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Do Começo ao Fim: uma entrevista com Josephine Ann Endicott

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Josephine Ann Endicott, em Die Sieben Todsünden, Tanztheater Wuppertal Pina Bausch, Wuppertal, 2018

Em janeiro de 2018, passada quase uma década após sua última encenação, o ensemble de Wuppertal reapresentava, em sua sede, a icônica peça de Bertold Brecht e Kurt Weill, intitulada Die Sieben Todsünden, coreografada em 1976 por Pina Bausch. No programa do espetáculo constava, ainda, uma segunda parte, chamada Fürchtet euch nicht, composta por outras canções do histórico duo. Nas muitas ocasiões da montagem desse espetáculo, 1976, 2009 e 2018, uma presença se fazia constante, dentro e fora do palco: a da bailarina e ensaiadora de origem australiana Josephine Ann Endicott. Membro do Tanztheater desde a sua formação, Jo, como costuma ser chamada, manteve uma relação de amizade e parceria muito estreita e prolongada com Pina Bausch, ocupando posições centrais em clássicas encenações, em especial, no já citado espetáculo Die Sieben Todsünden, como em Komm tanz mit mir, de 1977 e KontakthofKONTAKTHOF - with ladies and gentlemen over “65”. Paris: L’Arche , 2007., de 1978, de modo a ser até hoje uma das principais transmissoras de seu legado.

Um primeiro encontro com Jo deu-se no Café Moritz, próximo a Lichtburg, onde acontecem os ensaios da companhia, no distrito de Barmen, em Wuppertal. Nesse breve tête-à-tête, conversamos informalmente sobre Pina, a montagem em curso, os novos rumos da companhia, entre outras coisas. Seria inútil descrever em palavras a força de sua presença. À guisa de oferecer informações mais precisas e aprofundadas, visto que receava não poder se deter por muito tempo naquele momento, por conta da montagem de Tödsunden, Jo preferiu responder às perguntas por escrito. O que segue, nesse sentido, remonta a essa troca de e-mails que se deu no período iniciado em janeiro até abril de 2018, interstício durante o qual, a propósito de ensaios de outras peças de Pina Bausch, Jo havia já passado pela França - lá ficando por volta de dois meses para a montagem de Orpheus und Eurydike, de Pina, pelo ballet da Ópera de Paris - que, naquela ocasião, contava também com a presença de Dominique Mercy. Jo é sobremaneira ocupada e, segundo ela mesma, encontra-se muito cansada. Depois de Orpheus, Jo tem ainda pela frente muitos compromissos, dentre estes, o mais instigante é a possibilidade de montar A Sagração da Primavera na África, com um elenco de bailarinos africanos.

Agradeço, pois, a Jo pelo rico, afetuoso e contínuo diálogo que tem se dado desde nosso primeiro encontro em Wuppertal. Esta entrevista constitui apenas a parte inicial de uma conversa que ainda dará muitos frutos; aqui, ela é quase que um aperitivo. Nos próximos meses, o público brasileiro poderá ouvir mais de Jo e de Pina. Isso, contudo, é assunto para um outro encontro. Mais uma vez, agradeço a imensa gentileza de Eddie Martinez, amigo e parceiro de trabalho, ao oportunizar esta entrevista.

Marcelo de Andrade Pereira - Por que você escolheu ser bailarina?

Josephine Ann Endicott - Eu nunca escolhi ou mesmo quis ser uma bailarina. Parece que isso me escolheu. Eu apenas amo dançar e eu penso ter nascido com esse dom maravilhoso. Quando eu era criança eu costumava chorar muito. Meus dois irmãos me incomodavam continuamente. Meus pais também tinham algumas divergências sobre isso. Com 7 anos, minha mãe me levou até uma escola de balé, em um dos subúrbios perto de minha casa. Os movimentos eram física, rítmica e mentalmente fáceis para mim. Ter aulas me fez feliz. Eu sei que isso soa um pouco como um conto de fadas, mas realmente foi isso - eu parei de chorar.

Marcelo de Andrade Pereira - Por quanto tempo você estudou dança antes de conhecer Pina e entrar na companhia? Como foi o seu treinamento? Você dançou com outra companhia antes da de Pina?

Josephine Ann Endicott - Quando eu tinha 15 anos, meus professores de dança me encaminharam para uma audição na escola mais conhecida da Austrália, o Australian Ballet School. Eu fui escolhida como uma das oito melhores garotas de todo o país. A escola era baseada em Melbourne. Eu fiquei muito triste por ter que deixar a minha casa em Sydney, minha mãe, meu pai, irmãos e amigos. Levou séculos para que eu pudesse me adaptar. Eu não conhecia uma pessoa sequer em Melbourne e me sentia muito sozinha.

Meu treinamento foi basicamente clássico - R.A.D. mas também incluiu lições de dança moderna, música, mimo-corpóreo, jazz, atuação, coreologia e pas-de-deux. Eu adorava vestir um tutu, com meias rosas e sapatilhas de ponta de cetim rosa. Depois de dois anos na escola, de dois a três dos melhores alunos, entre meninos e meninas, eram então selecionados para entrar no The Australian Ballet Company. Aconteceu de eu ser uma das selecionadas, mas depois de quatro anos eu deixei a companhia e voei para Londres. Eu já estava cansada de ouvir quão maravilhosa, talentosa bailarina eu era, mas que o meu rosto era muito arredondado, que talvez eu devesse arrancar alguns dentes para que ele parecesse menor, e também que perdesse alguns quilos, dois ou três. A vida de uma bailarina nunca é fácil para a maioria de nós, eu diria.

Marcelo de Andrade Pereira - Você poderia nos dizer um pouco sobre como foi o início de seu trabalho com Pina? Como você a conheceu? Quando e onde isso aconteceu?

Josephine Ann Endicott - Eu encontrei Pina Bausch pela primeira vez no Dance Center London, em Londres, em 1973. Eu tinha 23 anos de idade e Pina tinha 34 anos. Naquela ocasião, Pina havia recém sido indicada para ser diretora do Wuppertal Ballet e estava procurando por bailarinos. Eu estava participando de uma aula de balé clássico e aconteceu de Pina estar lá, observando. Eu não fazia ideia de quem ela era - naquele tempo, apenas pessoas do meio conheciam o seu trabalho. Depois da aula, ela falou comigo e me perguntou se eu estava procurando por emprego - o que eu não estava. Porém, dada a forma pouco habitual, autêntica, simples, muito humilde com a qual ela se expressava, a escolha das palavras, a aura ou seu belo e fascinante rosto, com aqueles olhos azuis, suas longas e muito expressivas mãos, aqueles grandes passos que ela dava quando andava ou, talvez, o jeito que ela olhava tão profundamente para mim - vai saber -, por alguma razão eu disse “sim”. Foi realmente um caso de amor à primeira vista, simples assim. Sim! Eu me apaixonei por Pina em 1973 e ela se apaixonou por mim. Conhecer Pina foi algo perfeito. Desde o momento que os nossos olhos se encontraram eu senti que estava sob o seu encanto. Ela me amava como eu era e o que eu era - com ou sem quilos a mais.

Marcelo de Andrade Pereira - Como vocês abordavam uma à outra e trabalhavam conjuntamente?

Josephine Ann Endicott - Com o passar do tempo e dos anos nós parecíamos estar continuamente descobrindo, examinando e trabalhando uma com a outra, encontrando novos caminhos por onde o trabalho nos levava. Pina era a minha líder e eu apenas perseverei, seguindo ela em sua missão, tanto quanto eu podia - ajudando e apoiando ela no seu caminho, tanto como bailarina quanto como assistente - e, obviamente, acreditando nela e em nosso trabalho.

Marcelo de Andrade Pereira - Como você chegou a Wuppertal?

Jospehine Ann Endicott - Em 1973, eu voei de Londres a Düsseldorf e então peguei o trem que levava até a uma fria, cinzenta, chuvosa e nada bonita cidade alemã chamada Wuppertal - e mais uma vez sem conhecer uma pessoa sequer, sem falar uma palavra em alemão, sem ter um lugar para ficar e com pouco dinheiro no meu bolso, mas curiosa para finalmente começar essa nova forma de trabalho com Pina.

Marcelo de Andrade Pereira - Como foi o trabalho no início? Você poderia nos dizer um pouco sobre o processo criativo de então? Ele mudou durante o tempo?

Josephine Ann Endicott - Baseada nos sentimentos humanos Pina liberou, renovou, emancipou e revolucionou a alma da estética da dança, permitindo que ela desabrochasse e se disseminasse por muitas direções, ao mesmo tempo em que permitia a seus bailarinos continuarem indivíduos criativos debaixo das suas asas. Com efeito, depois das muitas décadas o trabalho mudou bastante em termos de temas - talvez as peças mais recentes sejam mais leves, mais divertidas. Por volta de 1986, Pina começou a trabalhar em uma série de coproduções com outros países. Isso provou ser uma fonte de grande inspiração para ela e seus bailarinos, moldando suas obras com outras cores, sabores e frescor. A última criação de Pina foi uma coprodução com o Chile, em 2009.

Marcelo de Andrade Pereira - Você poderia nos dizer se houve alguma fase particularmente especial e em caso afirmativo, como foi? Existe algum momento durante esses anos que tenha te marcado e você gostaria de compartilhar?

Josephine Ann Endicott - Ao longo dos anos e das criações que nós fizemos em conjunto eu fui capaz de achar, desenvolver e permitir a mim mesma, ser eu mesma. A dança tem me guiado ao longo da minha vida. Eu tenho agora 68 anos de idade e procuro transmitir isso para a geração mais jovem de bailarinos, na função de diretora de ensaios, com todo o amor, respeito, graça e cuidado que o meu conhecimento me permite, tão perfeitamente quanto possível - as obras mais antigas que eu melhor conheço são Kontakthof, Arien, Sacre, Orpheus, Die sieben todsünden.

Marcelo de Andrade Pereira - O que te manteve na companhia por tantos anos? Tens algum segredo?

Josephine Ann Endicott - Meu amor e lealdade para com Pina. De alguma maneira, Pina exerceu um poder sobre mim - eu me mantive fascinada pela sua genialidade calma, persuasiva, confiante, objetiva, honesta, sincera, corajosa, forte e poderosa, única, sagaz, talentosa, altamente sensível, possessiva, compreensiva, generosa e extremamente disciplinada, além de focada criativamente; sua visão sempre me manteve acreditando nas suas criações e nas suas obras. É absolutamente necessário que o mundo continue a ver essas devastadoras, belas e geniais obras de Pina. Eu continuarei a ensiná-las enquanto conseguir sentir a sua presença dentro de mim e desde que eu acredite que ainda consiga fazer isso.

Marcelo de Andrade Pereira - Você provavelmente mudou como artista durante todo esse tempo. Quais foram os momentos que te transformaram durante esse processo?

Josephine Ann Endicott - Como uma artista e com uma experiência de vida sempre se está a crescer. O avanço da idade me cansou um pouco, mas até agora não muito. Eu tenho sido muito sortuda com o meu corpo - nenhuma lesão séria. Quando Pina faleceu, eu me senti completamente perdida e incompleta sem ela. Eu não gosto de falar sobre esse período da minha vida, mas isso me devastou.

Marcelo de Andrade Pereira - Se você pudesse dar qualquer conselho a jovens bailarinos acerca do processo criativo em dança, baseada na sua experiência, o que você diria?

Josephine Ann Endicott - Vamos torcer que você [bailarina] seja tão sortuda quanto eu fui e ache a sua própria Pina de um jeito ou de outro!

Marcelo de Andrade Pereira - Quais são os desafios de re-montar um espetáculo com bailarinos não profissionais como em Kontakthof com adolescentes?

Josephine Ann Endicott - Kontakthof é uma peça atemporal. É claro que ela pode ser executada por bailarinos adolescentes não-profissionais, contudo, eu estava um pouco receosa em função do desafio com os adolescentes, tendo eu própria criado três filhos, assim sei bem quão difícil é lidar com aqueles que passam pela puberdade. Foi difícil. Você tem que tratá-los de forma muito cuidadosa, individualmente, pacientemente e, de algum modo, discretamente, criando condições para que confiem no trabalho a cada semana - a cada mês que passa. Foi uma aventura maravilhosa a que tive com eles. Eu fiquei tão orgulhosa com o resultado final e seu fantástico, jovem, energético e inocente Kontakthof.

Marcelo de Andrade Pereira - Você ajudou a construir a história da dança-teatro. Em sua opinião, qual é o legado mais importante de Pina e da sua companhia para o futuro da dança?

Josephine Ann Endicott - Tentar manter o espírito e a humanidade em suas obras, fazendo todo o possível para que elas sobrevivam e apoiar os trabalhos documentais da Fundação Pina Bausch, criada em sua memória e coordenada pelo filho de Pina, Salomon Bausch.

Marcelo de Andrade Pereira - Você acha que a dança-teatro (essa particular espécie de dança e teatro, cuja maior figura foi Pina) persistirá no futuro?

Josephine Ann Endicott - Eu gostaria de pensar e esperar que sim, mas Pina foi uma artista, inventora e instigadora das emoções humanas, incomparável. Ela foi mágica.

Marcelo de Andrade Pereira - Você acha que a dança-teatro no mundo contemporâneo tem o mesmo poder que teve durante as décadas de 1970, 1980 e 1990?

Josephine Ann Endicott - Sim, eu penso que sim.

Marcelo de Andrade Pereira - Hoje nós vemos bailarinos muito jovens sendo admitidos pela companhia, como isso modifica o seu trabalho ou o trabalho de Pina?

Josephine Ann Endicott - Eu tento sempre chegar o mais perto possível da alma e da personalidade da pessoa. Eu estou trabalhando com eles e procuro ser honesta, compreendendo-os e dirigindo-os. Eu tento guiar o bailarino o melhor que eu posso ao longo de todo o difícil caminho, até que eu sinta que ela ou ele possui o papel e que esse não mais pertence a mim. Eu gosto de ver e assisti-los crescer de ensaio a ensaio - de performance a performance.

Bailarinos jovens precisam de tempo para entender e crescer no trabalho de Pina. Infelizmente, eles não a conhecerão pessoalmente. As obras mais antigas que estão sendo remontadas são tão fortes que se espera que eles possam vivê-las e atuá-las, sob o cuidadoso e amoroso olhar dos bailarinos que fizeram parte desde a origem das peças, por muitos anos ainda.

Marcelo de Andrade Pereira - Eu penso que isso te dá muito trabalho. Quais são os desafios de re-encenar as peças mais antigas de Pina como Die sieben todsünden?

Josephine Ann Endicott - Neste momento eu estou muito exausta, por conta da montagem de Todsünden. Tem sido um trabalho monstruoso. Eu o compararia a um pequeno vilarejo que veio abaixo e que eu preciso construir de maneira fresca e nova para as novas pessoas que o habitarão. Eu não sou uma arquiteta, mas eu tenho as ferramentas necessárias, as pedras e os materiais para fazê-lo. Quando esse programa foi criado em 1976, eu estava lá. Eu dancei o papel principal de Anna em Todsünden e tive muitas partes na segunda coreografia, intitulada Fürchtet euch nicht. Alguém poderia dizer que eu nasci para essa peça. Eu conheço ela como se fosse minha, como se fosse a minha segunda pele. Eu não me vejo como uma bailarina, mas como alguém que foi dotada com o movimento - não apenas com o meu corpo, mas com os muitos sentimentos que vivem dentro de mim. Minha grande qualidade como bailarina foi a de me manter humana e ser eu mesma no palco todas as vezes, de viver cada performance - lá, antigamente e agora. Eu sei disso. A última vez que eu performei o papel de Anna em Die sieben todsünden foi em Berlim, apenas cinco meses antes da morte de Pina. Eu tinha 59 anos.

Agora, em 2018, eu compartilho a posição de diretora de ensaio com Julie Shanahan. Eu estou feliz com o resultado final e com a mistura de gerações jovem, intermediária e antiga de bailarinos. Foi mais do que maravilhoso ser capaz de dançar novamente essa coreografia na segunda parte. Todos os meus sapatos e vestidos têm 42 anos, são os originais utilizados no ano da criação da peça, em 1976. Isso foi algo muito especial para mim. Atuar novamente foi incrível, como mágica. O público estava mais do que feliz de ter essa excelente noite trazida novamente para o repertório. Obviamente, ninguém poderia imaginar o contingente de trabalho envolvido para trazer essa coreografia mais uma vez com a necessária qualidade e o espírito certo.

Marcelo de Andrade Pereira - E por que você o fez?

Josephine Ann Endicott - Por que eu disse sim a Todsünden?! Eu devo estar louca. Eu queria disseminar o meu conhecimento, a minha energia e coragem para inspirar todos os novos bailarinos, não apenas trabalhando com eles como diretora de ensaio, mas também dando a eles a chance de experimentar e serem vivos comigo no palco, uma última vez em memória de Pina Bausch.

Diretor de ensaio é uma função muito difícil para qualquer um que queira fazer isso no Tanztheather neste momento. A responsabilidade é enorme. Vamos esperar que a nova diretora artística, Adolphe Binder, encontre o seu caminho em meio a toda a turbulência que se instalou quando Pina faleceu.

Reference

  • KONTAKTHOF - with ladies and gentlemen over “65”. Paris: L’Arche , 2007.
  • Este texto inédito, traduzido por Marcelo de Andrade Pereira, também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018
  • Data do Fascículo
    Set 2018
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