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Ações Artísticas na Educação: a cena expandida em cenário expandido

Actions Artistiques dans l’Éducation: la scène élargie dans le scénario élargi

Resumo:

O texto apresenta possibilidades de realização de ações artísticas em contextos de educação formal, buscando afirmar a escola básica e a universidade como potentes espaços culturais e artísticos na sociedade. Tais ideias se desenvolvem por meio da investigação cotidiana das práticas artísticas e docentes da autora, desde 2009, como colaboradora do Coletivo Teatro Dodecafônico e professora universitária na formação de professores de teatro, focada em estudos da corporalidade no campo da Educação e da criação artística. Práticas artísticas da cena contemporânea expandida são os elementos catalisadores das ações realizadas nos contextos formativos abordados e da reflexão em torno das práticas artísticas vistas como processos de conhecimento.

Palavras-chave:
Ação Artística; Prática Artística e Educação; Cena Expandida; Corporalidade; Formação de Professores

Résumé:

Le texte présente quelques possibilités de réalisation d’actions artistiques dans les contextes d’éducation formelle, en cherchant à affirmer l’école primaire et l’université comme de puissants espaces culturels et artistiques de la société. À partir de l’analyse quotidienne de mes pratiques artistiques et d'enseignement depuis 2009, en tant que collaborateur dans le Coletivo Teatro Dodecafônico et professeur d'université dans la formation de professeurs de théâtre, telles idées sont développés, mettant l’accent sur les études de corporalité dans le domaine de l'éducation et de la création artistique. Certaines pratiques artistiques de la scène contemporaine élargie sont les moteurs des actions effectuées et la réflexion autour des pratiques artistiques en tant que processus de connaissance.

Mots-clés:
Action Artistique; Pratique Artistique et Éducation; Scène Élargie; Corporalité; Formation des Professeurs

Abstract:

The text introduces possibilities for performing artistic actions in formal education contexts, seeking to affirm the K-12 education and the university as potent cultural and artistic spaces in society. These ideas are developed through the daily investigation of my artistic and teaching practices since 2009, as a contributor at the Coletivo Teatro Dodecafônico and a university professor in the training of theater teachers, focused on corporeality studies in the field of Education and artistic creation. Artistic practices of the expanded contemporary scene are the catalyst elements of the actions performed in these educational contexts and the reflection around the artistic practices seen as knowledge processes.

Keywords:
Artistic Action; Artistic Practice and Education; Expanded Scene; Corporeality; Teacher Education

Meu trabalho atual como docente, performer, pesquisadora, coloca em relação elementos da cena contemporânea expandida (que será apresentada em breve no texto), das abordagens da etnografia (Mauss, 2003MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify , 2003. ; 2006MAUSS, Marcel. Manual de Etnografia. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2006. ; Geertz, 1989GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Editora LTC, 1989.), da fenomenologia de Merleau-Ponty (2003MERLEAU-PONTY, Maurice. O Visível e o Invisível. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003.; 2004MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito: seguido de A linguagem indireta e as vozes do silêncio e A dúvida de Cézanne. São Paulo: Cosac Naify , 2004.), bem como a perspectiva do embodiment (Csordas, 2011aCSORDAS, Thomas J. Modos Somáticos de Atención. In: CITRO, Silvia (Coord.). Cuerpos Plurales. Antropología de y desde los cuerpos. Buenos Aires: Biblos , 2011a. P. 83-104.; 2011b; Citro, 2009CITRO, Silvia. Cuerpos Significantes - travesías de una etnografía dialéctica. Buenos Aires: Biblos, 2009.) como modos singulares de compreender a vida social e, por desdobramento, a formação de professores de teatro ou o teatro na educação escolarizada. Ao longo de minha trajetória corporal e social, esses modos de olhar e agir nas investigações artísticas e docentes que empreendo vão se constituindo a partir dos estudos e práticas desses campos metodológicos. Nesse sentido, a reflexão que construo no texto e as ações que aqui se apresentam fazem parte do projeto de pesquisa docente em desenvolvimento na Universidade Federal de Uberlândia (UFU)1 1 O projeto de pesquisa em questão se chama Corporalidades, Teatralidades, Performatividades na cena e na educação contemporânea - olhares globais, ações em rede, ações locais, cobrindo o período de 2017 a 2021. .

Desde a formação inicial na graduação em Artes Cênicas (bacharelado e licenciatura), passando pela pós-graduação, pela atuação em grupos de pesquisa e criação cênica, algumas compreensões sobre o teatro no século XX e XXI me interessaram especialmente para (re)pensar possibilidades do fazer teatral nos processos de ensino, particularmente no contexto escolar, sobre o qual uma ampla gama de leituras críticas veio sendo produzida no último século (Bourdieu; Passeron, 1982BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1982. ; Foucault, 1994FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1994.; André, 2011ANDRÉ, Carminda Mendes. O Teatro Pós-Dramático na Escola. São Paulo: Ed. UNESP, 2011.; Escuza, 2013ESCUZA, César. Creadores creando comunidad. Tejedores de visiones y saberes. In: NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Teatro na Comunidade: conexões através do Atlântico. Florianópolis: Ed. UDESC, 2013. P. 52-62.).

Partindo desses interesses, organizo o presente texto em três partes. Como introdução, na primeira seção apresento brevemente três elementos presentes no fazer teatral na passagem do século XX para o XXI, buscando compreender suas reverberações no fazer artístico e no seu ensino no contexto escolar: a coletivização dos processos criativos e dos meios de produção de significados na cena, a compreensão do processo de criação como processo de conhecimento coletivo e, por fim, a presença do corpo e do espaço no centro da cena contemporânea. Esses traços estéticos e conceituais, como modos de compreender os fenômenos cênicos contemporâneos, estão na raiz de algumas mudanças ocorridas em práticas docentes na escola básica e ensino superior quando se trata do ensino das artes cênicas, que situo brevemente nessa introdução.

Na segunda seção, apresento a noção de práticas artísticas em campo expandido, como contextualização estética e política para algumas ações - três derivas e uma reperformance - que foram desenvolvidas por mim nos processos de formação de professores de teatro na universidade e em parceria com a Escola de Educação Básica da UFU. Essa seção, centro do texto, apresenta e reflete sobre essas experiências como ações artísticas nos contextos escolares em que se deram, buscando, de um lado, reiterar as práticas artísticas como formas singulares de conhecimento; e, de outro lado, afirmar a escola básica e a universidade como potentes espaços culturais e artísticos.

O corpo dessa segunda seção se divide em dois itens: no primeiro deles apresento as práticas artísticas propriamente ditas, realizadas na escola básica e na universidade; no segundo, traço os contornos metodológicos que se manifestam nelas, tecendo considerações em torno de suas potencialidades nos processos de formação em que se inserem e estabelecendo diálogos entre elas e a noção de ação artística.

Nas considerações finais busco identificar e manifestar os modos de conceber os processos artísticos e educativos implicados nas ações compartilhadas no texto, sublinhando-os como uma escolha política diante das realidades problemáticas da atualidade.

(Ide)ações precursoras

O primeiro aspecto que destaco do fazer teatral contemporâneo, presente em processos de criação de grupos ou coletivos artísticos, bem como em projetos de ação cultural e artística, é a coletivização dos processos criativos e dos meios de produção de significados na cena. A utilização de modalidades de jogo/improvisação para a construção de cenas, bem como a leitura delas (por meio de conversas, protocolos, diários de bordo, individuais ou coletivos) são formas que proporcionam aos participantes de um processo o desvelar desses modos de produção de significados em cena (Pupo, 2001PUPO, Maria Lucia de Souza Barros. O lúdico e a construção do sentido. Revista Sala Preta , São Paulo, v. 01, p. 181-187, 2001.). Também, nesse percurso, emergem temas concretos da vida social que se articulam à cena ou ao trabalho cotidiano do coletivo, trazendo à tona a possibilidade de refletir de modo mais amplo sobre os modos de produção artística e suas relações com o tempo histórico-social nos quais eles se produzem (Ceccato, 2010CECCATO, Maria. O Teatro Vocacional e a Apropriação da Atitude Épica Dialética. São Paulo: Ed. Hucitec, 2010.). Assim, em alguns contextos artísticos ao longo do último século, as diferentes dimensões do processo criativo são reconhecidas e debatidas pelos sujeitos que dele participam, em vez de estarem centralizadas nas mãos de um encenador.

Um dos desafios, que se apresenta no ambiente escolar quando se pensa nesse aspecto específico, parece estar em conseguir construir um processo de apropriação de procedimentos para a construção de sentidos em cena gradativamente no pouco tempo que o componente curricular Artes tem semanalmente na maior parte da Educação Básica. Carmela Corrêa Soares (2010SOARES, Carmela Corrêa. Pedagogia do Jogo Teatral - uma poética do efêmero. São Paulo: Hucitec, 2010.), em diálogo com autores franceses e sua experiência em uma escola pública, afirma as potencialidades do jogo como objeto estético e da produção de pequenas formas no cotidiano escolar, por meio do trabalho sobre a atenção, o olhar e a escuta. A aposta estaria em dar maior profundidade à experimentação e investigação estética da produção de uma pequena performance ou cena do que na produção de um grande espetáculo de fim de ano. Nesse sentido, a organização pedagógica do trabalho cotidiano é parte do desafio e dessa possibilidade de criação. O/a professor/a precisaria levar às últimas consequências o lema de que menos é mais: menos propostas de jogos para cada dia de trabalho; proposição de registros rápidos para construir memórias que possam ser acessadas após uma semana; utilização de encontros inteiros para leitura de cenas e protocolos. Uma espécie de redimensionamento e distribuição da prática em pequenas doses se faz necessária, especialmente se tomamos como parâmetro a temporalidade vivenciada em grupos ou coletivos, e mesmo em aulas práticas no ensino na graduação, com duração estendida entre duas e quatro horas contínuas de trabalho.

Bastante articulado ao primeiro, o segundo elemento que destaco entre os meus interesses é a compreensão do processo de criação como processo de conhecimento coletivo. Jerzy Grotowski afirmava em 1960: “A forma - a sua estrutura, a sua variabilidade, o seu jogo dos opostos [...] - é um peculiar ato de conhecimento. O ato de conhecimento, por sua natureza, é algo aberto, não acabado, não pode ser uma repetição de métodos e efeitos” (apud Flaszen; Pollastrelli, 2007FLASZEN, Ludwig; POLLASTRELLI, Carla (Org.). O Teatro de Jerzy Grotowski 1959-1969. São Paulo: Perspectiva ; Pontedera, IT: Fondazione Pontedera Teatro, 2007., p. 46-47). Antônio Araújo, já em 2012ARAÚJO, Antônio. A cena como processo de conhecimento. In: RAMOS, Luiz Fernando. Arte e Ciência: abismo de rosas. São Paulo: Abrace, 2012. P. 105-113. (p. 109), reflete: “Experimentamos um tipo de criação artística que ocorre [...] no encontro com o outro, na presença do outro. A colaboração é um dispositivo de pesquisa. A criação, uma prática em rede”. Enfatizo ainda a forma específica de produzir conhecimento quando se cria artisticamente: conhecimento tátil, sensorial, móvel e movente a partir do encontro e do confronto com outros; reelaborado, editado e poetizado em formas corporais - gestos, sons, palavras, luminosidades, visualidades da cena. “O processo não produz apenas conhecimento, mas é, em si mesmo, conhecimento” (Araújo, 2012, p. 108) - ou seja, não se trata de um percurso que só tem sentido em sua finalização ou objeto final resultante do percurso. Trata-se das descobertas, tensões e reviravoltas que são conquistadas ou travadas a cada momento dele, a cada conflito entre os participantes, a cada encontro corporal.

Do mesmo modo, na concepção de educação que inspira essa reflexão, a escola é tempo e espaço de fomentar curiosidade, proporcionar processos de construção de conhecimento, em oposição à ideia de aquisição sumária deles ou consumo de conhecimentos como produtos acumuláveis. Por conseguinte, o trabalho cotidiano do/a professor/a de teatro seria criar esses ambientes investigativos, ainda em diálogo com Antônio Araújo, criar campos de experiência em que se engendram sentidos cênicos, por meio do conhecer-se, conhecer os outros e o mundo. Um primeiro desafio nesse processo seria ler os interesses reais do grupo de estudantes para lançar desafios também reais ao grupo. Nem todos os/as estudantes numa sala de aula escolar terão desejo e disponibilidade para entrar em cena como performers. Perceber as diferentes possibilidades de cada pessoa participante do processo pode gerar experimentações de escritura, composição de trilhas sonoras e cenários, proporcionando outros modos de distribuição de papeis e formas de engajamento no processo de criação. Por fim, voltando à afirmação inicial, a experimentação artística e elaboração de formas artísticas no cotidiano dos encontros são elas mesmas um modo singular de aprender e conhecer na concepção de educação e de processo artístico que inspira essa reflexão.

O terceiro traço que me interessa para o diálogo entre as formas artísticas do último século e os processos de ensino em contextos escolares é a presença do corpo e do espaço no centro da cena contemporânea. Há tempos se discute as diversas mudanças estéticas na criação e composição das artes da cena. O texto teatral ou mesmo uma fábula não são necessariamente o eixo em torno dos quais giram os percursos criativos cênicos. Assistimos a um processo de borramento de fronteiras entre campos artísticos, incluindo a emergência das tecnologias da informação em cena ou a presença das telas e projeções nela, entre outros traços heterogêneos em diferentes países e criadores/as desse último século (Féral, 2008FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Revista Sala Preta, São Paulo, v. 08, p. 197-210, 2008.; Lehmann, 2009LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2009.). Particularmente, os elementos que mais me envolveram como performer e pesquisadora foram os deslocamentos de sentido e papel dos corpos e da espacialidade nessa cena contemporânea.

Corpos não mais como organismos apenas ou instrumentos a serviço da construção de (ou da metamorfose em) uma personagem. Corpos plásticos, complexos, subjetivos, sociais, políticos. Espacialidades reinventadas, seja no uso de arquiteturas diversas para o fazer teatral, seja pela ocupação de espaços urbanos, anexação do real, deambulações, de atores, performers e público por espaços tematizados em e pela cena. De meu ponto de vista, essas proposições estéticas abriram possibilidades instigantes para o trabalho no contexto da escola básica.

De um lado, há um modelo concebido em série para a arquitetura escolar na esfera pública, que, na maior parte das vezes, proporciona espaços reduzidos para as aulas, sobrecarregados por um mobiliário igualmente produzido em série, dificultando experimentações cênicas, como habitualmente se vivencia em cursos livres de teatro e em salas de aula da formação inicial de professores/as de teatro. De outro lado, em diálogo com essas proposições estéticas que venho destacando, o jogo entre corpos e arquiteturas, ressignificando sentidos já dados para tais construções arquitetônicas, a deambulação e a corporalidade desses sujeitos políticos como centro da criação cênica não necessariamente demandam a utilização de anfiteatros ou salas vazias com pisos em madeira para sua efetivação. Outras poéticas e ações artísticas passam a habitar as práticas docentes de diferentes professores/as performers (Araújo, 2013ARAÚJO, Getúlio Góis de. All Star? Um estudo autoetnográfico sobre adolescentes, teatro e escola. 2013. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. ; Bonatto, 2009BONATTO, Mônica Torres. Percursos entre arte contemporânea e processos de criação cênica na escola. In: REUNIÃO CIENTÍFICA DA ABRACE, 5, 2009, São Paulo. Anais... São Paulo, 2009.; Oliveira, 2015OLIVEIRA, Ricardo Augusto Santos de. Labirinto do Minotauro: processo criativo de performance na escola com o tema do medo. 2015. 94 f. Dissertação (Mestrado em Artes) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2015. ; Rachel, 2015RACHEL, Denise Pereira. Adote o Artista não deixe ele virar professor: reflexões em torno do híbrido professor performer. São Paulo: Editora UNESP; Selo Cultura Acadêmica, 2015.), dentre os/as quais eu me incluo.

Os três aspectos destacados até aqui já configuram uma prática teatral com traços contemporâneos no contexto escolar que questiona a ideia de se fazer teatro em datas comemorativas ou para ensinar conteúdos de outras disciplinas escolares. Do ponto de vista histórico, penso que se tratou de um processo de variar as poéticas possíveis em sala de aula escolar, levando o fazer teatral além da ideia da montagem de um texto. Essa mudança na atitude dos/as professores/as de Teatro já poderia ser então aproximada à ideia de ação cultural, na qual o conjunto dos atores sociais envolvidos naquele processo definem seus próprios fins no universo da cultura, nesse caso, no universo do Teatro. Definem seus fins e, com o tempo, se apropriam dos modos de produção de sentido nesse universo.

Um último elemento importante a destacar é certa disparidade entre os avanços instituídos no campo da criação e da pesquisa em Artes Cênicas ou no campo específico da Pedagogia do Teatro, e a instabilidade dos processos de consolidação e legitimação do ensino de Teatro (e mesmo das diferentes modalidades artísticas) na Educação Básica brasileira. Uma legislação abrangente foi conquistada na década de 1990, afirmando a obrigatoriedade do ensino de Arte em toda a Educação Básica. Entretanto, a situação concreta da legitimação desse campo de conhecimento em diferentes regiões do País até hoje é extremamente heterogênea e, por vezes, precária do ponto de vista daqueles que atuam cotidianamente na escola. Essa precariedade vai desde a falta de concursos públicos para professores de cada campo artístico, na maior parte das redes municipais e estaduais, passando pela reduzida compreensão de dirigentes, docentes e estudantes sobre o lugar do fazer artístico na educação formal, até o pouco espaço e tempo curricular destinado para as artes na escola.

As palavras desafio e ousadia me parecem sintetizar a paisagem (in)tensa daqueles e daquelas que buscam instaurar processos artísticos coletivos no contexto escolar da atualidade. Se já não estava consolidado o lugar simbólico e concreto das Artes na Educação Básica desde as conquistas da década de 1990, a partir dos processos de elaboração da Base Nacional Comum Curricular, da reforma do Ensino Médio e das eleições presidenciais de 2018, o contexto precário recrudesceu. Em minha trajetória escolar ou formativa, nunca presenciei um momento na história brasileira que tenha questionado tão profundamente a importância do direito ao estudo e experiência artística na formação de qualquer pessoa, mais ainda, a função e sentido da educação formal. Diante desse quadro, as ações artísticas que se apresentam na próxima seção são, cada vez mais, formas minúsculas, singelas, micropolíticas em busca de variar e dar manutenção a formas de existência dissonantes que o fazer artístico pode proporcionar.

(Ide)ações em desdobramento

A teoria como prática interdisciplinar ou in-disciplinar - prefiro hoje dizer - dialoga com a expansão das artes, mas também com a expansão e a problematização da própria categoria de arte, considerando os fluxos entre arte e vida num duplo sentido: não apenas a partir das transformações que a arte veio colocando em nossa vida contemporânea, como também incluindo, muito especialmente, as mutações e contaminações que o espaço do real e as práticas cidadãs introduziram no campo cada vez mais expandido da arte e de todos os sistemas de representação (Caballero, 2010CABALLERO, Ileana Diéguez. Cenários expandidos. (Re)presentações, teatralidades e performatividades. Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 15, p. 135-148, 2010., p. 136).

Os contornos atuais das ações e da reflexão que passo a apresentar se configuram nos últimos anos, quando elementos de minhas práticas artísticas como performer se articulam de maneira mais estreita ao trabalho cotidiano como docente, tanto no contexto das salas de aula na universidade, quanto em ações em parceria com professores da Educação Básica no espaço escolar.

Venho chamando o conjunto, multifacetado e nada homogêneo, das ações artísticas que compartilho neste texto, entre outras que tenho experimentado como performer docente, de práticas artísticas da cena contemporânea expandida. A noção de campo expandido nas artes da cena foi tomada de empréstimo desde o debate instaurado por Rosalind Krauss no clássico texto Sculpture in the Expanded Field, de 1979, publicado no Brasil em 1984. Tal noção parece ter conseguido abarcar, como diria Ileana Diéguez Caballero (2010CABALLERO, Ileana Diéguez. Cenários expandidos. (Re)presentações, teatralidades e performatividades. Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 15, p. 135-148, 2010.), as cenas e cenários que transbordam dos marcos do teatral no senso estrito, possibilitando refletir sobre as teatralidades, as performatividades e as corporalidades que emergem no último século em sua multiplicidade de formas artísticas, sociais e políticas, de atores sociais (não apenas artistas, mas cidadãos em geral), e de espaços (não apenas culturais ou teatrais, mas nas ruas das cidades, em locais de conflitos políticos etc.).

Nesse escopo, interessa-me particularmente a possibilidade de agir e refletir no campo das artes e da formação de professores/as de Teatro, articulando olhares entre a vida cotidiana dos corpos na sociedade e as formas artísticas que se desdobram deles. Mais ainda, agir e refletir nesse campo assumindo que há teatralidade e performatividade emergindo das interações sociais e que há uma produção intencional de corporalidades teatrais ou performativas que se engendram nas tensões históricas e políticas na sociedade. Vale lembrar, novamente em diálogo com Ileana D. Caballero:

[...] não é por cansaço ou esgotamento das formas teatrais tradicionais que chegamos à percepção das teatralidades nos espaços sociais. De algum modo, a existência e o reconhecimento dos dois espaços - os artísticos e os sociais - implica numa dada relação consciente, ou não, desses espaços e situações (Caballero, 2010CABALLERO, Ileana Diéguez. Cenários expandidos. (Re)presentações, teatralidades e performatividades. Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 15, p. 135-148, 2010., p. 143).

Particularmente, minha experimentação artístico-pedagógica de cruzamento entre essas duas esferas (artística e social) parte de uma concepção de ensino de arte e de uma intenção consciente de questionar quaisquer pré-requisitos para a criação artística, bem como da necessidade de romper com a vida besta, como delineada por Pelbart (2003PELBART, Peter Pál. Vida Capital - ensaios de biopolítica. São Paulo: Editora Iluminuras, 2003.), romper com automatismos e produtivismos, instaurar tempos distendidos e presenças dilatadas em especial nesses dois contextos da educação formal: a universidade e a escola básica. Nesse sentido é que considero a própria escola como uma expansão dos cenários nos quais essa cena expandida veio se apresentando neste século.

A partir da contextualização construída até aqui, apresento a seguir um breve caleidoscópio de práticas realizadas na universidade e em parceria com professores da escola básica2 2 Refiro-me aqui especialmente ao professor Getúlio Góis de Araújo, da Escola de Educação Básica da UFU, a quem agradeço a parceria que temos construído e a autorização para citar as experiências realizadas em conjunto e em outros textos apresentadas conjuntamente. , delineando-as como ações artísticas no cenário expandido da educação formal.

Breviário

O ponto de partida das ações que compartilho a seguir tem sido sempre criar rupturas no ritmo acelerado de vida que crianças, jovens e adultos levam na atualidade, incluindo os contextos da escola e universidade. Assim, o desafio inicial é sempre a pausa. Entregar o peso. Respirar. Perceber a si mesmo. Então encontrar os olhos dos/as companheiros/as de trabalho, encontrar as mãos, caminhar juntos/as, inicialmente dentro da própria sala de trabalho. Nesse processo, em geral silencioso, também há um reencontro entre professores/as e estudantes, entre os corpos e o espaço, a instauração de outros modos somáticos de atenção (Csordas, 2011bCSORDAS, Thomas J. Embodiment: Agency, Sexual Difference, and Illness. In: MASCIA-LEES, Frances (Org.). A Companion to the Anthropology of the Body and Embodiment. Chichester, UK: John Wily and Sons, 2011b. P. 137-156.), outras temporalidades e espacialidades no fluxo por vezes repetitivo do cotidiano escolar.

De modo geral, essa premissa dialoga com as ideias e ação de pensadores e/ou ativistas com Milton Santos (2001SANTOS, Milton. Elogio da Lentidão. Folha de São Paulo, São Paulo, 11 mar. 2001. Disponível em: <Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1103200109.htm >. Acesso em: 02 jan. 2019.
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), o grupo dos situacionistas (Debord, 1999DEBORD, Guy. Teoría de la deriva (1958). Internationale Situationniste, Madrid, Literatura Gris, v. I, 1999. Disponível em: <Disponível em: http://www.ugr.es/~silvia/documentos%20colgados/IDEA/teoria%20de%20la%20deriva.pdf >. Acesso em: 01 ago. 2014.
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), performers, artistas e coletivos caminhantes (Careri, 2013CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: G. Gili, 2013.; Jacques, 2014JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos Errantes. Salvador: EDUFBA, 2014.; Veloso, 2017VELOSO, Verônica Gonçalves. Percorrer a cidade a pé: ações teatrais e performativas no contexto urbano. Tese de doutorado. São Paulo: USP, 2017.), que vêm buscando fazer uma leitura crítica dos projetos urbanísticos iniciados na Modernidade e encontrar outras formas de habitar a cidade e a si mesmos em tempos de produtivismo, aceleração programada e esvaziamento de sentidos da vida.

Elásticos (na cidade e na escola) - a proposição se inspira no programa de performance de Gustavo Ciríaco e Andrea Sonnberger (2006), Aqui enquanto caminhamos, relido como deriva pelo Coletivo Teatro Dodecafônico. Um elástico largo envolve grupos de pessoas que caminham sob as seguintes instruções: manter o elástico tensionado entre os corpos sem deixá-lo cair; caminhar coletiva e silenciosamente a partir das perguntas o que nos faz caminhar?, o que nos faz parar?. Numa primeira experiência, dois docentes e dois estudantes de graduação se colocam no centro da cidade e caminham, pausam, tocam árvores nas calçadas, janelas, portões; caminham no meio-fio, se emaranham no elástico-fio, se aproximam e distanciam, tensionando as distâncias. O deslocamento se arrasta, o tempo se distende. Uma hora e meia, quatro quadras. Chove. Pausa no boteco de porta minúscula. Encerra-se a experiência que será levada para a escola na semana seguinte.

Na escola básica nos subdividimos em grupos de seis ou sete pessoas, misturando adolescentes de nonos anos, estudantes de graduação e docentes. Antes de sair do anfiteatro da escola: fechar os olhos, pausar, entregar-se ao chão, dar-se tempo. Só depois, levantar, estar num grupo e caminhar.

Um primeiro desafio: caminhar a partir de sete vontades, quatorze pés, quatorze olhos, quatorze mãos e uma escola com desníveis, escadas, rampas, corredores por vezes estreitos, refeitório cheio de mesas e bancos. Um primeiro prazer: sair da sala fechada, sair da sala escura, estar ao ar livre, sentir o sol na pele, estar pelos espaços da escola enquanto a maior parte da população dela está em salas. Há sorrisos de prazer, há sorrisos de quem planeja desafiar o grupo: tensionar ao máximo o elástico, ficar nas suas margens, por fora do círculo que ele delimita entre os corpos, subvertendo a ideia inicial. Há corpos que escalam muretas e muros, grupos subdivididos em desníveis, revelando estratos de arquiteturas, emoldurando recortes antes invisibilizados, corpos antes invisibilizados. A ação enquanto se faz rompe fluxos estabelecidos na rotina escolar, instaura outras ocupações do espaço, convida plateias (merendeiras, faxineiras, seguranças) passantes, habitantes da escola. Desde dentro da ação também eu inverto olhares para os/as estudantes, vejo-os performar, testar possibilidades, limites e regras, parodiar proposições. O recorte dado pela proposição engendra suspensões de papeis, formação de comunidades transitórias, rearticulação de formas de conhecer a si mesmos e ao espaço escolar temporariamente.

Dos afetos nos espaços - deriva em dupla, proposta tanto na universidade quanto na escola básica pelos dois docentes, convidando um/a dos/as estudantes a levar o/a outro/a para lugares significativos daquele espaço ao longo de sua história de convívio com a escola. É possível caminhar, pausar, contar alguma história vinculada aos espaços que se percorre. Ao final do tempo dado para a caminhada, dez minutos para uma escrita automática - modalidade emprestada das práticas surrealistas, na qual o convite é que se escreva sem tirar o lápis do papel, sem seleção ou composição premeditada. Uma escrita que explora territórios do inconsciente, flerta com a literatura (Veloso, 2017VELOSO, Verônica Gonçalves. Percorrer a cidade a pé: ações teatrais e performativas no contexto urbano. Tese de doutorado. São Paulo: USP, 2017.), com a descrição fenomenológica, com os cadernos de campo etnográficos. Uma espécie de composição em tempo real na escritura. O momento da escrita, o aqui-e-agora de sua execução foi intensa: os corpos se debruçavam literalmente sobre o papel - deitados/as, sentados/as no chão - desenhando, lançando palavras em caixa alta no papel, tecendo micronarrativas. A tarefa da escrita, tão presente no cotidiano escolar, parecia ali relida por um acontecimento significativo vivenciado na caminhada pela escola. A noção de psicogeografia (Debord, 1999DEBORD, Guy. Teoría de la deriva (1958). Internationale Situationniste, Madrid, Literatura Gris, v. I, 1999. Disponível em: <Disponível em: http://www.ugr.es/~silvia/documentos%20colgados/IDEA/teoria%20de%20la%20deriva.pdf >. Acesso em: 01 ago. 2014.
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) ou de mapa afetivo tomava corpo na experiência de todos.

No processo artístico-pedagógico em que essa ação se inseriu, a produção textual resultante trouxe à tona os itinerários vividos pelos/as estudantes, as emoções e tensões de suas histórias naquele espaço. A partir das ações compartilhadas, dos espaços presentes nas narrativas, das memórias significativas trazidas nas escritas, começamos a construir o roteiro para a edição de um audiotour. A deambulação efetivada pelo audiotour foi uma culminância no processo vivenciado, servindo como espécie de processo ritual na finalização da trajetória dos estudantes de nono ano na escola e dos graduandos na Licenciatura3 3 O processo de composição do audiotour foi compartilhado em texto na Revista Urdimento v. 1, n. 34 (Caon; Araújo, 2019). . Emergem estados liminares, com suspensões de papeis e habitus coletivos; engendram-se vínculos sociais pouco experimentados entre as pessoas nesse contexto, bem como momentos dentro e fora do tempo ou das estruturas sociais dadas, à semelhança das observações feitas por Victor Turner (2013TURNER, Victor. O Processo Ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Ed. Vozes, 2013., p. 97-98) sobre liminaridade e communitas4 4 Victor Turner (1920-1983) aprofundou os estudos sobre essas noções no livro clássico do campo antropológico, O Processo Ritual, traduzido e editado no Brasil pela Editora Vozes. O estudioso desenvolve abordagem articulando elementos da Antropologia e do Teatro para análise do que ele passou a chamar de dramas sociais. .

Caminhar, parar, ler, escutar, escrever. Em círculo, próximos ao tamarindeiro, no pátio interno de um prédio universitário, fechamos os olhos. Proponho que voltemos a atenção às diferentes dimensões de nossa sensorialidade que estão sendo atravessadas pelos múltiplos estímulos do ambiente: os sons de ventos, pássaros, máquinas e pessoas no entorno; o contato entre pés e solas de sapato, entre eles e o piso; o vento nos fragmentos de pele expostos, os tecidos em contato com a pele, os aromas ou paladares presentes naquele instante. Em seguida, convido para que caminhemos em dupla pelo campus universitário - uma pessoa de olhos fechados, sendo guiada, e outra escolhendo os percursos. Quem guia, além de orientar o percurso daquela de olhos fechados, escolhe paisagens, momentos para propor pausas, posicionar seu par diante de algum recorte espacial e ler um fragmento de texto posicionando-se atrás dela. Após uma hora de trajetória, trocam-se os papeis nas duplas. Ao final do processo, cada pessoa tem dez minutos para realizar uma escrita automática. O texto em leitura era o capítulo Terra, céu, vento e tempo, de Tim Ingold5 5 Tim Ingold (1984-) é antropólogo britânico, com estudos na fenomenologia de Merleau-Ponty, que vem desenvolvendo o que ele denomina de antropologia ecológica, a partir, entre outras coisas, do questionamento das categorias de natureza e cultura. , lido no contexto de disciplina de pós-graduação6 6 Intitulada Cenas e escritas: memórias, aprendizagens e procedimentos de criação. Ainda em 2019 também ofereci disciplina na graduação (Pedagogia do Teatro 3), compartilhando procedimentos de trabalho vinculado às caminhadas como práticas estéticas e políticas. , toda organizada em torno de caminhadas e leituras feitas em deslocamentos. No cruzamento entre o programa e o texto intencionalmente escolhidos, a aleatoriedade dos percursos e pausas eleitos pela pessoa condutora também em deriva, emergem experiências sensoriais significativas, sincronias, ressignificações do espaço.

Sou guiada. Deito-me no gramado, sob um sol leve, há prédios em reforma, terra vermelha exposta. Uma copa de árvore se ergue distante de meu ponto de vista desde o chão, que me leva a ver o contorno do céu nela, as linhas da arquitetura de um bloco, por fim, as nuvens... Enquanto minha atenção se desloca, meu companheiro narra: “O morro não é um objeto na superfície da Terra, mas uma formação dessa superfície. [...] E o fogo não é um objeto, mas uma manifestação do processo de combustão” (Ingold, 2015INGOLD, Tim. Estar Vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2015., p. 182). E continua: “Tampouco as nuvens são objetos. Cada uma é antes uma tumescência vaporosa, incoerente, que incha e é carregada pelas correntes do meio. Observar as nuvens [...] [é] ter um vislumbre fugaz de um céu-em-formação, nunca o mesmo de um momento ao seguinte” (Ingold, 2015, p. 182). Corpo que se desloca e pausa. Texto nômade. Ouvir e dizer o texto em meio a um percurso caminhado, ao ar livre, transforma a experiência da leitura feita previamente por mim no escritório doméstico. O tempo de leitura, o tempo de escuta das palavras do outro enquanto olho o mundo desde o chão, transforma o momento em fruição. Fruição de si, do outro, do lugar. O lugar olhado das coisas é deslocado, o lugar escutado do texto também. Espaço re-emoldurado, escuta alterada. Experiência estética e de conhecimento deslocada.

Túnel. Em 1973, Lygia Clark propunha pela primeira vez essa ação, em que as pessoas (que transitam entre espectadoras e performers) são convidadas a atravessar um tubo de pano de 50 metros. Em 2018, na finalização de um semestre de ações performáticas e deambulatórias envolvendo docentes e estudantes de graduação em Teatro e de nono ano do Ensino Fundamental, produzimos dois tubos de malha vermelha com cerca de 7 metros de comprimento cada. Convidamos os/as participantes do processo a experimentar o deslocamento por esse espaço reduzido que, desde a proposta da artista, é aproximado ao canal de passagem do nascimento e a experiências de claustrofobia/sufocamento. Passamos pelo tecido individualmente e numa segunda oportunidade em duplas (cada um partindo de uma extremidade do pano). Como ação de reperformance, guardados seus ajustes para as dimensões de espaço e tempo do contexto escolar, a experiência vivida deu passagem ao riso, à gargalhada, ao emaranhamento. Ofegantes, cansados, aliviados ou simplesmente inertes, imóveis, estirados no chão, entregando o peso, respirando, os corpos reapareciam (renasciam?) ao final do túnel. No lugar do choro do nascimento, o riso. Por prazer, por medo ou nervosismo. Ao final do percurso, um riso de alívio, de conquista pela chegada ao mundo. Talvez o mundo mesmo renovado (sua luminosidade, sua atmosfera e nosso encontro com ele) pelo acontecimento. Renascíamos entre nós com os corpos transformados.

Ao final desse pequeno compartilhamento, compreendo tais dispositivos e suas resultantes como ações artísticas no contexto escolar. A proposição de programas que instauram tempos distendidos, modos somáticos de atenção diversos, possibilitam transformações na percepção que temos de nós mesmos e de nossa interação com o mundo. Trata-se da criação de situações, da emergência de acontecimentos, sem finalidade pré-determinadas. Os programas dão instruções que se configuram como modos de fazer, delineiam um modo deliberado de estar na situação ou de prestar atenção, organizam ações e composições. Um espectador externo pode enxergar ali uma ordenação estética, artística. Um participante ou espectador interno ao grupo de participantes também. O que me parece singular é a instauração de atos coletivos em que cada corpo trabalha sobre seus próprios modos de estar no mundo, compondo conscientemente com outros seres e com o ambiente. Nessa atitude estariam, simultaneamente, o potencial estético e ético das ações, bem como o delineamento de um modo peculiar de aprendizagem.

Dois contornos do processo pedagógico

De maneira geral, a proposição dessas ações parte de dois procedimentos. De um lado, o contato inicial ou a posteriori com imagens, vídeos, materialidades distintas criadas por outros/as pessoas, que se autodenominam artistas ou não, que têm realizado ações semelhantes em outros espaços e tempos. Desse modo, o estudo conceitual e a contextualização histórica das referências se dão no processo de fruição dessas ações, por atravessamento estético, ético, por encantamento, indagação, indignação. De meu ponto de vista, esse modo de proceder se torna chave na organização dos processos coordenados por mim nos últimos anos. Ele se fundamenta no compartilhamento de meus interesses efetivos por artistas, estudiosos/as, contextos de pesquisa, assim como pela exposição das ações em que eu estive implicada. O entrelaçamento entre esses dois aspectos de tal procedimento - a exposição efetiva dos interesses da/o docente e o estudo do campo artístico por meio de uma experiência significativa de fruição - parece-me ser uma das dimensões que tem ressignificado minhas práticas no ensino de Teatro.

De outro lado, a dinâmica de trabalho se fundamenta especialmente na ação propriamente dita e numa ação que se direciona a si mesmo. Em agir coletivamente a partir da reperformance ou da criação coletiva de programas a serem cumpridos pelo próprio grupo. Ação experimentada por todos os corpos-pessoas que estão no processo - professores/as e estudantes - sem exceção.

Assim como em algumas escolas filosóficas da antigui dade, certas ações performáticas exigem que o artista modifique atitudes ou mesmo se comprometa com um tipo de askhesis (ascese), para mobilizar as energias necessárias e canalizá-las ao ato criativo. Numa arte que trabalha com grande liberdade em relação às convenções e estilos, a criação se apoia, muitas vezes, no cultivo de estados de corpo-mente que sustentarão os dispositivos de comunicação com o público (Quilici, 2014QUILICI, Cassiano. O campo expandido: arte como ato filosófico. Revista Sala Preta , São Paulo, v. 14, n. 02, p. 12-21, 2014., p. 19-20).

Exposição de si aos acontecimentos em sua imprevisibilidade. Ação sobre si, atravessamento, fruição coletiva. Esse trabalho sobre si que Cassiano Quilici evoca, envolvendo a quebra (ainda que temporária nos casos que compartilho) de hábitos e temporalidades, é o que parece trazer tanto aquela suspensão do fluxo mais mecanizado da vida, como a abertura e irrupção de outros estados corporais, nos quais se suspendem papeis sociais e se criam laços intensos entre os participantes, engendrando antiestruturas e communitas. Tais irrupções assim nomeadas se aproximam, como dito anteriormente, dos estudos de Victor Turner (2013TURNER, Victor. O Processo Ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Ed. Vozes, 2013.) acerca dos processos rituais e dos dramas sociais, nos quais emergem estados liminares - “[...] estados de trânsito, de movimentos coletivos espontâneos que geram associações temporais não hierarquizadas e onde se concretizam ações sociais que invocam possíveis transformações ou onde se constituem espaços simbólicos transformadores [...]”, diz Ileana Diéguez Caballero (2010CABALLERO, Ileana Diéguez. Cenários expandidos. (Re)presentações, teatralidades e performatividades. Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 15, p. 135-148, 2010., p. 145) ao estudar o mesmo autor.

A articulação entre esses dois procedimentos: a fruição de proposições estéticas de artistas ou coletivos e o convite efetivo por viver acontecimentos, criar situações (ou ações artísticas) é que me parecem configurar essa (ide)ação acerca da potencialidade desses dois contextos de educação formal (escola básica e universidade) como espaços culturais e artísticos, nos quais se constituem tempos e espaços dissonantes, em que se produz diferença, variação nos modos de existência institucionalizados.

Considerações Finais

Assim, a conhecida fórmula de Beuys (2011), ‘cada homem, um artista’, não significa transformar necessariamente uma pessoa em um escultor ou em um ator. Trata-se de resgatar o sentido artístico que nossas atividades podem adquirir, contra pondo-o às formas de trabalho alienado e à racionalização instrumental da produção (Quilici, 2014QUILICI, Cassiano. O campo expandido: arte como ato filosófico. Revista Sala Preta , São Paulo, v. 14, n. 02, p. 12-21, 2014., p. 13).

As proposições que compartilhei são fragmentos de processos artísticos pedagógicos instaurados na universidade ou em parceria entre universidade e escola básica que se constituem, a meu ver, como ações artísticas. Não se trata, nesses casos, de transmitir conhecimentos desde uma pessoa que sabe para outra que ignora (Rancière, 2002RANCIÈRE, Jacques. O Mestre-ignorante: cinco lições sobre emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. ). Trata-se de convidar, convocar, provocar a si mesmo e a outros/as, a se abrir para os acontecimentos que emergem nessas proposições, com seus traços estéticos e éticos; e que já se configuram, no ali-e-agora de sua ação, numa espécie de enunciação simbólica; engendrando modulações de corporalidade, suspensões de papeis, transformando estudantes e docentes em performers e em espectadores/as.

É nesse sentido ainda que escola e universidade se tornam na atualidade espécies de agentes de resistência em tempos de apagamento de memórias, seja em sua dimensão cultural histórica conservadora - como afirma H. Arendt (1979ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 1979.), ao sublinhar nossa responsabilidade pela manutenção da inteligibilidade do mundo -, seja como espaço-tempo propício para criar interstícios sociais, performatividades subversivas (Caballero, 2010CABALLERO, Ileana Diéguez. Cenários expandidos. (Re)presentações, teatralidades e performatividades. Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 15, p. 135-148, 2010.) e outros modos de existência (Quilici, 2014QUILICI, Cassiano. O campo expandido: arte como ato filosófico. Revista Sala Preta , São Paulo, v. 14, n. 02, p. 12-21, 2014.) no mundo.

Como corpo sensível, reflexivo, político, atravessada pelo tempo presente, fazer de minhas práticas docentes possíveis ações artísticas no cotidiano dos processos da formação de professores/as de Teatro - seja na universidade, seja na escola básica - se constitui uma tática de atuação e produção de outras formas possíveis de existência no momento histórico em que vivemos.

Referências

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  • VELOSO, Verônica Gonçalves. Percorrer a cidade a pé: ações teatrais e performativas no contexto urbano. Tese de doutorado. São Paulo: USP, 2017.
  • 1
    O projeto de pesquisa em questão se chama Corporalidades, Teatralidades, Performatividades na cena e na educação contemporânea - olhares globais, ações em rede, ações locais, cobrindo o período de 2017 a 2021.
  • 2
    Refiro-me aqui especialmente ao professor Getúlio Góis de Araújo, da Escola de Educação Básica da UFU, a quem agradeço a parceria que temos construído e a autorização para citar as experiências realizadas em conjunto e em outros textos apresentadas conjuntamente.
  • 3
    O processo de composição do audiotour foi compartilhado em texto na Revista Urdimento v. 1, n. 34 (Caon; Araújo, 2019CAON, Paulina Maria; ARAÚJO, Getúlio Góis de. Caminhar, desacelerar - uma experiência com audiotour e fotoperformance na escola. Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas , Florianópolis, v. 01, n. 34, p. 224-235, 2019.).
  • 4
    Victor Turner (1920-1983) aprofundou os estudos sobre essas noções no livro clássico do campo antropológico, O Processo Ritual, traduzido e editado no Brasil pela Editora Vozes. O estudioso desenvolve abordagem articulando elementos da Antropologia e do Teatro para análise do que ele passou a chamar de dramas sociais.
  • 5
    Tim Ingold (1984-) é antropólogo britânico, com estudos na fenomenologia de Merleau-Ponty, que vem desenvolvendo o que ele denomina de antropologia ecológica, a partir, entre outras coisas, do questionamento das categorias de natureza e cultura.
  • 6
    Intitulada Cenas e escritas: memórias, aprendizagens e procedimentos de criação. Ainda em 2019 também ofereci disciplina na graduação (Pedagogia do Teatro 3), compartilhando procedimentos de trabalho vinculado às caminhadas como práticas estéticas e políticas.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • Editores-responsáveis: Verônica Veloso, Maria Lúcia Pupo e Gilberto Icle

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2019
  • Aceito
    29 Nov 2019
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