Marcos Abraão Ribeiro é Jornalista, sociólogo, Mestre e Doutor em Sociologia Política pela UENF, desenvolvendo pesquisas sobre pensamento social e político brasileiro e a aplicação da política de cotas no ensino médio profissionalizante. ( olamarcos@yahoo.com.br
Esta resenha apresenta uma análise crítica do livro
This review presents a critical analysis of the book
Ao revisitarmos as tradicionais interpretações do pensamento social e político brasileiro, observamos que o autoritarismo e suas causas são questões centrais, pois através delas são investigadas nossas raízes desde a colonização portuguesa ou além, quando a busca pelos males brasileiros vai até a península ibérica. Como forma de sustentar a centralidade do tema do autoritarismo, cito as obras clássicas de
Essas leituras procuram interpretar as causas do nosso
Depois do término da ditadura civil-militar (1964-1985), o interesse pelo tema do autoritarismo cedeu lugar para questões como democracia, cidadania, movimentos sociais, sociedade civil, participação - enfim, a atenção voltou-se para o processo de redemocratização do Brasil, com todas as expectativas que sua retomada trazia para diversos setores da sociedade. O tema do autoritarismo, todavia, voltou à ordem do dia com a intrincada conjuntura política enfrentada pelo Brasil contemporâneo, sobretudo depois do golpe parlamentar de 2016 (
Analisarei o ambicioso trabalho de Lilia Schwarcz com o objetivo de defender que a autora constrói uma interpretação do Brasil que não consegue romper com os particularismos nacionais, com o consequente nacionalismo metodológico e com a idealização do sistema democrático que existiria nos países centrais, aspectos presentes nas tradições
O livro de Lilia Schwarcz ganhou ainda mais relevância e interesse com a eleição do primeiro presidente reconhecidamente de extrema direita, o capitão reformado do Exército e ex-deputado federal Jair Messias Bolsonaro
O trabalho é dividido em oito capítulos, cujos temas trazem uma visão abrangente e multidimensional sobre o autoritarismo brasileiro. No primeiro capítulo, a autora estrutura as bases para as intepretações presentes nos demais capítulos do livro, ao sustentar que a herança da escravidão é decisiva para as leituras da conjuntura atual realizadas com dados sobre a violência e a desigualdade. O capitulo traz, assim, a sociogênese do autoritarismo brasileiro. A autora defende que a naturalização da desigualdade constituída no período escravista foi fundamental para que reproduzíssemos, na sociedade de classes, o racismo, a ideologia de privilégios e o autoritarismo como gramática estruturante de nossas relações sociais e político-institucionais. É através da ênfase na escravidão que Schwarcz sustentará que o Brasil moderno foi constituído como uma sociedade profundamente desigual, marcada pelo autoritarismo nas dimensões societal e institucional: “(a) escravidão nos legou uma sociedade autoritária, a qual tratamos de reproduzir em termos modernos” (p. 35). A partir da ênfase na escravidão, a autora constrói sua interpretação, realizando uma síntese das tradições
No segundo capítulo, Schwarcz expõe a dimensão propriamente política do autoritarismo, através de uma abordagem sociogenética do mandonismo, ou seja, da dominação particularista e autoritária. A autora retoma a sociedade colonial para defender que constituímos, desde aquele período, uma sociedade patriarcal, pautada pelo arbítrio e o domínio elitista sobre os setores subalternos. A partir da ênfase nos elementos políticos da (má) formação nacional durante o período escravista, Schwarcz sustenta que estabelecemos uma república marcada pela falta, uma vez que o elemento decisivo a conformá-la foi o privatismo, que poderia ser identificado através de tradicionais gramáticas políticas como mandonismo, coronelismo, clientelismo e populismo. Mesmo dando ênfase decisiva ao passado, a autora salienta que não está construindo uma análise pautada por uma continuação mecânica da história brasileira, uma vez que traz dados sobre as oligarquias existentes no sistema político brasileiro que, apesar das mudanças sociais ocorridas, continuariam a demonstrar a força de nossa raiz autoritária.
No terceiro capítulo, a autora aborda o conceito de patrimonialismo como a dimensão política central do autoritarismo brasileiro. Em consonância com a tradição culturalista do pensamento social e político, apresentada na introdução desta resenha, a autora defende que herdamos da colonização portuguesa a dominação tradicional, privatista e arbitrária sobre o Estado, que é elemento decisivo para defender que não nos tornamos uma autêntica república, que temos uma cidadania precária e um Estado a serviço apenas dos interesses das elites que o controlam. Ou seja, o recurso ao passado forneceria condições para a autora defender o caráter inconcluso de nossa democracia que, em sua dimensão especificamente política, teria no patrimonialismo seu principal entrave.
Para sustentar a força do patrimonialismo brasileiro, Schwarcz demonstra a origem oligárquica do parlamento nacional, a eleição de parentes de políticos pelos partidos, a concessão de emendas parlamentares e os últimos trinta anos da política brasileira. Nesse sentido, Schwarcz defende a atualidade do conceito de patrimonialismo para interpretar os dilemas da inconclusa democracia brasileira: “(...) o certo é que o conceito continua operante no Brasil, onde a prática política é ainda muita afeita à mistura entre afetos políticos e privados” (p. 68). O domínio dos interesses privados poderia ser observado através da força do personalismo político que se estrutura através de conchavo, apadrinhamento, mandonismo, decisivos para que a regra pública seja sobrepujada (p. 68). A história brasileira, portanto, teria sido marcada pelo patrimonialismo, responsável por consolidar, de maneira personalista e autoritária, a forma como lidamos com o Estado.
No quarto capítulo, a autora discute a corrupção, cuja raiz está no patrimonialismo desenvolvido desde o período colonial. Durante a Colônia, a corrupção teria sido reproduzida por causa da falta do Estado, associada à escravidão e à ausência de moralidade. Para sustentar o caráter central da corrupção, Schwarcz aborda fatos políticos importantes da história brasileira como a compra de títulos de nobreza durante o Império, a política dos governadores, as fraudes eleitorais na Primeira República, a ditadura civil-militar, o governo Collor e o mensalão do governo Lula (PT). Esses acontecimentos demonstrariam como a corrupção é elemento enraizado, ou seja, como temos uma tradição de corrupção, pois ela seria, entre nós, uma máquina de governar (p. 117). Além de apontar a centralidade da corrupção para a vida nacional, Schwarcz aposta na democracia como caminho necessário para combatê-la: “nada pode provar que ela (corrupção) faz parte do caráter nacional e que, portanto, não há de ser extirpada com o aperfeiçoamento da democracia” (p. 123).
No quinto capítulo, a autora apresenta a desigualdade como outra dimensão central do autoritarismo brasileiro. Schwarcz refere-se ao regime escravista para reforçar que o Brasil é formado pela linguagem da escravidão. Mesmo com o recurso ao passado, a autora apresenta dados atuais sobre concentração de renda entre os mais ricos, pobreza extrema, tributação regressiva, desigualdade no acesso à educação de qualidade, taxas de analfabetismo e abandono escolar. Além da exposição de relevantes dados, neste capítulo, a dimensão normativa do trabalho de Schwarcz aparece com mais ênfase quando comparada aos capítulos anteriores, através da defesa de um projeto nacional de educação baseado em escolas de qualidade e democráticas.
No sexto capítulo, a autora segue a apresentação de dados atuais, neste caso sobre a violência no Brasil. Mesmo com a exposição de informações sobre o número de homicídios, especialmente o de jovens pobres, a autora liga o dilema da violência ao período escravista apresentado no primeiro capítulo, pois constituímos, desde aquele período, um padrão violento de relações sociais e institucionais que se perpetuou ao longo de nossa história. Ao mesmo tempo, a autora reforça o lado normativo de sua interpretação, ao criticar as ações do governo Bolsonaro, como a desarticulação da Funai, bem como as saídas autoritárias e violentas representadas pelas ações do atual governo brasileiro. Neste capítulo, a autora realiza uma crítica aberta ao governo de extrema direita por suas ações para apagar as minorias. Ou seja, os elementos apresentados nos capítulos anteriores e neste, em particular, dariam as condições para construir uma explicação para o atual governo brasileiro.
No sétimo capítulo, Schwarcz aborda as questões de raça e gênero para defender que negros e mulheres sofrem as consequências do racismo e do patriarcalismo, respectivamente, além de viverem em situação de vulnerabilidade social. Dessa forma, a autora reforça o peso da escravidão, da misoginia e do autoritarismo como dilemas centrais enfrentados por negros e mulheres no Brasil contemporâneo. Seguindo a postura normativa adotada nos dois capítulos anteriores, Schwarcz defende as políticas de ações afirmativas para lutar contra o racismo e suas consequências, a necessidade de políticas públicas para enfrentar a violência contra a mulher e o direito à diversidade, tão ameaçados pelo governo Bolsonaro.
No oitavo capítulo, o tema da intolerância é discutido, a partir da crítica ao mito da brasilidade, que representa o brasileiro como passivo e tolerante em suas relações sociais. Através do recurso ao passado, abordado de forma sistemática nos primeiros capítulos, seria possível defender que constituímos uma estrutura social marcada pela intolerância e, consequentemente, por uma razão essencialmente distinta da democracia, representada pela ausência de uma cultura política democrática. Ao mesmo tempo, existe a defesa da relação antinômica entre autoritarismo e democracia, que seria o
Na conclusão do livro, Lilia Schwarcz sustenta que repetimos os vícios de origem durante nossa história, representados pela concentração de renda e a desigualdade, o racismo estrutural, a violência e o patrimonialismo (p. 224). Esses dilemas demonstrariam como a república brasileira descumpre a regra democrática, a qual deveria ser o alfa e o ômega dessa forma de organização do poder. Devido ao
O livro de Lilia Schwarcz tem, seguramente, grande relevância do ponto de vista político, uma vez que pode ser lido como uma defesa ética do sistema democrático, da pluralidade, da cidadania e da justiça social. Considero esta a dimensão mais relevante do seu trabalho, pois expõe uma série de dados importantes que nos mostram a necessidade de combater mazelas como a corrupção, a desigualdade, o racismo e a intolerância. Seu posicionamento ético em relação a dilemas tão difíceis de um dos países mais desiguais do mundo faz com que o trabalho tenha grande valor para o campo progressista em um momento marcado por retrocessos civilizatórios, demarcados pela própria autora, que colocam em risco as conquistas das últimas décadas no Brasil.
Do ponto de vista acadêmico, o trabalho possui importante relevância porque apresenta uma interpretação abrangente do autoritarismo existente no Brasil, pois analisa as raízes sociais e político-institucionais do fenômeno entre nós. Além disso, a autora aborda temas que não estão presentes nas interpretações clássicas apresentadas na resenha, como gênero e intolerância. Nesse sentido, Schwarcz constrói uma visão plural do autoritarismo nacional, uma vez que supera a perspectiva puramente institucionalista de autores clássicos como Tavares Bastos, Raymundo Faoro, Simon Schwartzman e Antonio Paim, bem como as análises propriamente sociológicas que enfocam a sociedade como causa do autoritarismo, como Sérgio Buarque de Holanda e Roberto DaMatta. O trabalho, portanto, realiza uma síntese das tradições
Apesar da síntese analítica e dos novos elementos trazidos à explicação, a autora segue a perspectiva culturalista, particularista e essencialista que analisa o autoritarismo como fenômeno estritamente brasileiro, ou seja, que demarca o fenômeno como fruto exclusivo do processo histórico nacional
Começo pelo peso dado à escravidão. Apesar de afirmar que não construiu uma leitura mecânica da mudança social, Schwarcz tem no passado o elemento decisivo para interpretar o autoritarismo brasileiro, pois defende que o Brasil teria constituído uma ordem republicana marcada pela incompletude, falta e desvio em relação às sociedades efetivamente democráticas. Ora, nesse sentido, o trabalho resenhado segue as tradicionais leituras do autoritarismo existentes no pensamento social e político brasileiro, pois tanto a tradição
Precisamente, não existem, na interpretação de Schwarcz, conflitos e questões criadas pela conjuntura atual, ou seja, dilemas modernos e que não se restringem à realidade brasileira
A crítica ao mito nacional é de grande valor, pois explicita o conteúdo conservador e mesmo reacionário presente nele. No entanto, ela não é sistematizada pelo trabalho da antropóloga e historiadora, mesmo sendo uma dimensão central. Sobre este aspecto, vale ressaltar uma importante lacuna no livro de Schwarcz, que é a ausência do trabalho de Marilena
Em minha visão, o principal problema da interpretação de Lilia Schwarcz está na defesa de um autoritarismo brasileiro. Defendo este argumento por dois motivos. O primeiro é o nacionalismo metodológico, que coloca o problema como estritamente nacional, deixando como pressuposto a ideia de que o fenômeno nos moldes apresentados no livro não possa existir também nos países centrais, mesmo que em intensidade menor. Precisamente, o livro é estruturado por uma perspectiva culturalista que essencializa o caso brasileiro, a qual, como vimos, está presente nas tradições
O nacionalismo metodológico, presente no livro, delimita o tema do autoritarismo às fronteiras do Estado nacional. Nesse sentido, faz com que sua interpretação tenha limites cognitivos, teóricos, políticos e empíricos, uma vez que ignora as formas globais de produção e de reprodução
O outro ponto, e que considero o mais problemático, é a idealização do sistema democrático, também presente nas tradições sintetizadas pelo trabalho resenhado. A idealização ocorre porque Schwarcz considera o autoritarismo como antônimo da democracia, ou seja, o primeiro seria estruturado por uma razão essencialmente diversa do regime democrático. O autoritarismo seria fruto do processo histórico representado pela junção entre colonização ibérica e escravidão, responsáveis por impedir que a democracia se constituísse de forma plena no Brasil moderno. A autora reproduz uma perspectiva teleológica da democracia, pois esta seria o regime político no qual as dimensões privada e pública estariam plenamente separadas, a república seria autêntica e os interesses presentes na sociedade seriam atendidos de forma transparente, impessoal e justa. Ou seja, seria o regime em que não haveria o peso decisivo das relações pessoais que, por sua vez, representam o
Assim como as leituras culturalistas clássicas sintetizadas por Schwarcz, o trabalho não nos fornece condições de compreender, por exemplo, o fenômeno global da desdemocratização e da complexa e problemática relação entre democracia política e desigualdade, que são dilemas centrais do mundo contemporâneo (
Quando Schwarcz defende a necessidade de compreender o autoritarismo brasileiro, ou seja, o dilema central para a superação das estruturas tradicionais herdadas da colonização
O trabalho resenhado, portanto, não contribui para que possamos produzir teoria a partir da periferia, e para que consigamos estabelecer outra geopolítica do conhecimento
O esforço louvável de Schwarcz para pensar de forma abrangente e multidimensional um tema central do Brasil contemporâneo nos mostra a necessidade de os intelectuais progressistas se posicionarem de forma pública e ética contra o autoritarismo e os retrocessos civilizatórios que nos assolam. Da mesma forma, mesmo que de maneira não intencional, o trabalho de Schwarcz nos mostra a necessidade de a sociologia brasileira contemporânea romper com as clássicas formulações do pensamento social e político brasileiro sobre o tema. Dessa forma, poderemos superar a posição subordinada na geopolítica do conhecimento para que possamos compreender de forma abrangente e descolonizada fenômenos como o autoritarismo que, na modernidade global, não se restringem às fronteiras nacionais.
O livro
Enquanto escrevia esta resenha, o presidente Jair Bolsonaro anunciava a sua saída do Partido Social Liberal (PSL), para fundar sua própria agremiação política, a Aliança Pelo Brasil (APB). Essa saída ocorreu por desentendimentos com o presidente da legenda, o deputado federal pelo estado de Pernambuco, Luciano Bivar. Especificamente, o ponto central do desentendimento foi sobre o controle do fundo partidário.
É importante assinalar que Schwarcz demarca, pontualmente, as experiências autoritárias contemporâneas em países como Hungria, Polônia, Estados Unidos, Rússia, Itália e Israel. Contudo, a autora procura apontar os elementos autoritários que seriam particulares à realidade brasileira, pois resultantes do seu processo histórico, o que justifica minha abordagem crítica nesta resenha.
Essa leitura moderna e em perspectiva global pode ser encontrada no trabalho de
Uma leitura rigorosa sobre a presença do conceito de patrimonialismo na obra de Max Weber está presente no trabalho de Carlos
Maciel (2013) faz uma importante exposição da questão do nacionalismo metodológico como formulado pelo sociólogo alemão Ulrich Beck, que critica as interpretações sobre a desigualdade circunscritas às fronteiras nacionais. Sobre a questão, o autor argumenta: “[d]ito de outro modo, o nacionalismo metodológico é a percepção da desigualdade social como uma questão estritamente nacional, o que ignora suas formas de produção e reprodução. A fraqueza teórica desta perspectiva consiste em reduzir a conformação das desigualdades sociais de toda natureza (entre classes, grupos, indivíduos, gêneros, regiões etc.) ao âmbito das sociedades nacionais. Este movimento teórico e político, com seu enfoque exclusivo nos Estados nacionais como objeto de estudo, torna opacas na análise as forças supranacionais que conformam as desigualdades sociais” (Maciel, 2013, p. 86).
Christian Lynch (2016) argumenta que o pensamento político brasileiro possui um estilo de redação próprio que o leva a enfocar a realidade nacional, que seria atrasada em relação à modernidade cêntrica: “[o] resultado foi um ‘estilo periférico’ de redação e argumentação que contrasta singularmente com aquele, ‘cosmopolita’ ou ‘universal’, que caracteriza as obras canônicas da teoria política europeia” (Lynch, 2016, p. 83).
Essa postura pode ser vista no trabalho de
Como afirma