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Agruras da Inconstância

Brûlures d’Inconstance

Resumo:

O artigo efetiva, em um primeiro movimento, uma investigação relativa às características mais notáveis associadas ao chamado teatro de Anchieta, no qual as estratégias de tradução, traição e adaptação foram empregadas em estreita consonância com os preceitos da Companhia de Jesus. Num segundo movimento, são enfocadas as consequências e os desdobramentos promovidos por aquele teatro na Colônia, especialmente a questão do logos indígena e o aparecimento das santidades, movimentos de resistência antiescravista.

Palavras-chave:
Teatro Jesuítico; Anchieta; Exercícios Espirituais; Perspectivismo; Santidade

Résumé:

Dans le premier mouvement, l’article enquête les caractéristiques les plus notables associées au théâtre de José de Anchieta, dans lequel des stratégies de traduction, de trahison et d’adaptation ont été employées en étroite harmonie avec les préceptes de la Compagnie de Jésus. Dans un second mouvement, les conséquences et les développements promus par ce théâtre dans la Colonie sont concentrés, en particulier la question du logos indigène et l’émergence des saintetés, mouvements de résistance anti-esclavagiste.

Mots-clés:
Théâtre Jésuite; Anchieta; Exercices Spirituels; Perspectivisme; Sainteté

Abstract:

First, the article presents an investigation on the most remarkable features associated with the so-called Theater of Anchieta, in which translation, betrayal and adaptation strategies were employed in close harmony with the doctrine of the Society of Jesus. Secondly, the consequences and developments generated by that theater in the Colony are analyzed, especially the question of the indigenous logos and the emergence of the sanctities, which were movements of anti-slavery resistance.

Keywords:
Jesuit Theater; Anchieta; Spiritual Exercises; Perspectivism; Sanctity

Único dentre todos os animais, o homem possui a palavra. Sem dúvida, a voz é o meio pelo qual se indica a dor e o prazer. Por isso é dada aos outros animais. A natureza deles vai só até aí: possuem o sentimento da dor e do prazer e podem indicá-lo entre si. Mas a palavra existe para manifestar o útil e o nocivo e, por consequência, o justo e o injusto (Aristóteles, PolíticaARISTÓTELES. Política. Tradução: Mário da Gama Kury. Brasília: Editora UnB, 1975., I, 1253a, 1975).

Abertura

Que fazer com o teatro legado por José de Anchieta e seu universo cultural? Como classificá-lo na esteira dos estudos sobre a dramaturgia e o teatro brasileiros? Que dizer daqueles textos quinhentistas, grafados em línguas estranhas e ultrapassadas e que pouca ou nenhuma ação exibem em cena? Uma resposta é: porque articulam uma performance e uma teatralidade inéditas, nascidas das vicissitudes em torno da catequese. Mas também porque evidenciam, pelos seus arranjos, vários enfoques e desdobramentos, obrigando o olhar contemporâneo à revisão de conceitos que tomam o teatro pelas suas constituintes convencionais, muito datadas ou ultrapassadas no transcurso histórico. Mas, acima de tudo, porque o teatro de Anchieta foi o primeiro documento a registrar, na América Portuguesa, o uso de recursos cênicos como instrumento intercultural. Motivações não faltam, portanto, para que aquela dramaturgia primeva seja revisitada.

A Cena Primitiva

Se, para os europeus, o encontro com os povos silvícolas foi um choque que reverberou sobre muitas de suas centenárias crenças e valores, inaugurando uma era de redefinições de seu próprio conceito de humanidade, o mesmo não ocorreu à percepção indígena: seus mitos evocavam uma Terra Sem Mal, para além do oceano, lugar de glória e felicidade permanentes, habitado por valentes guerreiros que um dia aportariam em suas praias. Portanto, se o índio inspirou no branco o horror do desconhecido, o silvícola articulou um pensamento diametralmente oposto. São essas as polarizações que aqui se prestam a exame.

Imediatamente percebido como catequese - a conquista espiritual de criaturas que alguns duvidavam até mesmo possuírem alma − o teatro jesuítico foi menosprezado em sua condição de fato artístico, notadamente até o final do século XIX, figurando como um traço longínquo da presença europeia fundadora. Foram os artistas de nosso Romantismo quem primeiro valorizaram o índio como protótipo da Nação, mas foram apenas aqueles ligados ao Modernismo que voltaram seu olhar para os povos originários em outra chave, e com eles a crítica moderna, em seu afã de ordenar em outras chaves a memória cênica nacional. Nessa acepção, Anchieta foi elevado à condição de precursor e seus textos à condição de primícias cênicas. Na avaliação de Sábato Magaldi (s. d.), o teatro brasileiro nasceu das festividades religiosas levadas a cabo pelas ordens cristãs que atuaram nos primórdios da colonização, flagrado em paralelo não de todo sem sentido com os ritos dionisíacos que insuflaram a arte cênica no continente europeu: “[...] ao lado de seu valor histórico indiscutível, apraz-nos pensar que eles nos deram marca semelhante a dos inícios auspiciosos do teatro em todo o mundo” (Magaldi, s. dMAGALDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. Rio de Janeiro: Mec-Funarte, s. d., p. 24). Enquanto Décio de Almeida Prado, por seu turno, fez uma avaliação diversa daquela obra:

[...] quanto mais a encararmos como teatro no sentido específico da palavra, menos a compreendemos e menos lhe fazemos justiça. Só tendo em vista as condições e os intuitos que guiaram tais peças é que lhes perdoaremos as falhas dramáticas e as incongruências lógicas, nascidas não da ausência de qualidades intelectuais por parte de Anchieta - estas lhe sobravam - mas por seu desinteresse por tudo que não se relacionasse no palco com o trabalho de catequese (Prado, 1993PRADO, Décio de Almeida. Teatro de Anchieta a Alencar. São Paulo: Perspectiva, 1993., p. 48).

Tanto Sábato como Décio produziram capítulos admiráveis sobre José de Anchieta, esmiuçando com inteligência sua pequena e fragmentada produção. O primeiro procurou destacar, superando o velho hábito de considerar a catequese desprovida de elementos dramáticos, trechos nos quais seria possível encontrá-los naqueles textos. Rumo igualmente trilhado por Décio, embora ele se aventure um pouco além, tecendo considerações de ordem historiográfica e etnológica. Mas ambos passaram ao largo de dedicarem, mesmo que umas poucas linhas, aos indígenas - performers e público alvo daquela produção −, evidenciando leituras não apenas caudatárias do textocentrismo que então balizava a tarefa crítica, como, notadamente, deixando de fora o Outro que aquela cena inspirava. Tal perspectiva, é preciso notar, não se colocava na ocasião. Uma vez que, no afã comemorativo do IV Centenário da Cidade de São Paulo, em 1954, a primeira edição completa do teatro de Anchieta foi saudada pelos estudiosos não só com júbilo como, acima de tudo, um legítimo resgate de um fio da tradição que foi sedimentando, século após século, a maior cidade da América Latina, e da qual o padre fora um dos fundadores. A edição promovida naquela data pela tupinóloga Maria de Lourdes de Paula Martins é referida por ambos os analistas, pois foi a primeira vez que foi possível ler em português os trechos originais grafados em língua geral.

Os escritos originais estão enfeixados no conhecido Caderno de Anchieta, códice que reúne dois textos dramáticos completos e fragmentos de outros dez, além de poesias e demais escritos menores, integrando o processo remetido à Santa Sé pela Capitania da Bahia em 1671, com vistas à canonização do missionário1 1 A beatificação só irá ocorrer em 1980, pelo papa João Paulo II, e a canonização em 2014, pelo Papa Francisco. . Para subsidiar o pedido de santificação, o códice conta com as biografias elaboradas pelos padres Quirício Caxa, Pero Rodrigues e Simão de Vasconcelos, comprovando a vida ascética e beatífica do apóstolo jesuíta, colocando em destaque alguns milagres a ele atribuídos. Como documento literário, o volume depositado no Arquivo Romano da Companhia de Jesus (ARSI) apresenta vários problemas: as letras não coincidem de página a página, muitas delas estão rasuradas e manchadas, visíveis acréscimos a posteriori são verificáveis aqui e ali e em lugar algum se encontra a assinatura do autor. Sabe-se que os missionários não tinham por hábito firmar suas composições, destinadas unicamente ao trabalho evangélico e sem nenhuma ambição literária, fato que ajuda a compreender a multiplicidade de grafias, mas levanta suspeitas de que as sucessivas cópias possam ter adulterado os originais. De um modo ou de outro, está-se diante de um alfarrábio com quase quinhentos anos, única fonte daqueles textos fundadores do teatro na América Portuguesa do século XVI2 2 Uma edição mais recente e aqui referida é a tradução versificada, introduzida e anotada por Armando Cardoso SJ, Teatro de Anchieta (1977). .

Analistas posteriores começaram a rever, pouco a pouco, as considerações modernas, problematizando aspectos até então pouco explorados. Se a apreensão de Décio e Sábato destacara as características potencialmente cênicas da produção anchietana, um novo estudo, lançado por Joel Pontes, em 1978PONTES, Joel. Teatro de Anchieta . Rio de Janeiro: SNT-Dac-Funarte, 1978., introduziu um olhar mais abrangente sobre aquele teatro. Mais exigente quanto aos possíveis rendimentos dramáticos, ele visou destacar os efeitos cênicos articulados junto às populações autóctones, salientando, acima de tudo, o caráter programático e doutrinário que os revestiam, mais um recurso dentro do trabalho missionário. Em seguida, grifa os sentidos catequéticos dirigidos aos indígenas, os apelos cruzados entre as várias práticas cristãs implementadas e suas ressonâncias nos textos teatrais. Em Na Vila de Vitória, obra que se vale alternadamente do português, do espanhol e do tupi, o estudioso faz um recorte sobre aqueles vínculos: diz o Temor, uma das alegorias personificadas: “si tratases, cada dia / un poco en tu pensamento / tristeza sin alegria / pesar sin ningún contento / hambre sin nunca comer / y fuego sin luz serena / sed terrible sin beber / noche sin amanhecer / !oh qué dolor!, oh! qué pena!” (Pontes, 1978, p. 41).

Tal sequência de apelos sentimentais, colados à dor e metáforas de privações que acometem os que incidiram em pecado, apresenta estreita correlação com o quinto Exercício Espiritual elaborado por Ignácio de Loyola3 3 Os Exercícios Espirituais constituem uma sequência de atividades devotas e orações programadas a serem desenvolvidas pelo praticante sob a direção de um ministrante, destinados a revelar o poder e a imensidão do amor de Cristo. Foram concebidos e estruturados pelo fundador da Companhia de Jesus, Ignácio de Loyola, como uma prática indispensável a todos os fiéis que desejassem, efetivamente, encontrar a divindade, publicado pela primeira vez em 1548. Ver Loyola (1966), Exercícios Espirituais. . Ali, no segundo Preâmbulo, o oficiante afirma: “[...] pelo menos o temor das penas me ajude a não vir a cometer pecado”; a que se seguem os pontos: “ver com a vista da imaginação as grandes chamas e as almas como que em corpos ígneos”; “ouvir prantos, alaridos, blasfêmias contra Cristo”; “cheirar com o olfato fumo, pedra, enxofre, sentina e coisas pútridas”; “degustar com o paladar coisas amargas, assim como lágrimas, tristezas e o verme da consciência” (Loyola, 1966, passim) - passagens que reverberam como retomadas nos versos de Anchieta.

Tal recurso, segundo Pontes (1978PONTES, Joel. Teatro de Anchieta . Rio de Janeiro: SNT-Dac-Funarte, 1978., p. 42),

[...] preciosa muleta do establishment, afasta o espectador do fascínio da representação e encarta-o, sem apelação, entre as páginas do catecismo. [...] falta qualquer tipo de conflito a partir do momento em que os sermões são deflagrados. Na Vila da Vitória fenece, com um engodo aos espectadores - pretexto para lhes impingir sermão.

Tal viés crítico indica um novo platô sobre aquela cena fundadora, não mais a edênica emulação de um dionisismo tropical, mas, enfaticamente, um recurso retórico adequado a seus fins, apelando à potência performativa do teatro. Em sua conclusão sobre Anchieta, o analista destaca:

[...] o teatro é, para ele, uma ação encantatória e didática ao mesmo tempo, efetivada sobre um público novo, desconhecido pelos dramaturgos de então, [...] chamam-no ingênuo e talvez fosse o contrário: demasiado sábio, embora literariamente desambicioso. Sábio no sentido de conhecer bem a relação espetáculo-espectador, que nem sempre inclui a literatura. De tratar seu reduzido manancial pensando no momento (e não na eternidade a que a literatura sempre aspira) e no índio, não em um espectador abstrato, intemporal (Pontes, 1978PONTES, Joel. Teatro de Anchieta . Rio de Janeiro: SNT-Dac-Funarte, 1978., p. 83-84, grifos do autor).

Em 1980, a Funarte promoveu uma série de seminários com o objetivo de reexaminar o que restava de nacional e popular na cultura brasileira. Um ensaio de Mariângela Alves de Lima foi dedicado a Anchieta, mas dimensionado tendo em vista as atividades cênicas que ocorriam nas CEBs, dentro da Pastoral Operária, o que lhe confere um telos específico: especular como a catequese atravessou os séculos no Brasil4 4 A Pastoral Operária consistiu em uma iniciativa da Igreja Católica, ao longo da ditadura militar, para amparar os movimentos populares em suas lutas sindicais, promovendo uma ação ao mesmo tempo teológica e humanitária. .

O que distingue esse trabalho de outras análises sobre as mesmas questões é o chamamento aos componentes estéticos ali presentes, de modo que, ainda que rotineiramente toldados por uma intenção ideológica precisa, tais espetáculos alcançavam também diversas experiências sensíveis. Especificamente sobre Anchieta, ela anota:

Mas é essa estupefação dos sentidos, essa vontade de ‘arrasar’ o espectador estranho cativando-o pela beleza que propicia o nascimento de uma outra coisa que não é só a função de convencimento, mas outro plano mais instável e ambíguo de invenção artística. Nesse momento o jesuíta propõe e se revela ele mesmo fascinado por imagens que não pertencem à sua experiência europeia. É por essa brecha que penetram no espetáculo as danças, a métrica e a melodia da língua geral, o periquito flautista, vários demônios jocosos, velhas que mastigam milho para fermentá-lo e os membros pintados. Entram em cena a nudez e os dosséis feitos de velas de navios. A iconografia, principalmente, é tão estranha ao passado europeu que um religioso como o Bispo Sardinha, deslocado da catequese, não pode senão horrorizar-se com o comportamento de religiosos que se entregam a semelhantes desvarios. É preciso ter vivido e pensado o contato entre duas formas culturais tão diferentes para ficar sensível, como Anchieta, a outras formas de representação do belo (Arrabal; Lima, 1983ARRABAL, José; LIMA, Mariângela Alves de. Teatro: o nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983., p. 32-33).

Deságuam, portanto, ao final da década, novas angulações sobre aquele teatro dos primórdios, deslocando os olhares para outras esferas que não as exclusivamente pedagógicas, incluindo agora os espectadores e as experiências de interação cultural que possibilitavam infundir. Assim, incrustados na linguagem, ali refulgem também fenômenos de percepção e sensibilidade, tornando bem mais densa a natureza do fenômeno, bem como as implicações existentes.

Tais deslocamentos analíticos possuem seus avatares. Foi na década de 1970 que a antropologia iniciou uma reavaliação das culturas indígenas, devendo à antropóloga Manuela Carneiro da Cunha um papel exponencial. Após dedicar duas teses acadêmicas à noção de etnicidade - o reconhecimento da radical diferença cultural que separa as culturas branca europeia e a indígena sul americana −, Carneiro da Cunha fundou e foi a primeira presidente da Comissão Pró-Índio de São Paulo, em 1979, bem como a fundadora da Associação Brasileira de Antropologia, em 1986, organismos que não apenas dinamizaram os estudos da área como prepararam todo o caminho político para fundamentar a seção dedicada aos indígenas e seus direitos na Constituição de 1988.

Vítimas indefesas da sanha colonial quinhentista, as populações originárias sucumbiram, década após década de contatos com brancos e negros, não apenas pelo alastramento de doenças para as quais não tinham defesa, como, entre seus remanescentes, pelo roubo de suas terras, pelo escravismo a que não puderam opor resistência, todos os malefícios de uma aculturação desproporcional e predatória que desestabilizou em modo profundo suas culturas originais. Após três séculos de contínua exploração, na qual os jesuítas constituíram um dos elos, nem mesmo com o País promovido à condição de vice-reinado, a partir de 1808, com a transferência da família real para o Rio de Janeiro, a situação se alterou. Ao contrário, a partir de então, em função da expansão dos latifúndios e da necessária ocupação imperial que delimitasse a lonjura das fronteiras, desbravando matas onde os descendentes daquelas populações autóctones haviam se embrenhado, a predação se tornou mais intensa. De modo que, somente no século XX foi criado o Serviço de Proteção do Índio (1910), organismo de vida e ação oscilantes e que apenas durante o Estado Novo conheceu alguma expansão, para voltar à costumeira inanição e ser extinto em 1966 (Cunha, 2012CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2012.).

A ditadura civil-militar, sobretudo nos anos de seu milagre econômico, foi impiedosa com os nativos, não apenas removendo populações inteiras de seus habitats, anteriormente assegurados enquanto reservas, como promovendo e estimulando matanças contra os mais resistentes. No começo dos anos de 1980, as populações originárias, em seus vários troncos étnicos, não ultrapassavam os 500 mil indivíduos, quando teriam totalizado, em 1500, cerca de 7 milhões de habitantes, afirmam as estimativas. Os números fornecem a magnitude do holocausto impetrado, bem como sua dimensão simbólica - “a América não foi descoberta, foi invadida”5 5 A frase, creditada a Francis Jennings, é retomada por Manuela Carneiro da Cunha, em Índios no Brasil (Cunha, 2012, p. 19). .

Choques Culturais

Diante de tais reviravoltas quanto ao dimensionamento das culturas fundadoras, é preciso recordar os turning points que o século XX veio decantando: desde a reversão etnológica auferida por Franz Boas (que inspirou Gilberto Freyre a repensar nossa formação cultural como um sincretismo avesso aos racismos) até a revalorização das artes africanas levada a cabo pelas vanguardas históricas; lembrando ainda que, em suas primeiras décadas, tanto a estilística alemã como a espanhola submeteram o período barroco a agudos depurativos. O estruturalismo - dentro do qual a presença de Lévi-Strauss entre nós não deve ser descartada - revirou de ponta cabeça muitas crenças ainda contaminadas com a ganga positivista anterior, projetando os estudos antropológicos para veredas até então impensáveis.

Nessa ampla acepção, ganha destaque um título singular: Dialética da colonização, de Alfredo Bosi (1992BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.). Reunindo instrumentais analíticos decantados ao longo do século XX, Bosi sintetizou, por intermédio do entrecruzamento de disciplinas, o que de mais significativo se pode hoje pensar em relação às nossas origens. “Se procurarmos extrair um significado comum e mais geral dos desencontros apontados, surpreenderemos a dialética de um complexo formado de tempos sociais distintos, cuja simultaneidade é estrutural, pois estrutural é a compresença de dominantes e dominados, e estrutural é a sua contradição”, salienta Bosi (1992, p. 62) ao introduzir seu escrito. O que reforça o entendimento do racismo estrutural, hoje corrente nas análises.

Quanto à ação dos missionários - e revendo o papel de Anchieta na Colônia -, Bosi destaca que seu esforço foi o da tradução. Redondilhas, quintilhas e consonâncias típicas da poética medieval e trovadoresca ressurgiram nos trópicos com as devidas adaptações, em um esforço de reverter o imaginário do outro, mas encontrando dificuldades estruturais inexpugnáveis, tais como criar um significante adequado para pecado, noção inteiramente avessa aos aborígenes. Daí os símiles forjados naquele teatro: bispo tornou-se Pai-Guaçu (pajé maior), Tupansy passou a designar Nossa Senhora (mãe de Tupã), Tupãoka a nomeação da Igreja (casa de Tupã), enquanto alma foi vertida como anga, que na língua original designa quer a sombra quer o espírito dos antepassados, mas outra noção alheia àquelas culturas. De modo que “[...] a representação do sagrado assim produzida já não era nem a teologia cristã nem a crença tupi, mas uma terceira esfera simbólica, uma espécie de mitologia paralela que só a situação colonial tornara possível”, segundo Bosi (1992, p. 65, grifo do autor), conferindo relevo à irreconciliável duplicidade epistêmica então configurada.

É preciso ficar clara a violência simbólica em curso. Ao deslocar significados originais para símiles remanejados ou convertidos à outra lógica e apreensão, os missionários investiram contra o mundo das representações indígenas, subvertendo-as.

O círculo sagrado dos indígenas perde a unidade fortemente articulada que mantinha no estado tribal e reparte-se, sob a ação da catequese, em zonas opostas e inconciliáveis. De um lado o Mal, o reino de Anhangá, que assume o estatuto de um ameaçador anti-Deus, tal qual o Demônio hipertrofiado das fantasias medievais. De outro lado, o reino do Bem, onde Tupã se investe de virtudes criadoras e salvíficas, em aberta contradição com o mito original que lhe atribuía precisamente os poderes aniquiladores do raio (Bosi, 1992BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992., p. 66).

E, nesse reino do Mal, foram perfilados todos os hábitos originais tomados como execráveis, tais como a antropofagia, a beberagem, a poligamia, a inspiração pelo fumo, a indolência, males ajuntados por Anchieta como frutos da angaíb (alma perversa ou voltada para o pecado, segundo explicações da tupinóloga Maria de Lourdes de Paula Martins). Integravam o Bem, por contraste, o reino dos céus, a beatificação trazida pelos anjos, pelos santos e pelos padres, a consolação sob os auspícios de Maria, a remissão em Cristo e a paz eterna à direita de Deus-pai, maniqueísmo até então desconhecido e indutor de uma lógica comparativa avessa à integradora atitude mental indígena, na qual “[...] um de seus efeitos mais poderosos, em termos de aculturação, é o fato de o missionário vincular o ethos da tribo a poderes exteriores e superiores à vontade do índio” (Bosi, 1992BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992., p. 68).

São expedientes dessa índole que tornam o teatro de Anchieta uma sequência orquestrada de representações aculturadas e abertamente voltadas à conquista espiritual, meta consagrada também nos demais empreendimentos pedagógicos da Companhia de Jesus. Outro fato notável e comumente despercebido está associado ao trato com a natureza que, antes integrada e espaço vivificante para o silvícola, torna-se agora horripilante e origem de tudo aquilo que a civilização branca avaliava como espaço do horror: as bestas, os monstros, os perigos peçonhentos, os lugares impuros, os medos irracionais que atacavam durante o sono. No Auto de São Lourenço, essa abominável galeria de seres surge como parte do séquito dos diabos: boiaçu (cobra grande), mboitininguiçu (cobra que silva ou cascavel), andiraguaçu (morcegão vampiro), jaguara (jaguar ou cão de caça), jiboia, socó, sukuriji (sucuri, cobra que estrangula), taguató (gavião), atyrabebó (tamanduá grenhudo), guabiru (rato de casa), mas também o cauim (vinho de milho), entre outros.

Junto com a embriaguez promovida pelo cauim e pelo fumo, os monstros e visões agora são tomados como tentações que arrastam o índio para o pecado e para o mal, desviando-o dos padres e dos retos princípios católicos, presa de um mundo ameaçador habitado por perigos e tentações. Se a cosmovisão Tupinambá era originalmente perspectivista, tais deslocamentos semânticos visaram, exatamente, subverter seus elementos constituintes, administrando-os sob um ethos cristianizado e, sobretudo, demonizado6 6 Perspectivismo é qualquer doutrina que afirma ser o conhecimento parcial (mas nem por isso falso), limitado e determinado pela perspectiva segundo a qual cada sujeito vê o mundo. O etnólogo Eduardo Viveiros de Castro forjou o termo perspectivismo ameríndio para designar a cosmologia Tupinambá. Tal conceito será explorado a seguir. Tupinambá enfeixa todas as etnias habitantes da costa brasileira no período da colonização que, a despeito de suas diferenças, falavam uma mesma língua geral. .

Quando os huguenotes franceses aportaram na Guanabara para ali fundar a França Antártica, contaram com o apoio dos Tamoio de Cunhambebe, devidamente sublevados contra os portugueses. E estes, por seu turno, contavam com a força da indiada Tupinambá, que obedecia Araribóia, fazendo aquele confronto entre brancos também ser uma guerra entre autóctones, divididos pela distinta participação dos religiosos de ambos os lados. Foi a razão pela qual Anchieta ali foi chamado, em uma tentativa de reconciliação com os Tamoio e favorecer, desse modo, as forças ibéricas. Após anos de peleja, Estácio de Sá finalmente vence o combate e expulsa os franceses, fundando a cidade do Rio de Janeiro. O episódio foi aproveitado em parte na peça Na Vila de Vitória, escrita para uma plateia branca e mameluca e é conhecida também como Auto de São Maurício. É o mais político dentre os textos legados por Anchieta, uma vez que não apenas a repartição do globo entre espanhóis e portugueses abre os discursos como, com o emprego das três línguas, a mensagem procura seu endereço junto àquelas populações.

Satanás, que para vencer São Maurício utiliza o castelhano, salienta que deseja que Vitória, a cidade, siga obedecendo Castela e Felipe II. Temor e Alma travam um diálogo no segundo ato, relativo aos perigos que rondam o destino humano, ressaltando, cada figura, as tentações que sempre a acometem. Sem constituir um enfrentamento dramático mais decisivo, suas longas tiradas mais parecem resumos de sermões proferidos nas missas. Embora um auto, o texto se aproxima das exortações que marcam as moralidades mais antigas, uma vez que Bom Governo é a alegoria que representa a índole política do autor, preso a um imobilismo de pensamento, pois só aceita a vontade de Deus como soberana, nos episódios que tematizam as disputas de poder na capitania do Espirito Santo. Poder governamental, frise-se, regido pelas Ordenações Manuelinas, cujas diretivas deviam ser seguidas. Culminando com um canto coral ao som de harpa que faz o elogio da relíquia de São Maurício, que motivou todo o texto, O Auto da Vitória evidencia a outra vertente do teatro da missão, aquele voltado aos não índios, conhecido como teatro de colégio. Sobre ele, Bosi salienta:

[...] a alegoria exerce um poder singular de persuasão, não raro terrível pela simplicidade das suas imagens e pela uniformidade da leitura coletiva. Daí o seu uso como ferramenta de aculturação, daí a sua presença desde a primeira hora da nossa vida espiritual, plantada na Contra-Reforma que unia as pontas do último Medievo e do primeiro Barroco (Bosi, 1992BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992., p. 81).

Ars oratória Índia

Se, em estudos anteriores, as táticas jesuíticas de catequese foram tomadas quanto a seus insidiosos efeitos de conteúdo, fazendo deslocar traços culturais entranhados para novos territórios de subjetivação, agora comprometidos com a ética e a fé cristã, é preciso indagar também os formatos ali empregados. “A retórica cultivada pelos índios, na percepção dos missionários, está na base da eleição do ensino da doutrina em chave retórica, visando formar atores-oradores-cristãos-índios. Aí se insere o teatro da missão na sua dupla função terapêutica aristotélica: ser bom não só para quem o vê, mas também para quem o faz”, informa a historiadora Magda Maria Jaolino Torres (2000TORRES, Magda Maria Jaolino. Ars oratória índia: a gênese do teatro jesuítico da missão no Brasil. Folhetim, Rio de Janeiro, Teatro do Pequeno Gesto, v. 8, p. 48-60, set./dez. 2000., p. 49, grifos da autora) sobre tais aspectos.

Esse novo patamar analítico, é preciso destacar, só se tornou possível como uma apreensão a posteriori, cessados os efeitos que deslancharam o fenômeno, indagando sua genealogia, ao modo de Foucault, abrangendo instâncias até então insuspeitas. O teatro jesuítico nasceu, na Europa quinhentista, como oposição à commedia dell’arte, reino da alegria e do virtuosismo dos atores, mas no qual campeavam, temerariamente, os vícios sociais mais salientes - daí seu perigo, em um momento em que os calvinistas reformados lançavam suas redes à cata de almas vulneráveis. Desenvolvido nos colégios da Companhia, aproveitando as aulas de retórica como campo não só linguístico como também oratório, foi esse um teatro que visou consubstanciar mentes ajustadas a corpos treinados. Ajustadas à somatória de normas cristãs que as orientavam, corpos treinados no uso da voz e na capacidade argumentativa calculada na vivacidade da fé, têmpera de habilidades tidas como armas poderosas na guerra contra a Reforma pelos soldados de Cristo.

Suas fontes possuíam autoridade: Cícero e Quintiliano. Bases fecundas que insuflaram a Ratio Studiorum, fomentaram as Constituições forjadas por Ignácio de Loyola, e serviram como reto caminho a produzir discípulos dotados de um poder efetivo: o uso da palavra. Desde o primeiro momento os jesuítas perceberam a importância da palavra entre os índios, chegando Anchieta a anotar: “[...] fazem muito caso entre si, como os Romanos, de bons línguas e lhes chamam senhores da fala e um bom língua acabam com eles quanto quer e que lhes fazem nas guerras que matem ou não matem e que vão a uma parte ou a outra, e é senhor de vida e de morte e o ouvem de toda uma noite” (Anchieta, 1933ANCHIETA, José de. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933., p. 403, sic). Embora confundindo tais línguas com pregadores, uma vez que sua única compreensão era a de sua própria referência, o padre ali surpreendeu uma homologia. Ademais, o padre Azpilcueta Navarro, aqui chegado alguns anos antes de Anchieta e já familiarizado com os hábitos e o linguajar nativo, fazia seus sermões empregando aqueles mesmos recursos: discursava fazendo esgares e trejeitos, dando gritos, batendo com o pé para impressionar a plateia, em exemplar uso daquilo que, retoricamente, é conhecido como actio, a ação.

Azpilcueta iniciou − e Anchieta ampliou e expandiu − o uso da adaptação. Recomendada por Loyola, ela consistia na construção de um simulacro do outro, na apropriação de seu modo de ser, na tentativa de lhe capturar a alma, mas sem abrir mão - todavia - de suas próprias razões e objetivos. Na Europa, a adaptação nascera como uma variação de estilo oratório, mas na América Portuguesa tornou-se uma arma, à custa dos confrontos com os discursos dos xamãs e chefes guerreiros, uma espada desembainhada na arena de luta, “a ação controlada e ciente das ações eficazes”, como a classifica Magda Jaolino Torres (2000TORRES, Magda Maria Jaolino. Ars oratória índia: a gênese do teatro jesuítico da missão no Brasil. Folhetim, Rio de Janeiro, Teatro do Pequeno Gesto, v. 8, p. 48-60, set./dez. 2000., p. 55), na qual o que deveria ser capturado ao outro era seu temperamento, seu tom de voz, sua expressividade. Expedientes que não apenas referendam como ampliam a noção de tradução antes aventada por Alfredo Bosi, muito além dos símiles linguísticos, para todo um anabolismo mimético que habilitava tal orador como verdadeiro ator, o performer requerido pelo teatro da missão: um ator-orador-cristão-índio.

Daí o reforço de seu emprego junto aos curumins, que frequentavam os colégios, quanto ao treinamento contínuo, uma vez que eram mais facilmente convertidos aos novos hábitos cristianizados, bem como, dadas suas novas inserções na qualidade de corpos e espíritos aliciados, aptos a disseminarem frente aos adultos recalcitrantes a boa nova da vida branca, uma vez que não bastava crer, senão também saber professar a nova fé, segundo o bíblico ensino apregoado por São Paulo. Cumpria-se assim “[...] uma pedagogia específica, na qual a ars retorica e o exercício cênico que se fundava nessa arte, sem com ela confundir-se, desenvolvia um papel da maior importância”, destaca a historiadora (Torres, 2000TORRES, Magda Maria Jaolino. Ars oratória índia: a gênese do teatro jesuítico da missão no Brasil. Folhetim, Rio de Janeiro, Teatro do Pequeno Gesto, v. 8, p. 48-60, set./dez. 2000., p. 58).

Xamãs e pajés haviam cumprido um papel decisivo nos tempos anteriores à invasão da América, através de suas falas e prédicas, incentivando a busca da Terra sem Mal, ywy mara eÿ, que se encontrava além do oceano, na outra margem. O que explica as incessantes migrações daqueles povos pelo continente, bem como parte de suas concepções associadas ao sagrado, vislumbradas em um além. Elementos fundamentais, esses todos, para que a recepção dos brancos aportados nas caravelas tivesse sido interpretada como a chegada de habitantes daquele paraíso que eles almejavam, e as quinquilharias que lhes foram oferecidas como valiosos presentes enviados daqueles louvados confins.

Seres desprovidos de lei, de fé e de rei - como repetiram inúmeras vezes os padres em suas cartas −, os silvícolas não possuíam Estado. Uma tribo seguia um chefe e seu único poder, se é que se possa assim classificá-lo, era aquele de persuadir, aconselhar, promover a paz diante de conflitos, daí sua grande habilidade no uso da fala. E outro traço que lhe devia ser próprio é a generosidade: doar tudo que lhe pediam, razão pela qual costumava ser o mais pobre e seus ornamentos os mais rústicos de toda a taba. Além disso, o chefe devia, diuturnamente, ao alvorecer e ao pôr do sol, fazer um discurso edificante para seu povo, exortando-o em suas virtudes, recordando mitos ancestrais e exaltando as tradições que despertassem e mantivessem viva a memória. Em uma cultura oral, a repetição dessas prédicas era fundamental para manter a coesão do grupo e estruturar seu vibrante imaginário (Clastres, 2012CLASTRES, Pierre. Sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify, 2012.).

Tomados como pregadores pelos jesuítas, portanto, o teatro da missão bem soube aproveitar aquele exemplo disponível e favorável para seu incremento, embora torcendo todas as suas constituintes por meio da apontada adaptação. O performer indígena daquele teatro encontrou sua técnica artística não muito longe de si mesmo.

Olhar, Pensar, Falar

Se a voz serve para expressar a dor e o prazer, somente a palavra consegue equacionar o útil e o nocivo - já advertia Aristóteles. Entre uma coisa e outra transita o logos, o pensamento, inteligência ou cálculo, conforme a ocasião, ao se manifestar na condição de discurso. Se o logos articulado pelo colonizador nos é bem conhecido, disseminado sob milhares de ações e formatos, cabe perguntar: qual era e o que ainda é hoje o logos selvagem? - como manifestam os índios o que lhes provocava dor ou prazer e, sobretudo, como dimensionam o que lhes é útil ou nocivo?

Se os colonizadores - comerciantes e missionários − foram bem recebidos pelos silvícolas, fazendo tudo o que pediam, agraciados com mulheres e prodigamente abastecidos de pau-brasil, bem como rapidamente diziam acreditar em Deus, imitavam os jesuítas nas missas ou aprendiam as sacras orações em modo surpreendente, como explicar, em seguida, as reviravoltas, os abandonos, as recaídas nos maus hábitos de que diziam ter-se livrado? Como conciliavam o prazer com o que lhes era útil? Falta de memória foi a hipótese aventada. Almas fracas, esqueciam e não retinham o que lhes era ensinado, alternando com rapidez de um ponto a outro. Embora retornassem, tempos depois, para novamente se inserirem na mesma cadeia de consentimentos, obséquios e concordâncias com tudo o que lhes era solicitado. Inconstância foi o termo eleito para qualificar tal labilidade. De fato, o logos selvagem é inconstante.

“Os jesuítas, como se tivessem lido mas não entendido muito bem Durkheim, separavam desastradamente o sagrado do profano”, salienta o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo: Cosac Naify , 2002., p. 192). Razão pela qual ele defende, em outro local, uma mudança de estratégia para a verificação dessa inconstância:

[...] o perspectivismo ameríndio, antes de ser um objeto possível para uma teoria extrínseca a ele [...] convida-nos a construir outras imagens teóricas (e práticas) da teoria. Pois a antropologia não pode se contentar em descrever minuciosamente ‘o ponto de vista do nativo’ se for, ato contínuo, apontar seus pontos cegos, buscando assim englobar, na melhor tradição crítica, tal ponto de vista dentro do Ponto de Vista do observador. A tarefa que o perspectivismo contrapõe a esta, é aquela ‘simétrica’, de descobrirmos o que é um ponto de vista presente nas culturas ameríndias: qual o ponto de vista nativo sobre o conceito antropológico de ponto de vista? (Viveiros de Castro, 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais. São Paulo: Cosac Naify , 2015., p. 72-73).

Se a tradução se evidenciara como o grande obstáculo enfrentado quando do entendimento entre culturas, como antes percebido nas considerações de Alfredo Bosi e Magda Jaolino Torres, o que o etnólogo aqui destaca é que a “[...] boa tradução é aquela que consegue fazer com que os conceitos alheios deformem e subvertam o dispositivo conceitual do tradutor, para que a intentio do dispositivo original possa ali se exprimir, e assim transformar a língua de destino” (Viveiros de Castro, 2015, p. 87). Tal raciocínio serve de introito às suas considerações sobre o perspectivismo ameríndio, um novo conceito - ou, melhor dizendo, um outro modo de pensar o pensamento selvagem - que toma o olhar do índio a partir de uma radical reversão. Assim, “[...] a teoria indígena do perspectivismo emerge de uma comparação implícita entre os modos pelos quais diferentes modos corporais (as ‘espécies’) experimentam ‘naturalmente’ o mundo como multiplicidade afectual” (Viveiros de Castro, 2015, p. 87). O que quer dizer: como o silvícola preza e dimensiona sua dor e prazer, como distingue o útil e o nocivo, e que afetos emprega para separar o justo do injusto, construindo a rede de seus significados e significações e lhes ajuntando quais elementos valorativos.

Esse novo patamar epistemológico deriva do turning point efetivado por Roy Wagner (2012WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify , 2012.), que inaugurou a chamada antropologia reversa, por intermédio do beneficiamento do ponto de vista do índio em relação àquele do branco. “O conceito antropológico de cultura, por exemplo, como argumentou Wagner, é o equívoco que surge como tentativa de solução para a equivocidade intercultural; e ele é equívoco na medida em que se assenta no ‘paradoxo gerado pelo ato de imaginar uma cultura para pessoas que não a concebem para si mesmas’” (Viveiros de Castro, 2015, p. 93). O que aqui se entende é que o jesuíta tomou o índio não como Outro, mas como o seu inverso, o negativo de si próprio, motivo pelo qual deveria ser catequizado - devolvido e reintegrado - às normas que regiam seu próprio logos. Esse é o equívoco antropológico aqui em evidência. Pois,

[...] um equívoco não é um erro, um logro ou uma falsidade, mas o fundamento mesmo da relação que o implica, e que é sempre uma relação com a exterioridade. Um erro ou um engano só podem se determinar como tais dentro de um mesmo ‘jogo de linguagem’, ao passo que o equívoco é o que se passa no intervalo, o espaço em branco entre jogos de linguagem diferentes (Viveiros de Castro, 2015, p. 92).

É o que se pode verificar naquela tradução-traição-adaptação efetivada por José de Anchieta, ao criar um logos até então inexistente, uma língua repleta de termos equívocos quer na língua original quer na de destino, tais como Tupansy, Pai-Guaçu ou Tupãoka, quer em sua dramaturgia quer em sua Gramática Tupi.

A atual transversalização entre antropologia e filosofia intenta uma descolonização permanente do pensamento, como grifa Viveiros de Castro, restando, então, perguntar: qual filosofia possibilita essa transversalização? Qualquer uma que equacione e valorize o princípio da diferença.

Se o teatro de Anchieta é uma contínua exortação aos bons costumes, a Deus e aos sagrados poderes do catolicismo, em permanente combate contra diabos, pajés e xamãs que instam o índio a perseverar no pecado, é porque ele almeja, por meio do mimismo empregado, produzir novas almas ou reconverter as desviadas. Mas ele não contou - e foi surpreendido - com as novas representações que os índios empreenderam, devolvendo com juros e correção monetária aquela lição que se recusaram a seguir: a criação da santidade. Mas, para situar o que veio a ser essa santidade, é necessário antes a referência aos ritos originais de onde ela emergiu e, na sequência, ressemantizou e ressignificou.

Reportados por alguns testemunhos de viajantes que estiveram no Brasil quinhentista (André Thevet, Hans Staden, Jean de Léry, mas também frequentes nas cartas de missionários e no relato de Gandavo), os ritos indígenas originais eram complexos, comandados por xamãs, cujo núcleo se organizava em torno da Terra sem Mal e da memória da morte produzida pelos guerreiros que levaram seus inimigos à devoração antropófaga. Ocorriam sazonalmente e sua preparação podia levar semanas, mobilizando toda a tribo. Ronaldo Vainfas (1995VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras , 1995. ) explorou bem sua ocorrência, e todos os detalhes aqui reunidos provém de seu estudo.

É possível se tentar uma síntese dessa performance, destacando seus elementos cerimoniais e de teatralidade mais significativos. O rito era anunciado de tempos em tempos por pajés que circulavam de tribo em tribo, chamados caraíbas ou carais, tomados como elos com o sagrado e, por isso mesmo, com livre acesso às comunidades inimigas inclusive. A festa principiava com a confissão das mulheres (somente elas), após a qual dançavam em frenesi e terminavam caídas no chão, a boca espumando. Numa maloca especial, antes totalmente esvaziada, reuniam-se os guerreiros, dançando e cantando, cada qual portando seu maracá, levando presentes ao pajé, sentado e fumando grosso charuto de fumo. Prestavam culto ao maracá do pajé, uma cabaça moldada como figura humana, adornada de penas de arara e sementes, em cujo interior pedrinhas ou grãos de milho se incumbiam de reverberar sons. Agitados continuamente por todos, os maracás induziam ao transe. Seu poder era absoluto como instrumento de comunicação com os mortos, entidades celestes e sobre-humanas, levando o pajé a iniciar as prédicas que exortavam a bravura dos guerreiros e seus percursos em direção à Terra sem Mal. Aos poucos, os demais participantes, que dançavam, tremiam e simulavam tombos, em pé e em massa compacta formando uma roda, iam se contaminando pelos eflúvios e adentrando o mundo espectral daquele almejado paraíso. Segundo Thevet, o espírito se manifestava por intermédio de pios e assovios. Saindo da maloca, o cortejo agora envolvia toda a tribo, sendo os maracás fincados no chão entre as cabanas. Enquanto o pajé continuava suas exortações no centro do terreiro, homens, mulheres e crianças se entregavam à beberagem, à dança e aos cantos coletivos, que podiam durar horas.

Se esses são seus grandes traços, não é o ritual em si que aqui interessa, mas seus desdobramentos, seus entrecruzamentos efetuados após a catequese e o teatro jesuítico, quando adquiriram novos conteúdos que o deslocaram para outro lugar, passando a ser conhecido, propriamente, por santidade. É indispensável lembrar que, após os contatos amigáveis das primeiras décadas, os portugueses, sobretudo após a instalação do primeiro Governador Geral, iniciaram o apresamento indígena para servir quer à lavoura extrativa quer à plantation dos canaviais. Especialmente após Mem de Sá, o apresamento se intensificou, e algumas notícias falam em mais de 130 aldeias por ele destruídas nos arredores de Salvador. Se a guerra injusta era aquela que promovia matanças para tomar as terras e afugentar os remanescentes para o interior, a guerra justa era a que arrebanhava a indiada para as fazendas e para os aldeamentos supervisionados pelos jesuítas, nome que designa aqui o que foram as missões entre os espanhóis. Neles, os padres reuniam multidões de indígenas, de modo a facilitar e expandir a conversão. O indômito Mem de Sá mereceu um poema laudatório de Anchieta, denominado De Gestis Mendi Saa.

Em muito pouco tempo a prática do aldeamento se evidenciou um insucesso: muitas mortes por doenças, incompatibilidade dos índios para a vida sedentária, resistência em seguir hábitos e horários, bem como as condutas cristãs preconizadas pelos padres, ocasionando improdutividade generalizada. Por outro lado, as fugas eram frequentes, e vários núcleos de resistência começaram a se organizar, reunindo fugitivos indígenas e negros. É exatamente em um desses núcleos que surgiu uma santidade, objeto da análise de Vainfas (1995VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras , 1995. ). O processo, bem documentado, está ligado à visitação do Santo Ofício, entre 1591 e 1595, instalado em várias cidades do Nordeste. O principal denunciado, Fernão Cabral de Taíde, era um fidalgo português com amplas propriedades no Recôncavo baiano e que atraiu para suas terras uma santidade indígena, a qual não apenas protegeu como integrou.

Chamada caraimonhaga ou acaraimonhag, a Santidade de Jaguaripe, a exemplo do que acontecia em outras da mesma índole, forjou um sincretismo entre os primitivos ritos autóctones e os autos encenados e missas rezadas pelos padres, com o objetivo de promover a Terra Sem Mal, emendar a lei dos cristãos, fazer com que os indígenas se tornassem senhor de seus senhores, inaugurando uma idolatria antiescravista. Aqueles que dela se recusassem a participar eram amaldiçoados. Conduzida pelo índio Antônio, um indivíduo convertido e batizado pelos padres, ele se autoproclamava deus e senhor do mundo, assumindo-se ora como Tamandaré, o mítico deus Tupinambá que escapara ao dilúvio, ora como o próprio Noé bíblico. Assim como os caraíbas terrenos, tinha várias mulheres e filhos. É notável como tal figura sincrética - Antônio, Tamandaré, Noé - reunia em si diversas narrativas míticas existentes, mas pessoalizadas à sua imagem e semelhança. Considerava a Santidade a verdadeira Igreja, proclamando-se papa, a única capaz de levar seus devotos à Terra sem Mal. Em seu pontificado particular nomeou bispos, vigários e sacristãos, presidiu cerimônias de batismo, deu nomes de santos a todos.

Nos depoimentos inquisitoriais compulsados por Vainfas, são inúmeras as menções às índias Santa Maria na Santidade de Jaguaripe, ora tomadas como a mulher do papa, ora a mãe de todo mundo, ambiguidade que informa uma vez mais o peculiar amálgama cultural ali verificado. Uma delas foi a fundadora da nova santidade nas terras de Fernão Cabral de Taíde, origem de todo o processo inquisitorial, novo território para aquela corte celeste integrada por Noé, Antônio, Tamandaré, o papa tupi, Santa Maria Mãe de Deus, a Senhora Tupansy - fazendo o teatro de Anchieta ser repovoado por outra galeria de criaturas e outros enredos, excepcional exemplo de antropologia reversa.

O rebatismo era a porta de entrada na seita, rito necessário para despossuir o índio e o negro antes cristianizados, efetivado com um prato de água benta ou um rolo de fumo. O tugipar, nome do templo ocupado pela santidade, possuía uma cruz de madeira no terreno e uma ampla maloca, e dentro dela havia um ídolo incerto, uma cara figurada com olhos e nariz, recoberta com paninhos velhos, alusões difusas de testemunhas perante o Santo Ofício.

Não cabe aqui esmiuçar todos os desdobramentos envolvendo as santidades, senão verificar o quanto suas existências derivam das práticas rituais e teatrais jesuíticas. É possível falar em mestiçagem, bricolagem, fronteirização - mas, sobretudo, em carnavalização − a propósito desses contínuos processos dialógicos de inversões, destronamentos, iconoclastias e pastiches − ainda que os elementos cômicos estivessem ausentes, porque se verificam os procedimentos centrais que a estruturam7 7 Em outra direção, mas dentro desse mesmo universo, Laura de Melo e Souza investigou vários casos levados ao tribunal, envolvendo apostasias e, notadamente, conspurcações de símbolos sagrados, como crucifixos enterrados em latas de açúcar, em fezes; ou a substituição da hóstia por farinha de tapioca ou abóbora, entre outros. A novidade de sua análise está no que ela denominou divinização do universo econômico, no qual, ao invés da costumeira demonização dos atos e gestos se verifica, em contrapartida, uma tentativa de cristianizar os elementos profanos, em geral associados às culturas indígenas. Para detalhes e aprofundamentos, ver Melo e Souza (1986), O Diabo na Terra de Santa Cruz. A carnavalização, por sua vez, como conceito, provém da obra de Mikhail Bakhtin (1987), A cultura na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. . E, acima de tudo, colocar em relevo os percursos paradoxais - míticos, semânticos, práticos e pragmáticos − que as relações interculturais podem induzir e promover, engendrando a complexa rede que institui o tecido sociocultural, notadamente quando verificado em oposição ao logos perseguido pela civilização branca europeia.

Outra dimensão a ser destacada, agora em relação à repressão de tais desvios, está associada à necessária manutenção de sua identidade religiosa e cultural por parte da Coroa: à medida que se desmanchavam os ritos, os mitos e os costumes lusitanos, a própria ideia de colonização entrava em colapso, o que justificava, portanto, o cerrado combate levado a efeito contra todas as heresias, pastiches e desvirtuamentos efetivados quer no plano pessoal quer social.

As santidades forneceram, em grande medida, bases operativas a todos os profetismos e messianismos que se incrustaram na cultura brasileira, observáveis ao longo dos séculos, em sua atávica aderência à luta antiescravista e antioligárquica. Em modo mais próximo a nós, movimentos proféticos e messiânicos foram flagrados no teatro, como em Vereda da Salvação, de Jorge Andrade, 1964, focada sobre episódios ocorridos na fazenda São João da Mata, no município de Malacacheta, Minas Gerais. Três monges, denominados José Maria, estiveram à frente dos episódios ocorridos no Contestado, outro surto derivado do profetismo duramente reprimido na batalha final de Irani, em Santa Catarina, em 1912. Esse entrecho, no teatro, foi primeiramente tratado por Romário José Borelli, em 1972. E, já neste século, o messianismo volta à cena em cinco espetáculos comandados por José Celso Martinez Corrêa com o Teatro Oficina, entre 2002 e 2007, extraídos da monumental obra de Euclides da Cunha, Os Sertões, que evocaram as investidas das tropas governamentais contra os arraiais onde pregou Antônio Conselheiro.

Todas elas foram realizações que reverberaram, ainda que de modo esquivo, tangencial e inteiramente desfocado, êmulos desentranhados do teatro de Anchieta.

Referências

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  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais. São Paulo: Cosac Naify , 2015.
  • WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify , 2012.
  • 1
    A beatificação só irá ocorrer em 1980, pelo papa João Paulo II, e a canonização em 2014, pelo Papa Francisco.
  • 2
    Uma edição mais recente e aqui referida é a tradução versificada, introduzida e anotada por Armando Cardoso SJ, Teatro de Anchieta (1977ANCHIETA, Joseph de. Teatro de Anchieta. Tradução, introdução e notas: Armando Cardoso, SJ. São Paulo: Loyola, 1977.).
  • 3
    Os Exercícios Espirituais constituem uma sequência de atividades devotas e orações programadas a serem desenvolvidas pelo praticante sob a direção de um ministrante, destinados a revelar o poder e a imensidão do amor de Cristo. Foram concebidos e estruturados pelo fundador da Companhia de Jesus, Ignácio de Loyola, como uma prática indispensável a todos os fiéis que desejassem, efetivamente, encontrar a divindade, publicado pela primeira vez em 1548. Ver Loyola (1966), Exercícios Espirituais.
  • 4
    A Pastoral Operária consistiu em uma iniciativa da Igreja Católica, ao longo da ditadura militar, para amparar os movimentos populares em suas lutas sindicais, promovendo uma ação ao mesmo tempo teológica e humanitária.
  • 5
    A frase, creditada a Francis Jennings, é retomada por Manuela Carneiro da Cunha, em Índios no Brasil (Cunha, 2012CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2012., p. 19).
  • 6
    Perspectivismo é qualquer doutrina que afirma ser o conhecimento parcial (mas nem por isso falso), limitado e determinado pela perspectiva segundo a qual cada sujeito vê o mundo. O etnólogo Eduardo Viveiros de Castro forjou o termo perspectivismo ameríndio para designar a cosmologia Tupinambá. Tal conceito será explorado a seguir. Tupinambá enfeixa todas as etnias habitantes da costa brasileira no período da colonização que, a despeito de suas diferenças, falavam uma mesma língua geral.
  • 7
    Em outra direção, mas dentro desse mesmo universo, Laura de Melo e Souza investigou vários casos levados ao tribunal, envolvendo apostasias e, notadamente, conspurcações de símbolos sagrados, como crucifixos enterrados em latas de açúcar, em fezes; ou a substituição da hóstia por farinha de tapioca ou abóbora, entre outros. A novidade de sua análise está no que ela denominou divinização do universo econômico, no qual, ao invés da costumeira demonização dos atos e gestos se verifica, em contrapartida, uma tentativa de cristianizar os elementos profanos, em geral associados às culturas indígenas. Para detalhes e aprofundamentos, ver Melo e Souza (1986MELO E SOUZA, Laura de. O Diabo na Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras , 1986.), O Diabo na Terra de Santa Cruz. A carnavalização, por sua vez, como conceito, provém da obra de Mikhail Bakhtin (1987BAKTHIN, Mikhail. A Cultura na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987. ), A cultura na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2018
  • Aceito
    23 Out 2018
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