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Dando Forma ao Corpo Vivo: paradigmas do soma e da autoridade em escritos de Thomas Hanna

Resumo:

Este artigo delineia alguns aspectos das estratégias discursivas adotadas por Thomas Hanna para legitimar a Somática - assim como seu próprio método - aos olhos da comunidade científica. A noção de soma e as representações de suas funções serão reconhecidas no âmago desta questão. Para enfatizar o persistente risco de dogmatismo da retórica científica, assim como sua influência na configuração de discursos somáticos, recorre-se principalmente à epistemologia radical de Isabelle Ginot e à perspectiva crítica de Martha Eddy.

Palavras-chave:
Hanna; Somática; Epistemologia Radical; Soma-estética; Discurso Científico

Abstract:

This article outlines some features of the discursive strategies adopted by Thomas Hanna in order to legitimate Somatics - as well as his own method - in the eyes of the scientific community. The notion of soma and the representations of its functions will be recognized at the core of this issue. In order to stress the enduring risk of dogmatism of the scientific rhetoric to our days, as well as their influence on the configuration of somatic discourses, I will be mainly referring to Isabelle Ginot's radical epistemology and Martha Eddy's critical perspective.

Keywords:
Hanna; Somatics; Radical Epistemology; Soma-aesthetics; Scientific Discourse

Résumé:

Cet article se propose de tracer les contours d'un ensemble de stratégies discursives à l'œuvre dans les écrits Thomas Hanna, mises en place pour légitimer le champ de la Somatique - ainsi que sa propre méthode - dans le milieu scientifique. La notion de soma et les représentations de ses fonctions sont mises au centre de cette question. Pour mettre en évidence le risque constant de dogmatisme dans la rhétorique scientifique, ainsi que son implication dans la construction des discours somatiques, les références fondamentales de l'analyse sont constituées par l'épistémologie radicale d'Isabelle Ginot et par la perspective critique de Martha Eddy.

Mots-clés:
Hanna; Savoirs Somatiques; Epistémologie Radicale; Soma-esthétique; Discours Scientifique

Introdução

Ao observar de perto tanto os escritos dos profissionais praticantes como as fontes e especulações científicas, depois de mais de um ano de orientação, descobri que optar por investigar o chamado campo somático por meio de suas fontes escritas não necessariamente gera uma definição de minha pesquisa em si. Isso ficou claro para mim assim que eu descobri que uma perspectiva histórica e crítica em Somática não é muito, ou não exclusivamente, incluída na definição de Somática como um campo institucionalizado - nem como uma constelação de movimentos e abordagens independentes. Em ambos os casos, são oferecidas as condições necessárias para uma investigação preliminar, condições que, ao final, provam ser insuficientes e muito insatisfatórias. Academicamente falando, um primeiro problema em jogo pode ser referido como uma pesquisa sobre somatic knowledge20 1 Tradução inglesa de Savoirs Somatiques, noção adotada atualmente por Isabelle Ginot em suas aulas. Ginot é professora no Département de Danse, Université Paris 8, França, além de profissional de Feldenkrais. Desde 2007, Ginot dirige Soma&Po. Somatiques, Esthétiques, Politiques, um eixo de pesquisa dedicado à pesquisa e à epistemologia somática. Vou lembrar de seus estudos com frequência durante todo o texto. [saberes somáticos] e o processo de sua validação teórica e institucional dentro de sua variada comunidade. Sendo a definição o objetivo, aqui é dado um passo a frente. Apontando para as entidades múltiplas que a informam, assim como seu emergir das experiências corporais, a expressão somatic knowledge inibe parcialmente a tentação de reduzir diversos métodos práticos em um único modelo teórico. Além disso, ela ajuda a compreender tal modelo como originário de experiências irredutíveis e aparentemente individualistas, diferindo em tempo e espaço e se estendendo do fim do século XIX até nossos dias. Certamente, a pluralidade fenomenológica da Somática parece confirmada, graças a um número crescente de relatos experienciais de exploração de práticas somáticas no contexto das artes cênicas e da educação (Fortin; Long; Lord, 2002FORTIN, Sylvie; LONG, Warwick; LORD, Madeleine. Three Voices: researching how somatic education informs contemporary dance technique classes. Research in Dance Education, v. III, n. 2, p. 155-179, summer 2002.; Fortin; Vieira; Tremblay, 2009FORTIN, Sylvie; VIEIRA, Adriane; TREMBLAY, Martyne. The Experience of Discourses in Dance and Somatics. Journal of Dance and Somatic Practices , v. I, n. 1, p. 47-64, spring/summer 2009.; Weber, 2009WEBER, Rebecca. Integrating Semi-structured Somatic Practices and Contemporary Dance Technique Training. Journal of Dance and Somatic Practices , v. I, n. 2, p. 237-254, 2009.). Muitas vezes, o foco principal desses escritos consiste em demonstrar a relevância que as disciplinas da Somática têm na prevenção de lesões e no refinamento das habilidades sensitivas dos performers. Não obstante, até recentemente, poucos deles tentaram expressar o lado epistemológico das abordagens somáticas e sua configuração quando aplicadas em outros contextos do cuidado (Bottiglieri, 2013BOTTIGLIERI, Carla. Soigner l'Imaginaire du Geste: pratiques somatiques du toucher et du mouvement. Chimères: revue des schizoanalyses fondée par Gilles Deleuze et Félix Guattari, n. 78, p. 113-128, 2013.; Bottiglieri; Ginot; Salvatierra, 2013BOTTIGLIERI, Carla; GINOT, Isabelle; SALVATIERRA, Violeta. Du Bien être au Devenir Subjectif. In: FLORIN, Agnès; PRÉAU, Marie (Ed.). Le Bien Être. Paris: L'Harmattan, 2013. P. 247-257.; Ginot, 2012GINOT, Isabelle. Body Schema and Body Image: at the crossroad of somatics and social work. Journal of Dance and Somatic Practices , v. III, n. 1&2, p. 151-165, 2012. Available at: <http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur_bibliographie.php?cc_id=4&ch_id=11>. Accessed on: 05 Oct. 2014.
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, 2013GINOT, Isabelle. Écouter le Toucher. Chimères: revue des schizoanalyses fondée par Gilles Deleuze et Félix Guattari , n. 78, p. 87-100, 2013.). No geral, acaba de surgir uma análise crítica do que induz os discursos somáticos a presumirem o funcionamento (homogêneo) dessas disciplinas21 2 Esses últimos tópicos, em particular, estão atualmente dispersos em diversos estudos e falta coesão em seu tratamento teórico. Assim, utilizarei alguns estudos franceses como embasamento e me referirei à definição de Somática de Ginot como "[...] um aparato conceitual que melhora nossa compreensão de pedagogia, saúde do dançarino e estética corporal e gestual [e que] se apresenta como uma modalidade empiricamente embasada de pensamento corporal cujo discurso se baseia fortemente na tradição oral" (Ginot, 2010, p. 12-13). Tais disciplinas - expostas nos capítulos seguintes - são correntes principalmente em países desenvolvidos (ditos ocidentais). Frequentemente se entrelaçam com uma diversidade de nichos nas artes, na prática física, na educação e na atenção à saúde relacionada a abordagens holísticas. Usualmente compreendem a si mesmas como complementares ou alternativas a protocolos dominantes - a saber, tradições médicas e psicanalíticas, bem como pedagogia e estética corporal (Ginot, 2010, p. 12-18). .

Uma investigação de alguns textos somáticos teóricos e dos estudos sobre o desenvolvimento da Somática como um movimento, cujos autores também são praticantes, pode esclarecer alguns pontos. Avaliando a Somática como um movimento abrangente e eclético, o primeiro passo é encarar as contradições, tensões e incoerências epistemológicas. Para fazê-lo, apontarei alguns dos aspectos que foram, até agora, considerados como fundamentos, ou melhor, argumentos estratégicos, na introdução de teorizações da Somática no discurso escrito, científico e acadêmico. Ao invés de tentar esgotar o tema, essa escolha permite destacar parcialidades e dogmatismo, além de fatos, nomes e convergências éticas. Todos esses elementos efetivamente intentam a articulação entre a atual política de identidade e a circulação de conhecimento embasado na prática corporal. Em resumo, uma investigação como esta pode oferecer um esboço das estratégias adotadas por práticas somáticas para enfrentar economias euro-americanas de conhecimento e mercado, pelo menos desde a eclosão da contracultura na década de 1970, para a qual a ideologia Somática parece voltar a olhar.

Sobre Modelo e sua Necessidade

Conforme Isabelle Ginot observou, faltam à Somática definições conceituais sólidas de suas próprias características gerais (Ginot, 2010, p. 13). Aparentemente, a fonte do problema está nos discursos somáticos que cada prática produz, às vezes circulando no campo somático para além de suas próprias comunidades de profissionais, discípulos ou pacientes22 3 Isabelle Ginot define como discursos somáticos endógenos aqueles que são desenvolvidos em um contexto de prática somática. Geralmente são direcionados tanto a clientes (ou pacientes) como a discípulos e se embasam em, ou são engajados pelos fundadores de métodos somáticos para explicar a natureza de seu trabalho e valores. A circulação de grande parte destes discursos ocorre oralmente, embora os escritos dos fundadores somáticos continuem sendo a principal referência tanto para o "público geral" como para a comunidade de profissionais (Ginot, 2010, p. 13). . Com a finalidade de explicar e legitimar a si mesmas, geralmente as práticas somáticas são embasadas tanto em esforçadas definições tautológicas como em "pensamentos do universal" (Ginot, 2010GINOT, Isabelle. From Shusterman's Somaesthetics to a Radical Epistemology of Somatics. Dance Research Journal , v. 42, n. 1, p. 12-29, summer 2010. Available at: <Available at: http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur_bibliographie.php?cc_id=4&ch_id=11 >. Accessed on: 05 Oct. 2014.
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, p. 23). Assim, seus discursos endógenos engajam laços ambivalentes com a retórica da ciência, a pesquisa e o envolvimento pessoal de seus fundadores, os estudos de caso e as metáforas (ou exemplos) que apresentam (Ginot, 2010, p. 13-17). Essa questão se complexifica quando abrange textos publicados - a saber, os escritos dos pioneiros somáticos - que geralmente afirmam provar a validade científica das práticas que apresentam:

A função da ciência na Somática é promover uma crença. Enquanto a prática somática expõe incessantemente a diferença e a natureza imaterial e evasiva da percepção, o discurso científico inscreve a vertiginosa experiência individual em uma esfera ampla cuja uniformidade promove a generalização. A Somática induz a acreditar na natureza 'científica', no universal e 'comprovável' da experiência para oferecer um contexto coletivo estável para o que fundamentalmente é uma experiência instável, altamente individualizada (Ginot, 2010GINOT, Isabelle. From Shusterman's Somaesthetics to a Radical Epistemology of Somatics. Dance Research Journal , v. 42, n. 1, p. 12-29, summer 2010. Available at: <Available at: http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur_bibliographie.php?cc_id=4&ch_id=11 >. Accessed on: 05 Oct. 2014.
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, p. 15).

Além disso, subtraída de um contexto gerador, a somática transforma-se em um a priori conceitual, uma categoria que abriga a lógica e a economia da simplificação tanto quanto procura transmitir a ecologia da prática no discurso. Especialmente as teorias evolucionistas são, em geral, usadas para alcançar esse intento (Ginot, 2010GINOT, Isabelle. From Shusterman's Somaesthetics to a Radical Epistemology of Somatics. Dance Research Journal , v. 42, n. 1, p. 12-29, summer 2010. Available at: <Available at: http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur_bibliographie.php?cc_id=4&ch_id=11 >. Accessed on: 05 Oct. 2014.
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, p. 14-15).

Este artigo aborda esse aspecto epistemológico por meio do estudo de alguns discursos somáticos por escrito. Tentarei desvelar algumas estratégias (ou técnicas, para citar Ginot) discursivas ligadas à extração da Somática de seu contexto empírico, bem como diversos aspectos específicos relacionados à natureza de cada estratégia. Mais especificamente, enfatizarei nos estudos de caso que seguem, por um lado, o uso persistente dessas técnicas em perfis atuais do campo somático e, por outro, a articulação e o uso de seus principais componentes filosóficos e epistemológicos. Para fazê-lo, vou me reportar a alguns estudos histórico-críticos recentes e, principalmente, a alguns escritos somáticos originados de sua primeira teorização na década de 1970.

O caso de abertura refere-se à descrição da gênese cultural, do desenvolvimento inicial e da institucionalização da Somática feita por Martha Eddy23 4 Martha Eddy, RMST [Terapeuta Registrada de Movimento Somático], CMA [Analista do Movimento Certificada], DE-SMTT [Diretora da Incorporação Dinâmica - Treinamento em Terapia do Movimento Somático], é profissional, ativista e pesquisadora norte-americana da Somática. Obteve seu doutorado em Ciência e Educação da Dança no Teachers College, Columbia University (1998) e treinou com Bonnie Bainbridge Cohen em Body-Mind Centering(r), além de Ingmard Bartenieff em Fundamentos de Bartenieff. Atualmente Eddy está baseada em Nova Iorque, onde fundou o Center for Kinesthesic Education (CKE) e dirige seu próprio programa de Educação do Movimento Somático. É também codiretora de financiamento do Moving On Center - The School of Participatory Arts and Research em Oakland, Califórnia. Informações adicionais podem ser encontradas no site do CKE. . Pela perspectiva do ativismo e da ecologia somática, relembrarei estudos de Eddy na seção central do texto, na qual tentei elaborar uma análise radical dos escritos iniciais de Thomas Hanna. Focalizarei o deslocamento linguístico de Hanna na expressão de seus fundamentos teóricos, isto é, soma como corpo vivo e Somática como o campo exclusivo que aborda seu estudo por um ponto de vista subjetivo24 5 De acordo com Ginot, os textos publicados pertencem à terceira esfera da produção do discurso somático em escritos endógenos, incluindo escritos dos profissionais fundadores. Esses textos abordaram principalmente a legitimação de suas práticas e conhecimento pelo discurso científico e/ou narrativa experiencial. De maneira interessante, Ginot acrescenta: "A necessidade de reduzir esses dois modelos aparentemente polares a um único uso ou função constitui o paradoxo mais proeminente no discurso somático. Thomas Hanna (1995) e Carl Ginsburg (1996) descreveram esse paradoxo em termos de conflito entre descrição objetiva e subjetiva, questionando a compatibilidade da abordagem 'científica' e a abordagem objetiva ao conhecimento subjetivo da Somática. Porém o fizeram com respeito às relações entre as ciências e a Somática, e suas observações não levaram em conta a contradição interna aos discursos somáticos" (Ginot, 2010, p. 18). (Hanna, 1976HANNA, Thomas. The Field of Somatics. Somatics: magazine-journal of the bodily arts and sciences, v. I, n. 1, p. 30-34, autumn 1976. Available at: <Available at: http://somatics.org/library/htl-fieldofsomatics.html >. Accessed on: 02 Oct. 2014.
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, 1985).

A epistemologia radical de discursos somáticos endógenos de Ginot fornece as principais ferramentas metodológicas para esta análise, permitindo focalizar as marcas que tanto o ativismo de Eddy como o de Hanna deixam nos seus textos. A proposta de Ginot consiste na articulação do questionamento em três eixos: a análise dos modos de eficácia dos discursos, ou o imaginário do corpo subentendido pelos escritos; o questionamento de seu status como "conhecimento alternativo"; a individuação de deslocamentos normativos a partir desse modelo alternativo (Ginot, 2010GINOT, Isabelle. From Shusterman's Somaesthetics to a Radical Epistemology of Somatics. Dance Research Journal , v. 42, n. 1, p. 12-29, summer 2010. Available at: <Available at: http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur_bibliographie.php?cc_id=4&ch_id=11 >. Accessed on: 05 Oct. 2014.
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, p. 22). Focalizarei, embora não exclusivamente, os últimos dois eixos e enfatizarei o papel da ciência, bem como a autoridade dos pioneiros somáticos no processo de dar forma à Somática como um campo unificado.

Além disso, as contradições discursivas serão consideradas tão aceitáveis quanto "momentos efêmeros" de compreensão (Eddy, 2009EDDY, Martha. A Brief History of Somatic Practices and Dance: historical development of the field of somatic education and its relationship to dance. Journal of Dance and Somatic Practices, v. I, n. 1, p. 5-27, spring/summer 2009., p. 23-25) e, portanto, elaboradas por uma abordagem analítica. Em outros termos, reconhecendo a continuidade entre a prática somática e o discurso somático (escrito), considero os textos de Eddy e, sobretudo, os textos de Hanna como formas específicas de escritos fundantes. Assim, eu os avaliarei não somente por sua adequação aos padrões acadêmicos de validade, mas também por sua natureza como performance e pelas consequências hermenêuticas que produzem ao se dirigirem ao receptor - pois, como Ginot observa, suas técnicas discursivas estão profundamente enraizadas nos sistemas de crenças que informam tanto o contexto como as palavras da prática somática:

Os discursos somáticos, portanto, devem ser lidos como discursos performativos, situados em um contexto preciso e, com isso, objetivando alcançar uma eficácia igualmente precisa. Nesse sentido, os discursos somáticos não estão à parte das práticas que os engendram. Seu valor não é universal, mas sim isolado, e sua validade só pode ser medida pelo efeito que produzem em determinado sujeito ao se encontrar em determinado contexto. Os discursos somáticos constituem técnicas físicas tanto quanto as práticas dos quais emanam. [...] os discursos somáticos endógenos têm uma função estritamente performativa como técnicas do corpo, e sua única função é contribuir para a eficácia do gesto somático25 6 Ginot recorda a posição de Basile Doganis, embasada em um questionamento da teorização em artes marciais, de acordo com a qual a "[...] crença é parte integrante do gesto somático em si" (Ginot, 2010, p. 18). Entretanto, deve ser observado que, em minha análise, a correspondência estrita de Ginot entre escritos somáticos e técnicas do corpo é menos imediata ou, pelo menos, evidente. De fato, os textos que abordarei não estão orientados para esboçar o funcionamento de práticas específicas, ainda que aqueles que constituem o embasamento de seus autores inevitavelmente interfiram no discurso. (Ginot, 2010GINOT, Isabelle. From Shusterman's Somaesthetics to a Radical Epistemology of Somatics. Dance Research Journal , v. 42, n. 1, p. 12-29, summer 2010. Available at: <Available at: http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur_bibliographie.php?cc_id=4&ch_id=11 >. Accessed on: 05 Oct. 2014.
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, p. 18).

Longe de sugerir que a escrita pode estar destituída de contingências, pretendo manter meu ponto de vista subjetivo tão explícito quanto possível na articulação do texto - sendo esta pelo menos a reação ética mais imediata à complexidade da investigação em si. Afinal, o objeto deste estudo é o campo somático ou o processo ficcional de construção de sua identidade? Minha postura estratégica se distanciará da dialética dual e aceitará a ambiguidade do "[...] 'tanto isto como aquilo' do processo somático" (Hanna, 1976HANNA, Thomas. The Field of Somatics. Somatics: magazine-journal of the bodily arts and sciences, v. I, n. 1, p. 30-34, autumn 1976. Available at: <Available at: http://somatics.org/library/htl-fieldofsomatics.html >. Accessed on: 02 Oct. 2014.
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, p. 31-32), mesmo encarando suas expressões sociais coletivas. A escolha de uma seleção curta de fontes possivelmente permitirá a articulação de argumentos mais refinados ao oferecer uma visão geral sem considerar nenhum esgotamento de cunho enciclopédico.

Intenções: a ficção holística de uma estirpe

O campo da 'somática' mal é um campo. Se visto necessariamente como um [...], como experiências individuais de e com o corpo vivo transformaram-se em um campo? (Eddy, 2009EDDY, Martha. A Brief History of Somatic Practices and Dance: historical development of the field of somatic education and its relationship to dance. Journal of Dance and Somatic Practices, v. I, n. 1, p. 5-27, spring/summer 2009., p. 6).

Nesta seção, introduzirei a perspectiva histórica de Martha Eddy a respeito do desenvolvimento inicial do campo somático. Enfatizarei a relevância de alguns argumentos oferecidos por Eddy para explicar a dimensão multicultural da Somática, assim como sua identidade altamente diversificada. A seguir, enfocarei os escritos de Thomas Hanna e destacarei a presença de posições similares. A principal questão não verificada, se não intocada, de ambas as fontes é a coexistência de experiências altamente individualistas e sua ligação sistêmica através do espaço e do tempo, aparentemente provocando as mesmas lutas e ideais. Pretendo começar pela curta citação na abertura deste capítulo, na qual Eddy explica seu ponto de vista ambivalente e formula uma pergunta cuja resposta ela, no fim, suspende.

Em primeiro lugar, o advérbio que Eddy adota - "mal" - é bem interessante: sinaliza uma tensão entre todos esses elementos e desperta curiosidade por algo mais, ainda latente no discurso. A Somática parece ser um campo, contudo per se funciona como se não o fosse, embasado em diversas experiências isoladas. Mesmo resistindo a uma determinação espaço-temporal a posteriori por causa de sua perspectiva ecológica, Eddy parece chegar a uma resposta - ou a uma dimensão pessoal fundamental de Somática? - ao abordar uma escala supra-humana (Ginot, 2010GINOT, Isabelle. From Shusterman's Somaesthetics to a Radical Epistemology of Somatics. Dance Research Journal , v. 42, n. 1, p. 12-29, summer 2010. Available at: <Available at: http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur_bibliographie.php?cc_id=4&ch_id=11 >. Accessed on: 05 Oct. 2014.
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, p. 15):

Adoecimentos, limitações físicas, [...] práticas espirituais por meio de viagens e transmigrações [criadas] separadamente, mas em um período comum de tempo, novas visões do comportamento humano [...] amor pelo movimento e curiosidade pelo corpo físico [que se combinou na] na formação independente de vários sistemas de investigação corporal na Europa, Estados Unidos e Austrália. Os desfechos positivos destas investigações credenciaram o processo a encontrar respostas às necessidades corporais e desejos comunicativos por meio de consciência corporal interna (Eddy, 2009EDDY, Martha. A Brief History of Somatic Practices and Dance: historical development of the field of somatic education and its relationship to dance. Journal of Dance and Somatic Practices, v. I, n. 1, p. 5-27, spring/summer 2009., p. 6).

O processo implícito em jogo nesse excerto não está confirmando as fontes internacionais - mais do que multiculturais - da Somática inicial. Ele consiste em admitir implicitamente a existência de um invisível, persistindo a ressonância de valores e intenções entre os indivíduos que realmente não encontraram, não se engajaram, nem confirmaram uma colaboração prolífica real. Mais precisamente, a intensidade dessa ligação parece não ser restrita à pesquisa coletiva pragmática e à prática nem mesmo dentro da pequena comunidade de discípulos ou pacientes de cada pioneiro. Seguindo essa suposição, agentes ecológicos aparentemente invisíveis induziriam a harmonização da sensibilidade subjetiva, de atitudes individuais e de outros fatores ainda não desvelados. Nos parágrafos seguintes, ficará mais claro que essa tese estava no núcleo da Somática inicial, pelo menos durante a primeira década de sua existência, da concepção à fundação.

Contudo, a citação de Eddy pode sugerir uma hipótese oposta: a Somática não é um campo em si, mas no fim funciona como se o fosse. Se fosse esse o caso, uma intenção precisa, a saber, o desejo de realizar um projeto predefinido, produziria uma convergência ficcional, mas eficaz, nas experiências isoladas, na sensibilidade subjetiva e nas atitudes individuais. Isso é o que aparece na pesquisa e no compromisso de Thomas Hanna, assim também revelando sua fonte primária nas metas do autor-e-profissional e um pertencimento epistemológico a sua assinatura performativa.

Não obstante, ambas as contradições parecem merecedoras de atenção, contanto que sejam compreendidas como pontos de partida para a resolução de problemas específicos, sejam eles legitimação teórica, padrões técnicos, status jurídico, ou controvérsias éticas. De fato, tanto quanto a experiência subjetiva, a formação científica e as preocupações éticas e filosóficas, os aspectos e definições profissionais são processos operantes e coexistentes, dando forma à configuração de disciplinas somáticas graças tanto ao engajamento individual como ao coletivo. Todos eles configuram formas de ativismo que os praticantes fundadores também tiveram que assumir e confrontar desde o começo. O ativismo e os problemas, por seu lado, têm mudado com o tempo - por essa perspectiva, a pesquisa de Eddy logo será uma referência valiosa.

A novidade da Somática e a divergência de protocolos legítimos requisitaram respostas com planos sólidos, inventividade e uma negociação constante com as economias competitivas de mercado e conhecimento. Todos esses aspectos materialistas, que na verdade fazem parte do profissionalismo do praticante, geralmente são omitidos nos escritos dos pioneiros. Ainda assim, em nosso caso, reemergem implicitamente como técnicas discursivas através da preocupação de Eddy com os deslocamentos normativos da Somática e com a proeminente evasão da delimitação cultural da dimensão somática no uso feito por Hanna da noção de soma em seus primeiros escritos sobre Somática. As estratégias discursivas de Hanna daquele período (em torno do fim da década de 1960 até a segunda metade da década de 1980) provocaram diversas preocupações estéticas e éticas, que serão retomadas na expressão institucional contemporânea do Movimento, da Terapia e da Educação Somática relativa à pesquisa de Eddy. Não obstante, Hanna deveria ser apresentado como uma estratégia entre outras. De fato, ele elaborou uma forma de prática e uma ideologia sobre fenômenos culturais preexistentes que, ao final, se tornaram dominantes; além disso, seu próprio engajamento na fundação do campo somático, embora muito melhor relatado, provavelmente foi influenciado por uma diversidade de fontes e propostas oriundas de outros ativistas e profissionais. Supostamente, Hanna os recolheu e os resumiu, mas, seguindo a postura que adota em seus artigos, provavelmente também falou em seu interesse e moldou, ou inibiu, outras possíveis expressões e potenciais26 7 A análise e até mesmo especulação sobre as características de organizações possíveis e não realizadas do campo somático está além dos limites deste texto. Não obstante, consigo encontrar um grande número de tópicos que se beneficiariam de uma análise pontual. Entre muitas outras, diversas questões estão relacionadas a vieses de gênero referentes a imagem do corpo, padrões de protocolo ou mesmo do bom movimento (Ginot, 2010, p. 20-21); as interferências de economias capitalistas e coloniais na gestão de fontes internas e heterogêneas da Somática; a hierarquia implícita dentro das práticas somáticas, de acordo com a autoridade dos fundadores e do grau de exposição aos meios que permitem que uma disciplina lide com sucesso tanto com o mercado como com o campo científico. . Consequentemente, mais do que esboçar o desenvolvimento da somática como um todo, esboçarei como Hanna foi particularmente eficaz e influente ao criar sua perspectiva, além da ficção da Somática como uma entidade uniforme.

Em seu volume mais importante, Bodies in Revolt (1970), Thomas Hanna inteligentemente definiu a Somática antes de tudo como um deslocamento epistemológico, um modo de pensar produzido por uma transformação da qualidade de consciência de alguém (Hanna, 1985HANNA, Thomas. Bodies in Revolt: a primer in somatic thinking. Novato: Freeperson Press, 1985 [1970].), ao invés de um grupo de métodos preexistentes para serem apenas montados e institucionalizados. Tal movimento parece estar longe de ser uma casualidade. De fato, é até mesmo concebível que nunca tivesse existido um movimento somático antes que Hanna introduzisse essa noção no fim da década de 1960. Além disso, ele se referiria explicitamente a diversos profissionais como pioneiros somáticos muito depois do desenvolvimento de seus métodos e até mesmo da morte da maioria deles (Hanna, 1995HANNA, Thomas. What is Somatics? In: JOHNSON, Don H. Bone, Breath and Gesture: practices of embodiment. Berkeley: North Atlantic Books, 1995. P. 341-332. Available at: <Available at: http://somatics.org/library/htl-wis1.html >, <Available at: http://somatics.org/library/htl-wis2.html >, <Available at: http://somatics.org/library/htl-wis3.html >, <Available at: http://somatics.org/library/htl-wis4.html >. Accessed on: 02 Oct. 2014.
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, p. 351). Ao contrário, como explicarei logo, uma diversidade de movimentos e abordagens técnicas realmente faria parte, ou seriam complementos externos, da instituição vindoura da Somática27 8 A fundação do campo remonta a 1976, juntamente com a primeira edição de The Somatics Magazine - Journal of the Bodily Arts and Sciences (Hanna, 1976, p. 32). A paternidade exclusiva de Hanna é aceita em geral como um fato. Ademais, a ausência de qualquer integração substancial de suas definições de soma e Somática até anos bem recentes parece sinalizar uma aceitação implícita e não questionada dos paradigmas de Hanna. .

Na década de 1970, Hanna cunhou o termo 'somática' para descrever e unificar esses processos sob uma rubrica. Filósofos e estudiosos no fim do século XX ajudaram a forjar o novo campo da Educação Somática. [...] a explosão global de comunicação e as mudanças culturais da década de 1970 estimularam um crescimento verificável da 'Somática' (Eddy, 2009EDDY, Martha. A Brief History of Somatic Practices and Dance: historical development of the field of somatic education and its relationship to dance. Journal of Dance and Somatic Practices, v. I, n. 1, p. 5-27, spring/summer 2009., p. 7).

Por um lado, profissionais e pensadores procurariam por modelos, referências e autoridades cujas características reconhecíveis e discursos teóricos conscientes poderiam ser articulados. Tradições, paradigmas e identidades seriam (re)tomadas, (re)configuradas tanto quanto fosse necessário. Por outro lado, a dialética inerente e as abordagens críticas cresceriam nas décadas seguintes, influenciadas especialmente por teorias feministas (Eddy, 2000EDDY, Martha. Access to Somatic Theory and Applications: socio-political concerns. In: CRONE-WILLIS, Juliette. Dancing in the Millennium: an international conference. Washington, D.C.: [s.n.], 2000. P. 144-148. Available at: <Available at: http://www.wellnesscke.net/downloadables/Access-to-Somatics.pdf >. Accessed on: 03 Oct. 2014.
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, 2009EDDY, Martha. A Brief History of Somatic Practices and Dance: historical development of the field of somatic education and its relationship to dance. Journal of Dance and Somatic Practices, v. I, n. 1, p. 5-27, spring/summer 2009.; Haraway, 1988HARAWAY, Donna. Situated Knowledges: the science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies, v. XIV, n. 3, p. 575-599, autumn 1988., 1991HARAWAY, Donna. Simians, Cyborgs, and Women: the reinvention of nature. New York: Routledge, 1991 [1990].; Stengers, 2003STENGERS, Isabelle. Cosmopolitiques. v. I. Paris: La Découverte, 2003.). Esses processos desencadearam, com maior evidência, o lado social e político das práticas somáticas e sua ética, produzindo mais transformações e diferenciações do campo.Atualmente, a expressão institucional mais recente do campo somático é a ISMETA, a International Somatic Movement Education and Therapy Association, fundada em 1988, na Califórnia, como International Movement Therapy Association (IMTA). Novamente, embora funcionando como uma entidade organizada, tentando definir padrões éticos e técnicos, a associação está longe de esgotar fenômenos somáticos, além de ser unitária. Desde o começo da década de 2000, Eddy vem refinando sua pesquisa pela descoberta de que "Atualmente as estirpes são mais complicadas" (Eddy, 2002, p. 47):

Em 2004, identifiquei que existem três ramos do mundo somático - psicologia somática, trabalho corporal somático e movimento somático (Eddy, 2004). Argumento que os profissionais da dança orientaram especialmente o desenvolvimento do movimento somático e o campo da Somatic Movement Education and Therapy (SME&T) [...] Somente a partir de Bonnie Bainbridge Cohen, nasceram seis novos [movimentos somáticos] em quatro países diferentes (Eddy, 2009EDDY, Martha. A Brief History of Somatic Practices and Dance: historical development of the field of somatic education and its relationship to dance. Journal of Dance and Somatic Practices, v. I, n. 1, p. 5-27, spring/summer 2009., p. 7-19).

De acordo com Eddy, "[...] atualmente existem mais de 37 programas de certificação do movimento somático" (Eddy, 2009, p. 15). Qual seria, então, a definição de soma e de Somática na atualidade - ou, mais corretamente, quais são as possíveis definições que eu deveria levar em consideração? De fato, para apresentar um esboço útil, enriquecedor do fenômeno, tal pesquisa tem que abordar, antes de tudo, a própria obsessão determinista. Modelos, necessidades e intenções operam, no campo somático como em qualquer outro, como estratégias epistemológicas culturalmente determinadas, tendenciosas. Aparentemente, foi assim que os questionamentos (inter)subjetivos conseguiram, no fim, produzir e desenvolver métodos e estéticas funcionais, cada um respondendo a um quadro sociocultural específico.

Autoridade e Ativismo

A chave para acessar um sistema complexo e compreender seu funcionamento pode ser encontrada nos detalhes. Reconhecendo o fato de que os termos soma e somática nunca tinham sido introduzidos nos escritos dos pioneiros, nem tinham eles adquirido seu sentido específico atual antes da definição de Hanna, algumas considerações preliminares deveriam ser expressas. Primeiramente, a autoridade forte - uma (auto)afirmação e uma marca individual forte - parece estar na fonte do campo somático como o conhecemos. Agora fica claro que, do ponto de vista de Hanna, a existência de autoridades legitimadoras é de vital importância para a autodeterminação do campo. Se assim for, como sua atitude como profissional e autor influencia discursos somáticos?

Pelo menos na fase inicial da instituição da Somática, os escritos teóricos de Hanna objetivam funcionar como um centro de gravidade para uma variedade extrema de práticas, profissionais e pesquisas. Tudo isso começa a orbitar em torno de maneira mais ou menos espontânea para ser dada voz e legitimação, além de participar de um projeto aparentemente coletivo. Esse aspecto traz ao nosso discurso uma primeira ordem de implicações éticas e complicações práticas que serão consideradas em seguida:

[...] a respeito da dissolução de qualquer visão potencialmente monolítica da história e da etiologia da 'somática', bem como de aplicações do movimento somático na dança, [deve ser observado que] uma parte do desenvolvimento histórico do campo da 'somática' envolveu escolhas para adquirir um tipo de meta-visão; uma visão que se afasta de culturas distintas e investiga o organismo individual separado de qualquer identidade além daquela de ser humano (Eddy, 2002EDDY, Martha. Somatic Practices and Dance: global influences. Dance Research Journal, v. XXXIV, n. 2, p. 46-62, autumn 2002. Available at: <Available at: http://www.wellnesscke.net/articles/globalinfluences.pdf >. Accessed on: 03 Oct. 2014.
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, p. 2).

É inegável que Hanna pretendia responder a essa necessidade de organização criando estética, ética e formas de aliança legítimas em comum. Essa era, de fato, sua forma de ativismo e o âmbito primário de seus escritos teóricos iniciais. Por outro lado, ao fazê-lo, Hanna intentou e catalisou a constituição de posturas essencialistas, que persistem até hoje28 9 Recordando uma vez mais a pesquisa de Ginot, podem ser resumidas como posições essencialistas sobre a dimensão orgânica, natural do corpo (Ginot, 2010, p. 23); sobre a autoridade do mestre e a referência funcional científica - papéis que em Hanna parecem convergir; sobre a natureza da Somática em si, como uma modalidade subjetiva de conhecimento científico que pode ser abstraída de seu contexto situado de produção. Um caso recente e muito relevante que Ginot considera é a somaesthetics de Richard Shusterman (Shusterman, 2008; Ginot, 2010, p. 20-22), ao qual me referirei posteriormente no texto. .

Esses aspectos podem ser brevemente resumidos, neste estágio inicial, como a coexistência paradoxal de intenções que destaquei até aqui. Visto que as fontes mais antigas e tradicionais do campo somático mostram o maior interesse em (re)definir tanto a essência corporal quanto um sistema de normas e valores como universais29 10 Os métodos mais recorrentes nos escritos relacionados à definição de Somática como um campo - de Hanna a Ginot e a Shusterman - são o método de Feldenkrais e a técnica de Alexander, seguidos por Body-Mind Centering (r), que é significativamente fundamental na perspectiva de Eddy. , estudos mais recentes do campo - especialmente no Movimento da Educação Somática - compreendem-nas, ou compreendem sua aplicação, como exemplos de normalização e etnocentrismo (Eddy, 2009EDDY, Martha. A Brief History of Somatic Practices and Dance: historical development of the field of somatic education and its relationship to dance. Journal of Dance and Somatic Practices, v. I, n. 1, p. 5-27, spring/summer 2009.; Ginot, 2010GINOT, Isabelle. From Shusterman's Somaesthetics to a Radical Epistemology of Somatics. Dance Research Journal , v. 42, n. 1, p. 12-29, summer 2010. Available at: <Available at: http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur_bibliographie.php?cc_id=4&ch_id=11 >. Accessed on: 05 Oct. 2014.
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); portanto, o ativismo somático privilegia seu desempoderamento através da reconfiguração das práticas. É de grande importância observar que, nesse caso, é dirigida uma ação igual tanto à hegemonia como às próprias práticas somáticas:

Acredito que a prática somática, caracterizada por uma experiência na primeira pessoa dentro de um contexto cultural, pode incentivar um movimento rumo a uma postura politizada que permita uma crítica da dança, das artes e das instituições educacionais existentes, além do agenciamento e empoderamento dos indivíduos. Na prática atual, na minha observação, algumas disciplinas somáticas são ensinadas em um estilo que poderia ser caracterizado como autoritário. Certamente, muitas práticas indígenas holísticas existem ou coexistem dentro de culturas autoritárias hostis. É imperativo que comecemos a questionar se essas práticas realmente trazem totalidade ao indivíduo ou ao grupo, dadas as estruturas nas quais são ensinadas (Eddy, 2002EDDY, Martha. Somatic Practices and Dance: global influences. Dance Research Journal, v. XXXIV, n. 2, p. 46-62, autumn 2002. Available at: <Available at: http://www.wellnesscke.net/articles/globalinfluences.pdf >. Accessed on: 03 Oct. 2014.
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, p 14).

Essa relevante, embora generalizada visão, finalmente expressa os esforços principais que o ativismo somático encontra ao se embasar em metodologias discursivas ainda subteorizadas e inquestionadas (Ginot, 2010GINOT, Isabelle. From Shusterman's Somaesthetics to a Radical Epistemology of Somatics. Dance Research Journal , v. 42, n. 1, p. 12-29, summer 2010. Available at: <Available at: http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur_bibliographie.php?cc_id=4&ch_id=11 >. Accessed on: 05 Oct. 2014.
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, p. 13). Encarar a história do campo somático assim consiste, antes de tudo, em um encontro problemático com sua pluralidade e uma escolha - ou reinvenção - ainda mais difícil de técnicas narrativas. A questão em jogo é política. Ambas as dinâmicas empenham desejos, dogmas e polarizações que ficaram ocultas na institucionalização das disciplinas. Todos esses elementos interferem mutuamente e reformatam um ao outro, na medida em que passam os dias e as pesquisas.

Metáforas

Eu o imagino como um campo de flores silvestres com espécies originais florescendo ao acaso em largas extensões (Eddy, 2009EDDY, Martha. A Brief History of Somatic Practices and Dance: historical development of the field of somatic education and its relationship to dance. Journal of Dance and Somatic Practices, v. I, n. 1, p. 5-27, spring/summer 2009., p. 6).

As escolhas metodológicas que apresentei há pouco implicam o esforço de ler entre as linhas das cartografias oficiais, iluminando tanto a lógica como as parcialidades que informam esse campo peculiar. Pela mesma razão, este parágrafo começa com a definição de Somática de Martha Eddy, que deliberadamente omiti na citação na abertura deste ensaio30 11 A citação abre a seção "Intenções" deste artigo. A linha faltante está interposta entre a primeira sentença e a pergunta que Eddy faz a si mesma. . A imagem de Eddy é mais do que um exemplo eficaz e gracioso. Esconde algumas referências interessantes para noções como natureza, interindependência, ecologia e globalização, desenhando uma configuração longe de ser neutra. A imagem das flores silvestres "florescendo ao acaso" em um ambiente vasto parece lembrar uma interpretação que já encontramos - desenvolvimento cultural como resultado espontâneo, ou dito natural, de escolhas individuais, movidas pelas intenções invisíveis de uma entidade ecológica, embora transcendente. Adicionalmente, ousando avançar ainda mais nessa perspectiva, o uso da metáfora na construção do discurso parece ser muito significativo em si mesmo. Ele é confiável para um campo rico de questionamentos cognitivos e neurocientíficos sobre aprendizagem e linguagem, que se tornaram mais e mais relevantes a partir do começo da década de 1980 e evidentemente influenciaram pesquisas somáticas de Hanna a Eddy. Em trabalhos como os de George Lakoff e Mark Johnson (Lakoff, 1987LAKOFF, George. Women, Fire, and Dangerous Things: what categories reveal about the mind. London: University of Chicago Press, 1987.; Lakoff; Johnson, 1980LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metaphors we live By. London: University of Chicago Press , 1980.), bem como, mais tarde, os de Francisco Varela e seus colaboradores (Varela; Thompson; Rosch, 1993VARELA, J. Francisco; THOMPSON, Evan; ROSCH, Eleanor. The Embodied Mind: cognitive science and human experience. Cambridge/London: MIT Press, 1993.), a noção de metáfora é concebida como o paradigma de experiência cognitiva, como um processo de incorporação ou ação incorporada31 12 Uma referência explícita a Lakoff em um artigo mais recente (Eddy, 2010, p. 2) parece também confirmar a coerência dessa conexão. .

Todos esses autores geralmente definem a incorporação como a apropriação imediata de uma experiência perceptiva através de processos fisiológicos e sua tradução em mais e mais unidades articuladas de pensamento abstrato. Significativamente, no mesmo período, a pesquisa de Hanna foi dedicada ao desenvolvimento de uma literatura científica legitimada - e legitimadora - para dar à luz à instituição da somatologia, a fisiologia holística de processos somáticos (Hanna, 1976HANNA, Thomas. The Field of Somatics. Somatics: magazine-journal of the bodily arts and sciences, v. I, n. 1, p. 30-34, autumn 1976. Available at: <Available at: http://somatics.org/library/htl-fieldofsomatics.html >. Accessed on: 02 Oct. 2014.
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, p. 33). Todos esses autores, e especialmente Hanna, encontraram um fundo filosófico em comum nos pragmatistas norte-americanos, bem como no existencialismo continental e na fenomenologia (Hanna, 1991aHANNA, Thomas. Selections from... Somatology: somatic philosophy and psychology. Somatics: magazine-journal of the bodily arts and sciences , v. VIII, n. 2, p. 14-19, spring/summer 1991a. Available at: <Available at: http://somatics.org/library/htl-somatology.html >. Accessed on: 02 Oct. 2014.
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, p. 14-15). Todas essas referências encontram-se muito implícitas na imagem de Eddy. Ainda, de acordo com Eddy, constituem um forte embasamento na segunda e na terceira geração de profissionais e ativistas somáticos (Eddy, 2000EDDY, Martha. Access to Somatic Theory and Applications: socio-political concerns. In: CRONE-WILLIS, Juliette. Dancing in the Millennium: an international conference. Washington, D.C.: [s.n.], 2000. P. 144-148. Available at: <Available at: http://www.wellnesscke.net/downloadables/Access-to-Somatics.pdf >. Accessed on: 03 Oct. 2014.
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, 2002EDDY, Martha. Somatic Practices and Dance: global influences. Dance Research Journal, v. XXXIV, n. 2, p. 46-62, autumn 2002. Available at: <Available at: http://www.wellnesscke.net/articles/globalinfluences.pdf >. Accessed on: 03 Oct. 2014.
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, 2009EDDY, Martha. A Brief History of Somatic Practices and Dance: historical development of the field of somatic education and its relationship to dance. Journal of Dance and Somatic Practices, v. I, n. 1, p. 5-27, spring/summer 2009.), produzindo um modo cultural e ideológico de ver as coisas e de ver através das coisas. Essa maneira de olhar e responder a uma herança já dispersa informa a complexidade desse campo, suas contradições ideológicas e a relação ambivalente com a autoridade científica. De fato, conscientemente ou não, a postura ideológica do praticante e do ativista dão forma aos corpos de suas comunidades: as intenções transformam-se em atitudes, agentes invisíveis que reconfiguram âmbitos, meios e resultados, mesmo em quadros técnicos estáveis. Nesses termos, é possível olhar para a Somática como uma abordagem ecológica:

O uso de termo 'somática' neste século (como um modelo de holismo derivado da sabedoria corporal) foi pretendido por pensadores iniciais [...] para ser aplicado também à ação externa e à mudança social. Hanna [...] definiu o estudo somático como um estudo do corpo vivo que existe na relação com pelo menos cinco suposições somáticas. Uma dessas suposições considera 'a ecologia somática', na qual o soma demonstra interdependência com o ambiente 'tanto social como física' (Eddy, 2000EDDY, Martha. Access to Somatic Theory and Applications: socio-political concerns. In: CRONE-WILLIS, Juliette. Dancing in the Millennium: an international conference. Washington, D.C.: [s.n.], 2000. P. 144-148. Available at: <Available at: http://www.wellnesscke.net/downloadables/Access-to-Somatics.pdf >. Accessed on: 03 Oct. 2014.
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, p. 1).

Mesmo assim, essa evidência não simplifica o estudo do campo. Nessas linhas, Eddy recorda, uma vez mais, o artigo de Hanna The Field of Somatics, que apareceu na primeira edição da revista Somatics, em 1976HANNA, Thomas. The Field of Somatics. Somatics: magazine-journal of the bodily arts and sciences, v. I, n. 1, p. 30-34, autumn 1976. Available at: <Available at: http://somatics.org/library/htl-fieldofsomatics.html >. Accessed on: 02 Oct. 2014.
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. Embora, em um sentido restrito, pareça bastante correto ler a postura de Hanna como ecológica, deveria ser observado que a noção de ecologia que se intentou parece adquirir um sentido muito diferente da perspectiva generificada e pós-estruturalista de Eddy. De fato, divergem pois, para Hanna, ecologia justificaria a naturalização do progresso sociocultural e a universalização da dimensão somática. O corpo vivo de Hanna seria mais e mais abstraído de um ambiente situado, desde que a atitude e a retórica científicas fossem adotadas em sua literatura somática. Somente os exemplos de diagnósticos que relatou em seus últimos trabalhos parecem se embasar em indivíduos reais, embora a maioria deles seja brevemente apresentada através de sua relação com Hanna e da interação com o profissional em um contexto aparentemente abstrato (Hanna, 2004HANNA, Thomas. Somatics: reawakening the mind's control of movement, flexibility, and health. New York: Da Capo Press, 2004 [1988].). Em resumo, o multiculturalismo e as influências globais (Eddy, 2002) seriam mal compreendidos ou negligenciados para apoiar um ponto de vista científico reducionista. Até o começo da década de 1990 e além, essa postura embasaria os métodos autoritários que Eddy relata como ativista. De maneira interessante, ela também explica como o desempoderamento desse reducionismo começaria com a segunda geração de líderes somáticos, "[...] mulheres [que] fizeram uma ponte entre os campos da Educação Somática e da dança32 13 A segunda geração agrupa dançarinos e profissionais como Anna Halprin, Nancy Topf, Bonnie Bainbridge Cohen, Sondra Fraleigh, Emilie Conrad, Joan Skinner, Elaine Summers e Judith Aston. Ampliando parcialmente a lista de Hanna, Eddy também se refere a diversos profissionais (Frederick M. Alexander, Moshe Feldenkrais, Mabel Todd, Irmgard Bartenieff, Charlotte Selver, Milton Trager, Gerda Alexander e Ida Rolf) como "os pioneiros somáticos" (Eddy, 2009, p. 12). " (Eddy, 2009EDDY, Martha. A Brief History of Somatic Practices and Dance: historical development of the field of somatic education and its relationship to dance. Journal of Dance and Somatic Practices, v. I, n. 1, p. 5-27, spring/summer 2009., p. 16).

Transcendência Biocientífica, ou Apetite Ecológico: (r)evolução versus ativismo

Para compreender o processo do naturalização do soma, bem como a apropriação de autoridade científica em pressupostos filosóficos e políticos de Hanna, é possível começar revisando suas publicações científicas de 1970 até o começo da década de 1990. Bem desde o começo, o uso de conceitos darwinianos de evolução e progresso confirma uma atitude completamente diferente da ecologia de Eddy. O soma parece ser observado de um ponto de vista abstrato, supra-humano, bio-holístico:

[...] o soma tende para autonomia e independência de seu ambiente ao tender para apetite e dependência de seu ambiente - tanto social como físico. As funções e as estruturas de abertura e fechamento criam os orifícios de intercâmbio com o ambiente (Hanna, 1976HANNA, Thomas. The Field of Somatics. Somatics: magazine-journal of the bodily arts and sciences, v. I, n. 1, p. 30-34, autumn 1976. Available at: <Available at: http://somatics.org/library/htl-fieldofsomatics.html >. Accessed on: 02 Oct. 2014.
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, p. 32).

Pela mesma perspectiva, para Hanna, o soma está também no núcleo da virada cultural da década de 1960, produzida pelo que entende como um deslocamento (r)evolucionário, um novo equilíbrio entre tecnologias e a consciência humana de necessidades pessoais e coletivas (Hanna, 1985, p. 15-17). Como consequência do desenvolvimento da autoconsciência humana, não somente modelos corporais, mas a própria experiência corporal e o comportamento social deveriam se transformar:

E assim, lá estamos nós: le conflit des générations, o 'conflito de gerações' está sobre nós; exceto que o conflito não é entre gerações, mas entre culturas tradicionais e mutantes. [...] nossa criação de um tipo novo do ambiente está, por consequente adaptação, criando um novo tipo de ser humano cujo comportamento está tateando para se adaptar a esse ambiente. Assim, esse comportamento será novo e diferente: será 'mau comportamento' (Hanna, 1985HANNA, Thomas. Bodies in Revolt: a primer in somatic thinking. Novato: Freeperson Press, 1985 [1970]., p. 18-19).

Esse "mau comportamento", relembrando a contracultura social e política da década de 1960, ao final diverge da perspectiva ativista de Eddy. Enquanto esta se preocupa em trabalhar com e dentro de um ambiente sociocultural, a revolução dos somas na perspectiva de Hanna é ligeiramente inscrita em uma oposição dualística entre uma nova e uma velha geração - ou, mais precisamente, entre um tipo antigo e "um novo tipo de ser humano". Aqui é possível manter continuidade com o positivismo de Moshe Feldenkrais. Feldenkrais se referia copiosamente a uma necessidade generalizada de reequilibrar a relação entre regras sociais, sistemas educacionais e o potencial humano. Na perspectiva de Hanna, essa dialética entre valores individuais e sociais estava a ponto de ser desmontada por uma crescente comunidade de indivíduos, compartilhando uma ligação ecológica renovada com seu ambiente. Dois elementos controversos são as premissas de tal discurso: por um lado, uma afirmativa para revelar dogmas científicos como sociopoliticamente tendenciosos em caráter; por outro, um tipo de reapropriação da essência natural do eu corporal em si. Com uma reavaliação da experiência perceptiva, os indivíduos poderiam finalmente corporificar o eu verdadeiro, encontrando-se sob restrições culturais. De fato, a natureza foi concebida como essência em múltiplas camadas físicas (portanto verdadeiras) da realidade e da raça humana. Consequentemente, graças a sua competência científica e ao sucesso de suas práticas, tanto Feldenkrais como Hanna proclamaram entusiasticamente serem capazes de abordar, e portanto falar em nome de, todo tipo humano, sem exceção alguma: "Estamos apenas começando a compreender a maneira somática de pensar, o que quer dizer que estamos apenas começando a compreender o que realmente significa ser um ser humano e viver na plena promessa dessa realidade somática" (Hanna, 1985, p. II).

O Modelo de Feldenkrais - Hanna: rumo a um essencialismo somático

É possível, então, enfatizar uma forte influência da abordagem de Feldenkrais à ciência em Hanna, confirmada por uma ligação mútua entre os dois profissionais. De fato, ambos desempenharam um papel principal no estabelecimento dos alicerces dos Estudos Somáticos nos Estados Unidos e em outros países. É importante observar que, entre 1976 e o começo da década de 1980, quando Hanna se dedicou ao desenvolvimento do campo somático, Feldenkrais já era internacionalmente conhecido. Oriundo dos estudos de Engenharia e com doutorado em Física, ele também tinha uma robusta formação em artes marciais, tendo sido praticante de Jiu-Jitsu e tendo conquistado a faixa preta em Judô em 1936 (Eddy, 2009EDDY, Martha. A Brief History of Somatic Practices and Dance: historical development of the field of somatic education and its relationship to dance. Journal of Dance and Somatic Practices, v. I, n. 1, p. 5-27, spring/summer 2009., p. 13). Hanna também é originário do ambiente acadêmico. Após sua graduação em Teologia "[...] como ateu" (Hanna, 1991c, p. 50) na Universidade de Chicago, tornou-se diretor do Departamento de Filosofia da Universidade da Flórida. Bodies in Revolt originou-se do sabático que dedicou ao estudo de neurologia na Faculdade de Medicina. Mais tarde, iria comentar que sua própria paixão filosófica o levaria à psicologia e à psicoterapia e, por fim, a se tornar "[...] um filósofo que trabalha com suas mãos" (Hanna, 1991cHANNA, Thomas. A Conversation with Thomas Hanna, Ph.D. by Helmut Milz, M.D. Somatics: magazine-journal of the bodily arts and sciences , v. VIII, n. 2, p. 50-56, spring/summer 1991c. Available at: <Available at: http://somatics.org/library/mh-hannaconversation.html >. Accessed on: 02 Oct. 2014.
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, p. 51). Hanna já era um estudioso e autor de diversos ensaios sobre filosofia quando encontrou Moshe Feldenkrais nos Estados Unidos e começou a seguir sua prática. Profundamente impressionado por seu trabalho, em 1975, organizou o primeiro treinamento do método de Feldenkrais nos EUA e fundou o Novato Institute for Somatic Research and Training com sua esposa, Eleanor Criswell. A seguir, desenvolveria seu próprio método, apresentado em 1989 como Hanna Somatics ou Hanna Somatic Education (r), que ensinaria até sua morte, em 1990. A base de sua autoridade, então, pode ser encontrada em um apoio mútuo, em uma competência científica e em um carisma inato similares. Esses fatores marcariam seus próprios escritos e o núcleo epistemológico dos primórdios da Somática.

Estratégias de Assentamento: o corpo da verdade

Em seguimento à perspectiva de Feldenkrais, Hanna afirmava que a abordagem somática embasava a autodeterminação do indivíduo através da prática corporal. Essa afirmativa, entretanto, era embasada na postura essencialista de que a Somática possui a chave da consciência e da saúde universais. Essa virada autoritária tendenciosa se afinava com uma institucionalização do campo somático e com o desenvolvimento da Hanna Somatic Education (r). Dar forma ao soma e a suas funções estava no núcleo dessa estratégia, e é por isso que sua definição nos trabalhos de Hanna segue um trajeto interessante. Em mais ou menos quinze anos, o soma se desloca de uma estética vitalista para uma abstração categórica e retórica científica. Em Bodies in Revolt, traduzindo do grego antigo como corpo vivo, Hanna descreve o soma como "[...] expandindo-se e contraindo-se, acomodando-se e assimilando, exigindo energia e expelindo energia. O Soma está pulsando, fluindo, contraindo e relaxando" (Hanna, 1985HANNA, Thomas. Bodies in Revolt: a primer in somatic thinking. Novato: Freeperson Press, 1985 [1970]., p. 35). Hanna refere-se a ele como "ser corporal" e não apenas como corpo, uma palavra que o lembra de "[...] um pedaço de carne - um pedaço de carne sobre a tábua do açougueiro ou na mesa de trabalho do fisiologista, sem vida e pronta para ser trabalhada e usada" (Hanna, 1985, p. 35). Além disso, rejeitando a separação cartesiana entre corpo e mente, Hanna assenta o alicerce de uma localização fenomenológica do soma em um "aqui e agora" do qual nunca pode ser subtraído (Hanna, 1985, p. 34-35). Consequentemente, em sua visão, o soma não é discernível através de categorização científica, mas sim via inteligência intuitiva sensível.

Na década seguinte, entretanto, Hanna transformaria essa perspectiva em uma atitude paracientífica muito radical. Objetivando alcançar uma comunidade crescente de seguidores e estudantes, o interesse de Hanna se desloca de o que é o soma para como funciona e é percebido, assim declarando que a "Somática é o campo que estuda o soma: a saber, o corpo como é percebido de dentro pela percepção em primeira pessoa. Quando um ser humano é observado de fora - isto é, de um ponto de vista de uma terceira pessoa - o fenômeno de um corpo humano é percebido" (Hanna, 1995, p. 341). Ao invés de considerá-los como unidades semânticas específicas da mesma entidade corporal, na teoria de Hanna soma e corpo são rigidamente opostos: são resultado de modalidades cognitivas diferentes. Apesar de ser teoricamente coequivalentes, a "[...] falha em reconhecer a diferença categórica entre a observação em primeira pessoa e a observação em terceira pessoa leva a mal-entendidos fundamentais em fisiologia, psicologia e medicina" (Hanna, 1995, p. 341-342).

A opinião de Hanna sobre abordagens científicas tradicionais marcou a maior parte de seus artigos mais importantes na década entre 1975 e 1985 e além. Mesmo assim, sua posição continuou bem ambígua até os últimos anos de sua carreira. Às vezes, Hanna falava de uma simples diferença de metodologia, que pareceria solucionável com a integração da perspectiva somática (o ponto de vista holístico, em primeira pessoa). Quase tão frequentemente, contudo, as posturas críticas ficam mais radicais e a língua mais afiada, expondo uma postura não ética generalizada em biociências, que a Somática estava querendo evitar, senão corrigir.

As ciências da vida em geral, e particularmente as ciências da fisiologia, psicologia e medicina, carecem de embasamentos válidos para o que afirmam ser fato estabelecido e soam teorizando exatamente no grau com que ignoram, intencional ou inocentemente, dados da primeira pessoa. Evitar evidências que são 'fenomenológicas' ou 'subjetivas' não é científico. Desconsiderar esses dados como irrelevantes e/ou sem importância é irresponsável (Hanna, 1995HANNA, Thomas. What is Somatics? In: JOHNSON, Don H. Bone, Breath and Gesture: practices of embodiment. Berkeley: North Atlantic Books, 1995. P. 341-332. Available at: <Available at: http://somatics.org/library/htl-wis1.html >, <Available at: http://somatics.org/library/htl-wis2.html >, <Available at: http://somatics.org/library/htl-wis3.html >, <Available at: http://somatics.org/library/htl-wis4.html >. Accessed on: 02 Oct. 2014.
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, p. 343).

Uma ausência evidente de correções a essas afirmativas fortes sugere que Hanna estava deliberadamente adotando uma atitude agressiva como estratégia de legitimação. Em comparação, desde seus primeiros escritos, Hanna explicitamente olha para trás com admiração por diversos cientistas e pensadores. O primeiro e mais evidente exemplo é Bodies in Revolt, que Hanna dedica, na maior parte, a um esboço dos trabalhos dos chamados cientistas somáticos e filósofos somáticos33 14 Hanna inclui as pesquisas de Charles Darwin, Sigmund Freud, Konrad Lorenz, Jean Piaget, Wilhelm Reich como pertencentes ao grupo anterior, ao passo que Immanuel Kant, Søren Kierkegaard, Karl Marx, Ernst Cassirer, Albert Camus, Maurice Merleau-Ponty e Friedrich Nietzsche são similarmente examinados e referidos ao último. . Significativamente, ao longo de todo o ensaio, a ligação entre a pesquisa deles e a sua própria se transformou em uma suposição de estirpe. Além disso, essa relação é configurada para legitimar a perspectiva somática como científica: o próprio Hanna atribui uma qualidade somática à inteligência desses estudiosos e, assim, às suas intuições. Uma vez mais, é possível identificar um forte discurso ficcional na escrita de Hanna querendo retraçar uma tradição científica legitimada direta. Ainda mais relevante, ao assim fazer, o discurso inteiro parece ser colocado à sombra de um progresso evolucionário da consciência humana34 15 Em uma aula de Awareness Through Movement (r) na South Bend Workshop, Feldenkrais firmaria significativamente: "A boa postura é uma necessidade biológica" (Feldenkrais, 1980b, s. p.). . Mais tarde, a mesma atitude vem à tona, que eu compreendo como paracolonialista:

É esta mesma aceitação da ambiguidade do 'tanto isto como aquilo' do processo somático que permitiu que a lacuna entre psicologia e fisiologia, e psiquiatria e medicina física, se fechasse por meio do extraordinário trabalho terapêutico de Wilhelm Reich, Raknes, Feldenkrais e Lowen. [...] Foi a descoberta da integridade funcional-estrutural do campo somático que permitiu que cientistas e estudiosos ocidentais fizessem a descoberta tardia de que as artes marciais asiáticas e as disciplinas corporais do judô, aikido, tai chi, caratê, yoga e tantra foram solidamente embasadas em uma teoria somática e não a partir de um pretexto religioso (Hanna, 1976HANNA, Thomas. The Field of Somatics. Somatics: magazine-journal of the bodily arts and sciences, v. I, n. 1, p. 30-34, autumn 1976. Available at: <Available at: http://somatics.org/library/htl-fieldofsomatics.html >. Accessed on: 02 Oct. 2014.
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, p. 31).

A postura paracolonialista parece operar como um princípio comum tanto na apropriação de tradição(ões) como na rejeição do objetivismo científico. Em ambos os casos, a luta entre corpo e soma adquire um papel central, pois revela um lado político. Por um lado, sua substância é epistemológica, já que trata da transformação de representações corporais, além do avanço científico na era industrial e pós-industrial. Por outro, transforma-se em metáfora para uma competição ideológica entre práticas legítimas e precárias, que, na primeira geração de ativismo somático, parece ser mais influenciada pela sobrevivência econômica do que pela adaptação ecológica (Eddy, 2000EDDY, Martha. Access to Somatic Theory and Applications: socio-political concerns. In: CRONE-WILLIS, Juliette. Dancing in the Millennium: an international conference. Washington, D.C.: [s.n.], 2000. P. 144-148. Available at: <Available at: http://www.wellnesscke.net/downloadables/Access-to-Somatics.pdf >. Accessed on: 03 Oct. 2014.
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, 2009EDDY, Martha. A Brief History of Somatic Practices and Dance: historical development of the field of somatic education and its relationship to dance. Journal of Dance and Somatic Practices, v. I, n. 1, p. 5-27, spring/summer 2009.).

Um caso muito influente é o uso do termo somatização por Bonnie Bainbridge. Tradicionalmente relacionado ao sofrimento psicológico, no jargão médico o termo descrevia um sintoma evidente induzido por condições psíquicas instáveis e anormais. Ao contrário, Bonnie Bainbridge Cohen elimina os pressupostos patológicos e psicológicos para colocar o termo no centro da identificação de sua prática no campo somático. Na introdução a Body-Mind Centering (r), ela observa:

Utilizo a palavra 'somatização' para vincular diretamente a experiência cinestésica, em oposição a 'visualização', que utiliza o imaginário visual para evocar uma experiência cinestésica. Com a somatização, as células do corpo estão informando o cérebro, e o cérebro está informando as células. Derivei essa palavra 'somatização' do uso que Thomas Hanna faz da palavra 'soma' para designar o corpo experienciado, em oposição ao corpo objetificado. Quando o corpo é experienciado a partir de dentro, o corpo e a mente não estão separados, mas são experienciados como um todo. [...] Tom [Hanna] falava disso durante a década de 1960 [e] cunhou o termo 'somática' em 1976 [...]. 'Somática' também denomina um campo de estudo - o estudo do corpo através da perspectiva experiencial pessoal. O Body-Mind Centering é uma pequena parte desse campo florescente (Cohen, 2012COHEN, Bonnie Bainbridge. Sensing, Feeling, and Action: the experiential anatomy of Body-Mind Centering(r). Northampton: Contact Editions, 2012 [1993]., p. 1).

A pesquisa de Cohen trouxe diversos aperfeiçoamentos ao campo da Educação Somática, cujo desenho está fora do âmbito deste artigo. Não obstante, Eddy a vê como uma figura fundamental para a introdução de posturas ecológicas na segunda geração de profissionais (veja nota 13), para quem o desenvolvimento de uma abordagem somática através da prática tornou-se prioridade.

Em comparação, na perspectiva de Hanna, a noção de soma continuava como simulacro da singularidade cultural e política da Somática, dentro de sua florescente e muito desenfreada propagação durante as décadas de 1970 e 1980. Mais tarde, com a circulação de Hanna Somatics (r), apresentar descobertas fisiológicas por meio de diagnósticos e tratamentos somáticos bem-sucedidos tornou-se prioridade, como tinha sido para Alexander e Feldenkrais (Ginot, 2010GINOT, Isabelle. From Shusterman's Somaesthetics to a Radical Epistemology of Somatics. Dance Research Journal , v. 42, n. 1, p. 12-29, summer 2010. Available at: <Available at: http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur_bibliographie.php?cc_id=4&ch_id=11 >. Accessed on: 05 Oct. 2014.
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, p. 15-17). Relatar experiências empíricas de cuidado não apenas fornecia explicações de teorias e práticas somáticas, também implicava uma afirmativa à autoridade sobre métodos tradicionais, destacando como e por que estavam falhando (Hanna, 2004). Categorias anatômicas e evidências experienciais (as armas dos concorrentes) foram escolhidas com sucesso como uma estratégia de legitimação, completando a apropriação de retórica científica:

[...] o ponto de vista somático deve ser adicionado ao ponto de vista corporal objetivo se quisermos compreender exatamente o que acontece aos seres humanos quando envelhecem. Ao acrescentar o ponto de vista somático às nossas ciências humanas, não apenas nos tornamos capazes de superar problemas de saúde importantes equivocadamente atribuídos ao envelhecimento, mas nos tornamos capazes de superar muitos dos principais problemas de saúde que flagelam toda a humanidade. Ao dizer isso, não existe absolutamente nenhuma implicação de que a ciência fisiológica seja inválida. [...] O que estou dizendo é que essa contribuição é, mesmo assim, incompleta e insuficiente, e que isso é bem observado na incompletude perene do diagnóstico médico e na insuficiência de tratamentos médicos nas áreas que estou discutindo. O ponto de vista somático complementa e completa a visão científica do ser humano, tornando possível ter uma ciência autêntica que reconhece o humano todo: o lado autociente, autorresponsável, além do lado 'corporal' externamente observável. Juntos, esses dois pontos de vista possibilitam uma ciência humana autêntica. Ao completarmos um ponto de vista de seres humanos que tenha sofrido de incompletude por tanto tempo, adentraremos em um novo continente de avanço humano (Hanna, 2004HANNA, Thomas. Somatics: reawakening the mind's control of movement, flexibility, and health. New York: Da Capo Press, 2004 [1988]., p. 21).

Essas foram linhas publicadas no volume de Hanna sobre seu sistema de Educação Somática em 1988. Naquele ano, foi fundado o IMTA e logo ele originaria a International Somatic Movement Education and Therapy Association. A experiência de uma comunidade crescente de praticantes, estudantes e seguidores parecia sólida o bastante para avaliar que a etapa mais dura da batalha por legitimação tinha sido bem-sucedida; a Somática estava se transformando em uma entidade coletiva, institucionalizada, engendrando mais e mais relações com as artes e as ciências da vida. Assim, poderia começar a se apresentar como uma abordagem reconhecível e valiosa, além de uma demanda direta por uma interação mais cooperativa com os sistemas de atenção à saúde e educação. Mesmo assim, as tendências essencialistas teriam consequências na concepção de prática, inibindo a postura de ruptura e (r)evolução que Hanna objetivava promover.

Somas em Experimentação

Apesar de conscientemente resultar em uma simplificação do fenômeno, é possível observar que, desde os anos iniciais do século XX, em geral duas abordagens principais eram adotadas na primeira geração de praticantes somáticos. O método de Hanna, assim como o de Feldenkrais e de outros, envolvia tanto a manipulação direta como um sistema de sequências de exercícios que supostamente todos poderiam fazer, isto é, sozinhos. Em uma sessão individual, o profissional acompanharia movimentos ou readequaria posturas por um contato suave, certificando-se de que o cliente, antes de tudo, se sentiria confortável e relaxado. Em uma sessão coletiva, ou mesmo usando um vídeo, a simplicidade dos exercícios - assim como sua execução individual - permitiria acompanhar as palavras do profissional, sem nenhum exemplo visual impondo a maneira certa de fazer. Não obstante, uma escala de valores (de gestos ruins a bons) já estava predeterminada no discurso e parece resistir em estudos contemporâneos. Como recentemente mencionado por Shusterman (2008SHUSTERMAN, Richard. Body Consciousness: a philosophy of mindfulness and somaesthetics. New York: Cambridge University Press, 2008.), um exercício somático apropriado supostamente é realizado suave, vagarosa e delicadamente (Ginot, 2010GINOT, Isabelle. From Shusterman's Somaesthetics to a Radical Epistemology of Somatics. Dance Research Journal , v. 42, n. 1, p. 12-29, summer 2010. Available at: <Available at: http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur_bibliographie.php?cc_id=4&ch_id=11 >. Accessed on: 05 Oct. 2014.
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, p. 20-22). Além disso, cada sequência dos exercícios deveria ser repetida diversas vezes na mesma sessão, evitando qualquer objetivo preciso, exceto o sentir. Quando bem executado, o exercício combinado com a experiência subjetiva induziria a consciência das estruturas e das percepções em movimento; daí ocorreria a organização somática. Esses sistemas podem ser considerados os mais estruturais e tradicionais, descendendo diretamente de protocolos médicos e pedagógicos do século XIX (Schwartz, 1992SCHWARTZ, Hillel. Torque: the new kinaesthetic of the 20th century. In: CRARY, Jonathan; KWINTER, Sanford. Incorporations. v. VI. Cambridge/New York: Zone/MIT Press, 1992. P. 70-127.; Vigarello, 2004VIGARELLO, Georges. Le Corps Redressé. Paris: Armand Colin, 2004 [1978].), envolvendo o aperfeiçoamento de propriocepção e cinestesia.

A suposta neutralidade e liberdade das condições de cuidado, o inquestionável rigor das leis da física e das correspondências fisiológicas parece repetir, pelo menos nos escritos, o ambiente asséptico da abordagem médica. Similarmente, a autoridade moral do profissional somático é reafirmada, embora de maneira sutil. De fato, nos escritos dos pioneiros, não parece haver nenhum espaço para um autoquestionamento nem da técnica, nem da abordagem. Consequentemente, qualquer ausência de resultados positivos levaria implicitamente a apontar para a incapacidade ou falta de vontade do cliente de se exercitar, levando a mais do que o questionamento dos meios e da suposta eficácia universal do método. Até os dias de hoje, questões de autoridade científica continuam não resolvidas em Estudos Somáticos, principalmente por causa da falta de tratamento teórico do assunto35 16 Uma análise pontual da relação entre as abordagens presentes nos escritos de profissionais e a configuração da prática pode ser um assunto interessante para futuras pesquisas. . Esse assunto em aberto levará este artigo a algumas conclusões que inevitavelmente não se esgotarão.

Nas seções anteriores, foram introduzidos alguns aspectos do dogmatismo somático, além do criticismo e o dissenso que o ativismo recente tem demonstrado desde o começo da década de 2000. O problema principal e persistente, que tentei descrever in nuce, é uma postura essencialista para com a essência do corpo vivo, que também tentei embasar em uma retórica científica dogmática desde a fundação do movimento somático e do campo somático por Thomas Hanna (1970HANNA, Thomas. The Project of Somatology. Journal of Humanistic Psychology, v. XIII, n. 3, p. 3-14, July 1973. , 1976). De fato, a maior parte dos escritos pioneiros e das experiências mais recentes de aplicação prática parece representar uma natureza retórica da verdade autoritária dentro do que Donna Haraway definiria como conhecimentos situados (Haraway, 1988HARAWAY, Donna. Situated Knowledges: the science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies, v. XIV, n. 3, p. 575-599, autumn 1988., p. 577). Uma vez mais, a revisão de Eddy sobre esse assunto ajuda a resumir as questões mais importantes:

[...] Hanna também observa que, no fim do século XX, o dualismo foi desafiado pela noção de complementaridade entre estrutura e função. Acrescenta que essas relações estão em um estado de mudança constante, como é o soma, e que esse processo de mudança é autogovernado. O processo sempre mutante e autogovernante do soma individual é um dado que, talvez equivocadamente, conduz a uma noção de que uma orientação ao indivíduo contra seu contexto cultural é central na prática somática [...]. Continuando com esse discurso eurocêntrico, ele segue argumentando que a teoria somática também permitiu uma maior aceitação ocidental às práticas do movimento asiático (Eddy, 2002EDDY, Martha. Somatic Practices and Dance: global influences. Dance Research Journal, v. XXXIV, n. 2, p. 46-62, autumn 2002. Available at: <Available at: http://www.wellnesscke.net/articles/globalinfluences.pdf >. Accessed on: 03 Oct. 2014.
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, p. 48).

As palavras de Eddy refletem as considerações de Ginot sobre o soma como uma entidade culturalmente determinada, que, sob uma perspectiva feminista, converge com a noção de ciborgue de Haraway (Ginot, 2010GINOT, Isabelle. From Shusterman's Somaesthetics to a Radical Epistemology of Somatics. Dance Research Journal , v. 42, n. 1, p. 12-29, summer 2010. Available at: <Available at: http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur_bibliographie.php?cc_id=4&ch_id=11 >. Accessed on: 05 Oct. 2014.
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, p. 23-26). Uma orientação coerente dessa perspectiva pode ser obtida ao retomar as raízes histórico-culturais do discurso somático na retórica científica e nas tradições pedagógicas do século XIX e XX. Através de seus trabalhos, Hillel Schwartz e Georges Vigarello ajudam a desenhar o perfil de um amplo embasamento no qual o dogmatismo somático inicial pode ser inscrito. Os estudiosos explicam como a resistência da função autoritária sobre o exercício corporal pode ser estendida por toda a era moderna e contemporânea. Ao assim fazer, também contribuem para colocar a abordagem somática inicial em uma perspectiva de continuidade. Com o advento da era industrial, a Educação Física começou, por um lado, a buscar uma forte mecanização dos protocolos e uma normalização dos papéis sociais por meio de práticas como a ginástica e a correção da postura (Vigarello, 2004). Por outro lado, especialmente a partir dos últimos anos do século XIX, diversos cientistas e pedagogos começaram a responder a tal abordagem - que foi descrita como objetificante - com uma atitude mais humanitária, mais paternalista (Schwartz, 1992SCHWARTZ, Hillel. Torque: the new kinaesthetic of the 20th century. In: CRARY, Jonathan; KWINTER, Sanford. Incorporations. v. VI. Cambridge/New York: Zone/MIT Press, 1992. P. 70-127.; Vigarello, 2004VIGARELLO, Georges. Le Corps Redressé. Paris: Armand Colin, 2004 [1978].). Assim, a prática corporal adquiriu novos valores morais e buscou dar forma a uma atitude eficiente e rigorosa juntamente com um corpo em performance. O exercício individual e a forte autodisciplina informavam o lado biopolítico da cultura libertária euro-americana a partir da segunda metade do século XX36 17 Susan L. Foster retoma uma tendência similar de manejo da diferença na sociedade pós-colonial moderna e contemporânea, envolvendo práticas e representações corporais em diversos sistemas estéticos e de treinamento em dança (Foster, 2010). .

Durante mais de dois séculos, a autoridade do profissional foi se deslocando entre a correção direta, a prescrição e o julgamento moral sem nunca desconsiderar qualquer um deles, mesmo quando autorizando ou empoderando a autodisciplina. Por essa perspectiva, a Somática arrisca não expressar uma outra forma de emancipação da individualidade e da livre escolha do cliente no contexto de valores dominantes e do livre mercado. Se assim não for, o que realmente parece operar a ruptura e a revolução evolucionista sobre a qual Hanna e os pioneiros falavam? O ativismo realmente deve desconsiderar a continuidade entre os protocolos do século XIX e XX e os sistemas médicos e educacionais hegemônicos ou oferecer uma alternativa a sua postura ética? Como a Educação Somática pode contribuir com essa ação política?

Conclusões: como a Somática se torna somática?

Até os dias de hoje, o campo somático é constituído por uma herança composta tanto por técnicas como por teorias, visando assegurar a emancipação individual de protocolos tradicionais de atenção à saúde. O paradigma individualista afirma a subjetividade como uma modalidade cognitiva legitimada na atenção à saúde e à educação. Ainda representa também uma ficção funcional entre diversas estratégias discursivas que os fundadores da Somática adotaram para validar sua prática, tanto no campo científico como no mercado. Assim, as disciplinas somáticas encontram-se de maneira ambígua entre a sustentação do autoaperfeiçoamento subjetivo e da comunidade (e da apropriação do conhecimento situado) e de algumas ideologias autoritárias fundamentais referentes a representações corporais e interação social. Oriundo de um ponto de vista no geral masculinizado e de classe média, o mapeamento corporal em escritos somáticos iniciais revela frequentemente um forte etnocentrismo e não questiona aspectos de gênero ou diferença social. Ginot resume esses pontos de maneira certeira:

Separados de seus contextos usuais, os discursos somáticos são mobilizados por pensamentos do universal. São carregados de inúmeras ideologias: o natural (certamente, o animal), o transcendente (certamente, o religioso), a diferença biológica entre os sexos e as hierarquias culturais [e criam] um sistema da referência centrado em si mesmo. [...] por trás da insistência na singularidade de cada corporeidade, a maioria de métodos somáticos tem como pano de fundo um corpo homogêneo, universal, a-histórico e ocidental (Ginot, 2010GINOT, Isabelle. From Shusterman's Somaesthetics to a Radical Epistemology of Somatics. Dance Research Journal , v. 42, n. 1, p. 12-29, summer 2010. Available at: <Available at: http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur_bibliographie.php?cc_id=4&ch_id=11 >. Accessed on: 05 Oct. 2014.
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, p. 23).

Não obstante, a Educação Somática está atualmente se transformando por meio de uma abordagem crítica mais consciente. Obviamente, é apoiada por uma florescente literatura científica - das ciências cognitivas às neurociências, das teorias do quantum à psicologia, da pedagogia aos estudos de gênero -, e assim o desejo de um intercâmbio mútuo consistente pode tornar-se verdadeiro. Ainda assim, a batalha entre o dogmatismo externo e o interno está longe de ser superada. A coexistência contraditória dessas tendências é naturalmente tanto uma consequência de sua ética libertária como um resultado das ambiguidades que tentei esboçar. Assim, como a Somática responderá a outra mudança sociocultural é um tema relacionado à ética e à metodologia, que deveriam promover uma reinvenção radical da narrativa da experiência subjetiva. Atualmente, supondo que a marca da Somática sobre o desenvolvimento do ser humano torne-se visível somente com o tempo, a Somática Social37 18 "Como educadores, existem numerosos pontos a considerar ao criar um currículo de 'somática social' ou um curso de dança ou movimento com ponto de vista 'somático social'. Algumas possibilidades incluem: 1. Determinar conscientemente quando os usos de modelos eurocêntricos de saúde (por exemplo, linguagem de ciências anatômicas) são úteis ou limitantes para os objetivos maiores com os quais nos defrontamos. 2. Oferecer leituras dos primeiros pensadores da teoria somática e dos proponentes da 'somática social' (por exemplo, Green, Hanna, Johnson, Kleinman). 3. Procurar desenvolver os programas que mencionem as influências subjacentes às teorias somáticas. A mais notável delas é a forte influência de filosofias orientais. [...] 6. Oportunizar aos estudantes o compartilhamento de seu conhecimento 'vivido' ou incorporado por meio de e em apresentações, na aula e em casa [...]. Aproveitar pesquisas educacionais qualitativas para observar com inteligência e 'Escutar as vozes dos estudantes'" (Eddy, 2000, p. 5-6). Uma coletânea e avaliação dos resultados de estudos norte-americanos e europeus e ativismo pode proporcionar um relevante aprimoramento da pesquisa atual. e outras formas de ativismo concernem a aspectos coletivos, tentando deslocar seu ponto da vista das implicações individualistas do soma rumo à interdependência de processos cognitivos com o ambiente. Isso poderia oferecer um horizonte alternativo à definição do campo. De outra forma, conforme tentei delinear, a Somática se arrisca a se representar, e intentar, um repertório de paradigmas e exemplos recorrentes, ao invés de regras - um alicerce "[...] que oferece [aos profissionais da somática] um conhecimento de trabalho sem habilidade para explicar como funciona38 19 Em seu ensaio Body Consciousness: a philosophy of mindfulness and somaesthetics (2008), Richard Shusterman adota uma postura e uma metodologia muito similares, criando uma pesquisa somaestética de diversos filósofos, como Michel Foucault, Simone de Beauvoir e Maurice Merleau-Ponty. Shusterman encontra o ceticismo e a avaliação de Ginot em termos de abstração do discurso somático de suas contingências. De fato, a recorrência de tais estratégias discursivas sinaliza uma posição somática essencialista semelhante. Marcadas por uma intenção obsessiva de definir e aplicar paradigmas somáticos, "[...] as tentações da comprovação" (Ginot, 2010, p. 18) vão de Hanna a Shusterman e constituem uma modalidade aparentemente sedutora de organizar o discurso. " (Kuhn, 1962/1996 apud Ginot, 2010GINOT, Isabelle. From Shusterman's Somaesthetics to a Radical Epistemology of Somatics. Dance Research Journal , v. 42, n. 1, p. 12-29, summer 2010. Available at: <Available at: http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur_bibliographie.php?cc_id=4&ch_id=11 >. Accessed on: 05 Oct. 2014.
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, p. 17).

Como Ginot apontou, outro aspecto em jogo é a complexidade que a noção de corpo, como soma ou pessoa incorporada, adquiriu nas últimas duas décadas (Ginot, 2010, p. 23-26). Conscientemente ou não, a transformação corporal física e epistemológica parece acelerar exponencialmente, intentado por tecnologias, um mercado crescente e um reconhecimento gradual pelas instituições.

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  • Este texto inédito, traduzido por Ananyr Porto Fajardo, também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • 1
    Tradução inglesa de Savoirs Somatiques, noção adotada atualmente por Isabelle Ginot em suas aulas. Ginot é professora no Département de Danse, Université Paris 8, França, além de profissional de Feldenkrais. Desde 2007, Ginot dirige Soma&Po. Somatiques, Esthétiques, Politiques, um eixo de pesquisa dedicado à pesquisa e à epistemologia somática. Vou lembrar de seus estudos com frequência durante todo o texto.
  • 2
    Esses últimos tópicos, em particular, estão atualmente dispersos em diversos estudos e falta coesão em seu tratamento teórico. Assim, utilizarei alguns estudos franceses como embasamento e me referirei à definição de Somática de Ginot como "[...] um aparato conceitual que melhora nossa compreensão de pedagogia, saúde do dançarino e estética corporal e gestual [e que] se apresenta como uma modalidade empiricamente embasada de pensamento corporal cujo discurso se baseia fortemente na tradição oral" (Ginot, 2010GINOT, Isabelle. From Shusterman's Somaesthetics to a Radical Epistemology of Somatics. Dance Research Journal , v. 42, n. 1, p. 12-29, summer 2010. Available at: <Available at: http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur_bibliographie.php?cc_id=4&ch_id=11 >. Accessed on: 05 Oct. 2014.
    http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheu...
    , p. 12-13). Tais disciplinas - expostas nos capítulos seguintes - são correntes principalmente em países desenvolvidos (ditos ocidentais). Frequentemente se entrelaçam com uma diversidade de nichos nas artes, na prática física, na educação e na atenção à saúde relacionada a abordagens holísticas. Usualmente compreendem a si mesmas como complementares ou alternativas a protocolos dominantes - a saber, tradições médicas e psicanalíticas, bem como pedagogia e estética corporal (Ginot, 2010, p. 12-18).
  • 3
    Isabelle Ginot define como discursos somáticos endógenos aqueles que são desenvolvidos em um contexto de prática somática. Geralmente são direcionados tanto a clientes (ou pacientes) como a discípulos e se embasam em, ou são engajados pelos fundadores de métodos somáticos para explicar a natureza de seu trabalho e valores. A circulação de grande parte destes discursos ocorre oralmente, embora os escritos dos fundadores somáticos continuem sendo a principal referência tanto para o "público geral" como para a comunidade de profissionais (Ginot, 2010GINOT, Isabelle. From Shusterman's Somaesthetics to a Radical Epistemology of Somatics. Dance Research Journal , v. 42, n. 1, p. 12-29, summer 2010. Available at: <Available at: http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur_bibliographie.php?cc_id=4&ch_id=11 >. Accessed on: 05 Oct. 2014.
    http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheu...
    , p. 13).
  • 4
    Martha Eddy, RMST [Terapeuta Registrada de Movimento Somático], CMA [Analista do Movimento Certificada], DE-SMTT [Diretora da Incorporação Dinâmica - Treinamento em Terapia do Movimento Somático], é profissional, ativista e pesquisadora norte-americana da Somática. Obteve seu doutorado em Ciência e Educação da Dança no Teachers College, Columbia University (1998) e treinou com Bonnie Bainbridge Cohen em Body-Mind Centering(r), além de Ingmard Bartenieff em Fundamentos de Bartenieff. Atualmente Eddy está baseada em Nova Iorque, onde fundou o Center for Kinesthesic Education (CKE) e dirige seu próprio programa de Educação do Movimento Somático. É também codiretora de financiamento do Moving On Center - The School of Participatory Arts and Research em Oakland, Califórnia. Informações adicionais podem ser encontradas no site do CKE.
  • 5
    De acordo com Ginot, os textos publicados pertencem à terceira esfera da produção do discurso somático em escritos endógenos, incluindo escritos dos profissionais fundadores. Esses textos abordaram principalmente a legitimação de suas práticas e conhecimento pelo discurso científico e/ou narrativa experiencial. De maneira interessante, Ginot acrescenta: "A necessidade de reduzir esses dois modelos aparentemente polares a um único uso ou função constitui o paradoxo mais proeminente no discurso somático. Thomas Hanna (1995) e Carl Ginsburg (1996) descreveram esse paradoxo em termos de conflito entre descrição objetiva e subjetiva, questionando a compatibilidade da abordagem 'científica' e a abordagem objetiva ao conhecimento subjetivo da Somática. Porém o fizeram com respeito às relações entre as ciências e a Somática, e suas observações não levaram em conta a contradição interna aos discursos somáticos" (Ginot, 2010GINOT, Isabelle. From Shusterman's Somaesthetics to a Radical Epistemology of Somatics. Dance Research Journal , v. 42, n. 1, p. 12-29, summer 2010. Available at: <Available at: http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur_bibliographie.php?cc_id=4&ch_id=11 >. Accessed on: 05 Oct. 2014.
    http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheu...
    , p. 18).
  • 6
    Ginot recorda a posição de Basile Doganis, embasada em um questionamento da teorização em artes marciais, de acordo com a qual a "[...] crença é parte integrante do gesto somático em si" (Ginot, 2010GINOT, Isabelle. From Shusterman's Somaesthetics to a Radical Epistemology of Somatics. Dance Research Journal , v. 42, n. 1, p. 12-29, summer 2010. Available at: <Available at: http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur_bibliographie.php?cc_id=4&ch_id=11 >. Accessed on: 05 Oct. 2014.
    http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheu...
    , p. 18). Entretanto, deve ser observado que, em minha análise, a correspondência estrita de Ginot entre escritos somáticos e técnicas do corpo é menos imediata ou, pelo menos, evidente. De fato, os textos que abordarei não estão orientados para esboçar o funcionamento de práticas específicas, ainda que aqueles que constituem o embasamento de seus autores inevitavelmente interfiram no discurso.
  • 7
    A análise e até mesmo especulação sobre as características de organizações possíveis e não realizadas do campo somático está além dos limites deste texto. Não obstante, consigo encontrar um grande número de tópicos que se beneficiariam de uma análise pontual. Entre muitas outras, diversas questões estão relacionadas a vieses de gênero referentes a imagem do corpo, padrões de protocolo ou mesmo do bom movimento (Ginot, 2010, p. 20-21); as interferências de economias capitalistas e coloniais na gestão de fontes internas e heterogêneas da Somática; a hierarquia implícita dentro das práticas somáticas, de acordo com a autoridade dos fundadores e do grau de exposição aos meios que permitem que uma disciplina lide com sucesso tanto com o mercado como com o campo científico.
  • 8
    A fundação do campo remonta a 1976, juntamente com a primeira edição de The Somatics Magazine - Journal of the Bodily Arts and Sciences (Hanna, 1976HANNA, Thomas. The Field of Somatics. Somatics: magazine-journal of the bodily arts and sciences, v. I, n. 1, p. 30-34, autumn 1976. Available at: <Available at: http://somatics.org/library/htl-fieldofsomatics.html >. Accessed on: 02 Oct. 2014.
    http://somatics.org/library/htl-fieldofs...
    , p. 32). A paternidade exclusiva de Hanna é aceita em geral como um fato. Ademais, a ausência de qualquer integração substancial de suas definições de soma e Somática até anos bem recentes parece sinalizar uma aceitação implícita e não questionada dos paradigmas de Hanna.
  • 9
    Recordando uma vez mais a pesquisa de Ginot, podem ser resumidas como posições essencialistas sobre a dimensão orgânica, natural do corpo (Ginot, 2010, p. 23); sobre a autoridade do mestre e a referência funcional científica - papéis que em Hanna parecem convergir; sobre a natureza da Somática em si, como uma modalidade subjetiva de conhecimento científico que pode ser abstraída de seu contexto situado de produção. Um caso recente e muito relevante que Ginot considera é a somaesthetics de Richard Shusterman (Shusterman, 2008SHUSTERMAN, Richard. Body Consciousness: a philosophy of mindfulness and somaesthetics. New York: Cambridge University Press, 2008.; Ginot, 2010GINOT, Isabelle. From Shusterman's Somaesthetics to a Radical Epistemology of Somatics. Dance Research Journal , v. 42, n. 1, p. 12-29, summer 2010. Available at: <Available at: http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheur_bibliographie.php?cc_id=4&ch_id=11 >. Accessed on: 05 Oct. 2014.
    http://www.danse.univ-paris8.fr/chercheu...
    , p. 20-22), ao qual me referirei posteriormente no texto.
  • 10
    Os métodos mais recorrentes nos escritos relacionados à definição de Somática como um campo - de Hanna a Ginot e a Shusterman - são o método de Feldenkrais e a técnica de Alexander, seguidos por Body-Mind Centering (r), que é significativamente fundamental na perspectiva de Eddy.
  • 11
    A citação abre a seção "Intenções" deste artigo. A linha faltante está interposta entre a primeira sentença e a pergunta que Eddy faz a si mesma.
  • 12
    Uma referência explícita a Lakoff em um artigo mais recente (Eddy, 2010EDDY, Martha. The Role of the Arts & Embodiment in Community Building: a post 9/11 review. Currents, Northampton, Body-Mind Centering Association, v. 13, n. 1, p. 1-10, winter 2010. Available at: <Available at: http://www.wellnesscke.net/downloadables/ARTSCOMMUNITYINTRAUMAEDDY2010.pdf >. Accessed on: 05 Oct. 2014.
    http://www.wellnesscke.net/downloadables...
    , p. 2) parece também confirmar a coerência dessa conexão.
  • 13
    A segunda geração agrupa dançarinos e profissionais como Anna Halprin, Nancy Topf, Bonnie Bainbridge Cohen, Sondra Fraleigh, Emilie Conrad, Joan Skinner, Elaine Summers e Judith Aston. Ampliando parcialmente a lista de Hanna, Eddy também se refere a diversos profissionais (Frederick M. Alexander, Moshe Feldenkrais, Mabel Todd, Irmgard Bartenieff, Charlotte Selver, Milton Trager, Gerda Alexander e Ida Rolf) como "os pioneiros somáticos" (Eddy, 2009EDDY, Martha. A Brief History of Somatic Practices and Dance: historical development of the field of somatic education and its relationship to dance. Journal of Dance and Somatic Practices, v. I, n. 1, p. 5-27, spring/summer 2009., p. 12).
  • 14
    Hanna inclui as pesquisas de Charles Darwin, Sigmund Freud, Konrad Lorenz, Jean Piaget, Wilhelm Reich como pertencentes ao grupo anterior, ao passo que Immanuel Kant, Søren Kierkegaard, Karl Marx, Ernst Cassirer, Albert Camus, Maurice Merleau-Ponty e Friedrich Nietzsche são similarmente examinados e referidos ao último.
  • 15
    Em uma aula de Awareness Through Movement (r) na South Bend Workshop, Feldenkrais firmaria significativamente: "A boa postura é uma necessidade biológica" (Feldenkrais, 1980bFELDENKRAIS, Moshe. The South Bend Workshop: 1980 - awareness through movement(r). Berkeley: Feldenkrais Resources, 1980b., s. p.).
  • 16
    Uma análise pontual da relação entre as abordagens presentes nos escritos de profissionais e a configuração da prática pode ser um assunto interessante para futuras pesquisas.
  • 17
    Susan L. Foster retoma uma tendência similar de manejo da diferença na sociedade pós-colonial moderna e contemporânea, envolvendo práticas e representações corporais em diversos sistemas estéticos e de treinamento em dança (Foster, 2010FOSTER, Susan Leigh. Choreographing Empathy: kinesthesia in performance. London/New York: Routledge, 2011.).
  • 18
    "Como educadores, existem numerosos pontos a considerar ao criar um currículo de 'somática social' ou um curso de dança ou movimento com ponto de vista 'somático social'. Algumas possibilidades incluem: 1. Determinar conscientemente quando os usos de modelos eurocêntricos de saúde (por exemplo, linguagem de ciências anatômicas) são úteis ou limitantes para os objetivos maiores com os quais nos defrontamos. 2. Oferecer leituras dos primeiros pensadores da teoria somática e dos proponentes da 'somática social' (por exemplo, Green, Hanna, Johnson, Kleinman). 3. Procurar desenvolver os programas que mencionem as influências subjacentes às teorias somáticas. A mais notável delas é a forte influência de filosofias orientais. [...] 6. Oportunizar aos estudantes o compartilhamento de seu conhecimento 'vivido' ou incorporado por meio de e em apresentações, na aula e em casa [...]. Aproveitar pesquisas educacionais qualitativas para observar com inteligência e 'Escutar as vozes dos estudantes'" (Eddy, 2000, p. 5-6). Uma coletânea e avaliação dos resultados de estudos norte-americanos e europeus e ativismo pode proporcionar um relevante aprimoramento da pesquisa atual.
  • 19
    Em seu ensaio Body Consciousness: a philosophy of mindfulness and somaesthetics (2008), Richard Shusterman adota uma postura e uma metodologia muito similares, criando uma pesquisa somaestética de diversos filósofos, como Michel Foucault, Simone de Beauvoir e Maurice Merleau-Ponty. Shusterman encontra o ceticismo e a avaliação de Ginot em termos de abstração do discurso somático de suas contingências. De fato, a recorrência de tais estratégias discursivas sinaliza uma posição somática essencialista semelhante. Marcadas por uma intenção obsessiva de definir e aplicar paradigmas somáticos, "[...] as tentações da comprovação" (Ginot, 2010, p. 18) vão de Hanna a Shusterman e constituem uma modalidade aparentemente sedutora de organizar o discurso.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2015

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2014
  • Aceito
    06 Set 2014
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