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‘Ela irá? Ou, um pequeno desvio, arrastada pelo ouvido’

Resumo:

O presente artigo parte de um relato do processo de encomenda, composição e performance de Casss...andra (2015), de Mansoor Hosseini, uma peça para flauta solo composta em colaboração. Ao invocar a figura mítica de Cassandra, seguindo suas transformações através dos séculos da arte ocidental e suas transformações através do corpo da própria pesquisadora, são apresentadas neste trabalho possíveis maneiras de escapar da exotificação de Cassandra como a feiticeira louca, a mulher estranha. Ao tecer em conjunto pesquisa artística, práticas criativas e narrativas pessoais, o entrelaçamento de Cassandra, com Casss…andra, com o cantar da flauta, reelabora e reivindica a dimensão auditiva do dom da profecia.

Palavras-chave:
Pesquisa Artística; Processos Colaborativos; Cassandra

Abstract:

This article starts from an account of the process of commissioning, composing, and performing Mansoor Hosseini’sCasss...andra(2015), a solo work for flute collaboratively composed. By invoking the mythic figure of Cassandra, following her transformations through centuries of Western Art and her transformations through the researcher’s own body, this article invites the reader for possible ways of escaping the exotification of Cassandra as the mad sorceress, the female stranger. By weaving together artistic research, creative practices, and personal narrative, the entanglement of Cassandra, withCasss…andra,with the song of the flute, reframe and reclaim the auditory dimension of Cassandra’s gift.

Keywords:
Artistic Research; Collaborative Processes; Cassandra

Résumé:

Cet article départ d’un récit du processus de commande, création et performance de Casss...andra (2015) de Mansoor Hosseini, une pièce pour flûte seule composée en collaboration. En invoquant la figure mythique de Cassandra, suivant ses transformations à travers des siècles d'art occidental et ses transformations à travers du propre corps de la chercheuse, sont présentés ici des moyens possibles d'échapper à l’éxotification de Cassandra en tant que sorcière folle, la femme étrangère. En reliant recherche artistique, pratiques créatives et récit personnel, l’entrelacement de Cassandra, avec Casss…andra, avec chant de la flûte, retravaille et réclame la dimension auditive du don de la prophétie.

Mots-clés:
Recherche artistique; Processus collaboratifs; Cassandra

[…] Ele se recusava a tocar a flauta, tomando-a como algo tacanho e desprezível (Plutarch, Alcibiades, 2.4, apud Van Keer, 2004VAN KEER, Ellen. The Myth of Marsyas in Ancient Greek Art: musical and mythical iconography. Music in Art, v. XXIX, p. 20-37, 2004., p. 22, tradução minha).

[…] A suprema paralisia […] Essa ordem, enquanto a união harmoniosa e correta de ideias apreendidas por uma visão simultânea, corresponde de fato ao logos que é o sonho daquilo que chamávamos de metafísica maior. Não há mais flautas, nem vozes, nem sons, apenas um perfeito êxtase noético (Cavarero, 2005CAVARERO, Adriana. For more than one Voice: toward a philosophy of vocal expression. Stanford. California: Stanford University Press, 2005., p. 73, tradução minha).

Como Cassandra veio à discussão

Cassandra é uma princesa troiana conhecida por sua incomensurável beleza. Ou ela nasceu com o dom da profecia. Ou ela recebeu seu dom de Apolo, deus da luz e da razão. Ou Apolo deu ele mesmo o dom em troca da promessa de um casamento cósmico. Ou suas serpentes lamberam os ouvidos de Cassandra, abrindo-lhe a audição à sua volta. Ou ela quebrou sua promessa. Ou ela nunca nada prometeu. Não há outro ou: ela recusou a divindade, ela recusou o casamento. Em vingança, Apolo cuspiu na sua boca: aqui também, ou, não há. O cuspe removeu o dom da persuasão da profetisa, amaldiçoando suas verdadeiras profecias, para que nunca mais fossem acreditadas. Ou nós acreditamos. Ou não acreditamos. A partir de um cuspe, uma vida de violências, de saliva à saliva, ao longo dos séculos: fragmentação, silenciamento, fatalismo, guerra, encarceramento, estupro, sequestro, escravidão, loucura, assassinato. Ou ela é a amaldiçoada. Ou ela, não.

Foi Mansoor Hosseini (Irã/Suécia), compositor e percussionista, que trouxe Cassandra até aqui. Meu encontro com Hosseini começou com um convite para uma colaboração compositor-intérprete. Se no presente as palavras contaminação mútua pulsam em minha boca, na época pedi-lhe uma peça para flauta solo em combinação com elementos percussivos e teatrais. Eu estava em busca de processos colaborativos que provocassem uma mistura da minha prática como flautista com outras formas de arte, como uma maneira de driblar uma característica dominante das práticas musicais ocidentais: o que chamo de uma especialização fragmentada ou uma fragmentação especializada12 1 Um relato detalhado do meu método de cocriação através de contaminação mútua e mistura pode ser encontrado em meu ensaio Uma Fome Inexplicável (Cyrino, 2017). .

As práticas de Hosseini como compositor despertaram em mim uma fome, uma admiração: uma mistura de música com artes marciais, dança contemporânea e teatro. Ele compõe esmiuçando a relação entre o corpo do músico e o corpo do instrumento. Ele lê um músico em busca de um gesto particular, um rosto, um traço, um sentimento. Ele usa a linguagem corporal como matéria de composição. Ele trabalha com histórias, com personagens.

A primeira ideia que surgiu em nossa conversa foi a possibilidade de desmontar a flauta, utilizando as diferentes partes que compõem o instrumento - cabeça, corpo, pé - de maneira isolada. Lembro-me de composições musicais que de-compõem a flauta: Emergency Solos de Christina Kubish, Chambered Music de Simon Steen-Andersen, Pearls de Zoltán Gyӧngyӧssy, ...I Touch the Mountains and They Smoke.... de Justyna Kowalska-Lasoń, 6 Studii per flauto solo de István Matuz.

No primeiro encontro, Hosseini imaginou uma flautista-ciborgue futurista em uma dança mecânica, com diferentes partes da flauta presas a diferentes partes do corpo da flautista. Em um segundo encontro, duas semanas depois, ele trouxe em vez disso a ideia de uma Cassandra musicista. Ele imaginou “Casss...andra”: uma personagem feminina - um pouco assustadora, um pouco engraçada, um pouco louca - invocando a mítica profetisa Cassandra. Ele acrescentou uma singularidade à sua história: ela saberia tocar a flauta.

Algumas semanas mais tarde13 2 O processo colaborativo de composição de Casss…andra ocorreu em Gotemburgo, Suécia, de agosto a outubro de 2015. Estreia em 9 de novembro de 2015. , Casss…andra tornou-se uma peça para flauta solo, composta em colaboração, envolvendo dança, teatro, o uso de instrumentos de percussão e objetos extramusicais, os sons da respiração humana e o movimento corporal como elementos centrais. Em um palco praticamente escuro, a flautista é colocada se escondendo e hiperventilando atrás de uma caixa cheia de objetos a serem atirados em dois gongos, posicionados simetricamente ao lado dela, com diferentes bocais de flauta presos aos braços e às pernas. Suspense é gerado pela presença da flauta não tocada: uma flauta é escondida na parte inferior da caixa e revelada apenas ao final da peça (Figura 1).

Já no brincar dentro do título, Casss…andra evoca o sibilino ar que sibila … sss: a respiração corporal da flautista como o principal material composicional, uma ponte entre objetos, caixa, bocais, gongos e flauta. O universo respiratório, o ar dentro e fora, sua variação de timbres e velocidade, são moldados e continuamente transformados através de cavidades eólicas: garganta, boca, nariz, língua, lábios, pedaços de flautas presas ao corpo da flautista.

Casss...andra respira entre colaboração e cocriação. Os papéis e tarefas criativas foram divididos. Hosseini invocou Cassandra, eu dei a ela meu corpo-respiro. A natureza aberta de sua notação, uma notação de ação - com desenhos, descrições de ações, poucos materiais intervalares e rítmicos definidos - feita à mão, confusa: muito é deixado para ser decifrado e criado pela intérprete. A flautista torna-se uma cocriadora através da organização dos gestos eólicos, através da preparação da caixa, através do posicionamento dos diferentes bocais de flauta em diferentes partes de seu corpo. Da suavidade inaudita ao estrondo da confusão e da raiva, os contrastes dinâmicos são livremente criados pelo corpo-sopro da flautista14 3 Fica aqui um convite para o meu vídeo-ensaio Is she?: <https://www.youtube. com/watch?v=9HP9rmWTfro&feature=youtu.be>. Acesso em: 31 jul. 2018. .

Figura 1
Performances de Casss...andra, uma colagem de Marina Cyrino e Nathan Clydesdale

Escondido atrás de uma caixa, um outro corpo-flautista aparece

Em Casss…andra, a flautista começa tocando uma caixa de madeira, não um instrumento musical tradicional15 4 Vamos por hora deixar Pandora fora da história, pois por muito tempo ela pode nem ter tido uma caixa. Ver: Lost Goddesses of Early Greece (Spretnak, 1978). . A ideia da caixa apareceu para Hosseini depois de invocar uma Cassandra trancada em um lugar sinistro, uma masmorra, uma prisão, ou sua própria mente. A caixa de Casss...andra está no centro da narrativa: esconde, escreve, teatraliza. Torna-se uma ferramenta para esconder corpo, objetos, profecias, segredos. Torna-se notação: o que é colocado dentro da caixa muda aspectos timbrais, temporais, visuais e simbólicos da peça. Os dois gongos, colocados simetricamente ao lado da caixa, funcionam como extensões do som dos objetos da caixa, que são lançados em sua direção durante a maior parte da peça, às vezes atingindo-os, às vezes não, criando um forte contraste em termos de dinâmica sonora.

Inicialmente, Hosseini queria uma Cassandra dos tempos antigos. Sua caixa tinha que parecer velha e ser preenchida com coisas que fingiam ser antigas: pedras, galhos, folhas, frutas e flores, uma colher de pau, uma vela. Mas ele deixou uma fenda no tempo através de uma corda de piano: um dos poucos objetos especificados na partitura, para ser tocada friccionando-a contra a caixa, e que ainda não poderia ter sido inventada nos tempos antigos de Cassandra. A partir dessa fenda, subverti a ideia de antiguidade de Hosseini, deixando a caixa viajar no tempo, constantemente adicionando e removendo objetos. Eu definitivamente não me encontro em tempos antigos: a caixa teve que voar comigo quando eu apresentei Casss...andra em outros países. Com a dificuldade de levar uma pesada caixa de madeira em aviões, enquanto a peça viajava, a caixa de madeira se transformou em uma caixa de papelão, às vezes, e os gongos se transformaram em pequenas placas de ferro.

Inventário da caixa de Casss...andra, 23 de fevereiro de 2018:

Frutas de plástico: duas laranjas, três maçãs, um tomate, um limão.

Flores de plástico, variadas. Galhos de árvores, vários, pinhas, várias, castanhas, um enfeite para o qual não encontro nome, um mouse de computador, um copo de papel, um castiçal de madeira, uma colher de pau, um controle remoto de televisão, uma pena, três quadrados de isopor cinza parecendo tijolos, cinco CDs, um par de óculos de sol, a tampa de um pote, missangas grandes redondas, pequenas missangas em formato de borboleta, um lápis, peões de xadrez, peças de plástico não identificáveis, letras de um teclado de computador: B, S, fn , ´ `, F, uma corda de piano, um cartão postal, um disquete, um refletor de bicicleta, pequenas pedras (Figura 2).

Figura 2
A Caixa de Casss...andra, uma colagem, Marina Cyrino e Nathan Clydesdale

Casss...andra foi uma das primeiras peças que me tirou da minha cadeira-ou-estante de músico: agachei-me atrás de uma caixa. Tirar músicos fora de suas cadeiras não é uma ideia nova. Lembro da Sinfonia do Adeus de Haydn (1772). Lembro de uma tradição que compõe através da teatralização da música. Eu respiro vozes “começando com música, continuando outramente”: muito extramusical para ser levado a sério no campo musical estabelecido e também muito reconhecível como prática musical contemporânea para ser incorporado na programação de outras artes performáticas (Craenen, 2010CRAENEN, Paul. Beginning with music, continuing otherwise. RTRSRCH, Amsterdam, Amsterdam University of Arts, v. 2, n. 1, March 2010., p. 5).

Cada prática composicional opera de maneiras singulares (adicionando, reduzindo, expandindo, estendendo, desaprendendo, atribuindo, preparando, coreografando, e assim por diante), com nomes singulares (teatro musical, teatro instrumental, teatro sonoro, nova disciplina, banda de ficção científica cripto conceitual anti-clímax16 5 Uma referência à banda Asparagus Piss Raindrop apud Walshe (2016). , e assim por diante), em busca de estratégias para que músicos movam-se além do confinamento do corpo padronizado pelas práticas musicais ocidentais/ocidentalizadas.

Ninguém consegue concordar - é música? teatro musical? performance? música com elementos visuais? música visual? ópera? musical? teatro instrumental? live art? arte performática? ações performáticas? ações físicas? (Walshe, 2016WALSHE, Jennifer. Ein Körper ist kein Klavier Editorial zur Diskussion über die Neue Disziplin. Music Texte, Deutschland, v. 149, May 2016. Available at: <Available at: https://musiktexte.de/WebRoot/Store22/Shops/dc91cfee-4fdc-41fe-82da-0c2b88528c1e/MediaGallery/MT_Statement_J_Walshe.pdf >. Accessed on: 31 July 2018.
https://musiktexte.de/WebRoot/Store22/Sh...
, p. 1).

Casss...andra é uma dança atrás de uma caixa (Figura 3), uma dança feita de ar, de humores, de objetos voadores. Primeiro, eu me movo: sons surgem como consequência de gestos corporais. Hosseini anota “o que fazer e não o que deve soar […] virando a hierarquia entre o som e sua produção de cabeça para baixo: uma abordagem onde a composição é uma espécie de coreografia para instrumento e músico - com o som como consequência” (Steen-Andersen, 2010STEEN-ANDERSEN, Simon. Behind Next to Besides. RTRSRCH , Amsterdam, Amsterdam University of Arts, v. 2, n. 1, p. 54-58, March 2010., p. 56).

Figura 3
Uma dança atrás de uma caixa, uma colagem de Marina Cyrino e Nathan Clydesdale

Um pequeno desvio, arrastada pelos cabelos

Quando perguntei a Hosseini como a sibilina Cassandra apareceu: ele disse que não sabia direito. Ele disse que estava escrevendo uma peça para mim: “- O que eu poderia usar? Teu cabelo comprido” (Hosseini, 2017HOSSEINI, Mansoor. Personal interview on November 27, 2017. Unpublished.). Hosseini leu meu cabelo, muito comprido naquela época. Parece que havia algo de Cassandra em meus cachos que poderia ter embaraçado maldições e profecias. Eu tive que seguir Cassandra através dos séculos em busca do meu próprio cabelo.

Cassandra, arrastada pelos cabelos, alcançou o Céu Suas mãos inúteis […] (Ovídio, 1955, p. 319, tradução minha).

As profecias de Cassandra vaguearam pelas grandes bocas da cultura ocidental: Homero, Ovídio, Píndaro, Arctino, Esquilo, Eurípedes, Lícofron, Virgílio, Hector Berlioz, Friedrich Schiller, Jorge Luis Borges, Gaston Bachelard, Christa Wolf e Melanie Klein, entre outros.

Ela passou de um papel secundário para o protagonismo: uma fixação em Cassandra durante o século XX contrasta com a relativa indiferença perante a ela nos séculos anteriores, exceto por seu estupro, abundantemente retratado na iconografia grega. Reavivada na balada de Friedrich Schiller, Kassandra (1803), e continuando através da helenofilia alemã, Cassandra é transformada em uma figura sentimental regida por um pessimismo existencial (Gil, 2003GIL, Isabel Capeloa. Atribulações do oráculo moderno, Cassandra na literatura Alemã do séc. XX. Máthesis, Lisboa, v. 12, p. 261-291, 2003.). Ela é presa dentro de uma voz nacionalista-extremista (Vinagre, 2013VINAGRE, Sandra Pereira. Cassandra: a voz de uma ideologia. 2013. Dissertação (Mestrado em Estudos Clássicos) - Universidade de Lisboa, Lisboa, 2013. ; Gil, 2000GIL, Isabel Capeloa. Antigone and Cassandra: Gender and Nationalism in German Literature”. Orbis Litterarum, New Jersey, v. 55, n. 2, p. 118-134, 2000. ; 2003; 2007GIL, Isabel Capeloa. Mitografias - Figurações de Antígona, Cassandra e Medeia no drama de expressão alemã do séc. XX. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2007. ), transformada em um “ícone sócio-político-estético”, manifestação de um heroísmo elitista politicamente conservador e antropologicamente pessimista (Gil, 2003, p. 271). Max Klinger (1893) transforma seus olhos em um sangrento vazio apocalíptico: uma femme fatale. Kassandra, de Hans Schwarz (1941), reforça sua autodestruição existencial: ela comete suicídio (Vinagre, 2013, p. 124). Cassandra se torna:

[...] presa de uma imagem de visionária troiana nacionalista, determinada por um discurso ideológico que apostrofa a negação da individualidade, a sua submissão ao princípio da vontade única do líder carismático e à necessidade trágica da comunidade. Cassandra age sem individualidade, presa às condições trágicas da história mítica e submetida a uma concepção etnograficamente redutora e nacionalista. Esta figuração, próxima da imagem arcaica da vidente sem vontade própria, representa a imposição cultural da ordem totalitária sobre o olhar feminino (Gil, 2003GIL, Isabel Capeloa. Atribulações do oráculo moderno, Cassandra na literatura Alemã do séc. XX. Máthesis, Lisboa, v. 12, p. 261-291, 2003., p. 278).

Cassandra continua. Ela ressurge através da saliva das mulheres. Seus sussurros ressoam de outra maneira nos ouvidos femininos. Cassandra permite que Florence Nightingale (1979NIGHTINGALE, Florence. Cassandra: An Essay. New York: Feminist Press; The City University of New York, 1979.) grite “em voz alta em sua agonia” (Woolf, 2007WOOLF, Virginia. Selected Works of Virginia Woolf - A Room of One´s Own. Hertfordshire: Wordsworth Editions Limited, 2007., p. 598).

Ouça Cassandra ... (veja Wolf, 1984WOLF, Christa. Cassandra: A Novel and Four Essays. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1984. , p. 141).

Mais do que simplesmente um manifesto pelos direitos das mulheres, ‘Cassandra’ subverte a base sobre a qual sua cultura baseia a sujeição feminina: a autoridade divina baseada em uma interpretação patriarcal da Palavra. Ao recuperar esse poder sagrado, Nightingale revisa as narrativas fundamentais da cultura ocidental para dar conta da experiência feminina e possibilitar interpretações alternativas dos mundos natural e sobrenatural (Jenkins, 1994JENKINS, Ruth Y. Rewriting Female Subjection: Florence Nightingale’s Revisionist Myth of ‘Cassandra’. Weber Studies, Winter, v. 11, n. 1, 1994. Available at: <Available at: https://weberstudies.weber.edu/archive/archive%20B%20Vol.%2011-16.1/ Vol.%2011.1/11.1Jenkins.htm >. Accessed on: 31 July 2018.
https://weberstudies.weber.edu/archive/a...
, p. 1, tradução minha).

Christa Wolf emancipa Cassandra da voz fascista e do “[...] limitado idílio burguês pelo qual a Cassandra de Schiller anseia” (Wolf, 1984, p. 141, minha tradução). Vozes de mulheres se juntam em torno dela, em contradição. Ou aclamada como um símbolo de resistência, como uma voz feminina da contramemória, para além dos discursos oficiais da história. Ou depreciada por sua fraqueza ao escolher a morte em detrimento de outras alternativas. A Cassandra de Wolf assombra e incomoda as interpretações contemporâneas. Sinto-me levada pela voz de Eva Ludwiga Szalay, ouvindo a Cassandra de Wolf sussurrar que “[...] o conhecimento da internalização das normas sociais patriarcais por si só não liberta dessas normas, não empodera, nem permite resistência à própria história e à própria nação nas quais o corpo feminino e a identidade feminina são construídas” (Szalay, 2000SZALAY, Eva Ludwiga. ‘I, the seeress, was owned by the palace’. The Dynamics of Feminine Collusion in Christa Wolf'sCassandra. Women in German Yearbook: Feminist Studies in German Literature & Culture, Lincoln, University of Nebraska Press, v. 16, p. 167-190, 2000. , p. 184, tradução minha).

Recusando uma tradição de um destino inexorável, Marion Zimmer Bradley, em The Fire Brand (1987 [2009BRADLEY, Marion Zimmer. The Firebrand. New York: Roc Printing, 2009.]), desacredita a maldição de Apolo: Cassandra vive. Cassandra continua. Complexificada e sindromizada por Gaston Bachelard (1949 [1966])BACHELARD, Gaston. Le Rationalisme Appliqué. 3. éd. Paris: Les Presses Universitaires de France, 1966. Première édition, 1949. (Collection: Bibliothèque de philosophie contemporaine).. A-Pop-calypse: ABBA canta nos anos 1980 - Sorry Cassandra I misunderstood / Now the last day is dawning / Some of us wanted but none of us would / Listen to words of warning. Seus fragmentos alcançam as estrelas de Hollywood: Minority Report, de Steven Spielberg (Gil, 2003GIL, Isabel Capeloa. Atribulações do oráculo moderno, Cassandra na literatura Alemã do séc. XX. Máthesis, Lisboa, v. 12, p. 261-291, 2003.), O Sonho de Cassandra (2007), de Woody Allen. Ela aparece na Netflix / BBC em Troy: Fall of a City (2018), retornando a um papel secundário em sua própria vida através do corpo da atriz Aimee Ffion Edwards, que diz “Eu já sabia um pouco sobre Cassandra; há tantas versões da história que eu senti que era importante não ser muito influenciada por essas […]”, ela diz, “Minha pesquisa se concentrou mais em sua falta de habilidades sociais, sua falta de consciência social, e como o tratamento nas mãos de sua família e a incerteza sobre sua sanidade afetaram-na”17 6 Disponível em: <https://www.express.co.uk/showbiz/tv-radio/922891/troy-fall-of-a-city-cassandra-princess-cursed-greek-mythology-Aimee-Ffion-Edwards-bbc>. Acesso em: 31 jul. 2018. .

Cassandra continua...

Através de Casss...andra

Se Casss...andra acabou por ser uma flautista, essa responsabilidade é minha. Mas Casss...andra não é a primeira Cassandra-flautista. Brian Ferneyhough reacendeu a figura de Cassandra no mundo da flauta moderna ocidental com sua peça solo Cassandra’s Dream Song (1970), uma peça glamourizada desde o início por sua dificuldade de decifração e realização. “Ao mesmo tempo em que convida o intérprete a fazer escolhas criativas fundamentais, ele inventou materiais concebidos para frustrar o flautista a todo momento” (Waterman, 1994WATERMAN, Ellen. Cassandra’s Dream Song: A Literary Feminist Perspective. Perspectives of New Music, New York, v. 32, n. 2, p. 154-172, Summer 1994. Available at: <Available at: http://www.jstor.org/stable/833604 >. Accessed on: 21 Sept. 2017.
http://www.jstor.org/stable/833604...
, p. 155, tradução minha).

Ellen Waterman, flautista, vê a Cassandra de Ferneyhough incrustada em uma tradição paternalista. Ela cria sua interpretação de Cassandra a partir de uma perspectiva literária feminista, contaminando Ferneyhough com Christa Wolf. Como Cassandra, Waterman revela sua luta para falar com sua própria voz. Para ela, ignorar as implicações sexistas da peça seria negar sua voz em processos colaborativos de interpretação. Ela relata uma conversa com o compositor:

[…] Pode-se ver o material da primeira página como relacionado ao deus Apolo, e o material da segunda página como relacionado às profecias de Cassandra. Ferneyhough parecia estar falando sobre a peça como uma espécie de fantasia erótica, na qual a interação de materiais musicais refletia a relação sadomasoquista entre Apolo e Cassandra. Ferneyhough estaria parafraseando Barthes, dizendo que o campo do prazer musical é perversão? (Waterman, 1994WATERMAN, Ellen. Cassandra’s Dream Song: A Literary Feminist Perspective. Perspectives of New Music, New York, v. 32, n. 2, p. 154-172, Summer 1994. Available at: <Available at: http://www.jstor.org/stable/833604 >. Accessed on: 21 Sept. 2017.
http://www.jstor.org/stable/833604...
, p. 156, tradução minha).

Em meu encontro imaginário com Ferneyhough ou Waterman, eu perguntaria: o que a flauta pode fazer por Cassandra? E o que Cassandra faz em nós e para nós, flautistas?

O que entrelaça Cassandra com a minha relação flauta-corpo-flautista? - O soar do ar: um fluxo constante de respiração rítmica conectando corpo, partes de flauta e objetos, através de diferentes qualidades sonoras eólicas. Iluminado por uma pequena lâmpada colocada atrás do corpo da musicista, o universo de Casss...andra é criado por meio do esforço da flautista em respirar e soprar encolhida atrás de uma caixa. Mas o público não pode ver o que ela está fazendo: um pouco de cabelo, um vislumbre das mãos, objetos voando. O corpo de Casss...andra está se escondendo: Escute! Ao esconder o corpo padronizado do flautista, outro corpo aparece. Lembro-me da lambida das serpentes: a dimensão auditiva do dom, o dom da profecia como o escutar e o decifrar do sensorial audível circundante.

Cassandra fez Hosseini imaginar um ser que pudesse falar através de todo o seu corpo, não apenas através de sua boca: “Como oito braços respirando, uma pequena criatura” (Hosseini, 2017). Casss...andra é o entre de uma mulher e um animal, o ar articulando uma língua estrangeira. Hosseini não é o primeiro a colocar Cassandra no reino animal: no poema épico Alexandra-Cassandra de Lícofron, Cassandra tem o pio confuso de um pássaro, proferindo palavras selvagens, indecifráveis (Barroso, 2004BARROSO, Maria do Sameiro. Cassandra - Vox Femina Tragica III. Boletim de Estudos Clássicos, Coimbra, n .42, p. 199-214, 2004., p. 200). Em Agamenon de Ésquilo, Cassandra é transformada em um animal, como rebaixamento.

Como escapar da exotificação de profetisas amaldiçoadas, de flautas encantadas, de corpos femininos enfeitiçados? Para Adriana Cavarero, uma trágica confirmação: “Na grande variedade de amostras disponíveis na tradição [ocidental], não é possível encontrar uma única figura feminina que atenda às necessidades declaradas da subjetividade feminina” (Cavarero, 1995CAVARERO, Adriana. In Spite of Plato: a feminist rewriting of ancient philosophy. New York: Routledge, 1995., p. 4, tradução minha). Cavarero, então, age roubando. Ela rouba figuras femininas de seu contexto “[...] para realocá-las adequadamente dentro da tela composicional de uma ordem simbólica feminina que está pronta para abraçar o livre fluir dos gestos de outras tecelãs” (Cavarero, 1995, p. 8, tradução minha).

Se Cavarero rouba, tece e joga com palavras um jogo hermenêutico para encontrar uma saída para tal tragédia, eu respiro através de Casss ...andra uma palavra carnal, feminina, uma dança eólia, o instrumento da repetição de seu sofrimento e exorcismo do mesmo: um corpo-flauta, um sopro-sofro. O sopro conecta o mundo aéreo à minha voz. O sopro conecta minha flauta ao meu ser flautista. O sopro conecta meu ser flautista ao dom de Cassandra. O sopro conecta seu dom a quem ousar ouvir.

[…] eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro! (Lispector, 1998LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998., p. 201).

Um lembrete

Por mais estranho que pareça, antes do triunfo da metafísica, os gregos estavam convencidos de que o pensamento era feito com os pulmões, não com o cérebro (Cavarero, 2005CAVARERO, Adriana. For more than one Voice: toward a philosophy of vocal expression. Stanford. California: Stanford University Press, 2005., p. 63, tradução minha).

Se Hosseini esqueceu de Apolo, eu não esqueci, não. Cassandra certamente não esqueceu também. Apolo toca a cítara, gosta de cuspir na boca das mulheres, é o deus da luz e da razão e do conhecimento.

Cavarero também nos lembra de Apolo (Cavarero, 2005CAVARERO, Adriana. For more than one Voice: toward a philosophy of vocal expression. Stanford. California: Stanford University Press, 2005.). Ela nos inspira de volta ao retrato de Alcibíades, centrado nos tocadores de flauta, encontrado no Banquete de Platão. Ela nos lembra do mito de Marsias, um tocador de aulos, um flautista que, certa vez, desafiou Apolo.

Marsias é um sátiro, uma criatura, um maravilhoso flautista, um campeão. Quando foi dito a Atena que tocar flauta a fazia feia, ela jogou a flauta de lado, Marsias pegou para si o instrumento amaldiçoado. Ou ele era arrogante. Ou ele confiava demais em sua respiração e ousou chamar Apolo e sua cítara para uma competição. Ou ele sabia o que acontece com aqueles que desagradam a Apolo. Ou ele não acreditava. Marsias estava convencido de que a flauta era irresistível e melhor do que qualquer instrumento de cordas, que a respiração prevaleceria sobre a razão. Ou ele tinha algo para dar a um deus. Ou ele gostava demais de competição. Não é muito claro porque as Musas escolheram Apolo. Ou por causa do circo apolíneo ao tocar de ponta cabeça, ou porque ele adicionou sua voz em cima das cordas, ou as Musas simplesmente escolheram um deus de outrora. Apolo é vingativo, aprendemos com Cassandra. Como punição, não foi cuspe desta vez: a pele de Marsias foi arrancada enquanto sua boca, não mais soprando na flauta, foi deixada arreganhando tremendos gritos de dor. Do choro daqueles que o amavam, Marsias: um rio de lágrimas se fez.

Assim Marsias aprendeu, com grande custo, que não se deve desafiar os deuses. Mas ele também aprendeu que os instrumentos de sopro são prolongamentos da boca e são demasiadamente parecidos com a voz. Além disso, eles incham as bochechas e deformam o rosto, exigem sopro e assim impedem o flautista de falar. Em outras palavras, a flauta deixa-se, perigosamente, representar o phone no duplo sentido do termo: voz e som. Quem a toca renuncia à fala e evoca um mundo no qual a esfera acústica e as expressões da corporalidade predominam. […] Nada mais distante do comportamento videocêntrico do logos filosófico (Cavarero, 2005CAVARERO, Adriana. For more than one Voice: toward a philosophy of vocal expression. Stanford. California: Stanford University Press, 2005., p. 69, tradução minha).

Uma flautista está mais entrelaçada à construção da produção de conhecimento no pensamento ocidental do que se poderia pensar: é o outro de um logos sem corpo nem voz. “De fato, de acordo com Platão, a flauta representa o pior da esfera musical”, uma música que leva a uma perda de julgamento, “[...] os encantadores, ainda mais se flautistas, são punidos. Platão está totalmente convencido da justeza dessa punição” (Cavarero, 2005CAVARERO, Adriana. For more than one Voice: toward a philosophy of vocal expression. Stanford. California: Stanford University Press, 2005., p. 71, tradução minha). Cavarero revela que não é simplesmente “o triunfo da cítara sobre a flauta, mas sim o triunfo da razão visionária sobre a experiência musical”, é “o ouvido corporal substituído pelo olho noético” (Cavarero, 2005, p. 76, tradução minha).

Casss...andra pode ainda estar atrás de sua caixa, mas em mim, ela continua: atrelada a Apolo, atrelado a Platão, atrelado a Nietzsche, atrelado a Cavarero, atrelada à construção e à desconstrução do conhecimento metafísico ocidental em sua relação com a pesquisa de uma flautista.

Nietzsche entende Apolo, acima de tudo, como o deus da arte figurativa e, portanto, o olho e a visão, da aparência bela e luminosa, da forma. O platonismo essencial da filosofia tem suas raízes precisamente neste privilegiar da forma, que organiza a lógica videocêntrica do pensamento. Começando com um Sócrates platonizado que, ao invés de incorporar a canção enfeitiçada da flauta, é colocado ao lado da cítara, a filosofia se anuncia como uma contemplação Apolínea de ideias e, ao mesmo tempo, como dialética. O videocentrismo e o logocentrismo coincidem no conhecimento metafísico, se opondo à flauta encantada de Dionísio.

Uma pesquisadora-flautista está bem no meio de séculos de desacordos intermináveis entre Apolo e Dionísio. Se me atrevo a falar e soprar ao mesmo tempo, sou pega em uma competição. Em uma página nascida do procurar de uma flautista, o sopro está sendo avaliado em uma tradição na qual o logos perdeu não apenas a voz, mas também sua capacidade de soprar, ofegar, aflar, arfar, bafejar, esbaforir, chiar também.

Cassandra-em-mim

hiperventilação”, “quase falando”, “histérica”, “assobiando”, escreve Hosseini na partitura de Casss...andra. Estou presa na interpretação? Casss...andra consegue escapar da exotificação de Cassandra como mulher louca, mulher estranha, fascinante e ameaçadora?

[…] a profetisa Cassandra corporiza não só o paradigma do estranho etnográfico e sexual, mas também o conhecimento estranho. Cassandra é o exemplo da penetração de uma racionalidade alternativa no contexto grego. A mulher bárbara vinda de Tróia possui um Eu que se manifesta simultaneamente como fascinante e ameaçador. Subsumindo três factores identitários marginais, os de mulher, estrangeira e escrava, é rebaixada à dimensão animal […] um ser marginal na ordem do poder, da história e da razão (Gil, 2003GIL, Isabel Capeloa. Atribulações do oráculo moderno, Cassandra na literatura Alemã do séc. XX. Máthesis, Lisboa, v. 12, p. 261-291, 2003., p. 263).

Quando Cassandra continua através do meu sopro, seu saber estranho torna-se a flauta, meu ser flautista. Ao esconder uma flauta no fundo da caixa e revelá-la apenas ao final, a peça inteira é construída com base em uma tensão criada por uma expectativa:

Ela irá… [tocar flauta ou não]?

Cassandra-em-mim não lança apenas objetos, mas perguntas. A flautista que entra em um espaço de concerto com um não-saber, ou um saber alternativo, é estranhada, e como?

Em vez de o estranho ser alguém que não reconhecemos, alguns corpos são reconhecidos como estranhos, como corpos fora do lugar (Ahmed, 2014AHMED, Sara. The Cultural Politics of Emotion. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2014. , p. 221). […] Corpos estranhos são produzidos através de encontros táteis com outros corpos: as diferenças não são marcadas no corpo do estranho, mas vêm a materializar-se na relação de toque entre os corpos (Ahmed, 2014, p. 14).

Quando o público começa a ouvir? Quando eu ululo uma língua-sopro sem sentido ou, finalmente, quando mostro meu rosto e minhas habilidades como flautista, um saber aceitável, um saber esperado? Onde está a verdade, o conhecimento, a profecia? Alguém vai acreditar que eu sou uma flautista, uma musicista? Durante a maior parte da peça, sou estranhada de meu saber-flautista, estranhada da relação usual entre flauta e corpo, estranhada da relação usual entre flautista e público. Estranho a flauta de mim mesma tocando um instrumento desmontado, unido através da respiração do meu corpo. A flauta montada, como um instrumento musical completo, aparece no final, como uma revelação, amarrando a história de Casss...andra. Alguém acredita? O público? O eu que interpreta? Por que não ouvimos da mesma maneira desde o início, se não o fizemos?

Cassandra-em-mim assume a forma de uma dupla pergunta, uma dupla contaminação. O que Cassandra pode fazer pelo meu corpo-flautista? Através de Casss...andra, eu encontro maneiras de driblar formas padronizadas de tocar flauta, formas padronizadas de ouvir uma flautista no palco e também encontro novas formas de presença artística. O que o meu corpo-flautista pode fazer por Cassandra? Se Casss...andra retém aspectos da exotificação de um trágico silenciamento feminino, eu entrelaço e distorço representações de Cassandra, roubando-as de seu contexto. Ao falar e ao soprar ao mesmo tempo, eu misturo Cassandra com Casss...andra, com a canção da flauta, com pesquisa acadêmica, a fim de questionar a natureza de sua maldição. A fim de contaminar sua voz trágica com sopro, movimento, suspensão. A fim de reivindicar a dimensão auditiva de seu dom.

Cassandra-em-mim continua: Escute, o som toca no entre!

Mas se Cassandra continua, eu me pergunto se ela está cansada de seguir todos os tipos de agendas ao longo dos séculos e, ainda sim, eu coloco no seu sopro a canção sofrência do meu pesquisar flautístico. Se eu pudesse, não precisaria de Cassandra para dizer: formas de conhecimento logocêntrico continuarão cuspindo para não precisar ouvir?

Ela, princesa, sacerdotisa, mulher, estrangeira, escrava, animal, marginal na ordem do poder, história e razão, que sabe, mas não pode falar. Mas sua luta para falar com sua própria voz, amaldiçoada pelo cuspe de Apolo, nos fala fortemente: “Só se pode falar quando sua voz é ouvida” (Kilomba, 2010KILOMBA, Grada. Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster: UnRast Verlag, 2010., p. 21, tradução minha). Grada Kilomba nos ajuda a entender a natureza urgente da maldição: ouvir como o ato próprio de autorização em direção ao falante (Kilomba, 2010, p. 21).

Há uma verdade apreensiva que, se o sujeito colonial falar, o colonizador terá que ouvir. Ela / ele seria forçada/o a um confronto desconfortável com verdades do ‘Outro’. Verdades que foram negadas, reprimidas e mantidas em silêncio como segredos [...] Uma vez confrontados com os segredos coletivos e as verdades desagradáveis desta história tão suja, o sujeito branco comumente argumenta: ‘não saber’ ... ‘, não entender ...’ , ‘não lembrar’, ‘não acreditar’ [...] (Kilomba, 2010KILOMBA, Grada. Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster: UnRast Verlag, 2010., p. 21; 28, tradução minha).

Ao retirar o dom da persuasão de Cassandra, Apolo retira a sua própria capacidade, e a dos outros, de ouvir à sua volta. Apolo, deus da luz e da razão e do conhecimento, que não pode ouvir. A ‘paralisia suprema’18 7 Um retorno à citação de abertura do presente ensaio: “[…] A suprema paralisia […] Não há mais flautas, nem vozes, nem sons, apenas um perfeito êxtase noético” (Cavarero, 2005, p. 73, tradução minha). . Um logos que perdeu não só a sua voz, mas também a sua sensibilidade ao componente sonoro, à capacidade de ouvir e decifrar o sensorial audível circundante.

Ou ela é a amaldiçoada. Ou ela, não. Se Cassandra continua, a partir daqui, através de uma produção de conhecimento desvocalizada, eu espero, minimamente um mínimo. Eu espero por um sonoro saber-respiro. Nós, pensadores do sopro, estamos no caminho de Apolo, não há salvo. Apolo pode tropeçar. As Musas podem declinar. Mas também podemos estar cuspindo. Ou seremos punidos. Ou.

References

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  • WOOLF, Virginia. Selected Works of Virginia Woolf - A Room of One´s Own. Hertfordshire: Wordsworth Editions Limited, 2007.
  • 1
    Um relato detalhado do meu método de cocriação através de contaminação mútua e mistura pode ser encontrado em meu ensaio Uma Fome Inexplicável (Cyrino, 2017CYRINO, Marina Pereira. Uma Fome Inexplicável. In: AMORIM, Felipe; ZILLE, José Antônio Baêta (Org.). Música, transversalidade. Belo Horizonte: EdUEMG, 2017. P. 109-127. (Série Diálogos com o Som. Ensaios; v.4).).
  • 2
    O processo colaborativo de composição de Casss…andra ocorreu em Gotemburgo, Suécia, de agosto a outubro de 2015. Estreia em 9 de novembro de 2015.
  • 3
    Fica aqui um convite para o meu vídeo-ensaio Is she?: <https://www.youtube. com/watch?v=9HP9rmWTfro&feature=youtu.be>. Acesso em: 31 jul. 2018.
  • 4
    Vamos por hora deixar Pandora fora da história, pois por muito tempo ela pode nem ter tido uma caixa. Ver: Lost Goddesses of Early Greece (Spretnak, 1978SPRETNAK, Charlene. Lost Goddesses of Early Greece: A Collection of Pre-Hellenic Myths. Boston: Beacon Press, 1978.).
  • 5
    Uma referência à banda Asparagus Piss Raindrop apud Walshe (2016).
  • 6
    Disponível em: <https://www.express.co.uk/showbiz/tv-radio/922891/troy-fall-of-a-city-cassandra-princess-cursed-greek-mythology-Aimee-Ffion-Edwards-bbc>. Acesso em: 31 jul. 2018.
  • 7
    Um retorno à citação de abertura do presente ensaio: “[…] A suprema paralisia […] Não há mais flautas, nem vozes, nem sons, apenas um perfeito êxtase noético” (Cavarero, 2005, p. 73, tradução minha).
  • Este artigo, traduzido por Marina Cyrino, também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2018
  • Aceito
    29 Dez 2018
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