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Iben Nagel Rasmussen: a transparência na maturidade 1 1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 (bolsa PDSE) e da FAPEMIG.

Iben Nagel Rasmussen: la transparence dans la maturité

Resumo:

Propõe-se a transparência como qualidade que emerge do percurso da atriz Iben Nagel Rasmussen, representante de uma dimensão laboratorial, de trabalho sobre si, do teatro europeu. Sugere-se uma analogia entre o tempo aromático de Han e a qualidade da transparência. A maturidade artística de Stanislavski é ponto de partida para indagar-se sobre o sentido das experiências do ator maduro, à luz de princípios da arte do ator nô, provenientes de Zeami. É salientada a qualidade da transparência na autonomia de Rasmussen com relação ao Odin Teatret, na criação de espetáculos de inspiração biográfica, além de projetos pedagógicos, e como valor a ser cultivado na cena expandida contemporânea.

Palavras-chave:
Ator; Maturidade Artística; Dimensão Laboratorial; Treinamento; Atuação

Résumé:

Il est proposé la transparence comme qualité qui émerge de la carrière de l’actrice Iben Nagel Rasmussen, représentative d’une dimension laboratoriale, du travail sur soi, du théâtre européen. Une analogie est suggérée entre temps aromatique de Han et la qualité de la transparence. La maturité artistique de Stanislavski est point de départ pour se demander sur le sens des expériences de l’acteur mature, à la lumière des principes de l’acteur nô, émanant de Zeami. La transparence de l’autonomie de Rasmussen vis-à-vis d’Odin Teatret, dans la création de spectacles biographiques, ainsi que dans projets pédagogiques et en tant que valeur à cultiver dans la scène contemporaine, est soulignée.

Mots-clés:
Acteur; Maturité Artistique; Dimension Laboratoriale; Entrainement; Actuation

Abstract:

Transparency is proposed as a quality that emerges from the career of the actress Iben Nagel Rasmussen, a representative of a laboratory dimension, of work on oneself in the European theater. An analogy is suggested between Han’s aromatic time and the quality of transparency. The artistic maturity of Stanislavski is a starting point to inquire about the meaning of the mature actor’s experiences, in light of the principles of the Noh actor by Zeami. The quality of transparency in Rasmussen’s autonomy in relation to the Odin Teatret, in the creation of biographical performances, as well as pedagogical projects, and as a value to be cultivated in the contemporary scene is highlighted.

Keywords:
Actor; Artistic Maturity; Laboratorial Dimension; Training; Acting

Introdução

Figura 1:
Iben Nagel Rasmussen, no espetáculo The Tree (A árvore), o mais recente espetáculo do Odin Teatret (2016)

Este artigo é um desdobramento de minha tese de doutorado, Maturidade do ator ofício e cultivo de siDUARTE, Priscilla de Queiroz. Maturidade do Ator: ofício e cultivo de si. 2019. Tese (Doutorado em Artes) - Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.. A pesquisa teve como inspiração as proposições de Italo Calvino (1992CALVINO, Italo. Lezioni Americane. Sei proposte per il prossimo millennio. Milano: Garzanti, 1992.) em seu livro Seis propostas para o próximo milênio; o autor italiano aponta qualidades que deveriam ser preservadas no futuro da literatura. Na tese, proponho qualidades que deveriam ser cultivadas no teatro, frente aos atuais tempos dissincrônicos e sem aroma, e aos desafios da cena expandida contemporânea. Associo diferentes qualidades a diferentes atores, todos com mais de 60 anos de idade. São representantes de uma geração que se formou e que atua, na Europa, dentro de uma dimensão laboratorial (Schino, 2012SCHINO, Mirella (Org.). Alquimistas do Palco. Os laboratórios teatrais na Europa. São Paulo: Perspectiva, 2012. ) que se relaciona ao âmbito do trabalho sobre si. Neste artigo, concentro-me na transparência, qualidade que atribuo à trajetória de Iben Nagel Rasmussen (Figura 1), de 74 anos de idade, atriz do Odin Teatret (Dinamarca), buscando destacar como essa qualidade poderia conceder sentido ao conjunto de experiências acumuladas em sua trajetória artística2 2 Além de Iben Nagel Rasmussen (do Odin Teatret, Dinamarca), participaram da pesquisa de doutorado os atores Beppe Chierichetti e Luigia Calcaterra (do Teatro Tascabile di Bergamo, Itália) e François Kahn (França). São atores que conheço, com os quais trabalhei, em maior ou menor grau, e cujas trajetórias acompanho desde os anos 1980. .

Parte do doutorado foi realizado no exterior, em uma perspectiva cartográfica, de acompanhamento de processos (Passos; Kastrup; Escóssia, 2014PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da (Org.). Pistas do Método da Cartografia. Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2014. ) junto aos sujeitos participantes da pesquisa. No caso de Rasmussen, foram realizadas entrevistas e acompanhamento da rotina de trabalho, de ensaios e apresentações de espetáculos da atriz, além de pesquisa bibliográfica no OTA - Odin Teatret Archives, em Holstebro (Dinamarca). As entrevistas (gravadas em áudio) foram realizadas na casa da atriz e tiveram por objetivo produzir dados, a partir de sua experiência profissional e de sua história de vida. Este artigo apresenta uma parte da elaboração desses dados.

Maturidade Artística: qualidade e tempo como demora

A chegada do ator à maturidade pode ser entendida como ápice da conquista de capacidades e desenvolvimento de potencialidades, ou pode trazer sentimento de temor sobre o que virá a seguir, além de perda de vitalidade, de energia, de criatividade. Maturidade artística, porém, não necessariamente coincide com maturidade etária. É possível amadurecer artisticamente na juventude, assim como é possível envelhecer sem ter amadurecido artisticamente. A noção de maturidade artística inspira-se em Stanislavski; no seu caso, ela parece ter chegado aos 60 anos de idade, no momento em que ele escrevia sua autobiografia - Minha Vida na Arte -, o primeiro de seus livros. Naquele momento, a carreira de ator de Stanislavski praticamente havia se encerrado. Suas pesquisas sobre a arte do ator, porém, ganharam novo impulso e seriam interrompidas apenas com a sua morte, aos 75 anos de idade. A escritura de seus livros e a coordenação de pesquisas práticas sobre a atuação nos diversos Studios, sob sua orientação, culminariam com o desenvolvimento de seu derradeiro legado: o método das ações físicas. O capítulo final de sua autobiografia abre-se com uma reflexão sobre seu passado artístico. O mestre russo perguntava-se onde tinha ido parar sua “velha alegria criativa” e conjecturava:

No tempo aqui referido, eu acumulara com minha experiência artística um reservatório cheio de material de toda espécie sobre técnica da arte. Tudo isso estava como que amontoado, por classificar, confuso, misturado, não sistematizado, sem condições de ser aproveitado como riqueza artística. Era preciso pôr ordem, analisar o acumulado, examiná-lo, avaliá-lo e, por assim dizer, distribuí-lo pelas prateleiras espirituais. O que estava bruto precisava ser polido e lançado como pedra fundamental nas bases da nova arte. O que o tempo desgastava devia ser refrescado, sem o que o avanço se tornava impossível (Stanislavski, 1989STANISLASVSKI, Constantin. A maturidade do artista. In: STANISLASVSKI, Constantin. Minha Vida na Arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. P. 405-539., p. 407-408).

Stanislavski formula incertezas, temores e inquietações do último período de sua vida. Demonstra ter plena consciência do valor de sua trajetória, mas tem dúvidas sobre o seu legado e a quem e como transmiti-lo:

Quem sou eu e o que represento na vida nova que vem brotando no teatro? Serei capaz de, como outrora, compreender até as sutilezas, tudo o que ocorre em volta e aquilo com que ora se envolve a juventude? […] De que modo posso compartilhar com as novas gerações dos resultados da minha experiência e preveni-los dos erros gerados pela inexperiência? Quando hoje lanço um olhar sobre o caminho percorrido, sobre toda a minha vida na arte, dá-me vontade de comparar-me a um garimpeiro de ouro, que antes tem de errar por brenhas intransponíveis a fim de descobrir o lugar em que se encontra o ouro bruto e só depois lavar centenas de arroubas de areia e pedras para separar algumas pepitas do metal nobre. Como garimpeiro de ouro, posso transmitir à posteridade não o meu trabalho, as minhas perquirições e privações, alegrias e frustrações, mas apenas o mineral precioso que extraí (Stanislavski, 1989, p. 537-538).

Quanto mais avança o tempo, mais aumenta a probabilidade de que um ator atinja a maturidade artística. Penso o tempo como duração, como demora, como caminho, e não como pontos isolados de um percurso, instantes de presente entre o passado e o futuro. À medida que os saberes se acumulam, eles também ocupam um outro tipo de espaço, como o perfume de um tempo aromático que permanece no ar. A noção de tempo aromático ou de tempo com aroma é sugerida pelo filósofo coreano Byung-Chul Han (2016HAN, Byung-Chul. O Aroma do Tempo. Um ensaio filosófico sobre a Arte da Demora. Lisboa: Relógio D’Água, 2016.) e inspira-se no hsiang-yin, um relógio de incenso chinês. Trata-se de um recipiente que contém um stencil de desenhos ou de caracteres em linha contínua. Despeja-se o incenso em pó dentro do recipiente e, ao retirar-se o molde, o pó permanece na forma do desenho. Quando queimado, o pó torna-se cinzas mantendo, porém, a forma original do ideograma ou do desenho (Bedini, 1963BEDINI, Silvio A. The Scent of Time. A study of the use of fire and incense for time measurement in oriental countries. Philadelphia: The American Philosophical Society, 1963.). A brasa que consome o desenho representa o caráter transitório da vida; os caracteres, que não perdem sua significação após serem reduzidos a cinzas, dão lugar à sensação de duração:

O tempo que tem aroma não passa ou transcorre. Nada pode esvaziá-lo. O aroma do incenso enche antes o espaço. Ao dar um espaço ao tempo, confere-lhe aparência de uma duração (Han, 2016HAN, Byung-Chul. O Aroma do Tempo. Um ensaio filosófico sobre a Arte da Demora. Lisboa: Relógio D’Água, 2016., p. 73).

Para o filósofo coreano, a sensação atual de aceleração, de efemeridade, de perda do ritmo ordenador do tempo, de dificuldade com a finitude das coisas e da vida, poderia ser revertida:

A hipercinesia cotidiana despoja a vida humana de qualquer elemento contemplativo, qualquer capacidade de demora. Pressupõe a perda do mundo e do tempo. […] A crise temporal só será superada no momento em que a vita activa, em plena crise, acolha de novo no seu interior a vita contemplativa (Han, 2016HAN, Byung-Chul. O Aroma do Tempo. Um ensaio filosófico sobre a Arte da Demora. Lisboa: Relógio D’Água, 2016., p. 11, grifo do autor)

De acordo ainda com Han (2016HAN, Byung-Chul. O Aroma do Tempo. Um ensaio filosófico sobre a Arte da Demora. Lisboa: Relógio D’Água, 2016.), a ideia atual que temos da contração do presente não se deve exatamente a uma aceleração do tempo. Essa fase já teria sido superada. A atual crise diria respeito mais a uma dissincronia, a uma perda do ritmo ordenador do tempo. Nesse sentido, a relação entre perda de duração e aceleração deve-se mais a uma precipitação do tempo, ou seja, a uma avalanche; hoje o tempo anda aos tropeços, pois deixou de ter dentro de si a sua própria sustentação:

Cada ponto do presente, entre os quais já não existe qualquer força de atração temporal, faz com que o tempo se desenfreie, com que os processos se acelerem sem direção alguma - e é precisamente a falta de qualquer direção que faz com que não possamos falar de aceleração. A aceleração, no sentido estrito, pressupõe caminhos unidirecionais (Han, 2016HAN, Byung-Chul. O Aroma do Tempo. Um ensaio filosófico sobre a Arte da Demora. Lisboa: Relógio D’Água, 2016., p. 17).

A qualidade que emana do percurso da atriz dinamarquesa Iben Nagel Rasmussen seria como o ideograma do relógio chinês: a transparência seria como o perfume de sua trajetória. Essa qualidade denotaria uma possibilidade de demora na maturidade artística. É como se fosse possível ler os caracteres do relógio chinês, sentir o perfume de um incenso que está se consumindo. A maturidade artística se constituiria a partir de uma prática do oficio que prevê uma demora, dentro de uma dimensão laboratorial (Schino, 2012SCHINO, Mirella (Org.). Alquimistas do Palco. Os laboratórios teatrais na Europa. São Paulo: Perspectiva, 2012. ), para além da realização de espetáculos. A dimensão laboratorial corresponderia ao trabalho do ator sobre si mesmo, um tempo de transformação do Sujeito ator.

Rasmussen (2016RASMUSSEN, Iben Nagel . O Cavalo Cego: diálogos com Eugênio Barba e outros escritos. São Paulo: É Realizações, 2016.) conta que, recém-chegada para trabalhar no Odin Teatret, o que mais despertava seu interesse era ver que, quando os atores mais antigos do grupo atuavam, alguma coisa acontecia no corpo deles; e ela chama essa coisa de “corpo transparente”.

Não era uma ‘habilidade’, não era uma vontade de construir um corpo ‘belo’, como no balé clássico. Também não era uma estética, algo que vinha de fora. Era alguma coisa dentro… Era isso que decidia, que fazia com que o corpo se tornasse uma outra coisa: não um corpo bonito ou feio. Mas aquele corpo era, como… sim, era transparente, e eu via isso muito claramente no Torgeir [Wethal], na sequência do gato […] A mesma coisa acontecia com Else Marie [Laukvik]: não era simplesmente uma voz bonita ou feia, forte ou sutil […] parecia que havia uma força dentro dela, e eu sempre tinha essa mesma sensação, como se fosse uma matéria que se tornava transparente (Rasmussen, 2016RASMUSSEN, Iben Nagel . O Cavalo Cego: diálogos com Eugênio Barba e outros escritos. São Paulo: É Realizações, 2016., p. 281, grifo do autor).

Ainda que talvez de forma não intencional, a transparência parece ter atravessado a trajetória de Rasmussen, passando de um ideal a ser atingido a uma qualidade a ser transmitida a outros.

Em Busca do Corpo Transparente: training e autonomia no Odin e no Farfa

Iben Nagel Rasmussen nasceu em Copenhagen, em 1945, e é atriz do Odin Teatret desde 1966. O Odin Teatret foi fundado em 1964, em Oslo (Noruega), transferindo-se para Holstebro (Dinamarca) em 1966. A juventude de Rasmussen foi marcada por um misto de aventura, rebeldia, êxtase, liberdade e sofrimento. Ao mesmo tempo que o uso de drogas representou uma “revolução da mente”, elas tornaram-se “portas fechadas” e “algumas pessoas estavam do lado errado quando as portas começaram a se fechar” (Rasmussen, 2016, p. 268). Não é exagerado dizer que o teatro salvou a vida da jovem Rasmussen. Ela diz que o Odin Teatret lhe ofereceu as condições necessárias a um outro tipo de transformação:

Eu precisava de terra para ser capaz de mergulhar, transformar. E foi aí que eu encontrei o Odin Teatret, uma ‘ilha flutuante’. […] Acho que minha geração tinha alguma coisa que precisava desenvolver, mas não desenvolveu. Parecia que era um novo jeito de viver, que um novo tempo estava por vir. […] é necessário que os poucos que chegaram inteiros até aqui mantenham viva aquela esperança, além de defendê-la e transmiti-la aos outros. É como desenraizar uma planta do seu terreno porque lá ela está sufocando, e então buscar uma nova terra, mais apropriada para abraçar e deixar crescer suas raízes. Um terreno menor, aparentemente mais isolado, mas onde a terra fértil é mais profunda (Rasmussen, 2016RASMUSSEN, Iben Nagel . O Cavalo Cego: diálogos com Eugênio Barba e outros escritos. São Paulo: É Realizações, 2016., p. 250-251).

Com os anos, a rebeldia da juventude não se perdeu, mas transmutou-se. Ao invés de firmar-se como caminho de autodestruição, a rebeldia encontrou no teatro outro modo de expressão, de afirmação de espaços e de autonomia com relação ao grupo e ao diretor. Isso se manifesta em diversos âmbitos do trabalho da atriz: “[...] o treinamento tornou-se uma oportunidade de independência, a chave que pode abrir as portas de espaços sempre novos” (Rasmussen, 2016RASMUSSEN, Iben Nagel . O Cavalo Cego: diálogos com Eugênio Barba e outros escritos. São Paulo: É Realizações, 2016., p. 122). Essa independência no treinamento transmitia-se também aos processos criativos. Aqui, a transparência manifesta-se como recurso para o recolhimento, como se a atriz pudesse desaparecer para o que não lhe interessa. Sobre o espetáculo Brecht’s Ashes (Cinzas de Brecht) de 1980, por exemplo, Rasmussen (2016, p. 133) afirmou: “[...] não gosto que me digam o que fazer. Preciso encontrar meu próprio material sozinha, minha própria linguagem. […] para mim, o trabalho com o diretor é um encontro”. De fato, Rasmussen foi a responsável por um dos pontos de mudança fundamentais no Odin, quando o treinamento coletivo, composto de várias disciplinas, começou a dar lugar ao training3 3 Neste artigo, a palavra training, em inglês, é utilizada quando se refere a um tipo de treinamento entendido como um processo pessoal, tal como é utilizada no Odin Teatret. Treinamento, em português, é utilizado quando se trata de uma acepção mais abrangente do termo. pessoal de cada ator. Rasmussen partiu do que chamou de exercícios suíços (assim chamados porque foram desenvolvidos durante uma turnê na Suíça):

Acho que eu trabalhava no Odin há pelo menos quatro anos […] Eu não conseguia encontrar dentro de mim o que tinha visto no Torgeir [Wethal], no [Richard] Cieslak … Alguma coisa não funcionava. […] de repente, comecei a refletir: o que é uma ação dramática? O que é para mim? Não em geral: para mim. E foi aí que comecei a experimentar todas as maneiras possíveis de sentar, de ir até o chão e de sair do equilíbrio […]. O próprio treinamento, para mim, tinha renascido. Eu havia encontrado aquele fluir que tinha buscado durante anos e nunca encontrava, porque ele era sempre interrompido por alguma coisa: pelo pensamento, pela fadiga, pela descontinuidade do treinamento (Rasmussen, 2016RASMUSSEN, Iben Nagel . O Cavalo Cego: diálogos com Eugênio Barba e outros escritos. São Paulo: É Realizações, 2016., p. 282, grifo nosso).

Figura 2:
Iben Nagel Rasmussen em situação rara atualmente: uma demonstração de training na última sessão do ISTA em Albino (Itália), em abril de 2016. Ao fundo, à direita: Eugenio Barba e Julia Varley

O ator deve aprender a fluir em improvisações contínuas, experimentadas no training, caso contrário, não estará apto a voar. O ator que pensa demais, preocupado em aprender habilidades técnicas, tende a manter ambos os pés bem apoiados ao chão, não se arrisca, não voa. A partir de sua própria experiência, Iben Nagel Rasmussen (1996RASMUSSEN, Iben Nagel . La drammaturgia del personaggio. In: DE MARINIS, Marco (Org.). Dramaturgia dell’Attore. Teatro Eurasiano 3 . Bologna: I Quaderni del Battello Ebbro , 1996. P. 176-186., p. 179)4 4 Todas as citações de fontes em língua estrangeira, neste artigo, têm tradução da autora. concluiu que voar constitui a conexão entre training e trabalho criativo:

Precisei de quatro anos para começar a fazer algo que sentisse que era meu. No início, eu sentia que o training não me ajudava no trabalho com as improvisações e com o que fazia no espetáculo. Mais tarde, descobri que, entre essas duas coisas aparentemente diferentes existia uma conexão subterrânea: não se deve utilizar elementos do training no espetáculo, mas deve-se usar o training para aprender a ‘voar’; o training é o que permite [ao ator] chegar ao espetáculo em modo totalmente diferente. Por isso é importante trabalhar em modo contínuo durante o training […] no início o training cansa muito porque você não consegue achar a energia que flui, tudo permanece técnico, você faz tudo como se fosse ginástica, mas, pouco a pouco, você aprende a encontrar o ar necessário para ‘voar’5 5 No original em italiano: “Ho avuto bisogno di quatro anni per arrivare a fare qualcosa che sentisse mio. All’inizio sentivo che il training non mi aiutava nel lavoro con le improvvisazioni o con quello che facevo nello spettacolo. Più tardi scoprì che tra queste due cose apparentemente diverse esisteva una connessione sotterranea: uno non deve utilizzare elementi del training per lo spettacolo ma deve servirsi del training per imparare a ‘volare’; il training è ciò che permette di arrivare allo spettacolo in un modo totalmente diverso. Per questo è importante lavorare in modo continuo durante il training. […] All’inizio il training ti stanca molto perché non trovi l’energia che fluisce, rimane tecnico, fai tutto in modo ginnico, però poco a poco uno impara a trovare l’aria necessaria per ‘volare’”. .

A partir da percepção dessa “conexão subterrânea”, surgiu a dimensão dramatúrgica do training. Essa é a dimensão na qual a transparência é o caminho para o desaparecimento do indivíduo, deixando aflorar algo diferente do Eu. Rasmussen passou a investir na construção de materiais e, desse modo, garantir sua autonomia com relação ao diretor. Esse procedimento foi experimentado pela atriz em diversos espetáculos do Odin. Em texto de 1996, Rasmussen considerava que Itsi-Bitsi (de 1991) (Figura 3) havia sido o espetáculo no qual sua autonomia com relação a Eugenio Barba teria atingido seu ápice. Não só a atriz foi a autora do texto do espetáculo como compôs todos os seus materiais, junto a seus companheiros de cena:

Eugenio [Barba] mudou muita coisa, mas quase nada da estrutura interna das cenas. Quando se chega a esse ponto, os materiais que o ator oferece ao diretor não são apenas simples improvisações, mas sim verdadeiras construções dramatúrgicas. O ator não se limita a improvisar para criar ações físicas mas, ao criá-las, pode estruturá-las em um certo modo, dar uma unidade ente elas, uma coerência interna. Itsi-Bitsi não é uma montagem de materiais cênicos, é uma montagem de blocos dramatúrgicos compostos pelos atores e conservados intactos em sua estrutura interna, no resultado final (Rasmussen, 1996RASMUSSEN, Iben Nagel . La drammaturgia del personaggio. In: DE MARINIS, Marco (Org.). Dramaturgia dell’Attore. Teatro Eurasiano 3 . Bologna: I Quaderni del Battello Ebbro , 1996. P. 176-186., p. 181, grifo nosso)6 6 No original em italiano: “Eugenio ha cambiato molte cose, ma quasi niente della struttura interna delle scene. Arrivati a questo punto, i materiali che l’attore offre al regista non sono più semplici improvvisazioni, bensì autentiche costruzioni drammaturgiche. L’attore non si limita ad improvvisare per creare coerenza interna. Itsi-Bitsi non è un montaggio di materiali scenici, è un montaggio di blocchi di dramaturgia composti dagli attori che hanno conservato intatta la loro struttura interna nel risultato finale”. .

A autonomia da atriz contribuiu para consolidar a noção de “dramaturgia do ator” no Odin Teatret como um dos princípios basilares da Antropologia Teatral - “[...] estudo do comportamento humano em situação de representação organizada” (Barba, 1993, p. 24). De Marinis (1996DE MARINIS, Marco. Premessa. In: DE MARINIS, Marco (Org.). Dramaturgia dell’Attore. Teatro Eurasiano 3. Bologna: I Quaderni del Battello Ebbro, 1996. P. 7-8., p. 7, grifo do autor) assim define a “dramaturgia do ator”:

Podemos falar, em sentido não figurado, de uma dramaturgia do ator, desconsiderando o caso limitado, ainda que importante na nossa tradição, do ‘ator-que-escreve’ mas, especificamente, pensando na construção do papel e do espetáculo no processo criativo do ator, concebido como um trabalho de composição, de trama e de montagem e, portanto, verdadeiramente dramatúrgico, que tem como objeto as ações, físicas e verbais, e que se desenvolve em vários planos7 7 No original em italiano: “Si può parlare non figuratamente di una dramaturgia dell’attore pensando non al caso tutto sommato limitato, anche se importante nella nostra tradizione, dell’‘atore-che-scrive’ ma proprio alla costruzione della parte e dello spettacolo, al processo criativo dell’attore, concepito come un lavoro compositivo, di tessitura e di montaggio, e dunque drammaturgia in senso próprio, che ha per oggetto le azioni, fisiche e verbali, e si sviluppa su vari piani”. .

Figura 3:
Espetáculo Itsi-Bitsi. Da esquerda para a direita: Kai Bredholt, Iben Nagel Rasmussen e Jan Ferslev

Apesar da importância de Itsi-Btsi, considero o espetáculo Marriage with God (Matrimônio com Deus) (Figura 4), de 1984, como um exemplo mais amplo dessa autonomia buscada pela atriz, pois envolve não apenas o âmbito da dramaturgia do ator, mas também a busca de um espaço independente com relação ao Odin Teatret. O desinteresse de Rasmussen em conduzir oficinas curtas organizadas pelo Odin levou-lhe a buscar um trabalho pedagógico de longo prazo com um pequeno grupo de alunos: assim nasceu o grupo Farfa (1980-1988), dirigido por ela. Porém, a atriz não saiu do Odin para constituir o grupo Farfa. Criou-se então uma situação nova: um grupo funcionando dentro de outro grupo. Um dos componentes do Farfa era o ator argentino César Brie, com quem Rasmussem criou o espetáculo Marriage with God. O tema do espetáculo - a velhice de Nijinsnki - foi escolhido pelos atores. Quando Barba foi convidado a engajar-se no espetáculo, como diretor, encontrou materiais já bastante elaborados e compostos em pequenas cenas, o que revela claramente a dimensão dramatúrgica do trabalho dos atores.

Figura 4:
Cesar Brie (atrás) e Iben Nagel Rasmussen (à frente) em cena do espetáculo Marriage with God (Matrimônio com Deus), do grupo Farfa

É interessante notar que, segundo Rasmussen (The Training and The Figures..., 2018THE TRAINING AND THE FIGURES: Conversation with Iben Nagel Rasmussen. Entrevistada por Virginie Magnat (Meetings with Remarkable Women - You Are Someone’s Daughter). Filme de: Chiara Crupi. Produção: Social Sciences and Humanities Research Council of Canada, Routledge Theatre & Performance Studies website, Odin Teatret. Camera: Chiara Crupi, Francesco Galli, Celeste Taliani. Edição: Chiara Crupi. 2018. 55 min. Color.), Marriage with God antecipou questões que se apresentam para ela hoje, como, por exemplo, o declínio da vitalidade física. O espetáculo foi criado no mesmo período em que o treinamento da atriz tinha atingido extremo vigor, força e destreza físicas, com muitos elementos acrobáticos e influências das danças balinesas. O Odin vinha sendo questionado sobre a facilidade de produzir espetáculos vigorosos com um treinamento desse tipo: o que fariam os atores do grupo quando chegassem à velhice? O espetáculo Marriage with God é uma espécie de resposta antecipada: o tema do espetáculo era, justamente, a velhice de Nijinski. As partituras desenvolvidas por Rasmussen e Brie, ambos no auge de sua vitalidade física, eram extremamente delicadas, com movimentos pequenos e sutis. Os atores tornaram-se transparentes para fazer ver a história de Nijinski e de sua esposa Romola.

A meu ver, o Farfa foi a possibilidade encontrada por Rasmussen para permanecer no Odin. Porém, essa autonomia do grupo-dentro-do-grupo não era uma situação tranquila; não era possível tornar-se completamente transparente ao Odin. No processo de trabalho para o espetáculo Marriage with God, Rasmussen (2017) conta que não foi simples a relação que se estabeleceu entre Brie e o diretor Barba. Seria o ator argentino, talvez, autônomo demais? Sobre o ator argentino, diz Barba (2016, p. 150):

César [Brie] era muito bom no treinamento e tinha uma capacidade incomum para ser diretor de si mesmo. Mesmo vindo de uma experiência teatral distante da nossa, era capaz de criar materiais interessantes seguindo uma lógica pessoal. E não menos importante que isso: capaz de dar vida cênica a esses materiais.

Para compreender o esforço de Rasmussen para sustentar o funcionamento do Farfa dentro do Odin, é importante saber do enorme investimento afetivo e pessoal da atriz: Brie foi marido de Rasmussen e a dissolução do casamento coincidiu com o fim do Farfa. Nos teatros de grupo desse período histórico na Europa, as vicissitudes pessoais dificilmente descolavam-se da atividade profissional dos artistas; vida e arte eram uma só coisa. Estou convencida de que, ao longo dos anos, o espírito de independência de Rasmussen foi reforçado exatamente pela superação de diversos traumas afetivos imbricados com sua realidade profissional. A atriz soube encontrar possibilidades autônomas de trabalho dentro do grupo. Por exemplo, uma iniciativa dela acabou consagrando um novo gênero de trabalho no Odin: os espetáculos-demonstração, quase sempre solistas. O primeiro espetáculo desse tipo foi Moon and Darkness (Lua e Escuridão), de 1980, abrindo caminho para iniciativas análogas no grupo. Rasmussen também foi pioneira na adoção de alunos: jovens aspirantes a ingressar no Odin. Sua iniciativa teve uma dupla validade: fortalecer sua autonomia individual e, ao mesmo tempo, contribuir para fortalecer o grupo. Graças a iniciativas como as de Rasmussen, o que começou como um pequeno laboratório teatral, formado por um diretor e um punhado de atores, desenvolveu-se e articulou-se. Hoje, prestes a completar 55 anos de existência, o Odin Teatret é apenas uma das atividades do que veio a chamar-se mais tarde Nordisk Teaterlaboratorium/Odin Teatret.

Em 2017 fui hóspede na pequena chácara de Rasmussen em Ryde, povoado na região rural de Holstebro (Dinamarca). Em sua rotina diária, notei uma forma de transparência da atriz com relação à grande estrutura que tornou-se o Odin Teatret: é como se ela pudesse desaparecer, preservando seus próprios interesses. Penso que ter uma sala de trabalho anexa à sua casa supre essa necessidade que se manifesta ciclicamente. Com relação ao Odin, ironicamente, Rasmussen (2017) tem um nome preciso para isso: grupofobia. Quando é acometida pela grupofobia, a atriz tem onde se refugiar. Em sua sala, Rasmussen desenvolve projetos autônomos como o coletivo internacional Vindenes Bro (Ponte dos ventos), dirigido por ela, e ensaia seus espetáculos.

Figura 5:
Sala de ensaios de Iben Nagel Rasmussen, em Ryde (província de Holstebro, Dinamarca), junho de 2017RASMUSSEN, Iben Nagel . Entrevista concedida a Priscilla Duarte em 18 e 19/07/2017. Ryde, Dinamarca, 2017. (Gravação em áudio (01:53:09)).. A cadeira e a mesa pretas ao fundo compõem a cena do espetáculo Halfdansk Rapsodi

Durante minha estadia, acompanhei os ensaios e a estreia de seu novo espetáculo - Halfdansk Rapsodi (Rapsódia dinamarquesa para Halfdan, em tradução livre) (Figura 5) - realizados nessa sala. Outras apresentações de Halfdansk Rapsodi também foram realizadas de forma totalmente autônoma com relação à logística do Festuge - festival internacional promovido pelo Odin Teatret -, programação da qual o espetáculo fazia parte. Era Rasmussen quem carregava e descarregava o material necessário em seu próprio carro, dirigia pessoalmente até o local onde montaria e apresentaria o espetáculo em províncias rurais vizinhas à sua casa, ajudada apenas por uma assistente, que fazia as vezes de técnica de luz e som.

A Atriz Transparente e os Espetáculos de Inspiração Biográfica

Figura 6:
Iben Nagel Rasmussen no espetáculo White as Jasmine (Branca como Jasmim), em Paraty (RJ), dezembro de 2016

Depois de 52 anos de trabalho como atriz do Odin Teatret, o que se vê através da transparência da atriz Iben Nagel Rasmussen? Ao invés de uma análise sintética das dezenas de espetáculos realizados em sua longa carreira, irei concentrar-me nas minhas impressões recentes como espectadora. Minhas reflexões terão como foco, portanto, os espetáculos a que assisti durante minha estadia na Dinamarca, em junho de 2017, ao vivo - White as Jasmine (Branca como Jasmim) e Halfdansk Rapsodi - e em vídeo - Itsi-Bitsi e Ester’s Book (O livro de Ester).

Criado em 1993, o espetáculo-demonstração White as Jasmine (Branca como Jasmim) (Figura 6) re-percorre a trajetória de Rasmussen desde seu ingresso no Odin Teatret até os dias atuais. O tema principal dessa retrospectiva é o trabalho sobre a voz. Recentemente eu havia assistido a White as Jasmine em Paraty (RJ), durante a estadia de Rasmussen e do coletivo de atores dirigido por ela, o Vindenes Bro (Ponte dos Ventos). Mas a apresentação a que assisti em Hoslstebro teve uma atmosfera especial: o espetáculo foi apresentado na sala onde foi concebido e em inglês; em Paraty, o idioma havia sido o espanhol. Rasmussen é mais fluente em inglês do que em espanhol e isso se reflete em cena. Em ambas as apresentações deu-se um curto circuito na minha memória: eu já havia assistido a essa mesma demonstração nos anos 1990. E aí está o estranhamento: tanto em Paraty quanto em Holstebro ali estava a mesma energia vibrante da atriz, mas de forma concentrada, enquanto que o corpo era outro, marcado pela passagem dos anos.

De fato, alguns materiais presentes em White as Jasmine são verdadeiros cavalos de batalha da atriz. Além de práticas do training, há também cenas das figuras (denominação que Rasmussen utiliza frequentemente, no lugar de personagem) criadas por ela. Um exemplo clássico é o personagem Katrin - a filha muda de mãe Coragem -, que nasceu no processo de trabalho para o The Million (O Milhão, de 1978-1984), e desenvolveu-se em seguida no espetáculo Brecht's Ashes (Cinzas de Brecht, de 1980-1984). Assim como Katrin, Vestida de Branco e Trickster8 8 Vestida de Branco (a mensageira da cidade) é o personagem que Rasmussen desenvolveu durante a estadia do Odin Teatret em Carpignano (sul da Itália),e que protagoniza o filme documentário/ficcional Dressed in white (1976) que registra essa experiência, com direção de Torgeir Wethal. Trickster é um personagem criado para o espetáculo Talabot que mistura referências ao Arlequim da Commedia dell’Arte e aos Tricksters, figuras da mitologia dos índios norte-americanos. tornaram-se figuras autônomas, aparecendo também em outros espetáculos do Odin. Rasmussen (2017) diz que só é possível continuar fazendo Katrin porque os trechos inseridos nos espetáculos atuais são curtos, mas que faltaria resistência física para fazer Brecht's Ashes por inteiro. Rasmussen não é capaz de avaliar se a energia do personagem ainda é a mesma de quando ele foi criado. De vez em quando a atriz pergunta a Barba se ela “não está ridícula fazendo aquilo” e, até agora, ele tem dito que está bem (Rasmussen, 2017). Porém, não costuma mais fazer demonstrações de treinamento físico, por não sustentar mais o esforço físico necessário.

Rasmussen diz que, quando se é jovem, o ator precisa ir ao máximo de suas capacidades, para depois, na velhice, poder reduzir; se nunca tiver ido ao máximo, não terá o que reduzir depois (The Training and The Figures..., 2018THE TRAINING AND THE FIGURES: Conversation with Iben Nagel Rasmussen. Entrevistada por Virginie Magnat (Meetings with Remarkable Women - You Are Someone’s Daughter). Filme de: Chiara Crupi. Produção: Social Sciences and Humanities Research Council of Canada, Routledge Theatre & Performance Studies website, Odin Teatret. Camera: Chiara Crupi, Francesco Galli, Celeste Taliani. Edição: Chiara Crupi. 2018. 55 min. Color.). Isso se aplica tanto ao treinamento, quanto ao trabalho criativo para os espetáculos. Há aqui uma analogia com o que diz Zeami (1987ZEAMI, Motokiyo. Il segreto del teatro No. A cura di René Sieffert. Milano: Adelphi, 1987., p. 108) sobre o ator que sabe guardar o segredo de seu ofício: “a flor9 9 A ‘flor’ (hana), define-se como “um modo de provocar na mente dos homens uma emoção inesperada” (Zeami, 1897, p. 146), e é basilar nos tratados sobre o Teatro Nô escritos por seu fundador, Motokyio Zeami (1363-1443). A flor é uma metáfora da emoção que o ator oferece ao espectador, é o fascínio e o interesse que desperta, ou ainda, algo que está além desse fascínio. O desabrochar de uma flor desperta interesse por ser surpreendente e efêmero. Sua fugacidade e fragilidade não é um limite, mas o próprio fundamento de seu encanto. A tarefa do ator é, por meio do trabalho constante de aperfeiçoamento de sua arte, criar as condições para que sua ‘flor’ não murche, ou melhor, desabroche com frescor renovado a cada primavera, continuando a suscitar o interesse do espectador através dos anos, acompanhando as mudanças e adaptando-se às diversas ocasiões. É nesse sentido que existe a distinção entre a ‘flor do momento’, ligada ao fascínio momentâneo produzido de forma espontânea pela beleza dos movimentos do jovem ator; e a flor autêntica, cultivada pelo artista com a prática e a experiência, que consegue florescer com encanto renovado, superando as mutações e os limites da idade (Ruperti, 2015). consiste em uma disposição da mente; o ofício deve ser sua semente”10 10 No original em italiano: “Il fiore consiste in una disposizione della mente; il seme deve esserne il mestiere”. . De modo geral, e não apenas para o ator velho, a conservação do ofício do ator nô deve-se a um princípio que diz mais a respeito de um treinamento da mente do que do corpo. Esse princípio é que todo ator deve ser capaz de reduzir o movimento do corpo de dez décimos a sete décimos:

Com ‘mova a mente por dez décimos, mova o corpo por sete décimos’ entende-se: os movimentos aprendidos, como estender a mão ou mover o pé, se executam [antes] conforme os ensinamentos do próprio mestre; quando se atinge a perfeição nesse campo, não executa-se mais [o movimento que consiste em] estender ou retirar a mão como [é concebido] na mente, mas retém-se um pouco [o movimento] aquém da [concepção da] mente (Zeami, 1987ZEAMI, Motokiyo. Il segreto del teatro No. A cura di René Sieffert. Milano: Adelphi, 1987., p. 156)11 11 No original em italiano: “Con: ‘Fate muovere la mente per i dieci decimi, fate muovere il corpo per i sette decimi’, ecco cosa s’intende: i movimenti imparati, come stendere la mano o muovere i piedi, si eseguono [prima] conformemente agli insegnamenti del proprio maestro, poi, una volta giunti alla perfezione in questo campo, non si esegue più [il movimento che consiste] nello stendere o ritirare la mano come [lo si concepisce] nella mente, ma lo si trattiene un poco al di qua di quello che [concepisce] la mente.[…] .

Zeami assinala ainda que é especialmente importante para o ator nô observar esse princípio ao atingir a velhice, uma vez que não seria adequado desempenhar certos papéis que demandam mais energia, a menos que tenha aprendido a reduzi-la:

[…] Ao tornar-se mestre nas maneiras marcadas pela serenidade, o ator poderia ser adequado ao estilo imposto pela velhice [do ator]. Mas, se por acaso o seu talento o conduz à técnica do hataraki12 12 Dança potente dos personagens deuses, demônios ou guerreiros (Zeami, 1987). , que exprime o delírio, então não estará adequado. Porém, nesse caso, pode interpretar sob a condição de saber reduzir a seis ou sete décimos uma dança ou um hataraki que, antes pensava [que deveria ser executado] a dez décimos, aplicando em modo particular o princípio do ‘movimento do corpo a sete décimos’. Saibam que é isso que é preciso estudar na velhice (Zeami, 1987ZEAMI, Motokiyo. Il segreto del teatro No. A cura di René Sieffert. Milano: Adelphi, 1987., p. 189, grifo do autor)13 13 No original em italiano: “L’attore diventato maestro nelle maniere [improntate] a serenità potrebbe essere adatto allo stile [imposto dalla] vecchiaia. Ma, se per caso, il vostro talento si indirizzasse verso la tecnica dello hataraki, che esprime delirio, allora non sareste adatto. Tuttavia, in questo caso, potete interpretare [a condizione di] sapere ridere a sei o sette decimi una danza o uno hataraki che prima ritenevate [di dover eseguire] per i dieci decimi, e di applicare in modo particolare il principio del ‘movimento del corpo per i sette decimi’. Sappiate che è questo che bisogna studiare nella vecchiaia. .

Outro princípio do nô que bem se aplica à trajetória de Rasmussen é não esquecer o próprio início (Zeami, 1987ZEAMI, Motokiyo. Il segreto del teatro No. A cura di René Sieffert. Milano: Adelphi, 1987., p. 189). O fato de revisitar as próprias experiências em espetáculos que dialogam com sua biografia, nos espetáculos-demonstração ou de re-atuar personagens, revela como a atriz se alimenta da própria trajetória para seguir adiante, em um processo contínuo de reavaliação, tal como sugere Zeami:

[…] na nossa escola temos um dito de abrangência universal: ‘Não esqueçam de seu início’ […]: Essa máxima é objeto de uma tradição oral e divide-se em três partes: […] ‘Bons ou maus, não esqueçam seus inícios’: se conservarem sempre presente, sem nunca esquecê-la, a lembrança do início dos seus anos de juventude resulta em muitas vantagens na velhice. ‘Conhecer os defeitos daquilo que foi em precedência é a condição da qualidade do que se segue’, diz-se. […] esquecer o próprio início significa retornar ao próprio início. […] ‘Não esquecer os seus inícios em cada período’: desde o início até a idade madura consagrar-se à busca das maneiras adequadas às formas de arte que convém a cada idade, quer dizer (fazer) o próprio início em cada período. […] ‘Não esquecer o seus inícios na velhice’. Há um fim para a vida; não pode haver um término para o nô. Quando tiverem estudado uma por uma as maneiras próprias de cada idade, estudarão ainda a maneira que convém à velhice: nisso consiste seu início na velhice (Zeami, 1987ZEAMI, Motokiyo. Il segreto del teatro No. A cura di René Sieffert. Milano: Adelphi, 1987., p. 189-191, grifo do autor)14 14 No original em italiano: “[…] abbiamo nella nostra scuola una massima di portata universale: ‘Non dimenticate i vostri inizi’. Questa massima è oggetto di una tradizione orale articolata in tre punti: […] ‘Buoni o cattivi, non dimenticate i vostri inizi’ se conservate sempre presente, senza mai dimenticarlo, [il ricordo] degli inizi dei vostri anni giovanili, ne risultano molti vantaggi nella vecchiaia. ‘Conoscere i difetti di ciò che precede è la condizione delle qualità di ciò che segue’, si dice.[…] dimenticare i propri inizi vuol dire tornare ai propri inizi. […] ‘Non dimenticare i vostri inizi in ogni periodo’: consacrarsi, dagli inizi fino all’età matura, e perfino nella vecchiaia, alla ricerca delle maniere adatte alle forme dell’arte che conviene a ogni età, vuol dire [fare] i propri inizi in ogni periodo. […] ‘Non dimenticate i vostri inizi nella vecchiaia’ C’è una fine per la vita; non vi vi può essere termine per il nô. Quando avrete studiato, una per una, le maniere proprie di ogni età, studierete ancora la maniera che conviene alla vecchiaia. .

Ainda que a técnica do ator nô tenha suas especificidades, o que se vê em White as Jasmine é uma mistura de dois ensinamentos análogos àqueles de Zeami: a capacidade de reduzir, no sentido de tornar mais denso aquilo que já foi grande, e a capacidade de manter viva a memória do início de um caminho percorrido. Rasmussen conclui que “o que permanece [quando se envelhece] dentro do ator é a energia antes da ação, o sats, como dizemos no Odin” (The Training and The Figures..., 2018THE TRAINING AND THE FIGURES: Conversation with Iben Nagel Rasmussen. Entrevistada por Virginie Magnat (Meetings with Remarkable Women - You Are Someone’s Daughter). Filme de: Chiara Crupi. Produção: Social Sciences and Humanities Research Council of Canada, Routledge Theatre & Performance Studies website, Odin Teatret. Camera: Chiara Crupi, Francesco Galli, Celeste Taliani. Edição: Chiara Crupi. 2018. 55 min. Color.). O termo sats (do norueguês, literalmente: impulso, preparação) é assim definido:

O sats é o momento no qual a ação é pensada-executada por todo o organismo que reage com tensões também na imobilidade. É o ponto no qual se está decidido a fazer. Existe um empenho muscular, nervoso e mental já dirigido a um objetivo. É a extensão ou retração da qual brota a ação […] O sats é impulso e contra-impulso (Barba, 1994BARBA, Eugenio. A Canoa de Papel. Tratado de Antropologia Teatral. São Paulo: Hucitec, 1994. , p. 84-85).

Itsi-Bitsi (de 1991), Ester’s Book (O livro de Ester, de 2006) e Halfdansk Rapsodi (de 2017) são particularmente representativos de espetáculos que dialogam com momentos da biografia de Rasmussen, como exemplos de “[...] histórias que devem ser contadas para recuperar vidas que, de outra forma, se perderiam” (Schino; Taviani, 2016SCHINO, Mirella; TAVIANI, Ferdinando. Nota dos organizadores. In: RASMUSSEN, Iben Nagel . O Cavalo Cego: diálogos com Eugênio Barba e outros escritos . São Paulo: É Realizações , 2016. P. 7-10., p. 10). Iben Nagel Rasmussen é filha de Ester Nagel e Halfdan Rasmussen, um casal de escritores, militantes pacifistas, que se separaram no início dos anos 1970. Itsi-Bitsi trata da juventude da atriz, atividades políticas, viagens e drogas, e sobre sua relação amorosa com o poeta e músico beat Eik Skaløe; o tema de Ester’s Book (Figura 7) é a vida de sua mãe, do período em que estava grávida de Iben até sua velhice doente de demência senil; Halfdansk Rapsodi é sobre a vida de seu pai desde a infância, passando pelo ativismo político da juventude, pela vida da família durante a segunda guerra mundial, a infância de Iben com o irmão Tom e a separação entre Halfdan e Ester.

Figura 7:
Iben Nagel Rasmussen no espetáculo Ester’s Book (O Livro de Ester)

No programa de apresentação de Ester’s Book, Iben Nagel Rasmussen (2006RASMUSSEN, Iben Nagel . Il Libro de Ester (O livro de Ester). Texto e direção: Iben Nagel Rasmussen. Consultoria à direção: Eugênio Barba. Intérpretes: Iben Nagel Rasmussen e Elena Floris, 2006. Programa do espetáculo.) conta que a decisão de finalizar esse projeto, para o qual vinha recolhendo materiais desde 1999, veio quando se agravou o estado de saúde de sua mãe. Aos 85 anos de idade, Ester Nagel precisou ser internada em um asilo. A criação do espetáculo respondia a inquietações profundas da filha de Ester Nagel: “A história de minha mãe é também uma reflexão sobre o envelhecer, hoje, na Dinamarca, sobre solidão e separação. Ninguém nasce velho. Quis prolongar a voz de minha mãe. Eu sou o ‘Livro de Ester’” (Rasmussen, 2006, p. 1)15 15 No original em italiano: “La storia di mia madre è anche una riflessione sull'invecchiare oggi in Danimarca, sulla solitudine e sul distacco. Nessuno nasce vecchio. Ho voluto prolungare la voce di mia madre. Io sono il ‘Libro di Ester’”. . Nesse espetáculo, a atriz transparente deixa ver, através de si, a própria origem, a própria mãe. Um dos fios condutores do texto do espetáculo, de autoria de Iben N. Rasmussen é O Livro da Semente, uma espécie de diário, escrito pela mãe Ester para a filha ainda não nascida:

[…] é um documento único: uma mulher grávida, durante a guerra, cuida de seu apartamentinho de dois cômodos no quinto andar, e escreve ao embrião que tem no ventre, descrevendo a vida de cada dia, os sonhos do futuro, o terror de morrer prematuramente (Rasmussen, 2006RASMUSSEN, Iben Nagel . Il Libro de Ester (O livro de Ester). Texto e direção: Iben Nagel Rasmussen. Consultoria à direção: Eugênio Barba. Intérpretes: Iben Nagel Rasmussen e Elena Floris, 2006. Programa do espetáculo., p. 3)16 16 No original em italiano: “[…] è un documento unico: una donna incinta, durante la guerra, accudisce un appartamentino di due stanze al quinto piano e scrive all’embrione nel suo ventre descrivendo la vita di ogni giorno, i sogni del futuro, il terrore di morire prematuramente”. .

No relato sobre o processo de criação de um primeiro esboço do espetáculo, percebe-se a mistura entre esfera privada e esfera artística, angústias pessoais e profissionais, afeto e ofício, em um indissolúvel novelo que envolve a filha/atriz Iben Nagel Rasmussen (2006RASMUSSEN, Iben Nagel . Il Libro de Ester (O livro de Ester). Texto e direção: Iben Nagel Rasmussen. Consultoria à direção: Eugênio Barba. Intérpretes: Iben Nagel Rasmussen e Elena Floris, 2006. Programa do espetáculo., p. 6-7)17 17 No original em italiano: “Avevo poco tempo. Che fare? Potevo mescolare le vecchie immagini in bianco e nero di mio padre a quelle nuove, a colori, di mia madre anziana. Potevo leggere qualcosa da Il libro del seme. Potevo raccontare fatti di allora, aneddoti di famiglia, episodi di vario tipo. E come attrice, che fare? Ah, sì. Scene dei vecchi spettacoli dell’Odin Teatret, personaggi già esistenti: per esempio il Trickster di Talabot, con i suoi fili rossi e con il suo figlio di sabbia, che avevo già utilizzato in diverse occasioni. Vi aggiunse la scena di Mythos in cui Medea strangola i propri figli. E presentai questo primo schizzo a Bologna, nel 2003. Riflettendoci sopra, mi resi conto che la struttura ricordava un po’ troppo Itsi Bitsi. Anche quello spettacolo si basava su una biografia, com testi personali, ricordi, sequenze e personaggi di precedenti spettacoli. Cominciavo ad avere a noia questa me attrice che ripeteva all’infinito sempre le stesse scene. Che potevo fare di nuovo? […] Nel frattempo, mia madre era stata ricoverata in una casa di cura per anziani in stato di demenza senile avanzata. Le nostre conversazioni erano commoventi, grottesche e tragicomiche assieme, con lei che insisteva a voler lasciare l’ospizio per venire ad abitare a casa mia, magari in una roulotte in giardino. Buttai giù un dialogo partendo da queste conversazioni, scelsi dei frammenti da Il libro del seme, e vi aggiunse qualche ricordo di infanzia. Il primo abbozzo di montaggio testuale era pronto. La collaborazione con Anna fu decisiva per il work-in-progress. La sua perizia musicale, la sua età (potrebbe essere mia figlia), e soprattutto la sua esperienza di vita, così diversa dalla mia, portarono allo spettacolo la freschezza che cercavo. Sparì la tentazione di ripiegarmi su vecchie scene e personaggi già creati. Sparì anche l’idea di una espressione fisica vigorosa”. :

Eu tinha pouco tempo. O que fazer? Podia misturar velhas imagens [fotos] em preto e branco tiradas por meu pai com outras novas, coloridas, de minha mãe velha. Podia ler alguma coisa de O Livro da Semente. Podia contar fatos passados, histórias de família, episódios de todo tipo. E como atriz, que fazer? Ah, sim. Cenas de velhos espetáculos do Odin Teatret, personagens já existentes: por exemplo, o Trickster de Talabot, com os seus fios vermelhos e seu saco de areia, que já tinha utilizado em diversas ocasiões. Juntei também a cena de Mythos, na qual Medéia estrangula os próprios filhos. E apresentei esse esboço em Bolonha, em 2003 [a convite do Teatro Ridotto]. Refletindo sobre isso, a posteriori, me dei conta que a estrutura lembrava demais Itsi Bitsi. Esse espetáculo também se baseava em uma biografia, com textos pessoais, recordações, sequências e personagens de espetáculos anteriores. Eu começava a me incomodar com essa eu atriz que repetia infinitamente sempre as mesmas cenas. O que eu poderia fazer que fosse novo? […] Nesse meio tempo minha mãe foi internada numa casa de tratamento para idosos, em estado de demência avançada. Nossas conversas eram, ao mesmo tempo, comoventes, grotescas e tragicômicas, com ela querendo deixar o asilo para vir morar na minha casa, quem sabe em um trailler no jardim. Rascunhei um diálogo, a partir dessas conversas, escolhi fragmentos de O Livro da Semente, e acrescentei algumas recordações da infância. Estava pronto o primeiro esboço da montagem do texto. […] A colaboração com Anna [Stigsgaard, violinista] foi decisiva para o work-in-progress. Sua perícia musical, sua idade (podia ser minha filha) e, principalmente, a sua experiência de vida, tão diversa da minha, trouxeram ao espetáculo o frescor que eu procurava. Desapareceu a tentação de me dobrar a velhas cenas e personagens já criados. Desapareceu também a ideia de uma expressão física vigorosa.

Por fim, na montagem final, Iben Nagel Rasmussen interpreta a mãe, Ester Nagel, e a jovem atriz/violinista interpreta a filha, Iben Nagel Rasmussen. No texto da peça, Rasmussen conta que o som familiar da infância, do bater das teclas da máquina de escrever da mãe, ficou depositado em sua memória, em seu corpo. No ritmo impreciso da máquina de escrever da mãe, a atriz identifica o mesmo ritmo a-rítmico que, bem mais tarde, ela imprimiria ao seu tambor, nos cortejos de rua do Odin Teatret: experiências da infância, depositadas no corpo, constituem um “conhecimento tácito”, conclui ela (Rasmussen, 2006, p. 4).

Ester’s Book é mais um dos projetos autônomos de Iben Nagel Rasmussen dentro do Odin Teatret. Eugenio Barba foi chamado no fim do processo para “dar uma mãozinha” (Rasmussen, 2006RASMUSSEN, Iben Nagel . Il Libro de Ester (O livro de Ester). Texto e direção: Iben Nagel Rasmussen. Consultoria à direção: Eugênio Barba. Intérpretes: Iben Nagel Rasmussen e Elena Floris, 2006. Programa do espetáculo., p. 7). O caráter minimalista da encenação é muito diferente da maioria dos espetáculos produzidos pelo Odin Teatret, a ponto de causar estranhamento no diretor e na atriz: seria mesmo um espetáculo teatral? Em um texto em forma de carta, no programa da peça, Barba (2006BARBA, Eugenio. Il Regalo di Ester. In: RASMUSSEN, Iben Nagel. Il Libro di Ester. Texto e direção: Iben Nagel Rasmussen. Consultoria à direção: Eugênio Barba. Intérpretes: Iben Nagel Rasmussen e Elena Floris, 2006. Programa do espetáculo., p. 19)18 18 No original em italiano: “Tu ed io sappiamo che è un’altra cosa. Ma è giusto tacerla, nutrendosene ciascuno con le sue parole. Non tutto si può scambiare”. diz a Rasmussen que ambos sabem que, apesar de chamá-lo de espetáculo “[...] você e eu sabemos que é uma outra coisa. Mas o certo é silenciar, cada um nutrindo-se de suas palavras. Nem tudo é compartilhável”. Já Rasmussen (2006, p. 7)19 19 No original em italiano: “Il Libro di Ester è uno spettacolo o un racconto? La sua essenzialità, la rinuncia a teatralizzare, costituiscono la sua forza, o sono il risultato della stanchezza di una vecchia attrice nei confronti della propria professione e di se stessa? Che importanza hanno domande come queste se la storia vuole, e può, essere raccontata, e se qualcuno ha voglia di ascoltarla?”. acrescenta outras perplexidades a essa dúvida:

Ester’s Book é um espetáculo ou uma contação [de histórias]? Sua essencialidade, sua renúncia a teatralizar, constituem sua força, ou são resultado do cansaço de uma velha atriz frente a sua própria profissão e a si mesma? Que importância tem perguntas como essa, se a história quer e pode ser contada, e se alguém quer escutá-la?

A renúncia à interpretação é o caminho natural para o ator nô na maturidade, segundo Zeami (1987ZEAMI, Motokiyo. Il segreto del teatro No. A cura di René Sieffert. Milano: Adelphi, 1987., p. 191, grifo do autor)20 20 No original em italiano: “Ho detto che ‘a partire dalla cinquantina non esiste altro modo se non la non-interpretazione’. Non vi è altro modo che la non-interpretazione: voler mettere in pratica, nella vecchiaia, un principio di una simile difficoltà, non è forse incominciare [di nuovo]?”. :

Digo que ‘a partir dos cinquenta anos não existe outro modo se não a não-interpretação21 21 Conforme nota do tradutor de Zeami (1987), René Sieffert, a não-interpretação é um conceito preciso no Teatro Nô, que diz respeito a não cessar de atuar, mas limitar-se às obras que exigem menos esforço físico. Entretanto, neste artigo, utilizo tal noção de forma livre e interpretativa, considerando-a como uma indicação mais geral para um menor investimento de energia na atuação de personagens, por parte do ator idoso. . Não há outro modo que não seja a não-interpretação: na velhice, querer por em prática um princípio de tamanha dificuldade não seria, talvez, começar de novo?

Ao contrário de Ester’s Book, o espetáculo Halfdansk Rapsodi não nasceu como um projeto de Rasmussen, mas como convite para que a atriz fizesse um discurso em homenagem ao pai. A homenagem acabou tornando-se o esboço do espetáculo pela reunião de uma série de textos, canções, fotos e filmes de seu pai. O escritor Halfdan Rasmussen é uma verdadeira celebridade na Dinamarca. Suas obras para crianças são muito populares e suas poesias são famosas pela dificuldade de serem recitadas. Halfdan Rasmussen também compôs canções, algumas delas já utilizadas por Iben Nagel Rasmussen em outros espetáculos. Outra faceta que também foi explorada no espetáculo são os filmes de família realizados pelo pai, de qualidade cinematográfica muito superior à norma. Halfdan Rasmussen “[...] revelou-se um excelente fotógrafo, com um instinto natural para composição, ritmo, enquadramentos dramáticos. Adorava Eisenstein” (Rasmussen, 2016, p. 5). Alguns trechos desses filmes do pai são projetados no telão de fundo da cena, composta apenas por uma pequena mesa e uma cadeira. O estilo minimalista de Ester’s Book também está presente aqui. Porém, em Halfdansk Rapsodi, em nenhum momento a atriz representa o pai. Aqui a dramaturgia do ator está mais próxima a uma composição que alude a partes da vida do pai em família.

Na estreia do espetáculo (ainda um work-in-progress), que ocorreu na sala de trabalho da atriz, a identificação com o público foi imediata: em sua maioria, eram coetâneos dela e admiradores da obra de Halfdan Rasmussen. O recital terminou com o público cantando junto com Rasmussen e não houve distinção entre o fim do espetáculo e o brinde que reuniu todos em volta da mesa dos aperitivos. O espetáculo tomou dimensão de celebração, de partilha de memórias e de afetos.

Considero que Haldansk Rapsodi coloca a atriz diante de um dos maiores desafios para um ator experiente: o risco de ficar preso à repetição de uma espécie de clichê de si mesmo, risco que também é observado por ela. Desde 1993/1994 Iben Nagel Rasmussen já falava no assunto em entrevista a De Marinis (1996RASMUSSEN, Iben Nagel . La drammaturgia del personaggio. In: DE MARINIS, Marco (Org.). Dramaturgia dell’Attore. Teatro Eurasiano 3 . Bologna: I Quaderni del Battello Ebbro , 1996. P. 176-186., p. 186): “[...] quanto mais se envelhece e quanto mais experiência profissional acumula-se nos ombros, mais difícil fica encontrar e construir um tipo novo de energia”22 22 No original em italiano: “[…] quanto più si invecchia e quanta più esperienza professionale si ha sulle spalle, tanto più difficile trovare e costruire un tipo di energia che sia nuovo”. . Em texto sobre The Tree (A árvore) - o mais recente espetáculo dirigido por Barba, com todo o elenco do Odin, que estreou em dezembro de 2016 - ela diz que é preciso “evitar clichês de espetáculos anteriores” e, no caso da voz, evitar “paisagens sonoras já exploradas anteriormente” (Rasmussen, 2016, p. 234). A impressão é que a teatralidade esteja saindo da cena de Rasmussen. Também nesse caso, ela parece seguir as indicações dadas por Zeami a respeito da importância do trabalho sobre a voz no Teatro Nô (especialmente com relação ao canto) para o ator maduro:

Vocês devem centrar a interpretação no canto, adotar uma maneira pouco sustentada, reduzir a parte de movimento na dança […] Em geral, o canto é o elemento técnico mais vantajoso para o velho. A voz do velho despiu-se de qualquer inflexão demasiado crua, é uma voz sincera, […] e se a melodia é boa o suficiente, suscita um sentido de interesse em quem escuta. Esta [voz] é a carta mais forte [do velho]. Persuadir-se de diversas observações desse tipo e, adotando a maneira [definida] acima, dedicar-se à realização do que lhes parece mais vantajoso: eis a maneira a ser estudada na velhice (Zeami, 1987ZEAMI, Motokiyo. Il segreto del teatro No. A cura di René Sieffert. Milano: Adelphi, 1987., p. 189, grifos do autor)23 23 No original em italiano: “Dovete imperniare l’interpretazione sul canto, adottare una maniera poco sostenuta, ridure nella danza la parte di movimento […] In generale, il canto è l’elemento tecnico più vantaggioso per il vecchio. La voce del vecchio si è spogliata di ogni inflessione troppo cruda, è una voce schietta […], e se a melodia è appena buona, suscita in colui che ascolta un senso de interesse. Questa [voce] è la carta più forte [del vecchio]. Persuadersi di diverse osservazioni di questo genere e, adottando la maniera [definita] sopra, consacrarsi alla realizzazione di quanto vi sembrerà più vantaggioso: ecco la maniera da studiare nella vecchiaia”. .

Uma Mestra Transparente e seus Filhos ao Vento

Rasmussen atribui grande valor à transmissão, como se os alunos fossem seus filhos:

Fala-se muito sobre o treinamento, oficinas, transmissão das técnicas e do saber teatral, mas é como se as pessoas não conseguissem ver o que se esconde por trás de tudo isso: dar vida. […] Ser ‘mãe’ é acompanhar a vida que cresce, é ser capaz de transmitir aos outros algo que é seu. Vê-los se desenvolverem como indivíduos autônomos. O teatro é esse terreno meio à parte, restrito, mas é onde você pode encontrar o processo da vida em sua plenitude. Estou interessada em pessoas que posso seguir ao longo dos anos, e não por poucos dias. Quero ver seu desenvolvimento, quero ver sua força crescendo, inclusive porque a gente dá um pouco da nossa força pra elas, mas vivendo junto. Então esse se torna o meu mundo, a minha terra, algo que é muito mais que ‘teatro’ (Rasmussen, 2016RASMUSSEN, Iben Nagel . O Cavalo Cego: diálogos com Eugênio Barba e outros escritos. São Paulo: É Realizações, 2016., p. 253).

Desde seus primeiros alunos, que ela acolheu durante o processo de trabalho para The Million, os filhos de Rasmussen foram muitos. Porém, depois do grupo Farfa, a atriz afirmou ter aprendido a lição: não desejava repetir com seus alunos os aspectos negativos do teatro de grupo. Rasmussen (2017) afirma que aquilo que sufoca, provocando nela surtos de grupofobia, é, paradoxalmente, a mesma coisa que fortalece os indivíduos do grupo: essa grande estrutura, que se move lentamente, sempre em bloco, como uma espécie de rebanho, composto sempre pelas mesmas pessoas, mesmas ideias, mesmos conflitos. Quando se está em turnê, longe de casa - refúgio cada vez mais valioso para Rasmussen -, mover-se em bando, com uma agenda única, torna-se ainda mais pesado (Rasmussen, 2017).

Com o coletivo Vindenes Bro (Ponte dos Ventos), Rasmussen diz ter encontrado a fórmula ideal: não se trata de um grupo, mas de um coletivo internacional de atores, que se encontra uma ou duas vezes por ano, por um período limitado, em diferentes países. Depois, cada um volta para seus países, grupos e atividades de origem. Com esses atores, Rasmussen pode dar segmento a pesquisas iniciadas em seu próprio training. Outros exercícios nasceram de forma totalmente autônoma com relação a ela, como por exemplo a dança dos ventos (Figura 8), que foi trazida por uma aluna dinamarquesa. A jovem mostrou um passo de dança muito simples - “foi como o ovo de Colombo!”, disse Rasmussen (The Training and The Figures..., 2018THE TRAINING AND THE FIGURES: Conversation with Iben Nagel Rasmussen. Entrevistada por Virginie Magnat (Meetings with Remarkable Women - You Are Someone’s Daughter). Filme de: Chiara Crupi. Produção: Social Sciences and Humanities Research Council of Canada, Routledge Theatre & Performance Studies website, Odin Teatret. Camera: Chiara Crupi, Francesco Galli, Celeste Taliani. Edição: Chiara Crupi. 2018. 55 min. Color.). A partir desse passo simples, foram introduzidas inúmeras variações: fazer ações, desenvolver temas, mudar de direção no espaço, estabelecer relação com os companheiros, com o espaço, etc.

Figura 8:
Dança dos ventos, em intercâmbio do coletivo Vindenes Bro (Ponte dos Ventos) com o Ateliê de Pesquisa do Ator, em Paraty (RJ), dezembro de 2016

Tive a oportunidade de acompanhar o trabalho do coletivo Vindenes Bro em duas ocasiões: em 1995, como participante, em Salvador, estado da Bahia, e em 2016, como observadora, em Paraty, estado do Rio de Janeiro. Atualmente, as sessões de treinamento acontecem em um fluxo contínuo de cerca de uma hora. Junto a seus atores, Rasmussen tem sua própria sequência de exercícios de aquecimento, que incluem até mesmo exercícios complexos de equilíbrio, como a parada de cabeça24 24 Postura do yoga, conhecida como Salamba Sirsasana, na qual o corpo encontra-se de ponta-cabeça: o topo da cabeça e as palmas das mãos estão apoiadas no chão, enquanto os pés estão suspensos, apontando para o teto. . Depois, seu olhar atento acompanha tudo, sentada silenciosamente, para, ao fim do trabalho, fazer observações e apontamentos. Rasmussen parece estar preocupada com a herança. Recentemente foi lançado um filme-documentário sobre a história e o trabalho desenvolvido no coletivo Vindenes Bro. Ela comenta assim a importância desse registro:

Quando vi o filme do Vindenes Bro (Ponte dos Ventos) relaxei tanto! Porque foi documentado o trabalho que foi tão importante para mim! Se vê todo o amor que há dentro e também o profissionalismo. O filme de Francesco [Galli] é maravilhoso! Há tantos outros filmes sobre mim, no Odin… Mas não havia ainda nada sobre esse grupo, sobre esse trabalho que tem vinte e cinco anos… São os meus filhos! Penso no que deixarei: na herança. Isso é mais do que pensar sobre a morte, que pode acontecer de um dia para outro (Rasmussen, 2017RASMUSSEN, Iben Nagel . Entrevista concedida a Priscilla Duarte em 18 e 19/07/2017. Ryde, Dinamarca, 2017. (Gravação em áudio (01:53:09)).)25 25 No original em italiano: “Quando ho visto Il film dei Ponti dei Venti mi sono così rilassata! Perché è stato documentato il lavoro che è stato così importante per me! Si vede tutto l’amore che c’è dentro e anche il professionismo! Il film di Francesco è meraviglioso! Ci sono tanti film su di me, nel Odin… Ma non c’era niente su questo gruppo, su questo lavoro che ha venticinque anni… Sono i miei figli! Penso a quello che lascerò: nell’eredità. Questo è più che pensare alla morte, che può succedere da un giorno all’altro”. .

A transparência em Rasmussen perdura, como uma qualidade a ser cultivada, como paradigma a ser considerado, não apenas para os seus filhos, que são como sementes lançadas ao vento, mas em geral, para a arte do ator da contemporaneidade. Talvez, a transparência possa ser um caminho de cultivo de um trabalho de ator que tem em conta a dimensão laboratorial, como lugar privilegiado do trabalho sobre si, resistindo aos tempos atuais que, de tão acelerados, perderam seu ritmo. A trajetória de Rasmussen continua ecoando como algo que se presentifica, que demora, que se constitui como herança e tradição, tal como o perfume de um tempo aromático que permanece no ar.

Referências

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  • BARBA, Eugenio. Il Regalo di Ester. In: RASMUSSEN, Iben Nagel. Il Libro di Ester. Texto e direção: Iben Nagel Rasmussen. Consultoria à direção: Eugênio Barba. Intérpretes: Iben Nagel Rasmussen e Elena Floris, 2006. Programa do espetáculo.
  • BEDINI, Silvio A. The Scent of Time. A study of the use of fire and incense for time measurement in oriental countries. Philadelphia: The American Philosophical Society, 1963.
  • CALVINO, Italo. Lezioni Americane. Sei proposte per il prossimo millennio. Milano: Garzanti, 1992.
  • DE MARINIS, Marco. Premessa. In: DE MARINIS, Marco (Org.). Dramaturgia dell’Attore. Teatro Eurasiano 3. Bologna: I Quaderni del Battello Ebbro, 1996. P. 7-8.
  • DUARTE, Priscilla de Queiroz. Maturidade do Ator: ofício e cultivo de si. 2019. Tese (Doutorado em Artes) - Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.
  • HAN, Byung-Chul. O Aroma do Tempo. Um ensaio filosófico sobre a Arte da Demora. Lisboa: Relógio D’Água, 2016.
  • PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da (Org.). Pistas do Método da Cartografia. Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2014.
  • RASMUSSEN, Iben Nagel . La drammaturgia del personaggio. In: DE MARINIS, Marco (Org.). Dramaturgia dell’Attore. Teatro Eurasiano 3 . Bologna: I Quaderni del Battello Ebbro , 1996. P. 176-186.
  • RASMUSSEN, Iben Nagel . Il Libro de Ester (O livro de Ester). Texto e direção: Iben Nagel Rasmussen. Consultoria à direção: Eugênio Barba. Intérpretes: Iben Nagel Rasmussen e Elena Floris, 2006. Programa do espetáculo.
  • RASMUSSEN, Iben Nagel . O Cavalo Cego: diálogos com Eugênio Barba e outros escritos. São Paulo: É Realizações, 2016.
  • RASMUSSEN, Iben Nagel . Entrevista concedida a Priscilla Duarte em 18 e 19/07/2017. Ryde, Dinamarca, 2017. (Gravação em áudio (01:53:09)).
  • RUPERTI, Bonaventura. Storia del Teatro Giapponese - 1: Dalle origini all’Ottocento. Venezia: Marsiglio Editori, 2015.
  • SCHINO, Mirella (Org.). Alquimistas do Palco. Os laboratórios teatrais na Europa. São Paulo: Perspectiva, 2012.
  • SCHINO, Mirella; TAVIANI, Ferdinando. Nota dos organizadores. In: RASMUSSEN, Iben Nagel . O Cavalo Cego: diálogos com Eugênio Barba e outros escritos . São Paulo: É Realizações , 2016. P. 7-10.
  • STANISLASVSKI, Constantin. A maturidade do artista. In: STANISLASVSKI, Constantin. Minha Vida na Arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. P. 405-539.
  • THE TRAINING AND THE FIGURES: Conversation with Iben Nagel Rasmussen. Entrevistada por Virginie Magnat (Meetings with Remarkable Women - You Are Someone’s Daughter). Filme de: Chiara Crupi. Produção: Social Sciences and Humanities Research Council of Canada, Routledge Theatre & Performance Studies website, Odin Teatret. Camera: Chiara Crupi, Francesco Galli, Celeste Taliani. Edição: Chiara Crupi. 2018. 55 min. Color.
  • ZEAMI, Motokiyo. Il segreto del teatro No. A cura di René Sieffert. Milano: Adelphi, 1987.
  • 1
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 (bolsa PDSE) e da FAPEMIG.
  • 2
    Além de Iben Nagel Rasmussen (do Odin Teatret, Dinamarca), participaram da pesquisa de doutorado os atores Beppe Chierichetti e Luigia Calcaterra (do Teatro Tascabile di Bergamo, Itália) e François Kahn (França). São atores que conheço, com os quais trabalhei, em maior ou menor grau, e cujas trajetórias acompanho desde os anos 1980.
  • 3
    Neste artigo, a palavra training, em inglês, é utilizada quando se refere a um tipo de treinamento entendido como um processo pessoal, tal como é utilizada no Odin Teatret. Treinamento, em português, é utilizado quando se trata de uma acepção mais abrangente do termo.
  • 4
    Todas as citações de fontes em língua estrangeira, neste artigo, têm tradução da autora.
  • 5
    No original em italiano: “Ho avuto bisogno di quatro anni per arrivare a fare qualcosa che sentisse mio. All’inizio sentivo che il training non mi aiutava nel lavoro con le improvvisazioni o con quello che facevo nello spettacolo. Più tardi scoprì che tra queste due cose apparentemente diverse esisteva una connessione sotterranea: uno non deve utilizzare elementi del training per lo spettacolo ma deve servirsi del training per imparare a ‘volare’; il training è ciò che permette di arrivare allo spettacolo in un modo totalmente diverso. Per questo è importante lavorare in modo continuo durante il training. […] All’inizio il training ti stanca molto perché non trovi l’energia che fluisce, rimane tecnico, fai tutto in modo ginnico, però poco a poco uno impara a trovare l’aria necessaria per ‘volare’”.
  • 6
    No original em italiano: “Eugenio ha cambiato molte cose, ma quasi niente della struttura interna delle scene. Arrivati a questo punto, i materiali che l’attore offre al regista non sono più semplici improvvisazioni, bensì autentiche costruzioni drammaturgiche. L’attore non si limita ad improvvisare per creare coerenza interna. Itsi-Bitsi non è un montaggio di materiali scenici, è un montaggio di blocchi di dramaturgia composti dagli attori che hanno conservato intatta la loro struttura interna nel risultato finale”.
  • 7
    No original em italiano: “Si può parlare non figuratamente di una dramaturgia dell’attore pensando non al caso tutto sommato limitato, anche se importante nella nostra tradizione, dell’‘atore-che-scrive’ ma proprio alla costruzione della parte e dello spettacolo, al processo criativo dell’attore, concepito come un lavoro compositivo, di tessitura e di montaggio, e dunque drammaturgia in senso próprio, che ha per oggetto le azioni, fisiche e verbali, e si sviluppa su vari piani”.
  • 8
    Vestida de Branco (a mensageira da cidade) é o personagem que Rasmussen desenvolveu durante a estadia do Odin Teatret em Carpignano (sul da Itália),e que protagoniza o filme documentário/ficcional Dressed in white (1976) que registra essa experiência, com direção de Torgeir Wethal. Trickster é um personagem criado para o espetáculo Talabot que mistura referências ao Arlequim da Commedia dell’Arte e aos Tricksters, figuras da mitologia dos índios norte-americanos.
  • 9
    A ‘flor’ (hana), define-se como “um modo de provocar na mente dos homens uma emoção inesperada” (Zeami, 1897, p. 146), e é basilar nos tratados sobre o Teatro Nô escritos por seu fundador, Motokyio Zeami (1363-1443). A flor é uma metáfora da emoção que o ator oferece ao espectador, é o fascínio e o interesse que desperta, ou ainda, algo que está além desse fascínio. O desabrochar de uma flor desperta interesse por ser surpreendente e efêmero. Sua fugacidade e fragilidade não é um limite, mas o próprio fundamento de seu encanto. A tarefa do ator é, por meio do trabalho constante de aperfeiçoamento de sua arte, criar as condições para que sua ‘flor’ não murche, ou melhor, desabroche com frescor renovado a cada primavera, continuando a suscitar o interesse do espectador através dos anos, acompanhando as mudanças e adaptando-se às diversas ocasiões. É nesse sentido que existe a distinção entre a ‘flor do momento’, ligada ao fascínio momentâneo produzido de forma espontânea pela beleza dos movimentos do jovem ator; e a flor autêntica, cultivada pelo artista com a prática e a experiência, que consegue florescer com encanto renovado, superando as mutações e os limites da idade (Ruperti, 2015RUPERTI, Bonaventura. Storia del Teatro Giapponese - 1: Dalle origini all’Ottocento. Venezia: Marsiglio Editori, 2015.).
  • 10
    No original em italiano: “Il fiore consiste in una disposizione della mente; il seme deve esserne il mestiere”.
  • 11
    No original em italiano: “Con: ‘Fate muovere la mente per i dieci decimi, fate muovere il corpo per i sette decimi’, ecco cosa s’intende: i movimenti imparati, come stendere la mano o muovere i piedi, si eseguono [prima] conformemente agli insegnamenti del proprio maestro, poi, una volta giunti alla perfezione in questo campo, non si esegue più [il movimento che consiste] nello stendere o ritirare la mano come [lo si concepisce] nella mente, ma lo si trattiene un poco al di qua di quello che [concepisce] la mente.[…]
  • 12
    Dança potente dos personagens deuses, demônios ou guerreiros (Zeami, 1987).
  • 13
    No original em italiano: “L’attore diventato maestro nelle maniere [improntate] a serenità potrebbe essere adatto allo stile [imposto dalla] vecchiaia. Ma, se per caso, il vostro talento si indirizzasse verso la tecnica dello hataraki, che esprime delirio, allora non sareste adatto. Tuttavia, in questo caso, potete interpretare [a condizione di] sapere ridere a sei o sette decimi una danza o uno hataraki che prima ritenevate [di dover eseguire] per i dieci decimi, e di applicare in modo particolare il principio del ‘movimento del corpo per i sette decimi’. Sappiate che è questo che bisogna studiare nella vecchiaia.
  • 14
    No original em italiano: “[…] abbiamo nella nostra scuola una massima di portata universale: ‘Non dimenticate i vostri inizi’. Questa massima è oggetto di una tradizione orale articolata in tre punti: […] ‘Buoni o cattivi, non dimenticate i vostri inizi’ se conservate sempre presente, senza mai dimenticarlo, [il ricordo] degli inizi dei vostri anni giovanili, ne risultano molti vantaggi nella vecchiaia. ‘Conoscere i difetti di ciò che precede è la condizione delle qualità di ciò che segue’, si dice.[…] dimenticare i propri inizi vuol dire tornare ai propri inizi. […] ‘Non dimenticare i vostri inizi in ogni periodo’: consacrarsi, dagli inizi fino all’età matura, e perfino nella vecchiaia, alla ricerca delle maniere adatte alle forme dell’arte che conviene a ogni età, vuol dire [fare] i propri inizi in ogni periodo. […] ‘Non dimenticate i vostri inizi nella vecchiaia’ C’è una fine per la vita; non vi vi può essere termine per il nô. Quando avrete studiato, una per una, le maniere proprie di ogni età, studierete ancora la maniera che conviene alla vecchiaia.
  • 15
    No original em italiano: “La storia di mia madre è anche una riflessione sull'invecchiare oggi in Danimarca, sulla solitudine e sul distacco. Nessuno nasce vecchio. Ho voluto prolungare la voce di mia madre. Io sono il ‘Libro di Ester’”.
  • 16
    No original em italiano: “[…] è un documento unico: una donna incinta, durante la guerra, accudisce un appartamentino di due stanze al quinto piano e scrive all’embrione nel suo ventre descrivendo la vita di ogni giorno, i sogni del futuro, il terrore di morire prematuramente”.
  • 17
    No original em italiano: “Avevo poco tempo. Che fare? Potevo mescolare le vecchie immagini in bianco e nero di mio padre a quelle nuove, a colori, di mia madre anziana. Potevo leggere qualcosa da Il libro del seme. Potevo raccontare fatti di allora, aneddoti di famiglia, episodi di vario tipo. E come attrice, che fare? Ah, sì. Scene dei vecchi spettacoli dell’Odin Teatret, personaggi già esistenti: per esempio il Trickster di Talabot, con i suoi fili rossi e con il suo figlio di sabbia, che avevo già utilizzato in diverse occasioni. Vi aggiunse la scena di Mythos in cui Medea strangola i propri figli. E presentai questo primo schizzo a Bologna, nel 2003. Riflettendoci sopra, mi resi conto che la struttura ricordava un po’ troppo Itsi Bitsi. Anche quello spettacolo si basava su una biografia, com testi personali, ricordi, sequenze e personaggi di precedenti spettacoli. Cominciavo ad avere a noia questa me attrice che ripeteva all’infinito sempre le stesse scene. Che potevo fare di nuovo? […] Nel frattempo, mia madre era stata ricoverata in una casa di cura per anziani in stato di demenza senile avanzata. Le nostre conversazioni erano commoventi, grottesche e tragicomiche assieme, con lei che insisteva a voler lasciare l’ospizio per venire ad abitare a casa mia, magari in una roulotte in giardino. Buttai giù un dialogo partendo da queste conversazioni, scelsi dei frammenti da Il libro del seme, e vi aggiunse qualche ricordo di infanzia. Il primo abbozzo di montaggio testuale era pronto. La collaborazione con Anna fu decisiva per il work-in-progress. La sua perizia musicale, la sua età (potrebbe essere mia figlia), e soprattutto la sua esperienza di vita, così diversa dalla mia, portarono allo spettacolo la freschezza che cercavo. Sparì la tentazione di ripiegarmi su vecchie scene e personaggi già creati. Sparì anche l’idea di una espressione fisica vigorosa”.
  • 18
    No original em italiano: “Tu ed io sappiamo che è un’altra cosa. Ma è giusto tacerla, nutrendosene ciascuno con le sue parole. Non tutto si può scambiare”.
  • 19
    No original em italiano: “Il Libro di Ester è uno spettacolo o un racconto? La sua essenzialità, la rinuncia a teatralizzare, costituiscono la sua forza, o sono il risultato della stanchezza di una vecchia attrice nei confronti della propria professione e di se stessa? Che importanza hanno domande come queste se la storia vuole, e può, essere raccontata, e se qualcuno ha voglia di ascoltarla?”.
  • 20
    No original em italiano: “Ho detto che ‘a partire dalla cinquantina non esiste altro modo se non la non-interpretazione’. Non vi è altro modo che la non-interpretazione: voler mettere in pratica, nella vecchiaia, un principio di una simile difficoltà, non è forse incominciare [di nuovo]?”.
  • 21
    Conforme nota do tradutor de Zeami (1987), René Sieffert, a não-interpretação é um conceito preciso no Teatro Nô, que diz respeito a não cessar de atuar, mas limitar-se às obras que exigem menos esforço físico. Entretanto, neste artigo, utilizo tal noção de forma livre e interpretativa, considerando-a como uma indicação mais geral para um menor investimento de energia na atuação de personagens, por parte do ator idoso.
  • 22
    No original em italiano: “[…] quanto più si invecchia e quanta più esperienza professionale si ha sulle spalle, tanto più difficile trovare e costruire un tipo di energia che sia nuovo”.
  • 23
    No original em italiano: “Dovete imperniare l’interpretazione sul canto, adottare una maniera poco sostenuta, ridure nella danza la parte di movimento […] In generale, il canto è l’elemento tecnico più vantaggioso per il vecchio. La voce del vecchio si è spogliata di ogni inflessione troppo cruda, è una voce schietta […], e se a melodia è appena buona, suscita in colui che ascolta un senso de interesse. Questa [voce] è la carta più forte [del vecchio]. Persuadersi di diverse osservazioni di questo genere e, adottando la maniera [definita] sopra, consacrarsi alla realizzazione di quanto vi sembrerà più vantaggioso: ecco la maniera da studiare nella vecchiaia”.
  • 24
    Postura do yoga, conhecida como Salamba Sirsasana, na qual o corpo encontra-se de ponta-cabeça: o topo da cabeça e as palmas das mãos estão apoiadas no chão, enquanto os pés estão suspensos, apontando para o teto.
  • 25
    No original em italiano: “Quando ho visto Il film dei Ponti dei Venti mi sono così rilassata! Perché è stato documentato il lavoro che è stato così importante per me! Si vede tutto l’amore che c’è dentro e anche il professionismo! Il film di Francesco è meraviglioso! Ci sono tanti film su di me, nel Odin… Ma non c’era niente su questo gruppo, su questo lavoro che ha venticinque anni… Sono i miei figli! Penso a quello che lascerò: nell’eredità. Questo è più che pensare alla morte, che può succedere da un giorno all’altro”.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    13 Nov 2018
  • Aceito
    03 Abr 2019
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