ser descrito como o contrato de performance entre elas, explícito ou implícito ”. Por outro lado, e como discuti em relação à filosofia anglo-americana do teatro, também podemos observar as maneiras pelas quais mesmo essas tentativas mínimas de definição são circulares em relação aos contraexemplos. . No entanto, a esse respeito, talvez seja menos sobre a filosofia-performance querer acabar com as discussões de definição e mais sobe procurar chamar a atenção para os dramas históricos e contínuos de uma definição de performance. Lutas por definição estão constantemente ocorrendo em uma variedade de palcos contemporâneos; as múltiplas identidades de ‘performance’ e ‘filosofia’ são produzidas de forma performativa no contexto de uma variedade de terrenos entrecruzados - acadêmico, profissional, artístico, público - de maneiras que, em graus variados, repetem e resistem às convenções / tradições / hábitos / rotinas que as possam roteirizar. Como em todos os locais de produção de identidade, o processo contínuo de se determinar o que conta como performance ou filosofia, quem conta como performer ou filósofo, é uma luta entre uma miríade de formas de poder, operando em vários níveis - individual, coletivo, institucional, social, e assim por diante. Portanto, quando perguntamos: “o que é performance ou o que é filosofia?” (como o fazem tanto os campos da Filosofia como dos Estudos da Performance), é menos uma questão de tentar chegar a um consenso sobre a ‘essência’ ou as ‘condições necessárias e suficientes’ e mais uma questão de observar como os processos de definição e / ou como a dramaturgia política da produção de identidade estão tendo lugar nos contextos particulares em que nos encontramos.

E assim como os Estudos da Performance antes dela, a filosofia-performance tem sido resistente à noção de disciplinaridade. De fato, Jon McKenzie sugeriu que: “Os desafios enfrentados pela Filosofia-Performance ressoam com os enfrentados pelos Estudos da Performance nas décadas de 1980 e 1990: ou se tornar uma ciência integrada, uma disciplina - ou de alguma forma permanecer uma ciência revolucionária, um campo sempre emergente” (McKenzie apud Street; Alliot; Pauker, 2017STREET, Anna; ALLIOT, Julien; PAUKER, Magnolia (Ed.). Inter Views in Performance Philosophy : Crossings and Conversations. London: Palgrave Macmillan, 2017., p. 123). Muitos de seus defensores mais proeminentes veem na recusa rebelde dos Estudos da Performance em ser “fixado”, em sua resistência a determinar seus próprios limites como um campo como algo que é, na verdade, essencial para sua identidade. Por exemplo, Diana Taylor afirma: “Considero a indefinibilidade e a complexidade dos Estudos da Performance extremamente tranquilizadoras’, enquanto Lois Weaver descreve os Estudos da Performance como ‘um porto seguro para aqueles que não conseguem seguir as regras” (apud Schechner, 2017SCHECHNER, Richard. Performance Studies: An Introduction. 3. ed. London; New York: Routledge , 2017.). Por seu lado, McKenzie continua com o aviso de que: “Se a filosofia-performance procura intervir principalmente dentro da academia, pode muito bem se tornar uma ciência normalizada por fazê-lo ... Se a filosofia-performance se preocupar em legitimar-se por meio de formas, métodos e infraestruturas tradicionais, estará em grande parte em conformidade com as práticas de conhecimento dominantes, em vez de desafiá-las. Ou talvez possamos imaginar e praticar maneiras de se estar em dois ou mais lugares ao mesmo tempo” (McKenzie apud Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 123). Da mesma forma, David Zerbib encoraja o campo a ‘tirar proveito de uma certa autonomia institucional’ e a considerar parte de seu papel e função propor “alternativas a instituições [existentes]” (Zerbib apud Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 336).

Além da Aplicação

Uma área central de preocupação na filosofia-performance tem sido, até agora, a articulação de críticas e alternativas ao paradigma da aplicação na relação entre a filosofia e as artes. Por ‘aplicação’, queremos dizer: uma tendência, dentro da filosofia da arte ou em campos relacionados como a teoria da arte, em usar a obra de arte mais como um meio para ilustrar um conjunto de ideias pré-existentes, do que gerar novas. Privilegiar uma ideia dada do pensamento filosófico em detrimento do pensamento artístico, ao invés de permitir que as artes expandam nossa compreensão da filosofia e até do pensamento. Quando pensamos em aplicação, também podemos pensar em: uma relação unidirecional entre filosofia e artes, na qual se entende que um conceito muda a maneira como percebemos as artes, mas pouca atenção recíproca é dada à capacidade de as artes mudarem o modo como entendemos um conceito.

Por sua vez, podemos querer reconhecer que a aplicação arrisca um tipo de parasitismo que tem duas vias, na medida em que os artistas podem usar a filosofia para adicionar peso conceitual à sua prática, ou adotar uma abordagem ilustrativa da prática, que deposita pouca fé no processo criativo, seja na forma ou no evento em si mesmo para gerar um pensamento inesperado. Ou de novo, como Esa Kirkkopelto (2015KIRKKOPELTO, Esa. For What Do We Need Performance Philosophy ? Performance Philosophy , Guildford, v. 1, p. 4-6, 2015. Available at: <Available at: http://dx.doi.org/10.21476/PP.2015.117 >. Accessed: May 3, 2019.
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) discutiu, mesmo que a filosofia continue sendo um recurso muito útil para os artistas apoiarem a articulação da performance - incluindo, especificamente, a própria noção de performance como pesquisa, como um modo de pensar, modo de investigação ou mesmo como um tipo de filosofia em si - pode ser que a filosofia continue a servir como autoridade legitimadora em tais discursos. Como Kirkkopelto coloca:

Os artistas que se voltam para a filosofia e os filósofos arriscam-se, inerentemente, a permanecerem unilaterais: os ‘pensadores’ tendem a ser usados como autoridades supremas, cujo papel no discurso é enquadrar a área do questionamento e definir sua orientação básica. Não há como criticar ou desafiar Deleuze, Merleau-Ponty, Foucault, Dewey ou Wittgenstein através da prática humilde de alguém! Do ponto de vista do artista, no entanto, esse tipo de delimitação preliminar é profundamente comprometedora. Do ponto de vista filosófico, por sua vez, a própria relação permanece em si mesma não-filosófica. Quando, então, artistas-pesquisadores realmente pensam filosoficamente?’ […] O mais importante é reconhecer a natureza genuína, em outras palavras a posição filosófica, das perguntas que os praticantes apresentam para suas comunidades artísticas e acadêmicas, bem como para uma sociedade mais ampla (Kirkkopelto, 2015KIRKKOPELTO, Esa. For What Do We Need Performance Philosophy ? Performance Philosophy , Guildford, v. 1, p. 4-6, 2015. Available at: <Available at: http://dx.doi.org/10.21476/PP.2015.117 >. Accessed: May 3, 2019.
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, p. 6).

Nesse sentido, qualquer compromisso renovado dos filósofos com a performance pode não ser recebido como motivo de celebração por si só; o que importa (para profissionais e estudiosos da performance) é como esse engajamento ocorre. E, de fato, eu gostaria de sugerir que há um consenso crescente entre pesquisadores preocupados com a relação entre a filosofia e as artes: de que os estudiosos devam encontrar alternativas para a instrumentalização mútua e as desigualdades disciplinares que advém do paradigma de aplicação, i.e: dessa perspectiva de uma ‘filosofia da arte’, perspectiva que, historicamente, dominou a estética e da teoria das artes. Seja em relação à Música (Bowie, 2007BOWIE, Andrew. Music, Philosophy, and Modernity. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.), Cinema (Sinnerbrink, 2011SINNERBRINK, Robert. New Philosophies of Film: Thinking Images. London; New York: Continuum, 2011.; Mullarkey, 2009MULLARKEY, John. Refractions of Reality: Philosophy and the Moving Image. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2009.), Dança (Cvejić, 2015CVEJIĆ, Bojana. From Odd Encounters to a Prospective Confluence: Dance-Philosophy. Performance Philosophy , Guildford, v. 1, n. 1, p. 7-23, 2015. Available at: <Available at: http://dx.doi.org/10.21476/PP.2015.1129 >. Accessed on: May 3, 2019.
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) ou práticas interdisciplinares de artes (Manning; Massumi, 2014MANNING, Erin; MASSUMI, Brian. Thought in the Act: Passages in the Ecology of Experience. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014.), filósofos e teóricos contemporâneos estão cada vez mais exigindo uma filosofia que venha das artes, e não que seja sobre as artes, na medida em que esta última tende a reproduzir as hierarquias entre a filosofia e as artes como modos de conhecimento. No centro desse apelo, para muitos, está a visão de que as próprias artes são filosóficas, podem fazer filosofia ou podem contribuir de forma independente à filosofia, acima e além de sua capacidade em servir como mera aplicação ou ilustração para ideias filosóficas pré-existentes ou simples exemplos usados para justificar reivindicações ontológicas.

Por exemplo, a crítica da aplicação é intrínseca ao modelo alternativo de ‘pesquisa-criação’ defendido por Erin Manning e o SenseLab:

Dado o contexto de criação da pesquisa em que estávamos trabalhando, seria crucial evitar não apenas o modelo de comunicação, mas também qualquer paradigma de ‘aplicação’, seja na forma de resultados práticos das disciplinas existentes de pesquisa e design aplicadas pelos artistas aos seus trabalhos em seus próprios campos, ou na forma de estruturas conceituais aplicadas à arte ou tecnologia por filósofos ou outros teóricos. O trabalho conceitual não poderia adotar uma postura externa de descrição ou explicação. Teria que ser ativado de forma colaborativa no local, entrando na briga relacional como um fator criativo entre outros’ (Manning; Massumi, 2014MANNING, Erin; MASSUMI, Brian. Thought in the Act: Passages in the Ecology of Experience. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014., p. 90).

Da mesma forma, na filosofia da dança, Cvejić e outros (Kunst, 2003KUNST, Bojana. Subversion and the Dancing Body: Autonomy on Display. Performance Research, London, v. 8, n. 2, p. 61-68, 2003. Available at: <Available at: http://dx.doi.org/10.1080/13528165.2003.10871929 >. Accessed: May 3, 2019.
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; Clark, 2011CLARK, Jonathan Owen. Dance and Subtraction: Notes on Alain Badiou’s Inaesthetics. Dance Research Journal, Cambridge, v. 43, n. 2, p. 50-64, 2011. Available at: <Available at: http://dx.doi.org/10.1017/S0149767711000052 >. Accessed on: May 3, 2019.
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) têm sido altamente críticos quanto às questões metodológicas no tratamento da dança dado por Badiou e Ranciere38 20 Consultar a crítica de Cvejic sobre Badiou e Ranciere sobre a dança, principalmente em termos de falta de envolvimento com a prática real da dança: “Embora as opiniões de Badiou e Rancière sobre dança sejam diferentes na medida em que seus projetos filosóficos são política e epistemologicamente diferentes, eles compartilham um hábito metodológico familiar: sua abordagem ignora as obras de dança, concentrando-se principalmente em fontes literárias ou cinematográficas que mediam a dança ou o movimento corporal. Nos dois casos, os escritos de Mallarmé sobre a figura da dança são uma referência significativa (Mallarmé, 1956). Enquanto Rancière invoca ocasionalmente obras concretas (a Dança de Lucinda Childs, de 1979, por exemplo), uma vez que sua tese sobre o regime estético da arte deve situar-se historicamente com uma pitada de exemplos analíticos, já para Badiou é como se a dança não existisse empiricamente, nem a história da sua prática, nem suas obras, técnicas, nomes ou corpos (os únicos nomes relacionados à dança que ele cita são Mallarmé e Nietzsche). De fato, Badiou divulga explicitamente sua 'missão' de falar da “dança, não em seus próprios termos, com base em sua história e técnica, mas em dança tal como é recebida e protegida pela filosofia” (Badiou, 2015, 63, grifo meu). A dança parece nada mais que um instrumento de um exercício filosófico – uma nova ‘metáfora’ para sondar a ontologia subtrativa familiar de evento e pensamento de Badiou. Portanto, somos obrigados a tomar uma decisão binária, assim como o evento de Badiou exige de seus sujeitos: ler este ensaio figurativamente, como um exemplo da concepção de arte e estética do filósofo, divorciado de quaisquer preocupações históricas e práticas da arte da dança, ou “levar a sério” a metáfora de Badiou e encarar a dança que resultaria de seus axiomas. Em uma crítica recente a Badiou, Jonathan Owen Clark demonstrou como medir o último argumento com o registro anterior, nomeadamente, a teoria de Badiou do ponto de vista da história da dança com suas alegações de uma “inestética”, revela alguns problemas em seus argumentos filosóficos (Clark, 2011). . Por exemplo, Cvejić sugere que, nas filosofias de Badiou e Rancière, “a dança é relegada a uma metáfora ou, pior ainda, a um tipo de condutor não-histórico para uma ontologia geral”39 21 Erin Brannigan (2019) avança esses debates de maneiras intrigantes, procurando encontrar o controverso ensaio de Badiou ‘em seus próprios termos ... para evitar o tom indignado’ que ela localiza em outras respostas ao texto de Badiou por pesquisadores de estudos de dança. “Se a dança é ‘instrumental’ para o esquema de filosofia da arte que Badiou está formulando, ou seja, sendo ‘incorporada’ às estratégias de uma filosofia da arte, o que há para a dança? O projeto de Badiou pode ser redirecionado para nossas próprias preocupações disciplinares? Por exemplo, se sua concepção de dança (extraída de relatos filosóficos passados e para seus próprios propósitos) é vista como desprovida de uma perspectiva disciplinar, então qual é a ideia de dança que posiciona a dele como ‘errada’?”. . Por outro lado, Cvejić também pede por uma “dança-filosofia” (“dance-philosophy”), entendida como “um tipo de pensamento que se erga de dentro da prática material da dança” (Cvejić, 2015, p. 18). Diferentemente das abordagens filosóficas padrão da dança - como exemplificadas por Badiou e Ranciere - uma filosofia da dança seria aquela em que “[...] a hierarquia epistêmica é invertida: a aposta não está mais no que a filosofia poderia fazer pela dança, mas em como uma orientação experimental radicalmente pragmática na dança oferece uma estrutura prática para teorizar a percepção, a formação de conceitos e outras questões filosóficas” (Cvejić, 2015, p. 18).

No entanto, o valor de uma abordagem metodológica ‘para além da aplicação’ não é de modo algum acordado por todos que trabalhem ou conversem com a filosofia-performance. Por exemplo, o filósofo da arte Clive Cazeaux (2017CAZEAUX, Clive. Art and philosophy: illustration, immanence, implication. In: BEYOND APPLICATION: IMMANENT ENCOUNTERS BETWEEN PHILOSOPHY AND THE ARTS, 2017, Guildford, University of Surrey. Conference paper presented. University of Surrey: Centre for Performance Philosophy, 2017b.b) argumenta que a noção de escapar ‘do modelo de dois termos no qual a filosofia é ‘aplicada’ à arte ou onde a arte é oferecida como uma ‘ilustração’ da filosofia’ se sustenta em cima da suposição problemática acerca da capacidade da arte em produzir sua própria filosofia. Como ele coloca, ‘a ideia de que é possível recorrer à própria condição imanente da arte ou da filosofia’ para ir além da aplicação ‘baseia-se na noção de que qualquer sujeito tem sua própria condição’. Para Cazeaux (2017b):

[…] essa é uma concepção difícil de sustentar, dada a interação e o empréstimo que ocorre entre os sujeitos, se a base dessa interação é considerada histórica, por exemplo, revoluções modernistas nas artes, ou a afirmação filosófica de que qualquer conceito necessariamente se abre para o outro.

Por outro lado, ele propõe que partamos da premissa de que a arte, incluindo performance e filosofia:

[…] já estão mutuamente implicadas e usam esse entendimento (a) para tornar problemática qualquer tentativa de discutir arte e filosofia em termos simples, binários ou imanentes, e (b) ‘desdobrar’ e extrair as implicações ativadas por uma obra de arte que é oferecida em um contexto de filosofia-arte (Cazeux, 2017b).

A não-filosofia de Laruelle como um modelo para a filosofia-performance

A não-filosofia de François Laruelle parece um modelo especialmente pertinente para a Filosofia-Performance, em parte, devido à maneira como ele caracteriza a própria não-filosofia: não como uma teoria abstrata, mas como uma prática experimental - e, especificamente, no caso de sua estética fora do padrão, como uma arte. Experimentação é a chave para a não-filosofia, como sendo “a maneira de pensar que não sabe a priori o que é pensar” (Laruelle, 2012LARUELLE, François. ‘I, the Philosopher, Am Lying’: Reply to Deleuze. In: ALKON, Gabriel; GUNJEVIC, Boris (Ed.). The Non-Philosophy Project: Essays by François Laruelle. New York: Telos Press Publishing, 2012. P. 40-73., p. 67) - e como aquilo que busca ir além da aplicação do pensamento ao real, em favor de uma prática que afirme o real como aquele que produz performativamente o pensamento. De fato, Laruelle caracteriza o pensamento como “um estilo, uma postura” (Laruelle, 2013LARUELLE, François. Photo-Fiction, a Non-Standard Aesthetics. Trans. Drew S. Burk. Minneapolis: Univocal, 2013., p. xxi), uma ‘posição’ corporal e uma questão de “comportamento” (Laruelle, 2013, p. 23), de uma maneira que sugere uma conexão com as artes corporificadas da performance.

Por sua vez, o trabalho de Laruelle visa democratizar ou igualar a relação que a filosofia tem com outras formas de pensamento, incluindo as artes. Seu projeto não-filosófico é uma tentativa de realizar uma extensão qualitativa da categoria de pensamento sem que nenhum tipo de pensamento se posicione como sua forma exemplar que, portanto, está em posição de policiar a inclusão e exclusão ou o status relativo de outros pensamentos dentro da categoria. A disciplina de Filosofia sempre procurou desempenhar esse papel autoritário, afirma Laruelle. Para Laruelle, a filosofia padrão envolve o gesto em que o pensamento se retira do mundo para ocupar uma posição de autoridade ou poder em relação a ele. Em seu livro All Thoughts are Equal, John Ó Maoilearca (2015Ó MAOILEARCA, John. All Thoughts are Equal. Minnesota: University of Minnesota Press, 2015.) parte do trabalho de François Laruelle para introduzir a ideia de ‘uma igualdade (ou democracia) no pensamento’ em si mesmo: não um pensamento sobre algo ou uma ou teorização sobre igualdade e desigualdade, mas a noção de uma igualdade ou ‘democracia do pensamento’. Deixando de lado por enquanto as dúvidas que possamos ter sobre a aparente identificação de igualdade e democracia aqui (dadas as persistentes desigualdades que as democracias reais parecem sustentar) o que essa ideia significa? O que isso nos impele a pensar? Uma maneira de abordar isso é através da linguagem da imanência: considerar Laruelle e, de fato, o pensamento de Ó Maoilearca como um experimento nos tipos de imanência radical que também foram perseguidos por pensadores como Deleuze, Nietzsche e Spinoza. Nesse caso, a noção de igualdade é ontológica e postula uma unidade ou imanência fundamental que não admite hierarquia ou separação entre a natureza de entidades ou seres. Nada é mais ou menos real do que qualquer outra coisa, podemos acrescentar. E, no entanto, a própria natureza dessa ontologia permanece deliberadamente indefinida ou não especificada em Laruelle. Essa filosofia da imanência não define a imanência como diferença ou devir, como Deleuze o faz, por exemplo. Em outras palavras, Laruelle não nos permite dizer que todas as entidades são iguais porque são X ou porque têm X características ou qualidades compartilhadas. A preocupação, ao que parece, é que essa posição ainda parece pressupor muita autoridade para a filosofia - esta se coloca como aquela que nos diz como as coisas realmente são, como se ocupasse ainda uma perspectiva transcendente fora desta realidade. Em contraste, Ó Maoilearca sugere que a noção de igualdade de Laruelle é uma hipótese performativa, e não uma afirmação ontológica. Mas se é performativa, então - podemos perguntar - o que esta faz ou produz? Como esta atua?

Performance como Filosofia ou como a Performance Pensa

Em contextos artísticos (ou pelo menos naqueles com os quais estou familiarizada), é amplamente incontroverso sugerir que as práticas artísticas são formas de “pensamento” e / ou formas de conhecer. Graças em parte à aceitação institucional da prática-como-pesquisa ou paradigma da pesquisa artística em muitos contextos nacionais, a ideia de que as perguntas de ‘pesquisa’ podem ser investigadas e as descobertas compartilhadas em e como uma performance ao lado de formas mais tradicionais de investigação e publicação está bem estabelecida. É claro que, muito antes de o termo ‘prática-como-pesquisa’ (e conceitos relacionados) ser amplamente adotado, os próprios artistas já sabiam que o que estavam fazendo era pensar através da performance.

E, ainda assim, a ideia de que a performance pensa ou que se pode pensar através da performance permanece ‘radical’ em outros contextos, muitos deles filosóficos. Erin Manning e Brian Massumi (2014MANNING, Erin; MASSUMI, Brian. Thought in the Act: Passages in the Ecology of Experience. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014.), por exemplo, sentem como necessário afirmar explicitamente que: “A prática que é filosofia não tem nenhuma reivindicação exclusiva do pensamento ou da composição de conceitos. Como toda prática, sua única reivindicação é de suas próprias técnicas. Para nós, as técnicas da filosofia são técnicas de escrita” (Manning; Massumi, 2014, p. vii). Por um lado, é claro, e dado os problemas de desigualdade disciplinar no paradigma da aplicação, é um gesto muito bem-vindo ouvir filósofos notarem enfaticamente que seus objetivos não é “dizer à arte como pensar, ou dizer à dança como entender a si mesma” (Manning; Massumi, p. 2014, p. viii) - como muitas outras filosofias da arte fizeram, intencionalmente ou não. Por sua vez, eles dizem para si mesmos e para os outros: “Não basta escrever sobre dança. Como William Forsythe diz, dance esse pensamento. Dance esse pensamento coreográfico por todo o ato de escrever da filosofia” (Manning; Massumi, p. 2014, p. viii).

Por sua vez, é uma reinvindicação diferente dizer novamente que a performance é ou faz filosofia - dado que o conceito de ‘filosofia’ tem uma relação sobreposta, ainda que diferenciada, com os conceitos de ‘pensamento’, ‘conhecimento’ e ‘pesquisa’. Falar em termos de performance como filosofia pode significar indicar a capacidade das práticas performativas em levantar questões filosóficas - incluindo aquelas que podem se relacionar a áreas convencionais e reconhecidas da filosofia, como ontologia, metafísica, epistemologia e ética.

Em certos contextos filosóficos, a noção de que a ‘performance pensa’ pode ser recebida com objeções: por exemplo, existem performers que pensam, fazedores de teatro e performance que pensam e audiências que pensam, mas não podemos dizer que a performance ‘em si’ (o que quer que isso possa significar) pensa. Por esse relato, o pensamento é um processo ‘interno’ que pertence a sujeitos, como filósofos e artistas. No entanto, filósofos como Nietzsche, Merleau-Ponty, Heidegger, Stiegler e Deleuze fazem parte de uma tradição alternativa na filosofia que desafia essa visão de que o pensamento se origine em um sujeito distinto, propondo, ao contrário, modelos mais relacionais. Aqui, o pensamento é entendido como, por exemplo, um evento performativo ou ‘encontro’ entre corpos humanos e não humanos, ou como um processo que se estende além do corpo objetivo em formas de pensamento afetivo (de acordo com uma versão mais corporificada da abordagem da ‘cognição estendida’). Por sua vez, a pesquisa de performance considerou exemplos como o modo de pensamento colaborativo que surge entre dois ou mais performers no ato de criação da própria performance. Da mesma forma, filósofos como Manning e Massumi não estão sozinhos em sugerir que as práticas criativas não são apenas uma manifestação externa de um processo de pensamento que já aconteceu internamente, porque o pensamento ocorre através do corpo em movimento, nas relações entre os corpos (incluindo os não humanos) e em contextos espaço-temporais específicos. Como eles colocam, no contexto de uma resposta criativa à prática coreográfica de William Forsythe: “Não existe ter ideias. Você não tem ideias. O corpo em si mesmo, com seu meio rítmico, é um noção-motora: um movimento do pensamento. Dance esse pensamento” (Manning; Massumi, 2014, p. 45).

A reinvindicação de que ‘a performance pensa’ ainda é recebida com ceticismo em certos contextos; ou com a expectativa de que o termo ‘pensa’ apareça entre aspas pavorosas, denotando uma aceitação ou admissão de que, se de fato a performance faz algo como pensar, então certamente não é o mesmo tipo de pensamento que a filosofia faz. Dizer que os artistas pensam, ou que os performers pensam, talvez seja menos controverso - potencialmente incontroverso mesmo. Mas essa não é a mesma afirmação ou, pelo menos, não esgota a natureza da reinvindicação que estou procurando explorar aqui. Ou seja, com ou sem uma consciência do paradigma da pesquisa artística, filósofos e estudiosos de todas as disciplinas podem estar dispostos a apoiar a ideia de que aqueles que fazem performance - e artistas em geral (deixando de lado por agora a questão daqueles que podem ser vistos fazendo performance fora do domínio das artes) - estão fazendo isso de forma pensativa, estão usando a produção da performance como um meio de explorar, gerar e comunicar ideias e assim por diante.

Em um nível, essa ideia do pensamento como tendo algum tipo de vida própria, separada de nós, não nos parecerá tão estranha. Já sabemos que em Nietzsche, em Artaud e em Deleuze, o pensamento não se fundamenta em um ‘eu’, um si-mesmo unitário que constitui seu fundamento e sua origem. Em vez disso, eles sugerem que o pensamento é algo que, de alguma forma, passa por entre ou através de nós, que nos é imposto de fora, em vez de ser gerado de dentro para fora ou, novamente, que o pensamento ocorre de em formas variadas, em várias velocidades e em graus variados de consciência.

Desse modo, somos levados à conclusão de que, quando a própria performance pensa, ela pensa a si mesma - as performances quebram e abrem o próprio conceito de performance, incluindo os produzidos pela filosofia. E, ainda assim, novamente aqui, talvez seja levantada a objeção de que, embora não haja problema - na verdade, é o lugar-comum perfeito - em dizer que a performance pensa, não é o mesmo que dizer que pensa filosoficamente. Por que devemos desejar erodir as diferenças entre como a performance pensa e como a filosofia pensa? Não é melhor para todos cada um se manter naquilo que são melhores - que os filósofos pensem através da criação de conceitos e artistas pensem através da criação de afectos, como sugerem Deleuze e Guattari - desde que todos concordemos que nenhum tipo de pensamento é intrinsecamente melhor ou mais importante que qualquer outro? Talvez. Mas o risco dessa visão é que ela deixa implicitamente a Filosofia (com F maiúsculo) como a disciplina que detém autoridade sobre a natureza do pensamento em geral, além de qualquer instância específica como arte ou ciência, por exemplo. Arrisca-se, assim, a deixar a filosofia em seu lugar como a disciplina que afirma saber o que é arte e como ela pensa - sob o disfarce de estética filosófica; assim como também se arrisca a deixar a Filosofia livre para manter seu próprio senso de identidade, não importa a qual tema se atenha - da filosofia do teatro e da performance à filosofia do futebol ou dos Simpsons. Nossa própria posição, é claro, também assume riscos - não menos importante, o risco de que a reinvindicação de que ‘a performance filosofa’ pareça totalmente sem sentido, uma vez que recusamos a fornecer, antecipadamente, uma definição de filosofia (ou uma definição de performance, nesse caso).

Conclusões: contribuições e críticas

Como parte desse “balanço geral”, vale a pena levar em conta tanto o que se poderia dizer que o campo positivamente alcançou ou que ofereceu, ao mesmo tempo que se reflete sobre suas limitações e sobre as perspectivas trazidas por seus críticos (incluindo os atos internos de autocrítica do campo). Do lado positivo, Kirkkopelto sugere que, no contexto da emergência da pesquisa artística,

[...] a filosofia-performance abre um campo no qual a performance, os criadores e os performers podem fazer contato com o pensamento filosófico sem a defesa de disciplinas intermediárias e em diálogo igual com elas, aprender a pensar em seus próprios termos e serem compreendidos pelos outros. É por isso que poderia, e frequentemente também deveria, constituir a forma mais concreta de pensar que 1) ocorre no nível da prática da performance, com seus arranjos materiais, corporais e institucionais, e a referida luta ou jogo de poder que esses arranjos implicam; 2) leva em consideração o amplo leque de pesquisas sobre essas questões, mas retorna repetidamente a essa discussão no nível do meio artístico e 3) aplica esse meio de uma maneira que indique tanto a possibilidade de mudança quanto uma maneira de realizá-la numa relação crítica a uma determinada ordem institucional das coisas (Kirkkopelto, 2015KIRKKOPELTO, Esa. For What Do We Need Performance Philosophy ? Performance Philosophy , Guildford, v. 1, p. 4-6, 2015. Available at: <Available at: http://dx.doi.org/10.21476/PP.2015.117 >. Accessed: May 3, 2019.
http://dx.doi.org/10.21476/PP.2015.117...
, p. 5).

No entanto, em minha perspectiva, uma das críticas mais importantes recebidas pela filosofia-performance, até agora, foi perceber de que modos esta também acabou por participar do “apagamento epistemológico do sul global” em termos das performances e filosofias que até então enfatizou” (Henao Castro, 2017HENAO CASTRO, Andrés Fabián. Review of Cull, Laura and Alice Lagaay (eds.). Encounters in Performance Philosophy and Chow, Broderick and Alex Mangold (eds). Žižek and Performance. Journal of Contemporary Drama in English, v. 5, n. 1, p. 189-197, 2017. , p. 193-194). Por exemplo, em uma revisão bastante justa e equilibrada de Encounters in Performance Philosophy (2014) - um dos volumes inaugurais da série de livros Performance Philosophy - Andrés Fabián Henao Castro observa que, justamente por citar principalmente a filosofia continental europeia e performances euro-norte-americanas, “[...] a filosofia, a performance e seu encontro permanecem predominantemente circunscritos na geografia do norte global, sem que tal circunscrição provoque alguma autocrítica ou reflexividade metodológica”. E pelo menos em relação à minha própria fase inicial em tentar pensar sobre a filosofia-performance, Henao Castro está correto ao sugerir que “o esforço para desfazer as desigualdades que organizam o encontro” entre performance e filosofia como disciplinas foi, de fato, feito em grande parte às custas de não se repensar todas as outras desigualdades presentes em suas histórias” (Henao Castro, 2017, p. 193-194).

Essa perspectiva eurocêntrica está embutida, também, na própria narrativa da relação entre filosofia e performance - a qual, frequentemente, é citada como começando com a ‘antiga querela’ entre filósofos e tespianos na República. Da mesma forma, as tendências universalizantes da filosofia ocidental já foram motivo de preocupação para os pesquisadores da performance, focados em corpos particulares e nas operações de diferença social que (em) formam sua experiência (DeFrantz, 2007DEFRANTZ, Thomas. Exhausting Dance: Performance and the Politics of Movement (review). TDR: The Drama Review, New York, v. 51, n. 3, p. 189-191, 2007. Available at: <Available at: https://muse.jhu.edu/ >. Accessed: May 3, 2019.
https://muse.jhu.edu/...
, p. 189). Embora, claramente, não haja uma simples oposição entre Filosofia e Estudos da Performance a esse respeito, se considerarmos críticas como a análise de Rustom Bharucha acerca do etnocentrismo de Schechner no contexto de sua prática teatral intercultural (Bharucha, 1984BHARUCHA, Rustom. A Collision of Cultures: Some Western Interpretations of the Indian Theatre. Asian Theatre Journal, Hawaii, v. 1, n. 1, p. 1-20, 1984.). De fato, Bharucha sugere que o amplo espectro de Schechner é, em si mesmo, um gesto universalizante que falha em levar em conta as diferenças culturais dentre diferentes tradições de performance: em outras palavras, um gesto homogeneizador de aplicação e não uma extensão qualitativa ou mudança real na ideia de performance tal como determinada pelas normas teatrais ocidentais (Bharucha, 1984, p. 12)40 22 Como Bharucha (1984, p. 12) coloca: “Subjacente ao método de Schechner em aplicar modelos teóricos a diferentes tradições de performance está sua fé em ‘universais’. Em Drama, Roteiro, Teatro e Performance, ele enfaticamente afirma: ‘Acredito que performance e teatro são universais, mas que drama não é’ (Schechner 1977, 60)”. . E certamente, a relação entre identidade e diferença, repetição e inovação permanece filosoficamente não-resolvida no modelo de Schechner.

Não se trata tão somente de reforçar a ideia humanista liberal de filosofia como aquilo que defende “a emancipação cada vez maior dos marginalizados em atividades libertadoras (intelectuais)” de acordo com o reconhecimento de alguma suposta “comunalidade” (Ó Maoilearca, 2019Ó MAOILEARCA, John. When the Twain Shall Meet: On the Divide between Analytic and Continental Philosophy of Cinema. Forthcoming, 2019. ). Em vez disso, essas críticas sugerem que um papel para a filosofia-performance, juntamente com os muitos campos com os quais compartilha preocupações, é considerar como apoiará ativamente uma real e contínua pluralização de pensamento e equalização de conhecimentos; como praticará uma ética no pensamento construída não na semelhança, mas na diferença, não na expansão quantitativa mas na mutação qualitativa.

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  • 1
    Retiro esta frase da recente discussão de Jon McKenzie sobre a relação da filosofia-performance com questões de institucionalização e, especificamente, legitimidade institucional (McKenzie apud Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 123). McKenzie também usa essa noção para aludir à dupla tendência da performance como prática ao mesmo tempo normativa e de resistência: “A performance refere-se, assim, às práticas mais normativas e às mais experimentais, até transgressoras da vida contemporânea: está em dois lugares ao mesmo tempo. Como pensá-la? No entanto, esse borrão de instabilidade tem sido o núcleo ou o cristal em torno do qual eu construí – e pratiquei – uma impossível teoria geral da performance”. (McKenzie apud Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 85).
  • 2
    Para esta definição inicial, juntei várias definições existentes da filosofia-performance, conforme apresentadas na introdução à série de livros sobre filosofia-performance <https://www.palgrave.com/gp/series/14558>, na revista Performance Philosophy Journal <http: //www.performancephilosophy.org/journal> e na rede Performance Philosophy <http://performancephilosophy.ning.com>.
  • 3
    Para outras introduções ao campo, leitores interessados podem procurar por Inter Views in Performance Philosophy: Crossings and Conversations (2017) editado por Anna Street, Julien Alliot, e Magnolia Pauker; por Encounters in Performance Philosophy (2014) editado por mim e por Alice Lagaay; ou pela edição inaugural da revista Performance Philosophy (2015) editada por mim, mas englobando contribuições de uma ampla gama de filósofos, artistas e acadêmicos. Embora ainda um tanto eurocêntrico, o vindouro Routledge Companion to Performance Philosophy, editado por mim e pela Alice Lagaay, trará algumas tentativas iniciais em direção a uma abordagem um pouco mais global.
  • 4
    E, no entanto, a preocupação permanece: este (tipo de) artigo, por si só, é precisamente o tipo de ato de institucionalização e autorização que McKenzie, por sua vez, sugere que a filosofia-performance deve evitar?
  • 5
    Por exemplo, Pittman diz sobre The Undercommons (2013) de Fred Moten e Stefano Harney: “Com seus modos insurgentes e cacofônicos de pensar que pressionam tanto o senso comum do presente que eu não sei mais do que chamá-lo senão de ‘filosofia-performance” (Pittman, 2016, p. 168).
  • 6
    Ao longo deste ensaio, usarei o termo ‘filosofia-performance’ (sem maiúsculas) quando pretender indicar o campo, método ou ideia da filosofia-performance, e usarei o termo ‘Filosofia-Performance’ (com maiúsculas) para indicar a organização ou rede de pesquisa com esse nome, fundada em 2012. Da mesma forma, vou pôr o termo ‘Filosofia’ em letra maiúscula quando pretender me referir à disciplina e à ‘filosofia’ sem maiúsculas, a fim de indicar práticas filosóficas em um sentido mais amplo.
  • 7
    Atualmente, a rede de pesquisa Performance Philosophy possui aproximadamente 3000 membros de mais de 56 países diferentes, inscritos no site e na lista de discussão.
  • 8
    De fato, os leitores podem ter uma noção de uma dimensão importante do que a filosofia-performance é (reiterando que esta é muitas coisas) participando de um desses eventos, assim como lendo um artigo que se propõe introdutório, como este.
  • 9
    Por exemplo, para o primeiro evento do SenseLab, Dancing the Virtual, em 2005: “Foi proibida a apresentação de trabalhos já concluídos de qualquer tipo. Isso não significava que os participantes entrariam como folhas em branco. Pelo contrário, foram incentivados a trazer tudo, menos o trabalho concluído. Eles foram incentivados a apresentar todas as suas paixões, habilidades, métodos e, principalmente, suas técnicas, mas sem uma ideia pré-determinada de como elas entrariam no evento Dancing the Virtual” (Manning; Massumi, 2014, p. 97).
  • 10
    Nota da tradução: Aqui foi usada uma expressão, And must one do philosophy by the book?, que se mostra como um trocadilho intraduzível, uma vez que fazer algo by the book (pelo livro) tem sentido, em inglês, basicamente de seguir as regras. Neste sentido, o autor questiona, ao mesmo tempo, se a filosofia precisa ficar presa às regras de sua tradição tanto quanto ao livro/ escrita como formato.
  • 11
    Como McKenzie explica: “A mídia inteligente (Smart media) faz surgir gêneros acadêmicos que incluem ensaios em vídeo, teoria comix, TED talks e dezenas de outras formas de mídia. Esses gêneros complementam os gêneros acadêmicos tradicionais de livros e artigos e emergem da cultura popular, dos negócios e dos contextos acadêmicos. Em geral, trabalhar com mídia inteligente envolve pensar em interatividade multimídia, apresentar-se em novos locais e envolver novos públicos. Em um nível mais profundo, a mídia inteligente implica um redesenho maciço de nossa experiência de conhecimento e uma reestruturação de sua arquitetura subjacente, pois a mídia inteligente abre um novo espaço para o pensamento” (McKenzie apud Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 86).
  • 12
    Tomo essas ideias de uma contribuição de MM McCabe para uma oficina recente de filosofia-performance On Dialogue, co-organizado pelo Centro de Filosofia-Performance, em Surrey e pelo Center for Philosophy and the Visual Arts no King’s College London em abril de 2019.
  • 13
    Ver Street et al.: “Mais do que um mero experimento de pesquisa, este trabalho responde a uma urgência manifestada pela expansão da Filosofia-Performance – uma urgência para reinventar práticas de conhecimento, a fim de abordar e criar condições de possibilidade para o que é frequentemente marginalizado no Discurso acadêmico ocidental: intuição, emoção, gestos, pluralidade, discórdia. De todos os continentes e disciplinas, os textos aqui apresentados celebram essa diversidade, convidando-nos a pensar e trabalhar juntos por meio de atos performativos” (Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 21).
  • 14
    Nota da tradução: A miríade de significados implícitos no termo Performance Philosophy torna sua tradução complexa em qualquer língua neolatina. Ao contrário da língua inglesa, na qual o hífen reduz a gama de significados possíveis, em português este pode ter o efeito contrário: uma vez que o hífen possibilita subtrair o da (of) da expressão filosofia da performance, acaba por manter, ao contrário, a relação entre os termos e seus significados possíveis em aberto. A respeito da escolha pela tradução de Performance Philosophy como Filosofia-Performance, sugere-se consultar outro artigo presente neste número, intitulado Crise da Representação, Virada Performativa e Presença: possibilidades rumo a uma Filosofia-Performance, no qual esta questão (da tradução) é aprofundada.
  • 15
    Nota da tradução: Mind the Gap é uma expressão corriqueira nos metrôs e trens dos países anglófonos, que pede aos passageiros extrema atenção ao vão entre o vagão e a plataforma, de modo a evitar acidentes. Puchner (2013) usa essa frase como um trocadilho para criticar o campo emergente, de modo a exortar uma necessária separação (vão ou lacuna) entre os termos, a qual, em sua crítica, estaria sendo deixada de lado.
  • 16
    Aqui estou adaptando o útil trabalho que o filósofo britânico Clive Cazeaux (2017aCAZEAUX, Clive. Art, Research, Philosophy. London; New York: Routledge, 2017a.) realizou sobre o conceito de ‘pesquisa artística’ e sua relação com a definição de arte em seu livro mais recente.
  • 17
    Da mesma forma, ao abordar a relação entre a Filosofia-Performance e o contexto francês, os editores da Inter Views observam que: “Nenhuma tradução verdadeiramente equivalente da palavra ‘performance’ existe no idioma francês” (Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 6). No entanto, eles continuam sugerindo que “[...] isso não vem ao caso, pois, como Derrida apontou em sua conversa com Searle, o pensamento francês transborda de características performativas e afinidades exuberantes às práticas artísticas e teatrais, enfatizando o meio por sobre o conteúdo” (Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 6).
  • 18
    Nota da tradução: Importante não perder de vista que, embora performance seja uma palavra incorporada a nosso vocabulário, trata-se de uma palavra originalmente de língua inglesa, cuja tradução ao pé da letra seria, justamente, a de desempenho.
  • 19
    Ver McAuley (apud Schechner 2017, p. 38): “Há uma tendência nos estudos da performance de difundir cada vez mais a rede, aceitando uma gama cada vez maior de práticas de performance como objetos legítimos de estudo. Embora essa abertura tenha suas atrações, há problemas com a noção de um “campo sem limites”; parece-me que, embora o entendimento do que se constitui como performance possa diferir de cultura para cultura ao longo do tempo, precisamos definir com algum cuidado o que queremos dizer com isso aqui e agora. Minha regra geral é que, para que uma atividade seja considerada performance, ela deve envolver a presença ao vivo dos artistas e daqueles que a testemunham, que deve haver alguma intencionalidade por parte do artista ou da testemunha ou de ambos, e que essas condições, por sua vez, requerem análise do local e da temporalidade que permitem que ambas as partes estejam presentes uma à outra, bem como o que pode ser descrito como o contrato de performance entre elas, explícito ou implícito ”. Por outro lado, e como discuti em relação à filosofia anglo-americana do teatro, também podemos observar as maneiras pelas quais mesmo essas tentativas mínimas de definição são circulares em relação aos contraexemplos.
  • 20
    Consultar a crítica de Cvejic sobre Badiou e Ranciere sobre a dança, principalmente em termos de falta de envolvimento com a prática real da dança: “Embora as opiniões de Badiou e Rancière sobre dança sejam diferentes na medida em que seus projetos filosóficos são política e epistemologicamente diferentes, eles compartilham um hábito metodológico familiar: sua abordagem ignora as obras de dança, concentrando-se principalmente em fontes literárias ou cinematográficas que mediam a dança ou o movimento corporal. Nos dois casos, os escritos de Mallarmé sobre a figura da dança são uma referência significativa (Mallarmé, 1956). Enquanto Rancière invoca ocasionalmente obras concretas (a Dança de Lucinda Childs, de 1979, por exemplo), uma vez que sua tese sobre o regime estético da arte deve situar-se historicamente com uma pitada de exemplos analíticos, já para Badiou é como se a dança não existisse empiricamente, nem a história da sua prática, nem suas obras, técnicas, nomes ou corpos (os únicos nomes relacionados à dança que ele cita são Mallarmé e Nietzsche). De fato, Badiou divulga explicitamente sua 'missão' de falar da “dança, não em seus próprios termos, com base em sua história e técnica, mas em dança tal como é recebida e protegida pela filosofia” (Badiou, 2015, 63, grifo meu). A dança parece nada mais que um instrumento de um exercício filosófico – uma nova ‘metáfora’ para sondar a ontologia subtrativa familiar de evento e pensamento de Badiou. Portanto, somos obrigados a tomar uma decisão binária, assim como o evento de Badiou exige de seus sujeitos: ler este ensaio figurativamente, como um exemplo da concepção de arte e estética do filósofo, divorciado de quaisquer preocupações históricas e práticas da arte da dança, ou “levar a sério” a metáfora de Badiou e encarar a dança que resultaria de seus axiomas. Em uma crítica recente a Badiou, Jonathan Owen Clark demonstrou como medir o último argumento com o registro anterior, nomeadamente, a teoria de Badiou do ponto de vista da história da dança com suas alegações de uma “inestética”, revela alguns problemas em seus argumentos filosóficos (Clark, 2011).
  • 21
    Erin Brannigan (2019BRANNIGAN, Erin. Talking Back: What Dance might make of Badiou’s philosophical project. Performance Philosophy, Guildford, v. 4, n. 2, p. 354-373, 2019. Available at: <Available at: http://dx.doi.org/10.21476/PP.2019.42240 >. Accessed on: Jan. 10, 2019.
    http://dx.doi.org/10.21476/PP.2019.42240...
    ) avança esses debates de maneiras intrigantes, procurando encontrar o controverso ensaio de Badiou ‘em seus próprios termos ... para evitar o tom indignado’ que ela localiza em outras respostas ao texto de Badiou por pesquisadores de estudos de dança. “Se a dança é ‘instrumental’ para o esquema de filosofia da arte que Badiou está formulando, ou seja, sendo ‘incorporada’ às estratégias de uma filosofia da arte, o que há para a dança? O projeto de Badiou pode ser redirecionado para nossas próprias preocupações disciplinares? Por exemplo, se sua concepção de dança (extraída de relatos filosóficos passados e para seus próprios propósitos) é vista como desprovida de uma perspectiva disciplinar, então qual é a ideia de dança que posiciona a dele como ‘errada’?”.
  • 22
    Como Bharucha (1984, p. 12) coloca: “Subjacente ao método de Schechner em aplicar modelos teóricos a diferentes tradições de performance está sua fé em ‘universais’. Em Drama, Roteiro, Teatro e Performance, ele enfaticamente afirma: ‘Acredito que performance e teatro são universais, mas que drama não é’ (Schechner 1977, 60)”.
  • Este artigo inédito, traduzido por Luciana da Costa Dias, também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • Editor-responsável: Patrick Campbell
  • Editora-responsável: Luciana da Costa Dias

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    03 Maio 2019
  • Aceito
    03 Out 2019
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