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O Teatro, É Verdade? Ponderações sobre o real na cena contemporânea

Resumo:

Este artigo dedica atenção aos possíveis desdobramentos do uso de narrativas pessoais em cena, quando tomadas no intuito de provocar tensão entre realidade e ficção no instante do acontecimento cênico. Utilizando como referência formulações que ponderam acerca da concepção do real - do contexto social dos anos 1960 aos dias de hoje -, a partir do pensamento de filósofos como Debord, Baudrillard e Rosset, busca-se refletir sobre o teatro e a performance como campos artísticos capazes de interrogar a afirmação totalizante sobre a verdade no mundo atual.

Palavras-chave:
Narrativas Pessoais; Realidade; Ficção; Verdade; Teatro do Real

Abstract:

This article focuses on the possible outcomes that may unfold when personal narratives have been intentionally applied on stage to generate a tension between the ideas of reality and fiction in performance. The article uses theoretical references that conceptualize the notion of the ‘Real’ - from the social context of the 1960s to the present - and follows the thoughts of philosophers like Debord, Baudrillard and Rosset with the aim to consider theater and performance as artistic fields that have the potential to interrogate totalizing statements about the truth in today’s world.

Keywords:
Personal Narratives; Reality; Fiction; Truth; Theater of the Real

Résumé:

Cet article porte une attention aux possibles conséquences de l’utilisation de récits personnels dans la scène, lorsqu’ils sont pris afin de provoquer une tension entre la réalité et la fiction au moment de l’événement scénique. Utilisant comme références les formulations qui examinent la conception du réel - du contexte social de 1960 à nos jours -, bien que la pensée de philosophes tels que Debord, Baudrillard et Rosset, ce texte réfléchit sur le théâtre et la performance comme domaines artistiques capables d’interroger l’affirmation totalisant sur la vérité dans le monde actuel.

Mots-clés:
Récits Personnels; La Réalité; La Fiction; La Vérité; Théâtre du Réel

[...] de que não existe simplesmente uma história para o universo, mas, sim, uma coleção de histórias possíveis para ele, todas igualmente reais15 1 No intuito de tornar a leitura mais fluída optei por colocar as citações sempre em português, sendo que constarão no original, em notas, aquelas que eu mesma tiver traduzido. No original em espanhol: [...] de que no existe simplemente una historia para el universo, sino una colección de historias posibles para él, todas igualmente reales. .

As verdades são ilusões as quais foram esquecidas que o são16 2 No original em espanhol: las verdades son ilusiones de las que se ha olvidado que lo son […]. (Rocca, 2006ROCCA, Adolfo Vásquez. El giro estético de la epistemología. La ficción como conocimiento, subjetividad y texto. Aisthesis, Santiago, Instituto de Estética de la Pontificia Universidad Católica de Chile, n. 40, p. 45-61, 2006. , p. 50 e p. 55).

Terminava o espetáculo e o pequeno tablado que fazia as vezes de palco ficava vazio. Maria Carolina Vieira17 3 Site pessoal da atriz disponível em: <https://corpotempo.wixsite.com/maria>. Acesso em: 02 jul. 2018. e eu, as duas atrizes da peça, saíamos pela porta de entrada do teatro, deixávamos passar alguns minutos de silêncio e regressávamos. Então o ritual teatral seguia como de praxe: alguns aplausos e lentamente a plateia se deslocava para fora do espaço cênico. Alguns espectadores, porém, ficavam, como se faltasse alguma coisa a ser dita, feita, mostrada. Como se faltasse ainda alguma explicação.

“Eram de fato histórias reais, vividas por nós, as atrizes, aquilo que dizíamos quando abandonávamos a interpretação caricata? Havia momentos do espetáculo em que deixávamos de atuar? Nesses momentos era verdade o que fazíamos e falávamos?”. Era esse tipo de questionamento que nos levantava essa parcela do público que não havia ido embora.

Esse breve relato conta um pouco da experiência que tive ao participar da encenação do espetáculo A Ponto de Partir18 4 O espetáculo participou de diversos eventos e festivais, dos quais se destacam: Mostra Local Festival Palco Giratório – SESC-SC; 17. Festival Isnard Azevedo – Floripa Teatro; Festival de Teatro de Campo Mourão. , dirigido por Ligia Ferreira, e criado com base nos textos de Ana Cristina César, poetisa carioca vinculada ao movimento da literatura marginal. Nesse trabalho, eu e Maria Carolina representávamos senhoras de idade que ao se lembrarem do passado retomavam seus corpos juvenis.

Essa transposição temporal que as personagens sublinhavam se verificava através de uma interpretação de nível caricato, presente quando representávamos as personagens em idade avançada, em contraponto a uma atuação realista, que ocorria nos momentos em que as personagens eram jovens. Juntava-se a essas técnicas de representação uma dramaturgia fragmentada, construída a partir de poesias, cartas e diários de Ana Cristina César e, também, de material pessoal (cartas e diários) das atrizes que participavam da encenação.

O espetáculo acontecia em um tablado muito pequeno, no qual estavam dispostos alguns objetos conforme aparece na Figura 1, dentre os quais uma caixa de correio. As personagens idosas, Adelaide Vieira e Adelaide Silva, realizavam ações que indicavam a espera, inquietante, pela chegada de alguma correspondência (Figura 2). A carta não chegava nunca e, enquanto esperavam, as personagens acabavam por revelar ao público uma mala repleta de cartões postais antigos. Ao manusear os postais, distribuindo-os à plateia, as Adelaides rememoravam histórias da juventude, interagindo entre elas de forma a revelar uma antiga amizade.

Quando rompíamos o trabalho representacional das personagens idosas buscávamos construir um estado de não atuação: abandonávamos a figura corporal e vocal criada e passávamos a falar com o público como se fossemos nós mesmas. Tal jogo, proposto pela diretora do espetáculo, que misturava diferentes técnicas de atuação, com relatos pessoais de nós atrizes, emaranhados aos textos de Ana Cristina, trouxe contornos autobiográficos ao trabalho. Por isso os questionamentos que frequentemente nos eram feitos ao final das apresentações: em diversos momentos da peça passávamos a narrar situações de modo a criar, no espectador, certa dúvida quanto à possível pessoalidade do que falávamos.

Figura 1
Espetáculo A Ponto de Partir

Figura 2
Espetáculo A Ponto de Partir

O foco da reflexão que ora apresento, é o teatro verdade?, nasceu do meu interesse por pesquisar narrativas pessoais utilizadas na composição teatral como estratégia de explorar as fronteiras entre real e ficcional no momento do acontecimento cênico. Não por acaso esse foi o tema que direcionou minhas pesquisas acadêmicas e artísticas. Assim, as reflexões que aqui apresento foram extraídas de trechos da minha dissertação de mestrado intitulada Narrativas pessoais: possibilidades de confronto com o real na cena (Marina, 2012MARINA, Heloisa. Narrativas Pessoais: possibilidades de confrontos com o real na cena. 2012. 147 f. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2012.).

Não apenas quando atuo, mas também na condição de espectadora, sinto que tenho minha sensibilidade aflorada em trabalhos que carregam uma marca pessoal do artista, capaz de causar uma perturbação na plateia. Refiro-me ao confronto com aquilo que se processa em cena, ante a possibilidade de que sejam realmente pessoais e, portanto, verdadeiras as narrativas. Espetáculos nos quais a apreensão sobre o que de verdade o teatro mostra fica confundida, mais ou menos da forma como parecia acontecer com os espectadores da peça A Ponto de Partir. O que está em jogo nessa dimensão pessoal é uma relação direta e inquietante com aquilo que podemos denominar de o real, pois a cena apresenta situações ou relatos que não aparecem como artisticamente fabricados. Essa percepção das possibilidades de expor na cena um entrelaçamento entre o ficcional e o real serve como ponto inicial para as reflexões do presente trabalho.

O aparecimento da irrupção do real19 5 O termo aparece em textos de teóricos como Sánchez, Catani, Fèral e Cornago. na cena teatral contemporânea20 6 Considero contemporâneo, neste artigo, trabalhos teatrais realizados a partir do ano 2000. parece ser uma estratégia, entre tantas, que tem sido explorada por apresentar o potencial de promover uma quebra que transgride ou, ao menos, desestabiliza a fronteira que separa a função dos atores (agentes da ação dramática) da dos espectadores (receptores dessa ação), transformando tanto um quanto outro em agentes e receptores. A busca por produzir essa desestabilização das funções dos sujeitos envolvidos no acontecimento teatral não é nova, já foi explorada em diversas épocas por vários criadores da cena teatral21 7 Ver Guénoun (2004, p. 18; 19; 38; 50). , mas, por mais que já tenha sido pensada e repensada, seria ainda essa uma das prerrogativas que estimulam os artistas que trabalham com o real na cena: incitar a que o público se veja confrontado com a possibilidade de estar presenciando uma verdade concreta (ou seja, uma não representação), ainda que esta seja teatralmente estabelecida? Afinal, o teatro é verdade? Ou melhor, qual o significado da verdade no teatro? Que verdade se pode ou se deve explorar cenicamente? Qual é o impulso que leva atores, não atores, performers a expor aberta e publicamente desejos, medos, sonhos, histórias pessoais frente a um auditório de desconhecidos?

A busca por uma dimensão do real no teatro, conduzida através da utilização de relatos pessoais, tem a chance de fazer refletir sobre a complexidade dos meios de representação da sociedade atual? É essa uma possibilidade de questionar o próprio teatro como local de encontro, estrutura e legitimidade social, ponderando acerca do sutil limite entre arte e vida, realidade espetacular e pragmática, palco e espectador? É claro que não existe uma resposta definitiva para essas perguntas, mas é possível tomá-las como provocação inicial ao desenvolvimento de um estudo que visa refletir sobre o real no teatro e a dimensão das narrativas pessoais como expressão da verdade. Dessa forma, se torna propício ponderar, ainda que em caráter introdutório e inacabado, acerca das aproximações históricas concernentes à noção de verdade cênica.

A Verdade no Teatro, uma Discussão Histórica

A pergunta levantada neste artigo, Afinal, o teatro, é verdade?, pode parecer infrutífera, mas basta ler alguns livros de história do teatro para perceber que palavras como verossimilhança, veracidade, real, realismo, eficácia, ilusão, ilusionismo têm permeado, levantado e impulsionado acirradas discussões sobre como essa pretendida verdade reflete nos alcances da prática teatral ao longo dos séculos. Ou seja, a questão da verdade cênica (o que é, que tipo de verdade praticar no palco, por que e como alcançá-la) tem relação com a efetividade social do teatro, sua função, seus alcances estéticos, pedagógicos, sociopolíticos, doutrinários. Em suma, são perguntas que ainda hoje buscam responder que interface determinada concepção de verdade é capaz de produzir entre palco e plateia, teatro e meio social.

Pensando em uma perspectiva histórica da busca por alcançar algum nível de verdade em cena, Jean-Jacques Roubine (2003ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. , p. 113) comenta que “Cada geração, no fundo, experimenta a necessidade de inventar um novo sistema de convenções que dará, por algum tempo, a ilusão da vida, antes de ser por sua vez, percebido como tal e rejeitado em nome, precisamente, da vida”. Assim, as discussões acerca de como tornar viva, verídica, crível ou real a cena se desenrolaram de forma que diferentes estratégias foram sendo desenvolvidas.

Para Aristóteles, por exemplo, “[...] a obra do poeta não consiste em contar o que efetivamente aconteceu, mas sim coisas que podiam acontecer, possíveis do ponto de vista da verossimilhança e da necessidade” (Aristóteles, 2007ARISTÓTELES. Arte Poética. São Paulo: Martin Claret, 2007. p. 39). Na Grécia Antiga seria, portanto, verossímil aquilo que fosse possível ou, como destaca Guénoun (2004GUÉNOUN, Denis. O Teatro é Necessário? São Paulo: Perspectiva, 2004., p. 30) “Verossimilhança e necessidade resultam do que se poderia chamar uma lógica das ações [...]”. No contexto aristotélico não é o real, aquilo que de fato aconteceu, que se mostra primordial para a construção do desenvolvimento dramático, mas sim a ideia de verossimilhança. O verdadeiro aparece dessa forma não como o real (factual) mas como um conceito que expressa uma força persuasiva devido a uma estrutura interna, que faz com que se aceite o desenvolvimento cênico como verdadeiro. Ou seja, atende a uma percepção interna do receptor. Por isso, a ficção pode (ou não) ser verdadeira, apesar de não ser real.

Já em uma perspectiva que se estende, no século XX, até meados dos anos 1970, a verdade surgia nos discursos cênicos como um reduto atingível, um patamar que poderia (e deveria) ser alcançado e revelado através da arte, mas que também não se referia ao factual, ao real cotidiano, imediato. A aproximação das experiências de vida dos protagonistas da cena ao universo da encenação como meio de alcançar a verdade em cena era uma das estratégias que recorrentemente aparecia nos discursos de reconhecidos diretores, tais como Stanislavski, Brecht e Grotowski. Essa aproximação se realizou no teatro de forma diversa em função de pressupostos ideológicos distintos, como descreve Philip Auslander em seu artigo Just be your Self (1997AUSLANDER, Philip. Just Be Yourself’: Logocentrism and Differance in Performance Theory. In: AUSLANDER, Philip. From Acting to Performance. London: Routledge, 1997. P. 28-30. ).

A transformação de estratégias de autorreferencialidade que exigiram de suas atrizes e de seus atores os diretores mencionados, em relação aos processos de exposição do self do artista que o teatro contemporâneo tem reivindicado, é analisada por Philip Auslander de modo muito pertinente. O mais marcante, no meu ponto de vista, é que a presença do ator que Stanislavski, Brecht e Grotowski propunham que fosse trazida à cena, ainda que marcada por diferenças ideológicas, culminava invariavelmente na perspectiva de uma presença total, não contraditória nem descontínua do artista, que responde à concepção da existência de uma verdade totalizante do homem (uma verdade que está para além dos fatos cotidianos)22 8 Eu discuto esse tema com maior profundidade no artigo Por um estado de não atuação: reflexões sobre o real do trabalho atorial (Marina, 2016). . Na contemporaneidade, porém, Auslander argumenta que a verdade, ou a parcela pessoal que cada artista traz à cena, já não está associada a uma ideia essencialista nem da arte e nem do homem, mas a uma ideia que lida com a descontinuidade. Sobre as ideias apresentadas pelos três diretores mencionados, Auslander (2007, p. 36) resume:

O meu propósito não foi o de desacreditar as teorias discutidas aqui pois elas permanecem sendo concepções provocativas de atuação e de suas funções. Eu simplesmente quero indicar a dependência delas ao logocentrismo e a certas concepções de self e presença. Stanislavski estipula que o self do ator é a base da performance, mas seu próprio aprofundamento desta ideia o leva a afirmar que o self é produzido pelo próprio processo de atuação que ele fundou. Brecht gostaria que o ator suspendesse, em parte, sua presença a partir da personagem que ele interpreta, a fim de comentar sobre ela. Para isso, no entanto, o ator deveria adotar outra persona fictícia, mas com a autoridade de uma presença total, um movimento teórico que subordina a teoria da performance de Brecht à mesma crítica desconstrutiva de presença, como em Stanislavski. Grotowski propõe o corpo do ator como uma presença absoluta que bane a diferença, mas não leva em conta a ação de diferença dentro do próprio corpo. Não é uma questão de descartar estas teorias ou de ironizar a inconsistência dentro delas, mas de reconhecer que estão sujeitas aos limites de pressupostos metafísicos em que se baseiam. Se quisermos usá-las, devemos compreender que, como a metafísica, elas exigem que nós aceitemos essas suposições sobre a fé23 9 No original em inglês: It has not been my purpose to discredit the theories under discussion here, for they remain valuable and provocative conceptions of acting and its functions. I only want to indicate their dependence on logocentrism and certain conceptions of self and presence. Stanislavski states that the actor’s self is the basis of performance, but his own working out of this idea leads him to the posit that the self is produced by the very process of acting it is sad ground. Brecht would have the actor partly withhold her presence from the character she plays in order to comment on it. to do so, however, the actor must endow another fictional persona with the authority of full presence, a theoretical movement which makes Brecht’s performance theory subject to the same deconstructive critique of presence as Stanislavsky. Grotowski proposes the actor’s body as an absolute presence which banishes difference, but does not take into account the action of difference within the body itself. it is not a question of discarding these theories or of ironing out inconsistences within them, but one of recognizing that they are subject to the limits of metaphysical assumptions on which they are based. if we are to use them, we must realize that, like metaphysics, they demand that we accept these assumptions on faith. .

Na linha dessas reflexões eu acredito que a noção de verdade em cena muda, mas que se estabelece, não raro, no confronto entre arte e vida, artistas e espectadores, palco e plateia. É esse conflito que consegue fazer jus à autonomia da prática teatral e sua simultânea inserção na vida empírica, bem como o objetivo de configurar, por meio da autonomia da linguagem teatral, o momento da encenação como uma experiência, uma vivência, um acontecimento (Lehmann, 2007LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007. ) para artistas e para o público.

Diga-se de passagem, então, seguindo essas reflexões, que na discussão contemporânea não interessa tanto o status do objeto (narrativa) que se apresenta em cena, se é realmente real ou ficcional, mas a pertinência da pergunta, da percepção investigativa, que ele permite levantar. Essa perturbação excitante da incerteza, a possibilidade de construir cenicamente uma dúvida (mais que uma afirmativa) sobre o real, tem estimulado uma série de criações artísticas contemporâneas que colocam suas criações na fronteira entre realidade e ficção e, nesse contexto, a chamada autoficção desponta como estratégia perspicaz para conformação dessa zona de confronto.

De uma forma ou de outra, a motivação de, através do pessoal alcançar um substrato verídico, se verificava nos trabalhos dos três diretores mencionados por Auslander. O que muda, como visto, são as concepções acerca da noção de verdade (que definem como as propostas estéticas podem configurar uma troca efetiva entre artistas e espectadores) e, consequentemente, os modos de apreender a dimensão pessoal, para transformá-la em equivalente cênico.

Como sublinha Auslander, propostas estéticas se esgotam não por serem erradas ou limitadas per se, mas porque os contextos sociais e midiáticos mudam, de maneira que outras formas estéticas passam a ser requisitadas tendo como horizonte a configuração que dialogue com seu entorno. Com relação a trabalhos de performance contemporânea, tudo indica que tal perspectiva implica em um posicionamento crítico a respeito da sociedade do espetáculo e da sede por algo real, autêntico por parte do público. As sedes do público que Stanislavski, Brecht, ou Grotowski tinham em mente, eram, simplesmente, outras.

Todavia é preciso reconhecer que suas pesquisas impulsionaram e se refletem nos processos de atuação que aparecem na contemporaneidade. As modificações ocorridas no contexto teatral do século XX fizeram despontar três aspectos que delimitam camadas distintas de atuação: representar, mostrar/apresentar e ser. Entendo o representar situado no campo da atuação realista, em que existe um personagem a ser representado e o caráter pragmático da encenação não se faz tão eminente. O mostrar ligado à atuação metateatral, em que o caráter pragmático do acontecimento cênico se faz evidente. E o ser como uma busca pela não atuação, em que a realidade factual pretende se fazer presente. A transformação mais notável talvez seja a mudança de um teatro predominantemente representacional, de Stanislavski, para um teatro predominantemente performativo, como o de Tadeusz Kantor, por exemplo24 10 Proponho essa diferenciação entre o representacional (o semiótico) e o performativo, entre texto e evento, não a partir de um ponto de vista maniqueísta, mas tendo em conta que são dois lados de um único processo de criação de signos cênicos. Quanto a essa questão, é pertinente a ponderação de Fischer-Lichte: “A forma semiótica e performativa constituem, consequentemente, não um par de oposições, mas uma relação de reciprocidade. A semiótica é baseada no performativo, na medida em que esta constitui uma condição essencial para que haja possibilidade de produção de sentidos e o performativo não pode dispensar a semiótica, na medida em que os atos performativos que geram uma realidade e o efeito que eles evocam sobre os participantes se baseiam, pelo menos em parte, em processos específicos de constituição de significado ou em significados específicos, que podem ser atribuídos a esses atos. As perspectivas de pesquisa que introduziram a virada semiótica e performativa estão estreitamente relacionados entre si e se complementam” (Fischer-Lichte, 2001, p. 20). No original em alemão: Das semiotische und das performative bilden entsprechend nicht ein oppositionspaar, sondern ein wechselverhältnis. das semiotische ist auf das performative bezogen, insofern dieses eine wesentliche bedingungen für dir möglichkeit von bedeutungserzeugung darstellt und das performative kann des semiotischen nicht entraten, insofern seine wirklichkeitskontituierenden akte und die wirkung, die sie bei den beteiligten hervorrufen, wenigstens zum teil auf spezifische prozesse der bedeutungskonstitution bzw. auf bestimmte bedeutungen, die diesen akten beigelegt werden können, züruckgehen. die forschungsperspektiven, welche die semiotische und die performative wende eingeführt haben, sind also eng aufeinander bezogen und ergänzen sich gegenseitig. .

Narrativas Pessoais, Verdade e seus Reflexos na Cena Contemporânea

O que estou buscando defender é que as criações contemporâneas que se valem de narrativas pessoais da atriz ou do performer que está em cena não pendem necessariamente para o mesmo recurso de atuação, mas buscam articular na composição cênica estas diferentes estratégias, representar, mostrar e ser. Era isso que fazíamos no espetáculo A Ponto de Partir, recentemente descrito. Nesse sentido é provável que, diferentemente da perspectiva metafísica que orientava as criações dos diretores mencionados por Auslander, a ambição contemporânea seja menos a de revelar alguma verdade e mais a de fazer que efeitos de realidade imanem na cena.

É certo afirmar que a irrupção do real, que tem invadido uma série de montagens cênicas, destaca confrontos entre realidade e ficção por meio de diversas e distintas estratégias. Meu desejo neste artigo não é exaurir o tema do real no âmbito teatral contemporâneo, mas sim estabelecer um recorte que enfoca tal exploração, a do real, a partir do uso de histórias pessoais em cena.

O mais novo trabalho da atriz Bárbara Biscaro25 11 Blog da atriz disponível em: <http://barbarabiscaro.blogspot.com/>. Acesso em: 02 jul. 2018. , As mulheres insolúveis, que estreou em agosto de 2018 durante a II Mostra Camaleoa - Mulheres Fazendo Arte26 12 Para mais informações acessar: <https://www.lascamaleoas.com/mostra-camaleoa>. Acesso em: 02 jul. 2018. , é um exemplo de composição cênica contemporânea que explora o real a partir de relatos pessoais. Nele, Bárbara Biscaro convida o público a dispor em um tecido retangular, em cima do qual a atriz irá desenvolver sua performance, objetos pessoais que ela carrega dentro de uma mala. Os objetos são disparadores de narrativas partilhadas pela atriz, sendo selecionados de forma aleatória por ela, através de jogos e dispositivos acionados durante a encenação. Em um dado momento do espetáculo, por exemplo, a atriz chama algum voluntário da plateia, alertando que essa pessoa terá sua vida exposta. Em seguida ela começa a tirar tarô para a pessoa que se voluntariou a participar da cena (Figura 3). As cartas do tarô, porém, foram inventadas e elaboradas manualmente pela atriz, e se vinculam com histórias pessoais da artista. Assim, a performance começa a entrelaçar vivências de Bárbara e do espectador partícipe. À plateia cabe o julgamento acerca da verdade (ou mentira) da narrativa mística que se desenrola em sua frente enquanto as cartas do tarô vão sendo lidas pela artista (Figura 4).

Figura 3
Performance As Mulheres Insolúveis

Figura 4
Performance As Mulheres Insolúveis

Sergio Mercurio é outro ator que parte de suas vivências para compor espetáculos. Em seu primeiro trabalho, El Titiritero de Banfield, o ator-bonequeiro inicia a peça com as seguintes palavras:

Quando era menino morava em um bairro que sobrevivia à iminência do asfalto, se chovia nos fundos da minha casa, costumava se juntar uma geração de sapos que eu havia batizado com diferentes nomes junto com minha avó. Esse Banfield de lama e valetas era um bairro de meninos que roubavam frutas escapando da brutalidade de um italiano. Era um bairro de crianças sujas que trepavam no caminhão do leiteiro e viajavam de graça quase duas quadras. Eu olhava isso com olhos absortos talvez porque meus pais que sonhavam outra infância para esse menino que tinham não deixaram que fizesse parte dessa imaginaria E fui demasiado adulto para a fantasia. Cresci nos anos que na Argentina a proibição potencializou o desejo, e como todos, fui acumulando um montão de sonhos e de feridas. Mas um dia não muito longe, descobri que esses sonhos podiam curá-las Foi assim que comecei meu caminho E hoje, por enquanto... acho mais do que nunca, que os bonecos têm vida (Mercurio, 1995MERCURIO, Sergio. El titiritero de Banfield, En caminho, De Banfield a México. Espectáculos de títeres para jóvenes y adultos. 1995. Não publicado., p. 3).

A peça passa a se desenvolver, então, a partir de quadros nos quais performam bonecos de espuma, que por vezes contracenam com seu manipulador: Sergio Mercurio. Impressiona, no trabalho do artista argentino, a profundidade e a sutileza das histórias apresentadas por seus bonecos. Em outras palavras, as narrativas sensíveis e provocadoras que esses seres artificiais - personagens de espuma - contam. É justamente a parcela real do evento cênico criado por Mercurio, o fato de as narrativas não transparecerem como invenção, mas denotarem que são reflexões e conflitos realmente vividos pela pessoa que os apresenta, em contraste com o jogo representacional dos bonecos, seres ficcionais, que faz deslocar a percepção totalizante sobre a verdade, pois, mais uma vez, não é simples ao espectador localizar precisamente a parcela real ou ficcional dos relatos. Isso se dá porque a apresentação de Mercurio, que é marcantemente orientada por construções ficcionais, se baseia também em momentos em que ele fala diretamente, como ator, com a plateia, ou mesmo com os bonecos que manipula. Tal dinâmica de composição espetacular confere uma característica ambígua a suas narrações.

É justamente na incerteza acerca do real que reside a premissa que norteia a reflexão aqui apresentada. Como afirma Lehmann (2007LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007. , p. 165), no que tange à exploração do real no teatro pós-dramático:

[...] o essencial não é a afirmação do real em si (como nos produtos sensacionalistas da indústria pornográfica), mas sim a incerteza, por meio da indecidibilidade, quanto a saber se o que está em jogo é realidade ou ficção. É dessa ambiguidade que emergem o efeito teatral e o efeito sobre a consciência.

O uso de narrativas pessoais em cena, nos exemplos citados, apresenta essa tensão ambígua como pressuposto ou consequência de sua criação. Pode-se supor que a busca por tal efeito, no teatro contemporâneo, se deve ao fato de que convivemos cotidianamente com uma diluição problemática dos limites entre o real e o ficcional. As eleições de 2018 no Brasil podem ser tomadas como a prova mais cabal desse fenômeno. Em face dessa problemática, questionamentos referentes à possibilidade (ou impossibilidade) de estabelecer tais limites foram invadindo discursos que procuram refletir esferas sociológicas, antropológicas, culturais, artísticas e até mesmo políticas e que, no caso do teatro, desencadearam criações cênicas que intentam, explicita ou implicitamente, abordar de modo crítico a realidade espetacular na qual está inserida a sociedade atual.

O fato de me ater a composições cênicas que se desenvolvem a partir da exploração de narrativas pessoais dos artistas que estão em cena faz com que a atriz, o ator, ou performer, se torne figura central nos discursos desta pesquisa. A importância desse agente acontece tendo em vista que o reconhecimento de que a história dita em cena seja real, realmente vivida por aquele que a relata, implica na necessidade de uma presença física e imediata do sujeito dos acontecimentos; é ele (a imediatez de sua presença) quem possui a propriedade de conferir uma denotação de realidade ao evento teatral. Parafraseando Silvia Fernandes: “[...] em determinadas experiências do teatro contemporâneo priorizava-se a concretização material da presença do ator [...] em oposição à relação mimética, abstrata, da representação com aquilo que representa” (Fernandes, 2013FERNANDES, Silvia. Experiências do real no teatro. Sala Preta, São Paulo, v. 13, n. 2, p. 3-13, dez. 2013., p. 4).

Nesse caminho de criação artística, através do uso de narrativas pessoais se constrói um jogo que, acredito eu, apresenta a possibilidade de colocar em dúvida o conceito de real, questionando a dimensão totalizante sobre a verdade. Ou seja, é possível identificar, na concepção artística de propostas teatrais contemporâneas como as que venho citando, que, mais importante do que afirmar uma verdade é problematizar a noção de verdade (ainda que esta esteja relacionada ao campo pessoal do artista). Trata-se, portanto, de afirmar a tensão que se localiza entre o campo ficcional e real, bem como entre o campo pessoal e social, de modo que os dois polos do contínuo se interroguem constantemente. Ou, nas palavras de Matzke (2006MATZKE, Annemarie. De seres humanos reais a performers verdadeiros. Urdimento revista de estudos em artes cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 18, p. 189-196, 2006., p. 195):

Numa época em que a impossibilidade de distinguir entre o real e o encenado está se tornando um problema (do cotidiano), não se trata mais se algo é real ou verdadeiro, mas de uma diferenciação entre os diferentes graus de encenação; não do desmascaramento da realidade social como encenada, mas de uma tentativa de responder com os meios do palco e em igual grau de complexidade à complexidade social.

Mas afinal, o que é o real? É esse um conceito delimitável ou apreensível? Partindo da reflexão com a qual iniciei este artigo, a utilização de narrativas pessoais em cena como manifestação do real e como possibilidade artística de fazer contrastar as relações entre construção ficcional e vida pragmática, se torna eminente traçar alguns parâmetros acerca da noção de real que figura neste trabalho (ainda que eu reconheça a impossibilidade de exaurir tal questão). Para tanto tomo como ponto de partida as concepções de Guy Debord, Jean Baudrillard e Clément Rosset. Os dois primeiros apresentam uma abordagem de caráter mais sociológica, que problematiza as dimensões do real dentro do contexto da sociedade pós-industrial. O último discute a questão do real a partir de uma perspectiva filosófica. Logo em seguida buscarei traçar paralelos entre tais abordagens e seus possíveis desdobramentos no campo teatral aqui abordado.

O Real nas Relações Sociais e na Cena Contemporânea

Um dos pensadores mais citados no que diz respeito às relações entre ficção e realidade na sociedade contemporânea é Guy Debord. O teórico francês propôs, dentro do que ficou conhecido a partir dos anos 1960 como movimento situacionista, que estamos inseridos em um cotidiano que foi invadido pela lógica espetacular, no qual “tudo que era vivido diretamente tornou-se representação” (Debord, 1997DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997., p. 13, grifo meu). Nesse contexto, as fronteiras entre real e espetacular, fato e ficção, não são mais passíveis de serem delimitadas pois “[...] a realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do espetáculo e retoma em si a ordem espetacular à qual adere de forma positiva. [...] a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real” (Debord, 1997, p. 15). Essas afirmações anunciam a ideia de mediação: as relações humanas não se concretizam mais sem que haja a interferência de modelos midiáticos, ou seja, passam a ser moldadas conforme tais modelos e decorre disso um esvaziamento de realidade.

Debord afirma ainda que a realização humana, dentro desta sociedade que é orientada pela razão econômica, na qual imperam os valores de mercadoria e consumo, passou, num primeiro momento, por “uma degradação do ser para o ter”, e que, atualmente, essa dinâmica sofreu “um deslizamento generalizado do ter para o parecer” (Debord, 1997, p. 18). O espetáculo, presente em todos os aspectos do dia a dia, se vincula à ideia de parecer, já duplamente afastada da realização no ser. A consequência dessa dinâmica é que o cotidiano deixou de ser real, deixou de ser uma experiência vivida diretamente, e se tornou espetacular, representação: “Quando o mundo real se transforma em simples imagens, as imagens tornam-se os seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico” (Debord, 1997, p. 18). Essa perspectiva apontada por Debord é crucial: imaginamos, sonhamos e vivemos nossa vida social conforme os modelos propostos nas publicidades de refrigerante, de marcas de roupa ou de carros, ou nos posts de rede sociais de nossos amigos e ídolos. Perante essa vida de segunda mão, os depoimentos pessoais, relatados pela pessoa que os viveu no aqui agora do acontecimento cênico, possuem um caráter potencialmente subversivo.

Debord problematiza essa forma das relações sociais, entre outras, por se tratar de uma ordem positiva, já que o espetáculo pressupõe não mais que uma atitude de “[...] aceitação passiva que, de fato ele já obteve por seu modo de parecer sem réplica, por seu monopólio da aparência” (Debord, 1997, p. 17). Por estar tão ligada à imagem e a isso que ele denomina de contemplação passiva, o espetáculo fecha as portas para a possibilidade de diálogo, de vivência, de intercâmbio de experiências entre sujeito e mundo sensível. Ele implica na “fabricação concreta de alienação” (Debord, 1997, p. 24) em que “uma parte do mundo se representa diante do mundo e lhe é superior” (Debord, 1997, p. 23). O espetáculo, assim, se fundamenta não no vivido, no real, mas na representação, na “afirmação de toda vida humana como simples aparência” (Debord, 1997, p. 16). Essa representação a que está sujeita a sociedade, sua espetacularização, não é inocente, mas “[...] visto em suas diversas localizações, o espetáculo mostra com clareza especializações totalitárias do discurso e da administração sociais [...]” (Debord, 1997, p. 39), ou seja, corrobora e dinamiza as lógicas sociais de consumo, bem como de discursos hegemônicos.

Jean Baudrillard vê com igual pessimismo o esfacelamento da possibilidade de apreensão e vivência do real. Para esse outro pensador francês, a sociedade passou a ser organizada em torno de simulacros, abstrações que sequer apresentam um referencial, não contam sequer com alguma realidade à qual possam mimetizar.

Nesse sentido, Baudrillard entende que representar se constitui como atividade que conta com uma referência da qual faz uma abstração, mas afirma que “[...] hoje a abstração já não é a do Mapa, do duplo, é a geração pelos modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real” (Baudrillard, 1991, p. 8). Ele propõe, assim, que as abstrações e imagens já “não tem um princípio claro de localização” (Baudrillard, 1991, p. 10), por isso Baudrillard não fala mais nem em representação, mas em hiper-realidade. Com relação a esse aspecto, Baz Kershaw (1999KERSHAW, Baz. The radical in performance, between Brecht and Baudrillard. London: Routledge , 1999., p. 93) ressalta:

As teorizações situacionistas da sociedade do espetáculo normalmente apresentam a mercantilização do consumismo, amplificada pela midiatização da cultura, como uma tela de alienação colocada pelo poder entre as pessoas e a realidade. Interrupções do espetáculo poderiam expor o sistema de dominação e simular uma revolução através da qual o desejo popular por liberdade seria satisfeito. Simpatizando, num primeiro momento, com o situacionismo, Baudrillard, no final dos anos 1970 e durante os anos 1980, estendeu suas premissas através da lógica na qual o espetáculo de simulações tornou-se a única realidade. [...] ele demonstra um brilhante pessimismo ao argumentar que ‘a procissão de simulacros’ nas produções capitalistas de mercadorias e imagens finalmente baniram por completo o real, através da representação de nada além delas mesmas, realidade simulada27 13 No original em inglês: The situationist theorisations of the society of the spectacle commonly picture the commodifications of consumerism, amplified by the madiatisation of culture, as a screen of alienation placed by power between the people and reality. disruption of the spectacle would expose the system of domination and simulate a revolution through which popular desire for freedom would be satisfied. from a starting point sympathetic to situationism, Baudrillard, through the late 1970s and into the 1980s extended its premises through a logic in which the spectacle of simulation became the only reality. […], he demonstrates a brilliant pessimism in arguing that the ‘procession of simulacra’ in the capitalist overproduction of commodities and images finally entirely banishes the real by representing nothing other than their own, simulated, reality. .

Nas palavras do próprio Baudrillard (1991BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991. , p. 71), as relações sociais contemporâneas passam por uma “universalização de um sistema de dissuasão” que provoca uma “reação em cadeia de simulacros, simulação em que se afunda efetivamente toda a energia do real” (1991, p. 73).

Os ícones ou símbolos tornam-se objetos hiper-reais por serem fabricações que já não possuem uma entidade real por trás deles. É o caso de cidades produzidas, como Las Vegas, parques temáticos e, hoje em dia, o mesmo poderia ser dito dos programas de reality shows e as propagandas eleitorais, que operam numa lógica, segundo a acepção de Baudrillard, hiper-realista. São abstrações sem referenciais, não são realidades, tampouco são representações (não se reportam a nenhuma entidade externa a si própria), são hiper-realidades, simulações que liquidaram com a possibilidade do real: “[...] fingir ou dissimular não transforma a realidade, a diferença entre o que é real e o que é fingido continua existindo. Mas a simulação borra esta distinção. [...] A simulação se reduz aos signos que a provam” (Baudrillard, 1991, p. 10 e p. 13). Baudrillard afirma ainda que a simulação:

É o segredo de um discurso que já não é somente ambíguo, como podem ser os discursos políticos, mas que traduz a impossibilidade de uma posição determinada de discurso. E esta lógica não é nem de um partido nem de outro. Ela atravessa todos os discursos independente de sua vontade. [...] Assim os hiper-realistas fixam numa verossimilhança alucinante um real de onde fugiu todo o sentido e todo o charme, toda a profundidade e a energia da representação (Baudrillard, 1991BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991. , p. 27 e p. 34).

A falta de apreensão do real, de possibilidade de conviver com o real, a lógica espetacular e de simulacros na qual se localiza a sociedade vislumbrada por Debord e Baudrillard, pode-se dizer, se afastou da dimensão de tempo presente. A concepção de que a localização espaço-temporal do real se dá no local e no momento presente é defendida por Clément Rosset (2008ROSSET, Clemént. O real e seu duplo, ensaio sobre a ilusão. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. , p. 64), para quem:

Privada de imediatidade, a realidade humana está, naturalmente, igualmente privada de presente. O que significa que o homem está privado de realidade tout court, se acreditarmos no que dizem a respeito os estoicos, cujo ponto forte foi afirmar que a realidade se conjugava somente no presente. Mas o presente seria por demais inquietante se fosse apenas imediato e primeiro: ele só o é acessível pelo viés da representação, portanto segundo uma estrutura interativa que o assimila a um passado ou a um futuro graças a um ligeiro deslocamento que corrói seu intolerável vigor e só permite a sua assimilação sob a forma de um duplo mais digerível que o real em sua crueza primeira.

A partir desses estudos, parto do entendimento de que o real é um acontecimento presente, imediato, vivível e experienciável, que se afasta da ordem espetacular, isto é, o real, diferentemente do espetáculo, que se vincula ao parecer, é delimitado pelo verbo ser. A representação, por sua vez, se constitui como referência a um real que, no entanto, não está presente.

É inegável que as constatações dos três pensadores mencionados evidenciam o real como conceito extinto ou em vias de extinção. No contexto da sociedade atual parece difícil localizar o real (vivências diretas; naturais e não fabricadas social e midiaticamente) no cotidiano. Ainda assim, é a essa categoria de real (presente, imediato, que é ao invés de parecer) que me refiro quando menciono tal conceito (embora reconheça a dificuldade de sua realização no mundo contemporâneo).

De um modo ou de outro parece tentador usar a delimitação de Rosset acerca do real para uma reflexão (e defesa) de como a exploração ou busca do real na cena teatral pode configurar-se de forma subversiva. Rosset diz que a perda de uma relação humana com o real está no seu afastamento do tempo e espaço presente, imediato, sua fuga do aqui e o agora. E grande parte das peças que exploram a irrupção do real, nas quais se incluem as experiências cênicas que se utilizam de narrativas pessoais, como as anteriormente citadas, se fundamenta na ideia de acontecimento (o teatro destacando e valorizando o tempo presente e espaço imediato), nas possibilidades de poder conformar o encontro teatral como experiência (para artistas e público). Nesse sentido, a ponderação que o filósofo Rosset faz de que o homem, ao negar o presente, nega a realidade, se torna uma preocupação central que transparece nos discursos de teatrólogos que têm explorado o real na cena, como, por exemplo, o estadunidense Josh Fox (2007FOX, Josh; MATTHAEI, Lukas. Vom richtigen Leben. In: TIEDEMANN, Kathrin; RADDATZ, Frank (Hg.). Reality Strikes Back, Tage vor dem Bildersturm. Eine Debatte zum Einbruch der Wirklichkeit in den Bühnenraum. Berlim: Theater der Zeit, 2007. P. 175-189. , p. 181):

Analisando uma questão sobre realidade, eu acredito que os atores estão visando algo chamado ‘verdade’, que é algo muito difícil de entender ou combinar. E essa ‘verdade’ é algum tipo de evento comunitário que tem todas essas contradições dentro dele. Nos Estados Unidos, nesse momento, nós estamos vivendo uma crise fundamental da verdade. É muito difícil saber quando ela começou, mas está uma loucura atualmente. Nosso sistema eleitoral todo está um caos. Nosso presidente é o maior mentiroso de todos os tempos e ninguém se importa. Chegou a um ponto no qual você apenas espera qual será a mentira que estará na televisão e não existe um senso verdadeiro de realidade ou moralidade. E é extremante deprimente, mas, além disso, é muito desorientador, porque você não sabe como combater isso. Então, o que é bom no teatro, é que este é um lugar no qual você talvez seja capaz de restaurar algum senso de crença28 14 No original em inglês: Getting to a question about reality, i think actors are aiming at something called “truth”, which is very difficult to understand or combine. and that truth is a kind of communal event that has all these contradictions built into it. and in the united states right now, we have this fundamental crisis of truth. it is very hard to figure out when it started, but it is really crazy right now. our entire electoral system is in chaos. our president is the greatest liar of all times and nobody cares. it has gotten to a point, where you just expect the lie what is going to be on television and there is no sense of actual reality or morality. and it is extremely depressing, but beyond that, it is very disorienting, because you don’t know, how to combat that. so it is nice about theater that is a place where you might be able to restore same sense of belief. .

Nessa passagem Fox fala da verdade como um evento comunitário, que pode estar presente nas configurações teatrais. Mas, por outro lado, o teatro é local do espetáculo, da representação, por excelência. Não poderia ser ele mais um reprodutor da ordem espetacular, da aparência no lugar da convivência? Não seria ele, o teatro, o principal veículo artístico de reprodução do falso, onde ao espectador se outorga a recepção passiva e positiva do espetáculo, tão criticada por Debord? Sobre esse aspecto Kershaw (1999KERSHAW, Baz. The radical in performance, between Brecht and Baudrillard. London: Routledge , 1999., p. 39) assinala:

Desse ponto de vista, o desempoderamento está inscrito na textura da vida cotidiana, porque tudo - incluindo nosso consumo do passado - pode ser transformado em mercadoria, com o resultado de que talvez não apareça nenhum sistema de valores separado da mercantilização. [...] Considerando como propositadamente construídas como casas para a simulação, prédios de teatro e seus produtos, obviamente podem facilmente se encaixar nessa visão pessimista da emporia da cultura contemporânea29 15 No original em inglês: From this angle, disempowerment is written into the texture of everyday life because everything – including our consumption of the past – may be turned into a commodity, with the result that there may appear to be no value system apart from commodification. […] considered as purpose-built houses for simulation, theater buildings and their products obviously can fit easily into this pessimistic vision of the contemporary culture emporia. .

É importante assinalar que, para Kershaw, há uma distinção entre teatro e performance, sendo que a construção artística do primeiro, para esse autor, tende a ser totalitária, relacionada ao que Debord chama de contemplação passiva do espetáculo. A performance, por sua vez, conteria em si, em maior grau, potencial de subversão. Mas mesmo no caso de eventos cênicos apresentados em casas de teatro, com divisão frontal entre palco e plateia, não existiria nunca a possibilidade de constituir um espaço de interrogação da ordem espetacular? Não seria possível que o teatro transgredisse a representação pura e gerasse uma conformação artística pautada no ser ao invés de parecer? As peças que citei neste trabalho, no meu ponto de vista, apresentam esse desejo de romper com a representação buscando transformar a situação teatral num acontecimento presente, no qual atrizes, atores, performers, ao apresentarem-se com suas histórias pessoais almejam ser, evidenciando o teatro como momento de encontro (acontecimento presente). Esse movimento transformaria o teatro em um lugar de vivência ao invés de aparência?

As questões levantadas por Kathrin Tiedemann, na introdução do livro Reality Strikes Back, Tage vor dem Bildersturm, que reúne vários artigos e entrevistas com praticantes teatrais alemães a respeito da ênfase do real na cena contemporânea, se fazem cruciais neste momento:

Então, como se explicaria tudo isso? As ‘pessoas de verdade’ que recentemente contracenam no Big Brother e pelas quais sente-se ou desprezo ou compaixão, deveriam interessar muito mais que os ‘atores autênticos’ no palco? De onde vem essa repentina fome por realidade? O teatro assume, assim, uma função de crítica da mídia? Ele se torna através disso político ou simplesmente constata o factual? Impõe, onde possível, suas qualidades mais imprescindíveis, a força da imaginação para fabricação de um outro mundo possível?30 16 No original em alemão: Und doch, wie passte das alles zusammen? Die ‘echten menschen’, die man gerade noch bei ‘big brother’ für ihre naivität gegenüber der medieninszenierung wenn nicht verachtet so doch wenigstens bemitleidet hatte, sollten einen auf einer theaterbühne auf einmal mehr interessieren als ‘echt schauspieler’? woher kommt dieser plötzliche hunger nach realität? übernimmt das theater damit eine funktion der medienkritik? wird es daduch politisch oder konstatiert es nur das faktische? beraubt es sich womöglich seiner wichtigsten qualitäten, der kraft zur imagination, zur herstellung einer andere, möglichen welt? (Tiedemann, 2007TIEDEMANN, Kathrin. Vorwort. In: TIEDEMANN, Kathrin; RADDATZ, Frank (Hg.). Reality Strikes Back, Tage vor dem Bildersturm. Eine Debatte zum Einbruch der Wirklichkeit in den Bühnenraum . Berlim: Theater der Zeit , 2007. P. 6-9., p. 7).

Algumas reflexões, como a citação de Annemarie Matzke31 17 Pesquisadora, atriz e membro fundadora do coletivo feminista She She Pop. Trabalha na interface entre teatro documentário e performance. , destacada anteriormente, sugerem possíveis respostas para essas perguntas. O teatro, para Matzke, quando atento à ordem espetacular da sociedade, não investe em sua negação, na negação da representação. Para conformar-se como ação crítica ele se situa entre, entre o real (ser) e o representar. Não busca desmascarar as complexas redes de representações e simulacros que se formaram no cotidiano social, mas busca igualmente meios complexos de elaboração. Esse tipo de arte teatral, do qual fazem parte as obras anteriormente citadas, não se define como sendo real: antes, elabora um jogo no qual realidade e ficção se interpolam, se tensionam, gerando uma percepção difusa no público ao mesclar vida empírica e construção ficcional.

Marvin Carlson (2010CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. , p. 65) diz que: “O que esses paralelos parecem sugerir é que é muito difícil e especialmente inútil tentar [...] traçar uma distinção clara entre o ‘mundo real’ da ação humana ‘responsável’ e o campo imaginário do jogo ou da performance”. Matzke e Carlson insinuam, assim, que o teatro não exclui o espetacular do seu processo, mas o problematiza. Da forma análoga, Hal Foster (2001FOSTER, Hal. El retorno de lo real, la vanguardia a finales de siglo. Madrid: Ediciones Akal, 2001. ), ao ponderar sobre o movimento vanguardista e neovanguardista nas artes visuais, defende que, em certa medida, há uma reiteração da lógica mercantil em tais movimentos justamente como meio de não se aderir a ela, mas de torná-la evidente:

[...] o objetivo não é nem uma negação abstrata da arte, nem uma reconciliação romântica com a vida, mas um contínuo exame das convenções de ambas. Assim, mais que falsa ou circular e se não afirmativa, no melhor dos casos a prática vanguardista é contraditória, móvel, quando não diabólica. O mesmo é certo para as artes neovanguardistas no melhor dos casos [...]. ‘A pintura está relacionada com a arte e com a vida’ reza um famoso lema de Rauschenberg. ‘Nem uma coisa nem outra estão feitas (eu trato de trabalhar na brecha aberta entre ambas)’. Repare que ele disse ‘brecha’: a obra há de sustentar uma tensão entre arte e vida, não reestabelecer de modo que seja a reconexão entre ambas (Foster, 2001FOSTER, Hal. El retorno de lo real, la vanguardia a finales de siglo. Madrid: Ediciones Akal, 2001. , p. 18).

As ponderações de Foster não são dissonantes à ideia de que, para um teatro consciente do contexto cultural que o cerca, a pura ideia de representar já não pode mais cumprir um papel crítico, de forma que a arte, em sua concepção, tem buscado se situar entre a aparência e o real. Para defender esse argumento gostaria de destacar a colocação de José Sánchez (2007SÁNCHEZ, José. Practicas de lo real en la Escena Contemporánea. Barcelona: Visor Libros, 2007.), para quem “a representação da realidade é, de fato, um problema muito distinto da irrupção do real”. A primeira não torna visível seu próprio processo de construção; a segunda no mínimo almeja assinalar a possibilidade de haver uma construção consciente de discursos. Ou seja, a representação implica em apresentar uma imagem do real, processo diferente ao da irrupção do real, que instala uma ambiguidade na cena através da problematização da ficção. Essa problematização possui uma qualidade de choque e surpresa que desponta no espetáculo quando este cria, por algum momento, um evento real, ao invés de falar sobre ele.

Dentro dessa perspectiva, aparece, como motivadora de algumas propostas teatrais contemporâneas, a vontade de indagar, entre outras coisas, a qualidade espetacular que está inserida no próprio dia a dia. Ou seja, evidenciar o espetáculo cotidiano, no qual estamos passivamente inseridos, para que, ao tomar consciência dessa dinâmica, seja então possível sentir na pele o seu efeito ideológico e emocional.

Portanto, a tentativa de aproximar artistas e público pode ser tomada como um dos elementos nevrálgicos das propostas contemporâneas, já que esse encontro permite a problematização da relação entre arte e vida, pois enfoca o evento teatral como acontecimento presente, permitindo que sejam geradas discussões quanto às possibilidades que o teatro tem de relacionar o seu público de forma crítica com a sociedade contemporânea. O grande desafio é estabelecer uma tensão produtiva entre a encenação na condição de encontro social e apresentação espetacular32 18 Uma reflexão extensa acerca das possibilidades do teatro como encontro social, e não apenas evento estético, é desenvolvida por Richard Schechner (1994, p. 40-86) em seu livro Enviromental Theater. .

Essa dita sede por vivenciar autênticas realidades, mencionada por Tiedemann (que parece ter feito eclodir a onda dos realities shows, bem como impulsionar o cinema documentário de uma maneira nunca antes vista e, principalmente, as transmissões vivas das redes sociais), seria reflexo de uma sensação concreta, ainda que não consciente, de que tudo que vivemos é espetacular, no sentido de Debord?

A afirmação do teatro como espaço de encontro, no qual se verifica uma inquietação no intuito de provocar um contraponto entre acontecimento e representação teatral, parece ser uma estratégia que busca questionar essa estética espetacular que desemboca no tudo ficcional da mídia? Uma possibilidade é a de que esse teatro se proponha a tensionar as barreiras entre ficção e realidade, demonstrando que em espaços estéticos esses dois campos se sobrepõem e nem sempre se pode confiar em tudo o que os olhos veem e os ouvidos escutam.

Para Matzke (2006MATZKE, Annemarie. De seres humanos reais a performers verdadeiros. Urdimento revista de estudos em artes cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 18, p. 189-196, 2006.), como destacado inicialmente, não está mais em questão se algo é imediato ou encenado, mas qual impressão de imediatez é produzida. Ou, pode-se dizer ainda, não interessa tanto se o que o teatro mostra é verdade ou mentira, mas sim a profundidade da dúvida que ele é capaz de causar. Para tanto, é vital expor os processos de construção desses efeitos de autenticidade, sacudindo os espectadores, não no sentido literal dos anos 1960, mas deslocando o seu papel de observador. Quer dizer, fazendo com que ele se sinta partícipe dos acontecimentos cênicos justamente por estar sendo confrontado com a possibilidade de presenças ao invés de representações e que, por conseguinte, se pergunte, como deve reagir a esses acontecimentos, estética ou moralmente, já que para ele não é mais possível distinguir claramente o quanto de realidade e de ficção vivencia.

“Ao público”, comenta Óscar Cornago, depois “de confrontado com diferentes realidades (cênicas e existenciais) se outorga a necessidade de eleger quanto de verdade e quanto de engano há em cada uma das partes” do que assistiu (Cornago, 2005CORNAGO, Óscar. Biodrama. Sobre el teatro de la vida y la vida del teatro. Latin American Theater Review, Kansas, v. 39, n. 1, p. 5-27, 2005. , p. 13)33 19 No original em espanhol: Al público, enfrentado a unas y otras realidades, escénicas las unas, existenciales las otras, le queda la necesidad de elegir, de decidir cuánta verdad y cuánto engaño hay en cada una de las partes; una pregunta que proyectada a todo el ciclo no busca tanto una respuesta única como un cuestionamiento de las divisiones más convencionales para enfrentarse a la realidad, a la vida y a la memoria en busca de verdades definitivas. . Essa é uma pergunta que não busca uma resposta definitiva, mas propõe um confronto com as realidades extrateatrais daqueles que participam do evento. A irrupção do real acaba promovendo uma quebra que transgride a segurança passional do público. Este acaba perdendo domínio sobre seu processo de recepção, sobre seus próprios modos de operar o ato de olhar e de fruição do evento teatral, confrontado com a possibilidade de estar presenciando uma narrativa real, muito embora, em todo caso, ainda teatral.

Dessa maneira, certas propostas cênicas possibilitam (embora isso não seja uma regra) uma compreensão ou, ao menos, um vislumbre de que o espetáculo teatral seja um fenômeno distinto da sociedade do espetáculo. A diferença está no fato de que o intuito dos teatros criados fora da lógica puramente representacional, como são os exemplos apresentados no início deste artigo, é justamente fazer do público um público consciente das lógicas espetaculares existentes no teatro e na vida e, nesse sentido, corresponsável pela apresentação desses espetáculos, enquanto que o espetáculo da vida diária, como sugerido por Debord, opera justamente no sentido contrário, o de alienação e de entorpecimento perceptual.

Isso ocorre porque, de acordo com Helga Finter (2007FINTER, Helga. A teatralidade e o teatro: Espetáculo do real ou realidade do espetáculo? Notas sobre a teatralidade e o teatro recente na Alemanha. Camarim - publicação da cooperativa paulista de teatro, São Paulo, n. 39, ano 10, p. 8-19, 2007. ), o espetáculo presente na vida cotidiana (e aqui se incluem os programas de reality shows, sites de relacionamento, redes sociais e algumas propostas de cinema documentário) pretende ser real, natural, ao passo que uma encenação que explora irrupções do real na cena, intenta frisar a sua teatralidade. Nas palavras de Finter (2007, p. 18):

Esse conceito de uma teatralidade crítica permite não só desenredar o amálgama entre teatro e espetáculo, como também entender o impacto político e crítico do teatro contemporâneo. ‘[...] a teatralidade do campo estético se distingue da do cotidiano em vários pontos: [...] ela permite a este [o espectador] uma crítica da sociedade do espetáculo, já que o espectador pode fazer nela a experiência do seu desejo de olhar’.

Por isso se torna tão primordial ao teatro contemporâneo, e isso inclui as peças aqui mencionadas, evidenciar que a autenticidade, o real, podem ser construções. Concretiza-se, dessa forma, o que Vasquez Rocca (2006ROCCA, Adolfo Vásquez. El giro estético de la epistemología. La ficción como conocimiento, subjetividad y texto. Aisthesis, Santiago, Instituto de Estética de la Pontificia Universidad Católica de Chile, n. 40, p. 45-61, 2006. , p. 52-53) propunha: “[...] a ficção não se refere à realidade de modo reprodutivo, como se esta fosse dada previamente, mas faz referência a ela de um modo produtivo, ou seja, a estabelece”.

Acredito, dessa forma, que a busca pelo real nos espetáculos que partem de narrativas pessoais almeja indagar a ordem vigente, ou seja, ponderar sobre a sociedade do espetáculo, em que tudo é representação, aparência e, portanto, mercadoria. Todavia não existe uma medida certa ou garantia para que este impulso crítico se estabeleça. Como visto, o teatro também pode se desdobrar em espetáculo hiper-real e reproduzir as tramas da observação pela lógica espetacular, caindo na lógica do mercado que vende ilusões com a marca da verdade.

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  • 1
    No intuito de tornar a leitura mais fluída optei por colocar as citações sempre em português, sendo que constarão no original, em notas, aquelas que eu mesma tiver traduzido. No original em espanhol: [...] de que no existe simplemente una historia para el universo, sino una colección de historias posibles para él, todas igualmente reales.
  • 2
    No original em espanhol: las verdades son ilusiones de las que se ha olvidado que lo son […].
  • 3
    Site pessoal da atriz disponível em: <https://corpotempo.wixsite.com/maria>. Acesso em: 02 jul. 2018.
  • 4
    O espetáculo participou de diversos eventos e festivais, dos quais se destacam: Mostra Local Festival Palco Giratório – SESC-SC; 17. Festival Isnard Azevedo – Floripa Teatro; Festival de Teatro de Campo Mourão.
  • 5
    O termo aparece em textos de teóricos como Sánchez, Catani, Fèral e Cornago.
  • 6
    Considero contemporâneo, neste artigo, trabalhos teatrais realizados a partir do ano 2000.
  • 7
    Ver Guénoun (2004, p. 18; 19; 38; 50).
  • 8
    Eu discuto esse tema com maior profundidade no artigo Por um estado de não atuação: reflexões sobre o real do trabalho atorial (Marina, 2016MARINA, Heloisa. Por um estado de não atuação: reflexões sobre o real do trabalho atorial. In: CARREIRA, André (Org.). Atuação por Estados: uma pesquisa sobre procedimentos de atuação. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2016.).
  • 9
    No original em inglês: It has not been my purpose to discredit the theories under discussion here, for they remain valuable and provocative conceptions of acting and its functions. I only want to indicate their dependence on logocentrism and certain conceptions of self and presence. Stanislavski states that the actor’s self is the basis of performance, but his own working out of this idea leads him to the posit that the self is produced by the very process of acting it is sad ground. Brecht would have the actor partly withhold her presence from the character she plays in order to comment on it. to do so, however, the actor must endow another fictional persona with the authority of full presence, a theoretical movement which makes Brecht’s performance theory subject to the same deconstructive critique of presence as Stanislavsky. Grotowski proposes the actor’s body as an absolute presence which banishes difference, but does not take into account the action of difference within the body itself. it is not a question of discarding these theories or of ironing out inconsistences within them, but one of recognizing that they are subject to the limits of metaphysical assumptions on which they are based. if we are to use them, we must realize that, like metaphysics, they demand that we accept these assumptions on faith.
  • 10
    Proponho essa diferenciação entre o representacional (o semiótico) e o performativo, entre texto e evento, não a partir de um ponto de vista maniqueísta, mas tendo em conta que são dois lados de um único processo de criação de signos cênicos. Quanto a essa questão, é pertinente a ponderação de Fischer-Lichte: “A forma semiótica e performativa constituem, consequentemente, não um par de oposições, mas uma relação de reciprocidade. A semiótica é baseada no performativo, na medida em que esta constitui uma condição essencial para que haja possibilidade de produção de sentidos e o performativo não pode dispensar a semiótica, na medida em que os atos performativos que geram uma realidade e o efeito que eles evocam sobre os participantes se baseiam, pelo menos em parte, em processos específicos de constituição de significado ou em significados específicos, que podem ser atribuídos a esses atos. As perspectivas de pesquisa que introduziram a virada semiótica e performativa estão estreitamente relacionados entre si e se complementam” (Fischer-Lichte, 2001FISCHER-LICHTE, Erika. Ästhetische Erfahrung, Das Semiotische und das Performative. Tübingen: Franck, 2001., p. 20). No original em alemão: Das semiotische und das performative bilden entsprechend nicht ein oppositionspaar, sondern ein wechselverhältnis. das semiotische ist auf das performative bezogen, insofern dieses eine wesentliche bedingungen für dir möglichkeit von bedeutungserzeugung darstellt und das performative kann des semiotischen nicht entraten, insofern seine wirklichkeitskontituierenden akte und die wirkung, die sie bei den beteiligten hervorrufen, wenigstens zum teil auf spezifische prozesse der bedeutungskonstitution bzw. auf bestimmte bedeutungen, die diesen akten beigelegt werden können, züruckgehen. die forschungsperspektiven, welche die semiotische und die performative wende eingeführt haben, sind also eng aufeinander bezogen und ergänzen sich gegenseitig.
  • 11
    Blog da atriz disponível em: <http://barbarabiscaro.blogspot.com/>. Acesso em: 02 jul. 2018.
  • 12
    Para mais informações acessar: <https://www.lascamaleoas.com/mostra-camaleoa>. Acesso em: 02 jul. 2018.
  • 13
    No original em inglês: The situationist theorisations of the society of the spectacle commonly picture the commodifications of consumerism, amplified by the madiatisation of culture, as a screen of alienation placed by power between the people and reality. disruption of the spectacle would expose the system of domination and simulate a revolution through which popular desire for freedom would be satisfied. from a starting point sympathetic to situationism, Baudrillard, through the late 1970s and into the 1980s extended its premises through a logic in which the spectacle of simulation became the only reality. […], he demonstrates a brilliant pessimism in arguing that the ‘procession of simulacra’ in the capitalist overproduction of commodities and images finally entirely banishes the real by representing nothing other than their own, simulated, reality.
  • 14
    No original em inglês: Getting to a question about reality, i think actors are aiming at something called “truth”, which is very difficult to understand or combine. and that truth is a kind of communal event that has all these contradictions built into it. and in the united states right now, we have this fundamental crisis of truth. it is very hard to figure out when it started, but it is really crazy right now. our entire electoral system is in chaos. our president is the greatest liar of all times and nobody cares. it has gotten to a point, where you just expect the lie what is going to be on television and there is no sense of actual reality or morality. and it is extremely depressing, but beyond that, it is very disorienting, because you don’t know, how to combat that. so it is nice about theater that is a place where you might be able to restore same sense of belief.
  • 15
    No original em inglês: From this angle, disempowerment is written into the texture of everyday life because everything – including our consumption of the past – may be turned into a commodity, with the result that there may appear to be no value system apart from commodification. […] considered as purpose-built houses for simulation, theater buildings and their products obviously can fit easily into this pessimistic vision of the contemporary culture emporia.
  • 16
    No original em alemão: Und doch, wie passte das alles zusammen? Die ‘echten menschen’, die man gerade noch bei ‘big brother’ für ihre naivität gegenüber der medieninszenierung wenn nicht verachtet so doch wenigstens bemitleidet hatte, sollten einen auf einer theaterbühne auf einmal mehr interessieren als ‘echt schauspieler’? woher kommt dieser plötzliche hunger nach realität? übernimmt das theater damit eine funktion der medienkritik? wird es daduch politisch oder konstatiert es nur das faktische? beraubt es sich womöglich seiner wichtigsten qualitäten, der kraft zur imagination, zur herstellung einer andere, möglichen welt?
  • 17
    Pesquisadora, atriz e membro fundadora do coletivo feminista She She Pop. Trabalha na interface entre teatro documentário e performance.
  • 18
    Uma reflexão extensa acerca das possibilidades do teatro como encontro social, e não apenas evento estético, é desenvolvida por Richard Schechner (1994SCHECHNER, Richard. Environmental Theater. New York: Applause, 1994. , p. 40-86) em seu livro Enviromental Theater.
  • 19
    No original em espanhol: Al público, enfrentado a unas y otras realidades, escénicas las unas, existenciales las otras, le queda la necesidad de elegir, de decidir cuánta verdad y cuánto engaño hay en cada una de las partes; una pregunta que proyectada a todo el ciclo no busca tanto una respuesta única como un cuestionamiento de las divisiones más convencionales para enfrentarse a la realidad, a la vida y a la memoria en busca de verdades definitivas.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • Editor-responsável: Gilberto Icle
  • Editora-responsável: Laura Cull Ó Maoilearca
  • Editora-responsável: Luciana da Costa Dias

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2019
  • Aceito
    08 Out 2019
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