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A Construção de Presença e a Cena Teatral Multimidiática: a hegemonia de uma presença imanente

La Production de Présence et le Théâtre Multimédia: l'hégémonie d'une présence immanente

Resumo:

Neste ensaio, parte-se da compreensão de que a copresença de artistas e espectadores na cena contemporânea articula-se por meio de um foco na ficção e outro que privilegia a percepção e a interação concreta. Com base na discussão do problema da expressão em Deleuze/Espinosa e na crítica à produção de sentido em Gumbrecht, são designados dois modos de presença: presença emanativa e presença imanente, sendo que a última se torna hegemônica no teatro contemporâneo. Objetiva-se refletir como um dispositivo multimidiático, com as possibilidades de uma intermidialidade, impacta nesse jogo de imanência e transcendência.

Palavras-chave:
Presença Emanativa; Presença Imanente; Performatividade Teatral; Multimidialidade; Teatro Contemporâneo

Résumé:

Dans ce travail, nous partons de la compréhension que la coprésence des artistes et des spectateurs dans la scène contemporaine s'articule autour de deux axes: un sur la fiction et un autre qui met l'accent sur la perception et l'interaction concrète. Ayant pour bases la discussion du problème de l'expression chez Deleuze/Spinoza et la critique à la production du sens chez Gumbrecht, nous désignons deux modes de présence : présence d'émanation et présence immanente, ce dernier devenant hégémonique dans le théâtre contemporain. Notre objectif est de réfléchir comment un dispositif multimédia, avec ses possibilités de médiation, peut-il avoir un impact sur ce jeu de l'immanence et de la transcendance.

Mots-clés:
Présence d'Émanation; Présence Immanente; Performativité Théâtrale; Multimédia; Théâtre Contemporain

Abstract:

In this work, we depart from the understanding that the co-presence of performers and spectators in contemporary theatre articulates itself through a focus on fiction and one that emphasizes the sensorial perception and concrete interaction. Based on a discussion of the problem of expression in Deleuze/Spinoza and on the critique of the production of meaning in Gumbrecht, we name these two modes of presence respectively emanative presence and immanent presence, with the latter becoming hegemonic in contemporary theatre. We aim to reflect on how a multimedia device, with its possibilities of intermediality, may impact on the interaction between immanence and transcendence.

Keywords:
Emanative Presence; Immanent Presence; Theatrical Performativity; Multimidiality; Contemporary Theatre

O Senhor esteja convosco.Ele está no meio de nós1 1 Trecho da Liturgia da Palavra na Santa Missa Católica.

A Presença: um conceito poético múltiplo

As questões pela produção da presença - enquanto estado físico (auto)referencial e com carga energética extraordinariamente intensificada2 2 Sobre as definições desse tipo de presença, ver Fischer-Lichte (2011). - e as questões pelas modalidades da representação - enquanto mediações entre uma ausência fatual e uma presença simbólica - cruzam-se e criam efeitos contraditórios e paradoxais no teatro contemporâneo. De fato, estabelece-se um jogo que se efetua entre presentação performativa e representação semiótica duradoura, permitindo o cruzamento de questões referentes à configuração do espaço/tempo cênicos em relação à noção de verdade: verdade cênica versus verdade da ficção, ou também verdade do corpo versus verdade da personagem. Nos diferentes desdobramentos da noção, estabelece-se uma perspectiva transcendental e outra imanente. Essa diferenciação, por ser mais filosófica do que tecnológica, transpassa outras questões mais correntes em relação à presença cênica, tais como a presença enquanto copresença física3 3 Como em Lehmann (2007) e Fischer-Lichte (2011). , telepresença4 4 Ver Auslander (1997) e Santos (2012). ou presença virtual5 5 Ver a discussão sobre o impacto das novas mídias sobre o trabalho cênico do ator, bem como o fenômeno de comunidades virtuais na internet em Bay-Cheng et al. (2010). .

É possível pensar, juntamente com Hans Ulrich Gumbrecht (2010GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. Tradução: Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-RJ, 2010.), na eucaristia como um dos exemplos mais eminentes dessa diferenciação na cultura ocidental: signo no contexto protestante e substância no contexto católico, representação semiótica ou rito performativo. Entretanto, em ambos os contextos, trata-se de uma verdade transcendental, mesmo que a versão ritualística esteja mais perto de uma concretização imanente dessa verdade por meio do ato concreto cujas qualidades influenciam na qualidade da presença divina. De fato, o caso católico, no qual se trata de uma presença concreta do divino neste mundo, afirma que a essência divina pode encarnar-se completamente no mundano, como na frase famosa de Robert Musil em seu conto A Portuguesa, que termina com a afirmação: "Se Deus pôde fazer-se homem, também poderia tornar-se gato" (Musil, [1988]MUSIL, Robert. Die Portugiesin. Spiegel Online, Hamburg, [1988]. Disponível em: <Disponível em: http://gutenberg.spiegel.de/buch/die-portugiesin-6886/1 >. Acesso em: 13 nov. 2014.
http://gutenberg.spiegel.de/buch/die-por...
, n.p.). Gumbrecht nos alerta que, na fruição artística, o ser humano vivencia uma experiência em que a intensidade do fenômeno é maior do que a capacidade do observador de explicá-lo e de interpretá-lo enquanto representação de uma ideia de mundo, sem que esse excedente mate ou impossibilite a busca por uma interpretação semântica. Ou seja, na obra artística, percebida enquanto presença de um excesso impactante para além de sua dimensão semiótica, o que interessa é algo como um elan vital6 6 Encontramos em Ferracini (2014a) uma tentativa de pensar esse elan vital como potência coexistente com os corpos poetizados a partir de uma abordagem não transcendental em relação ao trabalho do ator. O que nos parece fundamental frisar é o fato de que, nessa abordagem não transcendental, as forças e energias excedentes não se configuram como um campo acabado (espelho ou representação supostamente perfeita da verdade de um conceito), mas como uma atividade dinâmica enraizada, em última análise, numa atividade cósmica e não apenas humana. corporificado ou uma potência física impactante (a troca materializada entre o humano e o nãohumano, entre corpo e consciência), sobretudo (ou até unicamente) na medida em que o ator consiga provisoriamente lhe oferecer um corpo significante, que aponta especialmente a sua necessária autodestruição num excesso energético, semelhante à nuvem que torna perceptível, para a atividade de imaginação psicofísica, a existência constante de um vento que a forma e a dissipará (para referenciar uma expressão de Walter Benjamin7 7 Às vezes, encontramos afinidades surpreendentes, como entre essa citação de Benjamin e outra de Deleuze e Guattari: "A carne é somente o revelador que desaparece no que revela: o composto de sensações" (1992, p. 236). ). Essa é a representação de uma performatividade cósmica inerente ao mundo humano, performatividade que a visão protestante não consegue captar e incluir em sua visão do mundo, mas que está presente na afirmação dos fiéis na Santa Missa, como mostra a epígrafe deste ensaio.

Percebemos que, nesse processo de expressão corporal imanente, há uma copresença estabelecida entre o representacional e o performativo, entre a referência a uma ausência ficcional e a afirmação de uma presença energética, entre processos de significação e processos de performatividade. Não é uma relação excludente, mas antes uma relação mediadora. No contexto cênico, os corpos ou objetos envolvidos nessa relação funcionam tanto como signos quanto como coisas substanciais nas quais a energia se concretiza. Nesses corpos duplos, encontramos a necessidade de se repensar a noção de presença que os circunda e que os liga com os objetos e seres ao seu entorno.

Na cena teatral brasileira, observamos que se tornou comum, tal como percebe IcleICLE, Gilberto. Estudos da Presença: prolegômenos para a pesquisa das práticas performativas. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 1, n. 1, p. 9-27, jan./jun. 2011. 8 8 Para Icle, a presença é relacional, é uma experiência partilhada com alguém que presencia "[...] uma prática performativa", de maneira que "[...] não se pode estar presente ou ter presença, no sentido teatral, quando se está sozinho" (2011, p. 16). (2011), que a presença esteja imbricada com a qualidade da atuação do ator apresentando "[...] sentidos correlatos, complementares". Assim, pensa-se a presença como:

[...] um estar em presença de alguém no sentido espacial do termo ou na sua dimensão temporal, quando se está no presente. A presença, ainda, pode fazer alusão a algo invisível ou desaparecido que se torna presente. Assim, objetos, lugares, seres podem ter uma presença, a presença de algo invisível. Quando empregamos a palavra para designar a qualidade da atuação, de alguma forma, a empregamos com todos esses sentidos e mais alguns. Ela se confunde com a própria atuação, pois as práticas performativas não são outra coisa, senão as artes da presença (Icle, 2011ICLE, Gilberto. Estudos da Presença: prolegômenos para a pesquisa das práticas performativas. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 1, n. 1, p. 9-27, jan./jun. 2011., p. 15).

Se, por um lado, essa fusão de significativas chega perigosamente perto da criação de uma con-fusão, parece-nos claro que essa noção de presença existente em torno da atuação se manifesta como uma herança do teatro dramático. Ela coloca o estado de estar em presença, sobretudo, como atributo de alguém (o grande ator) ou algo (o objeto poético) e não como efeito de uma relação9 9 Renato Ferracini aponta para o problema da presença como efeito de uma capacidade individual: "Cada vez mais aprendemos em nosso cotidiano de atores-pesquisadores em trabalho no LUME que a presença cênica é construção e composição na relação com o outro. Talvez seja essa a força invisível que Grotowski diz acontecer entre o público e o ator e que, para ele, define TEATRO. Nessa esteira de pensamento podemos afirmar que a poesia cênica para ator só se completa, se efetiva e se atualiza quando se compõe poeticamente com algo-corpo fora dele próprio" (2014a, p. 227). Mesmo que essa problematização enfoque esse algo-corpo-fora como um elemento copresente a mim, ela não diferencia como se dá esse modo de atualização: enquanto concretização emanativa de uma verdade anterior a nossa copresença (ver, por exemplo, Grotowski) ou como coarticulação a nossa copresença sem remeter a um modelo ideal como sua origem externa (ver poéticas que trabalham com a serialidade). . Essa presença, estando vinculada ao sistema epistemológico do teatro dramático, somente pode manifestar-se como emanação, já que possui um aspecto transcendental no qual faz alusão a algo invisível ou desaparecido que se torna presente através da atuação (corpo). O presente dramático se afirma como presença aurática emanativa.

O teatro contemporâneo, ao colocar-se - tal como afirma Lehmann (1997) -, antes de tudo, como uma copresença física que implica uma relação recíproca e - devido a sua ênfase nos sentidos - até opaca entre o trabalho artístico e o espectador, tende a fracionar a possibilidade de uma presença aurática, dado que ele impõe à cena um jogo paradoxal entre imanência (presentação) e transcendência (representação), ainda que o corpo continue a participar do "[...] paradoxo de sua presença" (Lehmann, 1997, p. 256). Percebemos surgir, nesse paradoxo, uma afetação que reúne tanto seu esvaziamento na efemeridade quanto sua intensificação no fluxo constante dos momentos, perturbando a noção de presença que emerge em torno da atuação.

Nas palavras de Lehmann (2007LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático. Tradução: Pedro Sussekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007., p. 239-240, tradução adaptada após comparação com o texto original), esse teatro contemporâneo e performativo privilegia um estado de presença que enfoca a propriedade fugaz do presente:

Reformular a presença como presente do teatro significa, sobretudo, pensá-la como processo, como verbo. Ela não pode ser objeto nem substância. [...] Contentamo-nos com a compreensão desse presente como algo que acontece. [...] Esse presente não é um ponto do agora coisificado numa linha do tempo; ele ultrapassa esse ponto num incessante desvanecer e, ao mesmo tempo, é cesura entre o passado e o porvir. O presente é, necessariamente, erosão e escapada da presença. Ele designa um acontecimento que esvazia o agora e, nesse mesmo vazio, faz brilhar a recordação e a antecipação (Lehmann, 2007LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático. Tradução: Pedro Sussekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007., p. 239).

Esse presente efêmero, então, pode criar um momento extraordinariamente intensivo, fora da linha contínua do tempo, pela conjunção dos elementos participantes (atores, espectadores e elementos cênicos, incluindo os dispositivos multimidiáticos) e simultaneamente atesta e efetua seu constante esvaziamento e sua perfuração. É, sobretudo, esse esvaziamento do agora que produz a intensidade desse momento estético: um presente cuja presença se dá pela experiência de uma intensidade temporal em constante fluxo; mais ainda, um interstício nesse fluxo do tempo que nos faz perceber seu caráter suturado. Estamos, antes, perante um esvaziar, um evacuar, do que um devir ou mesmo um preencher constante. Essa posição de Lehmann nos parece colocar em xeque todas as versões de presença que se apoiam em um contexto transcendental que se concretiza em um aquieagora pleno de forças e energias existenciais invisíveis, pré-existentes e universais.

Propomos que esse presente, contaminado por um caráter fugaz, pela permanência de sua fugacidade, pode ser captado com Deleuze e seu leitura de Spinoza enquanto presença imanente, um momento de intensidade extrema e momento até autotransgressivo que depende de uma qualidade específica da interação entre os elementos participantes. Na leitura deleuziana de Spinoza, essa qualidade específica nos parece ser a percepção do jogo incessável de particularidades quantitativas, dinâmicas e em constante diferenciação. Nessa percepção, diríamos, não se representa nada. Antes, ela se autoafirma como experiência de uma fresta presente no tempo linear, como o presente de uma descontinuidade contínua10 10 É a percepção dessa fresta que nos faz escolher a leitura de Deleuze da obra de Spinoza como ponto de referência, apesar do fato de que Deleuze leva, no conceito do devir, essa fresta para um lado mais criativo do que interessa a nosso trabalho. Aqui a fresta aparece como uma sombra que persegue esse devir na forma de um desfazer contínuo. . Estamos tentados a formular que esse tempo é experiência tanto de nossa mortalidade quanto de nosso potencial evolutivo ou, em termos deleuziano-spinozistas, a flutuação entre a diminuição e o aumento de nossa potência11 11 É possível refletir sobre o potencial mimético dessa organização social do encontro estético. Erika Fischer-Lichte (2001) diferenciou-o entre vários tipos de mimese na obra (do mundo externo, da consciência do artista etc.), e entre eles há uma mimese da interpelação. Entendemos que a mimese de interpelação propõe ao espectador um modo participativo que representa a possibilidade de experimentar outra relação com o mundo. Devido ao espaço restrito, não podemos elaborar possíveis relações entre a presença imanente e a mimese interpelativa no contexto das artes cênicas. . No jogo com esse presente continuamente descontínuo, concretiza-se, para nós, a presença imanente da cena contemporânea.

Partiremos dessa hipótese para sustentá-la conceitualmente no contexto do teatro contemporâneo. Depois refletiremos sobre como impacta um dispositivo multimidiático nesse jogo entre imanência e transcendência, uma vez que o primeiro conceito implica a copresença física de seus produtores, enquanto o segundo necessita da existência de um horizonte externo estável no qual reside uma verdade maior. Desse modo, o recurso midiático, como o vídeo ao vivo e a projeção editada de imagens pré-gravadas, autoafirma-se em sua realidade física12 12 Embora seja difícil para nossa avaliação atribuir ao dispositivo multimídia um status semelhante à hóstia, é exatamente isso de que se trata: o aparelho midiático pode funcionar como signo e substância, não apenas como um suporte para que outros signos possam surgir. e aponta simultaneamente a uma realidade ausente. Ele intensifica e torna complexas as relações entre os participantes, diversificando-as e possivelmente as dispersando. Surge aqui uma primeira indicação de que o recurso midiático necessita compreender a presença enquanto noção possivelmente contraditória. A multimidialidade (e mais ainda a intermidialidade) na cena contemporânea coloca em jogo, no mínimo, uma presença de um agora substancial pleno e de um agora dinâmico em constante esvaziamento. Se ambos os modelos possuem sua versão aurática, cada uma levará também a uma sociabilidade diferente: por um lado, um conjunto intensificado a partir de uma relação homogeneizada entre os participantes e, por outro, uma relação tênue e instável a partir de um olhar múltiplo (quase esquivo) dos participantes sobre si mesmos, sobre os outros e principalmente sobre a relação entre ambos, focando criticamente o próprio olhar como força estruturante.

A Produção de uma Presença Imanente no Teatro Contemporâneo

Na busca de uma melhor compreensão da produção de presença no teatro contemporâneo, partimos de três questões: 1) dada a importância da presença do presente no teatro contemporâneo, como podemos compreender filosoficamente a produção de presença enquanto fluxo do presente intensificado?; 2) como compreender essa presença do presente de uma forma que permita torná-la frutífera para a compreensão e construção de uma cena performativa contemporânea?; e 3) quais são as possibilidades de uma dramaturgia cênica que lança mão de recursos midiáticos para construir uma percepção da presença do presente numa situação teatral de interação direta entre seus participantes? Como já sinalizamos acima, percebemos, na dramaturgia composta através do sistema que engendra a separação palco/plateia e espectador/ator, uma configuração da presença cênica em torno do corpo do(a) ator(atriz), por um lado, através da assunção da máscara/personagem e, por outro, da materialidade da cena e do corpo13 13 Compreendemos que o sistema produtor da presença imanente coloca como prerrogativa avaliativa e interpretativa o que Gumbrecht identifica como as materialidades da comunicação: "[...] todos os fenômenos e condições que contribuem para a produção de sentido, sem serem, eles mesmos, sentido" (2010, p. 28). Para efeito deste estudo, porém, denominamo-las aqui como materialidades da cena. Não são uma condição ontológica, mas uma condição que surge em cena como o avesso da dimensão significante. , visto que esses elementos se apresentam como mediadores da comunicação entre o autor/encenador e o leitor/espectador. Assim, a participação do espectador pode dar-se através de dois focos: um foco interpretativo, que privilegia a construção de uma camada semântica atrás da ou anterior à materialidade concreta da cena (o que a cena quer dizer, o que ela quer que eu pense dela), e outro foco, que privilegia a percepção e a interação concreta imersiva (o que a cena faz comigo, como vim parar aqui, o que eu faço aqui).

Desse modo, o espectador se torna coparticipante de duas cenas diferentes: a primeira situa-se em um espaço imaginário, ficcional ou semântico, enquanto a segunda situa-se na concretude do espaço físico e das relações sensoriais entre os corpos presentes. Mesmo que as duas cenas estejam copresentes na fruição da experiência teatral, surge a possibilidade e até a probabilidade de determinado espetáculo privilegiar uma das duas ou, nos casos mais complexos, jogar com ambos e iniciar um trânsito do espectador pelos dois14 14 É um dos grandes méritos do livro O Teatro é Necessário?, de Denis Guenoun, ter analisado as relações entre essas duas camadas em diferentes contextos históricos chave. .

A partir do problema da expressão em Deleuze/Espinosa (1968DELEUZE, Gilles. Espinosa e o Problema da Expressão. [S.l.]: [s.n.], [1968]. Disponível em: <Disponível em: http://search.4shared.com/postDownload/EXydWwxs/gilles_deleuze_-_espinosa_e_o_.html >. Acesso em: 23 set. 2013.
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) e da crítica à produção de sentido em Gumbrecht (2010GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. Tradução: Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-RJ, 2010.), propomos correlacionar essas duas cenas com dois tipos de presença filosófica. Temos a presença produzida através do drama (representação), que constitui um compartilhamento intelectual de uma realidade verdadeira anterior, mas agora ausente; e a presença de um modo físico de compartilhar o acontecimento cênico (presentação) enquanto a única realidade importante15 15 Diga-se de passagem que corresponde a essa divisão a diferenciação entre o espetáculo enquanto texto ou evento. . Inspirados pela leitura deleuziana de Spinoza, falamos, respectivamente, de presença emanativa - ou transcendental16 16 Sobre o princípio de emanação e de imanência como modos de participação de Deus no mundo e do mundo em Deus, ver Deleuze (1968), especialmente o capítulo 11. - e de presença imanente.

A primeira seria uma presença que se estabelece em torno do paradigma sujeito-objeto e que se configura como o efeito de uma causa exterior a ser representada pela dramaturgia e materialidade da cena: a dinâmica da cena materializa uma essência anterior e externa à sua existência. A segunda, por sua vez, é uma presença que se estabelece como problematização desse paradigma, ou seja, onde causa e efeitos estão contidos nela própria como latência e expressões: a dinâmica da cena expressa, em sua forma material concreta, uma latência contida na copresença dos elementos, que compõem essa presença tanto em seu sentido físico quanto conceitual17 17 "Uma causa é imanente, pelo contrário, quando o próprio efeito é 'imanado' na causa, ao invés de emanar dela. O que define a causa imanente é que o efeito está nela, como poderia estar em outra coisa, sem dúvida como em outra coisa, mas está e permanece nela. O efeito permanece na causa, assim como a causa permanece nela mesma. Desse ponto de vista, a distinção de essência entre a causa e o efeito não poderá nunca ser interpretada como uma degradação. Do ponto de vista da imanência, a distinção de essência não exclui, mas implica uma igualdade de ser: é o mesmo ser que permanece em si na causa, mas também no qual o efeito permanece como em outra coisa" (Deleuze, 1968, p. 156). .

Observamos que a presença imanente possui dois grandes paralelismos com o contexto das práticas performativas contemporâneas: a autorreferência e a interatividade direta. A autorreferência, apesar de implicar uma propriedade dinâmica, semântica possível ou conceito anterior18 18 Quando a cena representa, por exemplo, uma verdade do texto ou da concepção de direção enquanto sua causa anterior. Essa cena evoca a presença transcendental ao emanar de uma concepção anterior que a submete à sua proposta. , não representa sua causa. Visto que ela é imanente, contém sua causa e nela está contida de modo latente. Em seu processo de desvelar-se, a causa surge como efeito da materialização concreta de um presente, mas não a antecede, de maneira que se afirma sempre no aquieagora e permite construir possíveis antes e depois, sem remeter a uma presença já pronta fora do tempo. Por afirmar a presença como o surgimento de um fenômeno mundano no contexto de outros fenômenos mundanos, ela também é relacional, ou seja, nunca um fenômeno individual afirma sua presença como autossuficiente. Nesse sentido, sua autorreferência revela uma autodeficiência. Portanto, afirma relações interativas entre os elementos presentes e as causas expressas. Em outras palavras, na presença imanente, constrói-se a relação espacial e social entre os espaços cênicos, dos artistas, e o espaço da plateia, dos espectadores-participantes, como lugar privilegiado para manifestar-se. A presença imanente não se constrói apenas no palco, mas na relação entre palco-plateia e apenas na duração do tempo de construção e manutenção dessa relação.

Adotando a perspectiva de Gumbrecht (2010GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. Tradução: Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-RJ, 2010.), segundo a qual o paradigma sujeito-objeto corresponde a uma relação excêntrica, porquanto informado pelo modo transcendental, à cisão entre sujeito/observador e objeto/mundo observado, entendemos que a substituição proposta por Gumbrecht pelo sernomundo heideggeriano viabiliza a concepção desse sernomundo como presença imanente: uma existência relacional dinâmica, na qual é a relação que se apresenta como autorreferencial e autopoética (e não o sujeito!). Percebemos que, nessa noção de sernomundo, cada situação de caráter imanente é composta por relações dinâmicas entre os elementos participantes desse sernomundo e deles consigo mesmos19 19 Ferracini e Pucceti apresentam relatos de uma "presença relacional" (mas que presença não o seria?); de uma "[...] presença que se completa com o espectador" (2011, p.361) e cria efeitos de (quase) harmonia. De fato, nesse efeito, reside possivelmente uma fonte subversiva inerente ao acontecimento teatral enquanto comunhão poética. Entretanto, não podemos esquecer que o encontro entre cena e espectador, quando é desestabilizador, sempre implica perceber uma dimensão de ameaça, de medo e de ruptura mais ou menos violenta. O sernomundo implica um corpo poroso (como apontam os dois atores do LUME), mas um corpo que, nessa porosidade, ativa necessariamente as tensões existentes (conceitualmente, mas também historicamente). .

Podemos entender, então, a existência nesse sernomundo como marcada por uma constante interação entre os seres individuais, os demais seres e as coisas. Como já se viu acima, na leitura deleuziana de Spinoza, essa interação articula, mais ou menos ativamente por parte do indivíduo humano, a construção de relações com diferentes quantidades de potência:

Aumentar sua potência é precisamente compor as relações tais que a coisa e eu, que compomos as relações, não somos mais que duas sub-individualidades de [...] um novo indivíduo formidável (Fragoso; Cardoso Junior, 2005FRAGOSO, Emanuel; CARDOSO JUNIOR, Hélio. Introdução. In: DELEUZE, Gilles. Cursos Sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Fortaleza: EDUECE, 2005. P. 1-4., p.63).

Experimentamos a presença imanente não apenas quando experimentamos essa nova potência, mas, sobretudo, quando experimentamos a transição de um estado de potência a outro. Quando a percepção dessa transição se torna intensa, de uma intensidade quantitativamente específica, percebemos, segundo Deleuze e Spinoza, uma versão da eternidade, a duração:

A passagem do estado anterior ao estado atual difere em natureza do estado anterior e do estado atual. Há uma especificidade da transição e é precisamente isto que chamamos duração e o que Spinoza chama duração. A duração é a passagem vivida, a transição vivida [...] enquanto irredutível tanto a um estado quanto ao outro (Fragoso; Cardoso Junior, 2005FRAGOSO, Emanuel; CARDOSO JUNIOR, Hélio. Introdução. In: DELEUZE, Gilles. Cursos Sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Fortaleza: EDUECE, 2005. P. 1-4., p. 57-58).

É patente a semelhança entre a descrição da transição por Deleuze e a definição do modo temporal dominante no teatro pós-dramático por Lehmann. Acreditamos que a forte ênfase em estruturas autorreferenciais, mas internamente instáveis, no contexto das artes cênicas contemporâneas deve-se, entre outros motivos mais analíticos e críticos, a essas possibilidades de construir uma experiência imanente enquanto vivência de uma transição de um estado de potência para outro. Não se trata apenas de construir um estado de potência elevado, mas de construir uma percepção extracotidiana da variação contínua dos graus de potência, que construímos ao relacionarmo-nos conosco e com seres e objetos ao nosso redor.

Por último, parece-nos importante ressaltar que a experiência de pertencimento, que a presença do presente (ou experiência de uma duração) configura, não se baseia na possibilidade de uma superação de diferenças, mas na necessidade de coexistência com elas, pois a duração se manifesta em uma diferenciação constante. Por menor que seja, o presente abre uma lacuna, um interstício, tanto no tempo linear quanto na percepção espacial. É a distância com o outro que permite ao indivíduo experimentar o pertencimento mútuo. Ou seja, é a renovada tensão entre proposta cênica e percepção do espectador; é o excesso semântico (e não a compreensão unificante) que os une enquanto um vetor de interesse mútuo constantemente renovado. Compreender a distância e os vetores da atração é apenas o passo secundário.

É a distância inerente à transição que faz com que o sujeito experimente a variação das suas afecções e de seus estados de potência dentro de uma estrutura relacional maior. Entretanto, essa estrutura maior (um novo indivíduo formidável) não remete a um modelo anterior, mas surge pela composição de relações específicas e pode ser vivenciada e modificada apenas no momento da copresença dos participantes. A presença do presente alerta a percepção dos atores e espectadores sobre a instabilidade inerente à existência e confere aos presentes a tarefa de atualizar a transição possível e a transição desejável: aquela que aumente a potência de todos envolvidos.

Nesse sentido, a autorreferência relacional do encontro cênico constitui uma dinâmica que instaura uma temporalidade vivencial não passível de medição ou entendimento linear como sucessão. Se na experiência de copresença emanativa o espectador efetua imaginariamente uma secção no tempo - separando, no momento em que presencia, a representação cênica do cotidiano -, na experiência da copresença imanente, essa secção deixa de existir, e se tem um tempo indivisível, mas também dinâmico, de múltiplas qualidades. Dessa forma, a duração pode permitir à imanência transcender-se. Uma transcendência que não provém do além do criado, mas da presença de uma propriedade transgressiva implícita. Essa força transformadora pode ser descrita com a presença de um Deus estritamente imanente, mas também com o princípio de autotransgressão inerente a toda realidade empírica20 20 Seria interessante aqui discutir esse princípio autotransgressor em relação ao princípio dialético, o que equivaleria a uma discussão da relação entre as filosofias de Deleuze e Marx. Deleuze obviamente recusa o princípio dialético como estrutura única de autotransgressão. Mas essa discussão ultrapassaria de longe o escopo deste trabalho. .

Presença Imanente e Virada Performativa

Como já indicamos acima, observamos, a partir de Deleuze, a importância de dois aspectos espaço-temporais na criação de uma presença da imanência: o aquieagora do acontecimento fenomenal e uma espécie de relação específica entre a percepção humana corporificada e a existência do corpo do outro (seja animado ou inanimado). Juntos, constituem um jogo relacional de encontros que articula diferentes qualidades e quantidades de intensidades.

Associamos a essas mudanças, no contexto teatral, a virada performativa, constatada e analisada por Erika Fischer-Lichte21 21 Ver, sobretudo,Fischer-Lichte(2011), embora não concordamos com a afirmação de Fischer-Lichte de que uma reflexão hermenêutica não pode refletir adequadamente as características dessa performatividade imanente. , e a preocupação com a situação teatral enquanto um dispositivo capaz de gerar transformações corporais e perceptuais por meio de encontros diretos entre os seres presentes no evento teatral22 22 Digamos seres e não seres humanos, pois, na cena contemporânea, encontramos não raramente um animal em cena cuja presença afeta os espectadores. . Essas transformações passam primeiramente por uma afecção sensorial-corporal, e não necessariamente por uma atividade hermenêutica, como afirma Lehmann (2007LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático. Tradução: Pedro Sussekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007.).

Fischer-Lichte aponta dois aspectos que nos interessam por sua ligação com o fenômeno de uma presença imanente. São eles o papel da interação direta que fortalece o papel da copresença de atores-performers e espectadores-participantes na construção do acontecimento teatral23 23 Compreendemos que mesmo a construção performativa de materialidade se baseia na reflexão de que a materialidade concreta não é algo dado, mas um fenômeno que sofre intensificações e diluições. Isso ocorre na medida em que se põe em cena a materialidade para que ela se torne uma materialidade específica, um corpo específico, a partir do qual emergem significados como potencialidades de sua presença corporal. Também gostaríamos frisar, contrário às afirmações que Fischer-Lichte parece sustentar, que a materialidade não surge no palco teatral ou social como um tipo de materialidade pura, livre de significados sociais. O que nos parece estar em jogo é o poder da materialidade de concretizar um excesso em relação aos significados sociais, associados a uma materialidade específica, a um corpo determinado. , de seu impacto e possível significado; e a noção de "emergência do significado" (Fischer-Lichte, 2001FISCHER-LICHTE, Erika. Aesthetische Erfahrung: das semiotische und das perfomative. Tübingen/Basel:Francke, 2001., p. 277-279) ao invés de sua concretização.

Dessa forma, o que Fischer-Lichte chama de "emergência de significado" por meio da repetição de formas materializadas (gestos e atos) remete-nos ao fenômeno da duração enquanto percepção da transição de um estado quantitativo para outro; enquanto percepção da individualidade de um corpo tanto quanto do fenômeno da duração dinâmica. O que Fischer-Lichte chama de copresença (2001, p. 77-82) tem equivalência na colocação de Deleuze/Espinosa, de acordo com a qual o encontro potencializador produz um novo indivíduo formidável, uma estrutura relacional interativa entre os corpos participantes.

A reflexão de Fischer-Lichte (2001FISCHER-LICHTE, Erika. Aesthetische Erfahrung: das semiotische und das perfomative. Tübingen/Basel:Francke, 2001.) sugere que, nessa dramaturgia - diante um significado que não é dado por uma realidade exterior, mas que é articulado em relação tensa com essa realidade na duração da afecção dos corpos -, se estabelece uma dimensão específica e circunscrita no âmbito da construção performativa da identidade e do gênero, tal como analisado por Judith Butler. A presença imanente permite ao espectador sentir e entender mais claramente como os atributos e marcas sexuais e étnicos no corpo são performativa e precariamente aculturados no corpo humano. Dessa forma, pode perceber-se como "[...] o corpo em sua particular matéria é o resultado de uma repetição de determinados gestos e movimentos" (Fischer-Lichte, 2001FISCHER-LICHTE, Erika. Aesthetische Erfahrung: das semiotische und das perfomative. Tübingen/Basel:Francke, 2001., p. 55).

Nessa copresença de diferentes elementos performativos (reais, autorreferenciais, realizados como autopoiéticos) munidos de atributos culturais semióticos, manifestam-se epifanias que, no movimento entre aparecer e desaparecer, estabilizam e desestabilizam o fenômeno cênico. Isso se deve ao fato de que esses elementos não visam atualizar possibilidades sociais de identidade (representar) e variá-las; ao contrário, a partir da afecção dos corpos do ator/performer e do espectador/participante, eles pretendem colocar em jogo corpos concretos que acabam possivelmente extrapolando a possibilidade de sua identificação discursiva por características sociais, históricas unívocas etc.

Trata-se de uma dramaturgia que se deslocou de um sistema de significação com foco no sentido para a substância performativa da copresença. Esta tem como força motriz o jogo interativo entre potências de criar sensações e impactos sensoriais. Nesse jogo que se configura a partir do paradigma ser no mundo heideggeriano, o significado oriundo de uma perspectiva hermenêutica se dilui, fazendo emergir o efeito de uma presença sensorial dada pelo impacto da imersão na construção da cena da presença do espectador-participante.

Como consequência desse jogo,é estabelecida uma produção de sentido, fruto da interatividade de presenças manifestas no agir de um corpo sobre o outro (enquanto corpo e como corpo), propagando-se como um contágio, tal como um casal que dança e, no ajustamento dialético de seus corpos, estabelece reciprocidade no sentir e ser juntos. Articulam-se, assim, diferenças numa rede significativa de transições e intensidade no tempo e no espaço, construindo a possibilidade da experiência de uma duração semântica. Essa experiência da copresença tendendo a enfatizar a dimensão presente instala-se como um acontecimento irrepetível, tal como no happening; instala-se uma comunidade, uma cerimônia, um rito.

Visando compreender melhor esses atos performativos que tendem a se instalar como rito, Fischer-Lichte (2001FISCHER-LICHTE, Erika. Aesthetische Erfahrung: das semiotische und das perfomative. Tübingen/Basel:Francke, 2001., p. 27-29) encontra, nos estudos religiosos e suas relações históricas entre ritual e mito, entre rito e dogma, a percepção de que suas práticas são mais antigas do que as interpretações que lhes foram atribuídas em forma de mitos ou sistemas religiosos. Ou seja, historicamente, nesse contexto, a produção de presença, dada na dimensão do presente, antecede a produção de sentido. Novamente, encontra-se uma hegemonia da imanência sobre a metafísica, no sentido de que os rituais organizam uma realidade empiricamente palpável para que se manifeste seu potencial de ser materialidade transcendente: uma realidade empírica que transgride a mera materialidade silenciosa de um simples estaraí sem potencial comunicativo. A materialidade ganha significado no bojo do jogo momentâneo e não previamente, homogeneizando os participantes. Visto que não há uma mensagem ou conteúdo específico a ser transmitido do palco em direção à plateia24 24 Embora a relação entre materialidade e criatura em sua dimensão cósmica seja uma camada semiótica copresente com o foco na própria materialidade. Como dissemos no início, de fato, acontece uma cocriação dos processos de significação e de performatividade. , observa-se que a presença nesse acontecimento é partilhada, favorecendo uma comunhão entre os presentes a partir da articulação de intensidades materiais, de estados energéticos e atmosferas, ou seja, de uma práxis cênica. Reafirma-se, assim, o fato de que os significados (referências culturais e históricas) não são expressos previamente.

Ao refletir sobre a criação dos estudos teatrais por Max Herrmann na Alemanha, Fischer-Lichte (2001FISCHER-LICHTE, Erika. Aesthetische Erfahrung: das semiotische und das perfomative. Tübingen/Basel:Francke, 2001.) mostra o deslocamento da prática teatral de concretização de significados (como se fosse uma espécie de ato de leitura) para uma realização cênica da presença de atores-performers e espectadores-participantes. Nessa realização, a possibilidade de criar efeitos de sentido depende fortemente da criação de efeitos de presença, ou seja, estamos perante a hegemonia de uma presença da imanência:

Ao transformar em aspecto fundamental de sua definição tanto a copresença física de atores e espectadores, que junto fazem com que a realização cênica aconteça, quanto as ações corporais realizadas por ambos os grupos, e ao centrar com isso sua atenção num processo dinâmico, imprevisível tanto em seu percurso quanto em seu resultado, Herrmann marginaliza a expressão e a transmissão de significados previamente dados. Os significados que surgem nesse processo só podem produzir-se dentro dele e por meio dele (Fischer-Lichte, 2001FISCHER-LICHTE, Erika. Aesthetische Erfahrung: das semiotische und das perfomative. Tübingen/Basel:Francke, 2001., p. 72).

Os significados podem surgir apenas por um processo de vivência dos atores e espectadores, mesmo que posteriormente seja possível tentar comunicar linguisticamente esse processo, seu impacto e seu sentido. Antes de tudo, a realização cênica busca a criação de um efeito de presença enquanto processo de imanência que se dá no aquieagora da copresença e da cooperação física e perceptual ativa dos participantes presentes. É necessário que se instale uma espécie de curto-circuito entre os participantes artistas e espectadores, o que Fischer-Lichte chama de círculo de feedback poiético.

O que acontece com esse círculo que se alimenta retroativamente quando um dos elementos envolvidos é fixado e pré-gravado? Como a hibridez intermidiática impacta nas possibilidades de construir uma presença transcendente e outra imanente?

A Cena Contemporânea Multimídia e a Produção de uma Presença do Presente

A copresença de diferentes materialidades na cena (corpo vivo, imagem técnica gravada ou ao vivo e a fisicalidade do aparelho técnico em evidência) no contexto da cena multimídia e da intermidialidade ajuda-nos a colocar em xeque a noção enfática de uma presença transcendental25 25 Mas parece claro que a presença dos multimeios pode ser usada de modo a fortalecer uma concepção emanente. Isso acontece quando os recursos não expressam nenhuma dimensão autorreferencial e autocrítica nessa autorreferencialidade. . Percebemos a necessidade de afirmar que a copresença de corpos ao vivo e de corpos transformados em imagem midiática exige repensar o fenômeno da presença em sua relação com os conceitos de transcendência e imanência, pois a coexistência de presenças físicas (ao vivo) e outras midiatizadas cria a possibilidade de entrar e sair do modo físico de uma copresença física para entrar em uma relação física com um dispositivo midiático e a realidade da imagem ao invés do corpo26 26 Sobre o assunto, ver, por exemplo, a tese de Phillip Auslander em Liveness. O autor postula que não se pode construir uma oposição ontológica entre performance ao vivo e performance gravada, uma resposta a Herbert Blau e seu ensaio Theater and Cinema: the scopic drive, the detestable and more of the same (1981). .

Se, por um lado, o que se materializa na presença das imagens midiatizadas não é uma realidade transcendental universal e eterna preexistente, mas sim uma realidade histórica - uma realidade específica e qualificada capturada tecnicamente como também evocada pela existência do próprio aparelho -, por outro lado, a realidade de uma gravação específica pode transcender-se no sentido de ser uma concretização de forças civilizatórias que apontam a presença da chamada realidade virtual como horizonte transcendental de práticas e processos de simbolização humanos. Todo corpo natural se desfaz na corporeidade fabricada e distante de sua imagem midiatizada. Enquanto fabricadas, a imagem e a corporeidade se mostram dependentes de práticas culturais historicamente específicas, enquanto o corpo ao vivo possui a possibilidade de criar vetores que apontam para um além da cultura27 27 Ver, por exemplo, o projeto grotowskiano de fazer o corpo do ator ultrapassar as camadas culturais para atingir forças sagradas. Corresponde a essa concepção de atuação uma concepção enfática de presença e uma copresença de atores e espectadores que evoca a ideia de um rito de comunhão. . Surge o binômio de uma transcendência da técnica versus transcendência da natureza.

Nesse contexto, faz-se necessário pensar também a possível função fixadora das mídias em cena enquanto dispositivos que enquadram e submetem uma realidade dinâmica à estética mais mecânica de sua captação. Surge, novamente, o aparelho técnico como uma instância possivelmente transcendental para a construção de imagens midiatizadas.

Por outro lado, a inclusão de cenas gravadas não extingue a possibilidade de uma presença imanente, de um jogo de diferenciações constante. Antes, estamos perante uma coexistência de presenças e telepresenças28 28 O termo telepresença foi cunhado para discutir o efeito de cenas pré-gravadas sobre a cena ao vivo e a percepção do espectador. Ver Bay-Cheng et al. (2010) ou Santos (2012). , que coloca em crise tanto a noção de presença performativa, que depende de corpos vivos e de sua interação poiética em tempo real, quanto o horizonte transcendental da telepresença, que promete a reprodutibilidade desse efeito independente de local e tempo (como acontece no caso do cinema). A coexistência de corpos juntamente com imagens desses corpos permite não apenas discutir a dependência de um fenômeno do outro, o impacto de todo um aparelho técnico, como também reforça a necessidade de repensar a construção de uma presença de imanência.

Nas palavras de Nibbelink e Merx:

[a] presença se torna simultaneamente virtual e atual. Na apresentação intermedial, corpo, tempo, espaço e percepção se revelam como fenômenos multifacetados e dinâmicos. Essa complexidade, por sua vez, convida a um método reciprocamente flexível de descrição e análise do fenômeno29 29 No original em inglês: "Presence becomes both virtual and actual simultaneously. In intermedial performance,body, time, space and perception reveal themselves as multifaceted anddynamic phenomena. This complexity in turn invites a reciprocally flexible method for describing and analysing the phenomena" (Nibbelink; Merx, 2010, p. 218). (Nibbelink; Merx, 2010NIBBELINK, Liesbeth Groot; MERX, Sigrid. Presence and Perception: analysing intermediality in performance. In: BAY-CHENG, Sarah et al. (Org.). Mapping Intermediality in Performance. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2010. P. 218-228., p. 218, tradução nossa).

Mais do que discutir metodologia analítica para esse tipo de espetáculo, interessa-nos como a midiatização da cena, com suas propriedades multifacetadas e dinâmicas, impacta nas possibilidades de construir uma presença imanente, já que joga em crise o funcionamento do círculo autopoiético entre espectadores e atores-performers do qual depende seu caráter imanente.

Quais são as especificidades dessa dinâmica multifacetada e da simultaneidade do virtual e atual, dessa hibridez multimidiática, sobretudo quando pensamos ela como intermedial? Já na seção anterior, formulamos como hipótese que a cena multimidiática pode contribuir substancialmente para construir o fenômeno de instabilidade perceptual; pode efetuar transições nesse olhar que faz com que os objetos surjam de modo intenso, pois emergem como se fossem marcados pela lacuna temporal e espacial que acompanha a percepção do fenômeno de duração ou de presença do fluxo presente. Em outras palavras, a cena multimidiática pode ter um efeito, vamos dizer, desontologizante. Ela também pode, porém, permitir novas formas de interatividade e de imersão que, de certa maneira, podem servir como substituto do contexto transcendental ontológico, por oferecerem um contexto imanente e relacional.

Nesse último ponto, pensamos especialmente em experiências no contexto da instalação, tais como os trabalhos do artista mexicano Rafael Lozano Hemmer, que evidenciam o trabalho midiático como resultado de uma interação social30 30 Ver Coulter-Smith (2006), especialmente o capítulo Attaining the Interactive Goal: vectorial elevation. . O que surge nesse trabalho como elemento fundamental não é um objeto específico nem a tecnologia computadorizada e o world wide web, mas o uso social, o encontro de seres humanos que, juntos, configuram o trabalho artístico. Os trabalhos desse artista evidenciam toda sua potência de expressar uma presença imanente apenas na medida em que se percebe o trabalho coletivo efetuado para sua realização.

Esse tipo de trabalho imersivo propõe uma intermidialidade na qual o corpo humano é uma mídia e um meio de mediação semântica e social. Percebemos aqui a necessidade de pensar a cena teatral multimidiática como uma cena na qual o corpo humano é um meio entre vários, e o que interessa é a interação entre esses meios a fim de construir uma percepção adensada. Importa perceber não apenas a instabilidade das imagens vivenciadas durante a apresentação teatral, mas também as diferentes relações sociais e as transições energéticas e ontológicas oferecidas por essa intermidialidade da situação social. É desse modo que a cena teatral contemporânea nos parece capacitada a oferecer uma experiência da presença imanente enquanto presença comunal. A grande vantagem de uma cena multimidiática pensada de modo intermedial é a possibilidade de interrogações mútuas entre aparelho tecnológico e corpo humano, a fim de evitar que um dos dois se instale como recipiente de uma verdade transcendental.

Os diferentes elementos envolvidos na construção da cena teatral podem formar uma espécie de rede dinâmica que, em sua hibridez ontológica e sua dinâmica crítica-paródica, enfatiza noções tais como repetição, nãointencionalidade, identidade citacional e relacional, que estão conectadas à construção de uma presença imanente31 31 Como podemos perceber, por exemplo, no comentário de Kattenbelt sobre a temporalidade evidenciada nos trabalhos pós-dramáticos em claro diálogo com Lehmann: "Diretores como Robert Wilson, Alain Platel, Gerardjan Rijnders e Jan Lauwers usaram técnicas de fragmentação, justaposição, repetição, duplicação, aceleração e freamento para enfatizar e intensificar a experiência da continuidade da própria performance" (Kattenbelt, 2010, p. 34, tradução nossa). e não se encaixam em uma ontologia da transcendência, expressão de uma origem extratemporal dotada de uma intenção inerente. Nesse sentido, o entrelaçamento de corpos ao vivo com imagens gravadas permite não apenas uma maneira contemporânea de trabalhar com princípios modernistas de uma dominância da poiesis autorreferencial e de um caráter autorreflexivo da performance, mas oferece novas maneiras de imbricar o espectador, de modo autoconsciente, na construção e recepção do trabalho multi e intermidiático.

No cruzamento das diferentes linguagens, a multimidialidade é usada não como uma adição de diferentes linguagens cênicas, mas como um desafio de criar uma intermidialidade autorreflexiva, que indaga o papel das imagens na construção de nossa sociabilidade contemporânea. A cena teatral multimidiática, desse modo, não apenas oferece oportunidades para interrogar o status do campo estético na vida empírica hoje - a já clássica tentativa de usar a arte como força formadora em nossa vida cotidiana ao mostrar o quanto a vida já é estetizada e teatralizada, aproximando, assim, arte e vida -, mas também nos provoca a repensar essa sociabilidade no mundo, na medida em que a imagem pode ser simultaneamente real e midiatizada até chegar a ser virtual, tal como o corpo humano em cena também.

Conclusão

Seguindo a hipótese de Nibbelink e Merx de que um espetáculo intermedial não destrói, mas intensifica a percepção da copresença dos corpos vivos por parte dos espectadores32 32 "Nosso argumento é que, nas apresentações intermidiais, o próprio ato de olhar/assistir se torna um ato autorreflexivo e, nesse processo, se torna capaz de implicar uma política da percepção. [...] Não importa o quanto a ontologia e a experiência da vida podem ser desafiadas ou problematizadas pela intermidialidade digital, acreditamos que é exatamente a performance ao vivo que possibilita essa provocação" (Nibbelink; Merx, 2010, p. 218, tradução nossa). , entendemos que a intermidialidade pode potencializar a construção de uma presença de imanência. Fica claro, porém, que o desafio criativo reside no fato de que a midiatização da cena constrói um tipo específico de interatividade, por meio do qual a coexistência física - necessária para criar e configurar uma presença imanente e a relação de feedback da qual fala Fischer-Lichte - dos jogadores cênicos (que inclui atores, espectadores, mas potencialmente também as outras linguagens cênicas como figurino, cenografia, sonoplastia etc.) pode não apenas intensificar e potencializar, como também ameaçar a produção de uma presença imanente.Isso ocorre quando ela torna a tecnologia um elemento transcendente que expressa o que a presença imanente não é: promessa corporificada e representacional de uma realidade ou verdade universal e atemporal. A intermidialidade enquanto presença transcendental seria a escatologia do aparelho tecnológico. Pode também, no entanto, ser a presença de uma imanência temporal instável, continuamente descontínua. Desse modo, ela colocaria sua particularidade cyborg (em parte humana, em parte técnica) ao serviço do impulso de autotransgressão inerente a qualquer estrutura viva, intensificando e potencializando os impulsos dessa vitalidade com seus efeitos colaterais de colocar em crise as forças fixantes na existência humana.

Referências

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  • SANTOS, Lau. Tela e Presença: o diálogo do ator com a imagem projetada. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2012.
  • 66
    Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • 1
    Trecho da Liturgia da Palavra na Santa Missa Católica.
  • 2
    Sobre as definições desse tipo de presença, ver Fischer-Lichte (2011).
  • 3
    Como em Lehmann (2007) e Fischer-Lichte (2011FISCHER-LICHTE, Erika. Estética de lo Performativo. Tradução: Diana Gonzalez Martin e David Martinéz Perucha. Madrid: ABADA, 2011.).
  • 4
    Ver Auslander (1997AUSLANDER, Phillip. Liveness: performance in a midiatized culture. 2. ed. London/New York: Routledge, 2008 [1997].) e Santos (2012SANTOS, Lau. Tela e Presença: o diálogo do ator com a imagem projetada. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2012.).
  • 5
    Ver a discussão sobre o impacto das novas mídias sobre o trabalho cênico do ator, bem como o fenômeno de comunidades virtuais na internet em Bay-Cheng et al. (2010BAY-CHENG, Sarah et al. (Org.). Mapping Intermediality in Performance. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2010.).
  • 6
    Encontramos em Ferracini (2014aFERRACINI, Renato. A Presença não é um Atributo do Ator.In: ORLANDI, Eni Puccinelli (Org.). Linguagem, Sociedade, Políticas.v.1. Campinas/Pouso Alegre: RG/UNIVÁS, 2014a. P. 227-237.) uma tentativa de pensar esse elan vital como potência coexistente com os corpos poetizados a partir de uma abordagem não transcendental em relação ao trabalho do ator. O que nos parece fundamental frisar é o fato de que, nessa abordagem não transcendental, as forças e energias excedentes não se configuram como um campo acabado (espelho ou representação supostamente perfeita da verdade de um conceito), mas como uma atividade dinâmica enraizada, em última análise, numa atividade cósmica e não apenas humana.
  • 7
    Às vezes, encontramos afinidades surpreendentes, como entre essa citação de Benjamin e outra de Deleuze e Guattari: "A carne é somente o revelador que desaparece no que revela: o composto de sensações" (1992DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é Filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992., p. 236).
  • 8
    Para Icle, a presença é relacional, é uma experiência partilhada com alguém que presencia "[...] uma prática performativa", de maneira que "[...] não se pode estar presente ou ter presença, no sentido teatral, quando se está sozinho" (2011ICLE, Gilberto. Estudos da Presença: prolegômenos para a pesquisa das práticas performativas. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 1, n. 1, p. 9-27, jan./jun. 2011., p. 16).
  • 9
    Renato Ferracini aponta para o problema da presença como efeito de uma capacidade individual: "Cada vez mais aprendemos em nosso cotidiano de atores-pesquisadores em trabalho no LUME que a presença cênica é construção e composição na relação com o outro. Talvez seja essa a força invisível que Grotowski diz acontecer entre o público e o ator e que, para ele, define TEATRO. Nessa esteira de pensamento podemos afirmar que a poesia cênica para ator só se completa, se efetiva e se atualiza quando se compõe poeticamente com algo-corpo fora dele próprio" (2014aFERRACINI, Renato. A Presença não é um Atributo do Ator.In: ORLANDI, Eni Puccinelli (Org.). Linguagem, Sociedade, Políticas.v.1. Campinas/Pouso Alegre: RG/UNIVÁS, 2014a. P. 227-237., p. 227). Mesmo que essa problematização enfoque esse algo-corpo-fora como um elemento copresente a mim, ela não diferencia como se dá esse modo de atualização: enquanto concretização emanativa de uma verdade anterior a nossa copresença (ver, por exemplo, Grotowski) ou como coarticulação a nossa copresença sem remeter a um modelo ideal como sua origem externa (ver poéticas que trabalham com a serialidade).
  • 10
    É a percepção dessa fresta que nos faz escolher a leitura de Deleuze da obra de Spinoza como ponto de referência, apesar do fato de que Deleuze leva, no conceito do devir, essa fresta para um lado mais criativo do que interessa a nosso trabalho. Aqui a fresta aparece como uma sombra que persegue esse devir na forma de um desfazer contínuo.
  • 11
    É possível refletir sobre o potencial mimético dessa organização social do encontro estético. Erika Fischer-Lichte (2001FISCHER-LICHTE, Erika. Aesthetische Erfahrung: das semiotische und das perfomative. Tübingen/Basel:Francke, 2001.) diferenciou-o entre vários tipos de mimese na obra (do mundo externo, da consciência do artista etc.), e entre eles há uma mimese da interpelação. Entendemos que a mimese de interpelação propõe ao espectador um modo participativo que representa a possibilidade de experimentar outra relação com o mundo. Devido ao espaço restrito, não podemos elaborar possíveis relações entre a presença imanente e a mimese interpelativa no contexto das artes cênicas.
  • 12
    Embora seja difícil para nossa avaliação atribuir ao dispositivo multimídia um status semelhante à hóstia, é exatamente isso de que se trata: o aparelho midiático pode funcionar como signo e substância, não apenas como um suporte para que outros signos possam surgir.
  • 13
    Compreendemos que o sistema produtor da presença imanente coloca como prerrogativa avaliativa e interpretativa o que Gumbrecht identifica como as materialidades da comunicação: "[...] todos os fenômenos e condições que contribuem para a produção de sentido, sem serem, eles mesmos, sentido" (2010GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. Tradução: Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-RJ, 2010., p. 28). Para efeito deste estudo, porém, denominamo-las aqui como materialidades da cena. Não são uma condição ontológica, mas uma condição que surge em cena como o avesso da dimensão significante.
  • 14
    É um dos grandes méritos do livro O Teatro é Necessário?, de Denis Guenoun, ter analisado as relações entre essas duas camadas em diferentes contextos históricos chave.
  • 15
    Diga-se de passagem que corresponde a essa divisão a diferenciação entre o espetáculo enquanto texto ou evento.
  • 16
    Sobre o princípio de emanação e de imanência como modos de participação de Deus no mundo e do mundo em Deus, ver Deleuze (1968DELEUZE, Gilles. Espinosa e o Problema da Expressão. [S.l.]: [s.n.], [1968]. Disponível em: <Disponível em: http://search.4shared.com/postDownload/EXydWwxs/gilles_deleuze_-_espinosa_e_o_.html >. Acesso em: 23 set. 2013.
    http://search.4shared.com/postDownload/E...
    ), especialmente o capítulo 11.
  • 17
    "Uma causa é imanente, pelo contrário, quando o próprio efeito é 'imanado' na causa, ao invés de emanar dela. O que define a causa imanente é que o efeito está nela, como poderia estar em outra coisa, sem dúvida como em outra coisa, mas está e permanece nela. O efeito permanece na causa, assim como a causa permanece nela mesma. Desse ponto de vista, a distinção de essência entre a causa e o efeito não poderá nunca ser interpretada como uma degradação. Do ponto de vista da imanência, a distinção de essência não exclui, mas implica uma igualdade de ser: é o mesmo ser que permanece em si na causa, mas também no qual o efeito permanece como em outra coisa" (Deleuze, 1968DELEUZE, Gilles. Espinosa e o Problema da Expressão. [S.l.]: [s.n.], [1968]. Disponível em: <Disponível em: http://search.4shared.com/postDownload/EXydWwxs/gilles_deleuze_-_espinosa_e_o_.html >. Acesso em: 23 set. 2013.
    http://search.4shared.com/postDownload/E...
    , p. 156).
  • 18
    Quando a cena representa, por exemplo, uma verdade do texto ou da concepção de direção enquanto sua causa anterior. Essa cena evoca a presença transcendental ao emanar de uma concepção anterior que a submete à sua proposta.
  • 19
    Ferracini e Pucceti apresentam relatos de uma "presença relacional" (mas que presença não o seria?); de uma "[...] presença que se completa com o espectador" (2011FERRACINI, Renato; PUCCETI, Ricardo. Presença em Acontecimentos. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v.1, n.2, p. 360-369, jul./dez. 2011., p.361) e cria efeitos de (quase) harmonia. De fato, nesse efeito, reside possivelmente uma fonte subversiva inerente ao acontecimento teatral enquanto comunhão poética. Entretanto, não podemos esquecer que o encontro entre cena e espectador, quando é desestabilizador, sempre implica perceber uma dimensão de ameaça, de medo e de ruptura mais ou menos violenta. O sernomundo implica um corpo poroso (como apontam os dois atores do LUME), mas um corpo que, nessa porosidade, ativa necessariamente as tensões existentes (conceitualmente, mas também historicamente).
  • 20
    Seria interessante aqui discutir esse princípio autotransgressor em relação ao princípio dialético, o que equivaleria a uma discussão da relação entre as filosofias de Deleuze e Marx. Deleuze obviamente recusa o princípio dialético como estrutura única de autotransgressão. Mas essa discussão ultrapassaria de longe o escopo deste trabalho.
  • 21
    Ver, sobretudo,Fischer-Lichte(2011FISCHER-LICHTE, Erika. Estética de lo Performativo. Tradução: Diana Gonzalez Martin e David Martinéz Perucha. Madrid: ABADA, 2011.), embora não concordamos com a afirmação de Fischer-Lichte de que uma reflexão hermenêutica não pode refletir adequadamente as características dessa performatividade imanente.
  • 22
    Digamos seres e não seres humanos, pois, na cena contemporânea, encontramos não raramente um animal em cena cuja presença afeta os espectadores.
  • 23
    Compreendemos que mesmo a construção performativa de materialidade se baseia na reflexão de que a materialidade concreta não é algo dado, mas um fenômeno que sofre intensificações e diluições. Isso ocorre na medida em que se põe em cena a materialidade para que ela se torne uma materialidade específica, um corpo específico, a partir do qual emergem significados como potencialidades de sua presença corporal. Também gostaríamos frisar, contrário às afirmações que Fischer-Lichte parece sustentar, que a materialidade não surge no palco teatral ou social como um tipo de materialidade pura, livre de significados sociais. O que nos parece estar em jogo é o poder da materialidade de concretizar um excesso em relação aos significados sociais, associados a uma materialidade específica, a um corpo determinado.
  • 24
    Embora a relação entre materialidade e criatura em sua dimensão cósmica seja uma camada semiótica copresente com o foco na própria materialidade. Como dissemos no início, de fato, acontece uma cocriação dos processos de significação e de performatividade.
  • 25
    Mas parece claro que a presença dos multimeios pode ser usada de modo a fortalecer uma concepção emanente. Isso acontece quando os recursos não expressam nenhuma dimensão autorreferencial e autocrítica nessa autorreferencialidade.
  • 26
    Sobre o assunto, ver, por exemplo, a tese de Phillip Auslander em Liveness. O autor postula que não se pode construir uma oposição ontológica entre performance ao vivo e performance gravada, uma resposta a Herbert Blau e seu ensaio Theater and Cinema: the scopic drive, the detestable and more of the same (1981).
  • 27
    Ver, por exemplo, o projeto grotowskiano de fazer o corpo do ator ultrapassar as camadas culturais para atingir forças sagradas. Corresponde a essa concepção de atuação uma concepção enfática de presença e uma copresença de atores e espectadores que evoca a ideia de um rito de comunhão.
  • 28
    O termo telepresença foi cunhado para discutir o efeito de cenas pré-gravadas sobre a cena ao vivo e a percepção do espectador. Ver Bay-Cheng et al. (2010BAY-CHENG, Sarah et al. (Org.). Mapping Intermediality in Performance. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2010.) ou Santos (2012SANTOS, Lau. Tela e Presença: o diálogo do ator com a imagem projetada. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2012.).
  • 29
    No original em inglês: "Presence becomes both virtual and actual simultaneously. In intermedial performance,body, time, space and perception reveal themselves as multifaceted anddynamic phenomena. This complexity in turn invites a reciprocally flexible method for describing and analysing the phenomena" (Nibbelink; Merx, 2010NIBBELINK, Liesbeth Groot; MERX, Sigrid. Presence and Perception: analysing intermediality in performance. In: BAY-CHENG, Sarah et al. (Org.). Mapping Intermediality in Performance. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2010. P. 218-228., p. 218).
  • 30
    Ver Coulter-Smith (2006COULTER-SMITH, Graham. Deconstructing Installation Art.Southampton: Casiad Publishing, 2006. Disponível em: <Disponível em: http://installationart.net/index.html >. Acesso em: 14 maio 2014.
    http://installationart.net/index.html...
    ), especialmente o capítulo Attaining the Interactive Goal: vectorial elevation.
  • 31
    Como podemos perceber, por exemplo, no comentário de Kattenbelt sobre a temporalidade evidenciada nos trabalhos pós-dramáticos em claro diálogo com Lehmann: "Diretores como Robert Wilson, Alain Platel, Gerardjan Rijnders e Jan Lauwers usaram técnicas de fragmentação, justaposição, repetição, duplicação, aceleração e freamento para enfatizar e intensificar a experiência da continuidade da própria performance" (Kattenbelt, 2010KATTENBELT, Chiel. Intermediality in Performance and as a Mode of Performativity. In: BAY-CHENG, Sarah et al. (Org.). Mapping Intermediality in Performance. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2010. P. 29-37., p. 34, tradução nossa).
  • 32
    "Nosso argumento é que, nas apresentações intermidiais, o próprio ato de olhar/assistir se torna um ato autorreflexivo e, nesse processo, se torna capaz de implicar uma política da percepção. [...] Não importa o quanto a ontologia e a experiência da vida podem ser desafiadas ou problematizadas pela intermidialidade digital, acreditamos que é exatamente a performance ao vivo que possibilita essa provocação" (Nibbelink; Merx, 2010NIBBELINK, Liesbeth Groot; MERX, Sigrid. Presence and Perception: analysing intermediality in performance. In: BAY-CHENG, Sarah et al. (Org.). Mapping Intermediality in Performance. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2010. P. 218-228., p. 218, tradução nossa).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    08 Jun 2014
  • Aceito
    29 Nov 2014
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