Acessibilidade / Reportar erro

Narrativa em Primeira Pessoa na Prática Performativa de Mulheres Marginalizadas e Produção de Conhecimento Decolonial

RESUMO

O ensaio propõe um diálogo entre pensamento decolonial feminista e performance arte em conexão com a própria experiência da autora nesses campos. Partindo do entendimento de que a perspectiva decolonial coloca sobre todas as categorizações conceituais e metodológicas ocidentais o viés crítico de observação, o objetivo é confabular sobre performance feita por mulheres marginalizadas, de modo a entender seu papel na produção de sentidos compartilhados por meio da escrita disruptiva e anticolonialista. Para tanto, discute-se sobre ações performativas na defesa desta prática como potência descolonizadora a partir da dimensão de corporeidade.

Palavras-chave:
Performance; Mulheres artistas; Decolonialidade; Corporeidade; Prática artística

ABSTRACT

The essay proposes a dialogue between feminist decolonial thinking and performance art, as they connect to my own experience in these fields. Based on the understanding that the decolonial perspective puts all Western conceptual and methodological categorizations under critical scrutiny, my objective is to advance discussion of performance by marginalized women, seeking to understand their role in the production of shared meanings through disruptive and anti-colonial writing. To this end, I examine performative actions that deploy such practices, which I understand as initiatives toward decolonization through embodied expression.

Keywords:
Performance; Women Artists; Decoloniality; Embodiment; Artistic Practice

RÉSUMÉ

L’essai propose un dialogue entre la pensée décoloniale féministe et l’art de la performance en lien avec ma propre expérience dans ces domaines. Tout en partant de la compréhension que la perspective décoloniale place un biais critique d’observation sur toutes les catégorisations conceptuelles et méthodologiques occidentales, l’objectif est donc parler de la performance des femmes marginalisées, tout en cherchant à comprendre leur rôle dans la production de significations partagées à travers d’une écriture perturbatrice et anticolonialiste. À cette fin, on présente une discussion sur les actions performatives défendant cette pratique en tant que pouvoir décolonisateur dans la dimension de la corporéité.

Mots-clés:
Performance; Femmes Artistes; La Décolonialité; Corporéité; Pratique Artistique

Nossa fala estilhaça a máscara do silêncio (Conceição Evaristo, 2011EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres negras. Belo Horizonte: Nandyala, 2011.).

O Imperativo da Descolonização: da objetividade à corporeidade

Um dos imperativos contemporâneos para a produção de saberes é a descolonização do pensamento, tanto dos conteúdos e teorias quanto das metodologias e epistemologias utilizadas por parte de intelectuais, estudantes e pesquisadora/es em quaisquer campos do conhecimento. Sobretudo, ao falar acerca de artes e de linguagem, esse imperativo apresenta-se como uma urgência.

Isso porque, como aponta Grada Kilomba (2019, p. 53)KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Ed. Cobogó, 2019. , o colonialismo não significou somente “[...] a imposição da autoridade ocidental sobre terras indígenas, modos indígenas de produção, leis e governos indígenas, mas também a imposição da autoridade ocidental sobre todos os aspectos dos saberes, línguas e culturas indígenas”.

Nesse sentido, como já explicado detalhadamente por Antônio Bispo dos Santos (2015, p. 28)SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos: modos e significações. Brasília: UNB, 2015., em seu livro sobre colonização e quilombos, é um fato que, desde a chegada dos colonizadores europeus em terras Pindorâmicas, a intenção colonial foi fundada numa missão cristã civilizatória que entendia os povos originários como pagãos sem alma, o que legitimou uma classificação genérica aos habitantes desta terra, sob a alcunha de índios, reduzindo e quebrando, dessa depreciativa maneira, as suas identidades, com o óbvio intuito de coisificar/desumanizar.

Ailton Krenak (2019, p. 7)KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. também constata que a colonização europeia foi sustentada pela premissa de que havia uma “humanidade esclarecida” que precisava trazer luz (razão) à outra parte de “humanidade obscurecida”, ou seja, tratou-se de um empreendimento violento e absurdo “[...] justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade” a ser disseminada pelo mundo.

Necessário destacar que, como explica María Lugones (2014)LUGONES, María. Rumo ao feminismo decolonial. Revista Estudos Feministas, Santa Catarina, v. 23, n. 3, p. 935-952, 2014., a noção de Colonialidade significa justamente que esse passado colonial continua vivo no presente, oculto sob o véu da Modernidade, ou seja, constata-se, em verdade, que os paradigmas coloniais não foram superados com o fim do imperialismo, pelo contrário, eles continuam sendo perpetuados através dos sofisticados instrumentos genocidas e da insistência na universalização do sujeito do conhecimento.

Com efeito, o que se chama muitas vezes de monopólio da produção de conhecimento ou legitimidade sobre quem pode falar numa sociedade impactada pelo colonialismo, fazendo alusão à pergunta de Gayatri Spivak (2010)SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Translation by Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. 1 1 Trata-se do livro, de autoria desta crítica e teórica pós-colonial indiana, denominado Pode o subalterno falar?. , tem “[...] gerado estruturas e instituições que produzem o racismo/sexismo epistêmico, desqualificando outros conhecimentos e outras vozes críticas frente aos projetos imperiais/coloniais/patriarcais que regem o sistema-mundo”, nas palavras de Grosfoguel (2016, p. 25)GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Translated by Fernanda Miguens, Maurício Barros de Castro and Rafael Maieiro, revised by Joaze Bernardino-Costa. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, jan./abr. 2016., sendo que esse “privilégio epistêmico” foi construído por meio do genocídio físico contra aqueles taxados de Outros.

O conceito de epistemicídio é explicado por Sueli Carneiro (2005, p. 96)CARNEIRO, Sueli A. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005., em sua Tese de Doutoramento, referindo-se a um “[...] dos instrumentos mais eficazes e duradouros da dominação étnica/racial”, que consiste na “[...] negação que empreende da legitimidade das formas de conhecimento produzido pelos grupos dominados e, consequentemente, de seus membros enquanto sujeitos de conhecimento”.

Ainda conforme essa pensadora, “[...] o epistemicídio nas suas vinculações com as racialidades” realiza “[...] um processo persistente de produção da inferioridade intelectual ou da negação da possibilidade de realizar as capacidades intelectuais” (Carneiro, 2005CARNEIRO, Sueli A. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005., p. 97). Uma das facetas desse ideário é justamente a falácia do sujeito branco europeu que se pretende universal, ou seja, que diz ter a capacidade intelectual exclusiva de falar não só por si mesmo como pelos e sobre os demais seres humanos.

A respeito da universalização do sujeito ocidental, interessante destacar a forma como Achille Mbembe (2001)MBEMBE, Achille. As Formas Africanas de Auto-Inscrição. Revista Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, a. 23, n. 1, p. 171-209, 2001. traduz a crítica ao chamado si-mesmo universal calcado na figura do homem branco colonial cartesiano, já que, segundo o autor, o complexo problema geral da alteridade foi respondido pela modernidade colonial por meio do desgastado paradigma iluminista. Nesse sentido,

[...] para que se possa entender as implicações políticas destes debates, talvez eu deva assinalar que, para o pensamento iluminista, a humanidade se define pela posse de uma identidade genérica que é universal em sua essência, e da qual derivam direitos e valores que podem ser partilhados por todos. Uma natureza comum une todos os seres humanos. Ela é idêntica em cada um deles, porque a razão está em seu centro. O exercício da razão leva não apenas à liberdade e à autonomia, mas também à habilidade de guiar a vida individual de acordo com princípios morais e com a ideia do bem. Fora deste círculo, não há lugar para uma política do universal (Mbembe, 2001MBEMBE, Achille. As Formas Africanas de Auto-Inscrição. Revista Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, a. 23, n. 1, p. 171-209, 2001., p. 177).

Nessa perspectiva, Mbembe (2001, p. 180)MBEMBE, Achille. As Formas Africanas de Auto-Inscrição. Revista Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, a. 23, n. 1, p. 171-209, 2001. afirma que, com o início da colonização, “[...] o princípio da diferença ontológica persistiu”, de maneira que o discurso ocidental usou a noção de civilização como uma categoria que “[...] autorizou a distinção entre o humano e o não-humano ou o ainda-não-suficientemente-humano que poderia se tornar humano se lhe fosse dado um treinamento adequado”. Trata-se do desenrolar de um processo de objetificação e domesticação secular que se deu por meio da “[...] conversão ao cristianismo, a introdução à economia de mercado e a adoção de formas de governo racionais e iluministas”.

No mesmo sentido, Muniz Sodré (2017, p. 102)SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis: Vozes, 2017. é categórico ao afirmar que “O semiocídio ontológico perpetrado pelos evangelizadores foi o pressuposto do genocídio físico” e explica:

A violência civilizatória da apropriação material era, na verdade, precedida pela violência cultural ou simbólica - uma operação de ‘semiocídio’, em que se extermina o sentido do Outro - da catequese monoteísta, para a qual o corpo exótico era destituído de espírito, ao modo de um receptáculo vazio que poderia ser preenchido pelas inscrições representativas do verbo cristão (Sodré, 2017SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis: Vozes, 2017., p. 101-102).

Assim, como bem elucida mais uma vez María Lugones (2014, p. 936)LUGONES, María. Rumo ao feminismo decolonial. Revista Estudos Feministas, Santa Catarina, v. 23, n. 3, p. 935-952, 2014., “A dicotomia hierárquica como uma marca do humano também tornou-se uma ferramenta normativa para condenar os/as colonizados/as”. A autora ainda complementa dizendo que:

Os povos indígenas das Américas e os/as africanos/as escravizados/as eram classificados/as como espécies não humanas - como animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens. O homem europeu, burguês, colonial moderno tornou-se um sujeito/agente, apto a decidir, para a vida pública e o governo, um ser de civilização, heterossexual, cristão, um ser de mente e razão (Lugones, 2014LUGONES, María. Rumo ao feminismo decolonial. Revista Estudos Feministas, Santa Catarina, v. 23, n. 3, p. 935-952, 2014., p. 936).

Grada Kilomba (2019)KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Ed. Cobogó, 2019. é brilhante ao assinalar tal situação fazendo a analogia com a máscara como símbolo das políticas de silenciamento impostas pelo colonialismo moderno. Em suas palavras, a máscara “[...] simboliza políticas sádicas de conquista e dominação e seus regimes brutais de silenciamento dos(as) chamados(as) ‘Outros(as)’: Quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar?” (Kilomba, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Ed. Cobogó, 2019. , p. 30). Destaco essa metáfora, pois ela será fundamental na segunda parte deste ensaio.

Ainda referenciando a lição da autora, diante da exposição dessa ferida histórica de desumanização inscrita pelo trauma colonial, não resta senão seu reconhecimento e reparação. Nesse sentido, é fato inconteste que a revelação dos segredos coloniais travestidos de modernidade, de ordem e de progresso colocam o colonizador (homem branco construído pelo paradigma do heteropatriarcado falogocêntrico) de nossos dias “[...] em uma confrontação desconfortável com as verdades do ‘Outro’. Verdades que têm sido negadas, reprimidas e mantidas guardadas, como segredos” (Kilomba, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Ed. Cobogó, 2019. , p. 32).

Tudo isso posto sobre a necessidade de descolonização do conhecimento, quero enfatizar que a legitimidade do homem branco ocidental, de falar pelos demais seres humanos de forma genérica e superior, também foi questionada com a emergência do feminismo. Como explica Cecília Sardenberg (2002 p. 90)SARDENBERG, Cecília Maria Bacellar. Da Crítica Feminista à Ciência. Uma Ciência Feminista? In: COSTA, Ana Alice Alcântara; SARDENBERG, Cecília Maria Bacellar (org.). Feminismo, Ciência e Tecnologia. Salvador: Coleção Bahianas, 2002. P. 89-129. , o chamado movimento de mulheres não só trouxe a “[...] denúncia da exclusão e invisibilidade das mulheres no mundo da ciência” como também “[...] o questionamento dos próprios pressupostos básicos da Ciência Moderna, virando-a de cabeça para baixo ao revelar que ela não é nem nunca foi ‘neutra’”.

Nessa perspectiva, Donna Haraway (1995, p. 18)HARAWAY, Donna. Saberes localizados: questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, v. 5, p. 07-41, 1995. já afirmou a necessidade de assumir que o ponto de vista supostamente objetivo, neutro e descompromissado do homem detentor da legitimidade para falar é, na verdade, uma alegoria retórica, que de forma irracional “[...] possibilita à categoria não marcada alegar ter o poder de ver sem ser vista, de representar, escapando à representação”.

Em suas palavras, “Todas as narrativas culturais ocidentais a respeito da objetividade são alegorias das ideologias das relações sobre o que chamamos de corpo e mente, sobre distância e responsabilidade, embutidas na questão da ciência para o feminismo” (Haraway, 1995HARAWAY, Donna. Saberes localizados: questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, v. 5, p. 07-41, 1995., p. 21).

Em resumo, resta evidente que a abordagem feminista já tem “[...] demonstrado o caráter histórico e, assim, social e político das construções ditas científicas” (Sardenberg, 2002SARDENBERG, Cecília Maria Bacellar. Da Crítica Feminista à Ciência. Uma Ciência Feminista? In: COSTA, Ana Alice Alcântara; SARDENBERG, Cecília Maria Bacellar (org.). Feminismo, Ciência e Tecnologia. Salvador: Coleção Bahianas, 2002. P. 89-129. , p. 94), construídas pelo, e girando em torno, do homem como medida de todas as coisas, o que abre espaço para o “[...] questionamento da sua suposta ‘neutralidade’” (Sardenberg, 2002SARDENBERG, Cecília Maria Bacellar. Da Crítica Feminista à Ciência. Uma Ciência Feminista? In: COSTA, Ana Alice Alcântara; SARDENBERG, Cecília Maria Bacellar (org.). Feminismo, Ciência e Tecnologia. Salvador: Coleção Bahianas, 2002. P. 89-129. , p. 94).

Sabendo-se ainda que o próprio feminismo pode, deve e já vem sendo questionado no sentido de que possui, assim como os demais saberes no ocidente, uma matriz moderna-colonial, quero destacar que, apesar de fazer voz nesse primeiro momento a feministas que vêm de uma tradição pós-estruturalista, no decorrer da argumentação me volto à ênfase de um feminismo que caminhou, a partir da crítica de outras mulheres, inclusive de uma autocrítica, para o ponto de vista ou a prerrogativa decolonial.

Já nesse caminho, não podemos ignorar o fato de que, na realidade, como bem explica Catarina Martins (2016, p. 179)MARTINS, Catarina. Mulheres poderosas: género, raça, sexualidade, classe, nação e outras categorias nómadas na literatura contemporânea de mulheres africanas. In: COLLING, Leandro (org.). Dissidências Sexuais e de Género. Salvador: Edufba, 2016. P. 179-191., “[...] o imperativo da ‘descolonização do género’ é, pelo menos desde os anos 1980, uma reivindicação persistente das feministas africanas”.

De fato, desde o início o feminismo deveria ser um termo no plural, uma vez que o pensamento e a prática política exercida por mulheres provenientes do continente africano, assim como das feministas afro-americanas, a exemplo de Patricia Hill Collins, bell hooks, Angela Davis e de outras tantas intelectuais afro-latino-americanas, sempre denunciaram o viés eurocêntrico e imperialista de um feminismo branco liberal-burguês.

Nesse aspecto, é imprescindível lembrar o legado de pensamento de algumas autoras afro-latino-americanas, caribenhas e brasileiras, como Gloria Anzaldúa, Ochy Curiel, Sueli Carneiro e Jurema Werneck, e ainda das africanas, como Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, Amina Mama e Bibi Bakare-Yusuf, cujas vozes fazem parte de um pensamento complexo de diversas perspectivas feministas negras na diáspora.

Assim, a partir do entendimento da “[...] imensa heterogeneidade das experiências concretas das mulheres, cujas subjetividades, necessidades e desejos acabam por ser silenciados e invisibilizados” (Martins, 2016MARTINS, Catarina. Mulheres poderosas: género, raça, sexualidade, classe, nação e outras categorias nómadas na literatura contemporânea de mulheres africanas. In: COLLING, Leandro (org.). Dissidências Sexuais e de Género. Salvador: Edufba, 2016. P. 179-191., p. 179) pela homogeneização do sujeito mulher, é essencial evitar o reducionismo e a naturalização da palavra mulher, que emerge de um feminismo construído pela lógica colonial branca, como a própria Catarina Martins (2016, p. 179) explicita ao afirmar que descolonizar o feminismo requer “[...] uma análise crítica dos próprios pressupostos conceptuais e metodológicos dos feminismos ocidentais”.

Ao entender, portanto, que a perspectiva decolonial coloca, não só sobre o gênero, mas sobre todas as categorizações conceituais e metodológicas ocidentais, o viés crítico de observação, o presente ensaio confabula sobre performance arte feita por mulheres marginalizadas na contemporaneidade, a princípio em território baiano. Busco, então, apreender seu papel na produção de sentidos compartilhados através da escrita disruptiva anticolonialista, que é, seguindo a linha sensível da mestra Carla Akotirene (2019, p. 21)AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019., “[...] avessa às ferramentas modernas de validação científica”.

Ao considerar ainda, a escrita ensaística como aquela que mais se aproxima de uma forma crítica dotada de autonomia, tanto estética como disciplinar, evidencio minha intenção, na condição de pesquisadora encarnada (Messeder, 2018MESSEDER, Suely. Memórias e cenas narradas sobre a infância e as relações de gênero na linha de vida da professora universitária e da pesquisadora encarnada. Periódicus - Revista de estudos indisciplinares em gêneros e sexualidades, Salvador, v. 1, n. 9, maio/out. 2018.), de escreviver experimentando. E aqui não posso deixar de referenciar Conceição Evaristo (2011)EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres negras. Belo Horizonte: Nandyala, 2011., que é a responsável por cunhar o termo escrevivência, para falar da escrita que parte do cotidiano, das memórias e das experiências da sua própria vida e do povo afrodescendente, no sentido de evidenciar a condição social específica da mulher negra na sociedade brasileira.

Vale dizer ainda que, ao utilizar a categoria analítica e metodológica de pesquisadora encarnada desenvolvida pelo Grupo Enlace (UNEB/BA), quero construir um diálogo entre esses fundamentos decoloniais do pensamento como um todo, e do feminismo em especial, em conexão com minha trajetória de vida/arte, evidenciando a performance como potência descolonizadora. Nessa direção, destaco que a pesquisa científica

[...] decorre das realidades, pensamentos, sentimentos e experiências das pessoas próximas ou de nós mesmos, acometidos por dores e feridas vivenciadas no dia a dia, engendradas por uma dimensão traumática do machismo, de sexismos, da LBGTfobia, do racismo que, aparentemente, nos emudece. Em verdade, existe o reconhecimento da trajetória biográfica do/a/x pesquisador/a/x e do tema desenvolvido em suas pesquisas científicas, com foco, sobretudo, na influência dos marcadores sociais fincados em nossas subjetividades corpóreas (Messeder, 2018MESSEDER, Suely. Memórias e cenas narradas sobre a infância e as relações de gênero na linha de vida da professora universitária e da pesquisadora encarnada. Periódicus - Revista de estudos indisciplinares em gêneros e sexualidades, Salvador, v. 1, n. 9, maio/out. 2018., p. 123).

Neste ponto, faz-se necessário trazer à luz um dos aspectos intrínsecos a esta posição teórico-epistemológica, qual seja, a dimensão da corporeidade, como um degrau mais elevado em comparação à mera objetividade científica. Levando em consideração a ideia de Haraway (1995)HARAWAY, Donna. Saberes localizados: questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, v. 5, p. 07-41, 1995., de que o conhecimento localizado consiste no exercício de uma prática crítica de objetividade corporificada, defendo que “[...] precisamos aprender em nossos corpos [...] como vincular o objetivo aos nossos instrumentos teóricos e políticos de modo a nomear onde estamos e onde não estamos, nas dimensões do espaço mental e físico que mal sabemos como nomear” (Haraway, 1995HARAWAY, Donna. Saberes localizados: questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, v. 5, p. 07-41, 1995., p. 21).

A fim de compreender a complexa ideia de corporeidade, é válido destacar brevemente os ensinamentos preciosos de Muniz Sodré (2017)SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis: Vozes, 2017., que, recorrendo à outra cosmovisão, a nagô, salienta a importância de focalizar o si-mesmo corporal como uma nova forma subjetivação que entenda a “[...] grande importância outorgada ao corpo, já que não se trata de uma subjetivação ancorada em estruturas lógicas de representação, mas nos posicionamentos de potência corporal inscritos no território” (Sodré, 2017SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis: Vozes, 2017., p. 101).

Assim, deve-se ter em vista que não temos um corpo, somos corpo, isso fora da lógica dualista ocidental “[...] que obriga o pensamento a ocupar-se das ideias, enquanto o corpo limita-se aos sentidos” (Sodré, 2017SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis: Vozes, 2017., p. 101). Aqui, ao invés da ideia de si-mesmo universal do cartesianismo, o corpo é entendido na perspectiva do “‘[...] si-mesmo’ corporal, que consiste na sua potência afetiva de ação, na dimensão tácita, e não sígnica, de seu funcionamento” (Sodré, 2017SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis: Vozes, 2017., p. 103).

Diante de tudo isso, falando a partir do meu pensamento-corpo, poderia abordar inúmeras ações performativas que vêm acontecendo na cena atual baiana que acionam esses entendimentos teóricos. De fato, cada uma delas merece um olhar mais demorado, pois entoam cada uma importâncias específicas, principalmente para o presente momento histórico, em que generais assumem o poder em diversas instâncias do (des)governo (inter)nacional.

Porém, neste texto me contento em apenas nomear algumas delas, dando maior ênfase a uma performance de minha autoria, já que é necessário focalizar o olhar. Dessa forma, explicitando a finalidade de evidenciar a presença das mulheres na cena artivista contemporânea de dissidência sexual e de gênero, nos termos de Colling (2018)COLLING, Leandro. A emergência dos artivismos das dissidências sexuais e de gêneros no Brasil da atualidade. Revista Sala Preta, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 152-167, 2018., quero demarcar a característica da narrativa de si-mesma ou ainda narrativa em primeira pessoa a partir da prática performativa, que identifico presente na arte da performance feita por mulheres artistas marginalizadas.

Com esse intuito, recorro à infinidade de fragmentos de vida armazenadas na memória corporal para falar de trabalhos artísticos performativos realizados por outras mulheres e por mim mesma, dentro de um tipo de espelho onde me vejo e de uma lente multifocal através da qual posso observar vivências compartilhadas por um grupo de mulheres indeterminado em sua grandeza e particular em suas especificidades.

Ao refletir sobre performances artísticas, quero desvendar como me interpelam e dialogar com sua dimensão de corporeidade como “[...] a condição própria do sensível”, como bem define Muniz Sodré (2017, p. 106)SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis: Vozes, 2017.. Descobrir o que move os atos performativos abordados pode revelar pistas sobre o que nos move na condição de mulheres artistas dissidentes e/ou marginalizadas que fazem performance hoje. Quero assim refletir sobre o que essas performances acionam em mim através da escrita, ao tempo que escrevo em mim mesma uma prática de pesquisa situada na dimensão da experiência.

Não pretendo interpretar ou analisar as ações performativas, minha intenção é apresentá-las, inicialmente, apenas no contexto de uma emergência de modos de saber-fazer arte que se caracteriza como anticolonial e feminista, simultaneamente. Nesse ritmo, evidenciar a experiência inerente na arte da performance como produtora de processos de subjetivação e agenciamento, escolhendo a palavra como seu instrumento ou energia de potência, para, em outro momento, especular quais podem ser suas influências para um movimento de conexão e ressignificação na formação de redes artísticas entre mulheres e em diálogo com outros grupos de artistas marginalizada/os.

Dito de outra maneira, este ensaio parte do pressuposto de que, em primeiro lugar, a prática artística feita separadamente ou simultaneamente à pesquisa acadêmica é tão relevante e legítima quanto esta. Na busca de empreender um diálogo entre performance arte, experiência de mulheres e decolonialidade, afirmo a ideia de que existem conhecimentos que só a arte é capaz de capturar e reverberar. Ela traz para a escrita a memória afetiva da vivência, o lugar de pertencimento e a dimensão da corporeidade.

Em segundo lugar, o pressuposto de que não é possível dissecar a obra de arte performativa e entender tudo que ela quer transmitir, já que, muito do que ela veicula, encontra-se no próprio modo de fazê-la e na experiência de presenciá-la, onde a sensibilidade está localizada no corpo, na ação aqui e agora, considerando que a performance é uma linguagem artística que ultrapassa a lógica da representação, referenciando as palavras de Tania Alice (2014)ALICE, Tania. Diluição das fronteiras entre linguagens artísticas: a performance como (r)evolução dos afetos. Catálogo Nacional do SESC - Reflexões sobre a linguagem da performance no Brasil. “O que é performance? , 2014. Available at: <http://taniaalice.com/wp-content/uploads/2012/11/palco2014_Artigo_Tania.pdf>. Accessed on: July 15th, 2019.
http://taniaalice.com/wp-content/uploads...
.

Sobre o assunto, é válida também a citação de Eleonora Fabião (2009, p. 237)FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. Revista Sala Preta, São Paulo, v. 8, p. 235-246, 2009., que afirma a força da performance no fato de “[...] turbinar a relação do cidadão com a polis; do agente com seu contexto; do vivente com o tempo, o espaço, o corpo, o outro, o consigo”. Segundo a autora:

Esta é a potência da performance: des-habituar, desmecanizar, escovar à contra-pêlo. Trata-se de buscar maneiras alternativas de lidar com o estabelecido, de experimentar estados psicofísicos alterados, de criar situações que disseminam dissonâncias diversas: dissonâncias de ordem econômica, emocional, biológica, ideológica, psicológica, espiritual, identitária, sexual, política, estética, social, racial [...] (Fabião, 2009FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. Revista Sala Preta, São Paulo, v. 8, p. 235-246, 2009., p. 237).

Entendo, dessa forma, ser descabido o esforço de buscar uma interpretação das ações performativas trazidas à tona neste ensaio, a partir do entendimento de que elas falam por si mesmas, e são, em si mesmas, produção de conhecimento. Com efeito, afirmo e assumo aqui o desafio de expor minha experiência, colocando-me como sujeita do processo de criação e de observação, para descrever como as ações performativas citadas atingem minhas sensações e pensamentos, ativam em mim mesma a escrita de mim em minha experiência como mulher racializada e marginalizada.

A dificuldade de falar sobre o momento atual, vivendo-o, aciona o risco da queda em interpretações apaixonadas, todavia, ao mesmo tempo, a oportunidade de falar a partir deste lugar ativa a construção de um conhecimento situado e corporificado, conforme as ideias já citadas de Haraway (1995)HARAWAY, Donna. Saberes localizados: questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, v. 5, p. 07-41, 1995.. Minha escrita não é neutra, minha pesquisa não é neutra, pelo contrário, escrevo uma história vivida e, ao fazê-lo, interrogo sobre a própria finalidade do empenho filosófico, trilhando um caminho aberto antes de mim por intelectuais e pensadoras como Lélia Gonzalez, Djamila Ribeiro, Carla Akotirene, entre tantas outras.

Desmascarando o Silenciamento Colonial Imposto às Mulheres Marginalizadas

Com o propósito de especular ensaisticamente sobre o tema, apresento, então, algumas considerações sobre a performance urbana Desmascarar o Abuso - Sair do Silêncio, criada por mim e pela artista performática Talita St no início de 2016, e cultivada por algumas outras mulheres até aqui, as quais referencio por todas as trocas e contribuições em todo o processo de (re)existência dessa ação: Morgana, Kécia, Shirley, Jussana, Márcia, Daniela, Dairi, Manoella, Tuti, Marina, Beatriz, Thaís, Abigail, Drica, Vanessa, Letícia, Sávia, Mafá, Bruna, Mirli, Luar, entre tantas outras que a vivenciaram.

Desmascarar o Abuso - Sair do Silêncio surgiu com a proposta de ser uma intervenção estético-política desde seu enunciado: uma mulher que caminha pela rua carregando, como uma máscara, palavras de assediadores (Imagem 1). Mais do que palavras, símbolos de um abuso sutil, naturalizado, mas muito violento, que a silencia e objetifica. Ideias reproduzidas através de olhares invasivos e comentários depreciativos sobre sua aparência, toques sem a sua permissão, que mostram o quanto o corpo da mulher é visto como público, negando-lhe autonomia, identidade e dignidade. A provocação ao público é direta: Você já ouviu essas palavras? Você já disse essas palavras? E agora, vai deixar quieto e contribuir para a manutenção dessa realidade ou vai ajudar a descascar essa máscara colada no corpo e na memória de todas as mulheres? A cada pedaço a menos da máscara, um passo à frente, um movimento, um grito, uma dança. O resultado é inesperado: a mulher vai andar livremente na rua?

Imagem 1
Performance Desmascarar o Abuso-Sair do Silêncio em Vitória da Conquista, em 2016. Foto: Carol Dia.

É importante destacar que essa ação surgiu também a partir de provocações acumuladas durante o processo desenvolvido junto ao Laboratório de Corpo-Criação-Performance-Interferência (LCCPI), após nossa (Talita e eu) participação no Programa Estética do silêncio, proposto por outra de minhas mestras, Morgana Poiesis, sendo que, durante cerca de quatro meses do ano de 2015, de encontros, experimentos corporais, leituras, conversas e ações performativas urbanas, investigamos o silêncio e suas implicações com o corpo, o tempo, o outro, a cidade, etc.

A performance aconteceu pela primeira vez em março de 2016, na primeira edição do Conquista Ruas: Festival de Artes Performativas, que acontece em Vitória da Conquista/BA. Na oportunidade, compus a máscara no rosto de Talita, que saiu com ela na rua. Como previa a proposição, a máscara foi sendo retirada aos poucos com a ajuda dos transeuntes, a cada fragmento de palavra, que encobria o rosto sendo desmascarado, a mulher foi libertando seu caminhar, até ter o rosto totalmente à mostra e sair de fato caminhando, culminando no encerramento da ação.

Imprescindível destacar também o processo de reflexão com as palavras, a partir da escrita, desenvolvido para a performance, uma vez que as frases que compuseram a máscara vieram de situações reais, vividas por nós duas e por outras mulheres com quem conversamos sobre o assunto semanas antes da ação. Ao reescrever palavras ditas por assediadores no rosto como uma máscara, revisitamos memórias de violência cujo peso e carga emocional também passam a fazer parte da ação performativa através da sua transformação em linguagem do corpo. Caminhar à medida que a máscara é retirada, com auxílio de quem se sente sensibilizada/o, enfatiza, por sua vez, um processo ou ao menos uma busca pela ressignificação do assédio cotidiano.

A realização dessa ação foi, de fato, a demonstração da potência imagética e provocativa da performance, principalmente para as mulheres, de forma que a atitude de desmascarar o abuso vivenciado diariamente, expondo essa violência falada em forma de uma máscara que esconde a identidade das mulheres, de certa maneira, revela o segredo da objetificação contido no assédio que é naturalizado e invisibilizado, causando incômodo e/ou reflexão.

Creio que essa potência de provocação e ressignificação é demonstrada pelo fato de que, pouco tempo depois de sua realização, a performance foi reperformada por outras mulheres artistas que procuraram Talita e eu para conversar sobre sua identificação na mesma e apresentar a ação em dois contextos totalmente diversos do primeiro. Assim, a performance aconteceu também na escola de dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA) (Salvador) em 2016, e na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) (Vitória da Conquista), em 2018, por iniciativa de outras mulheres artistas (Imagem 2).

Imagem 2
Performance Desmascarar o Abuso-Sair do Silêncio realizada em Belém (PA), em 2018. Foto: Dairi Paixão.

Com a grande reverberação da ação, em maio de 2019 abri uma chamada para reunir mais mulheres a fim de empreender uma ação coletiva, em especial negras, indígenas, lésbicas, trans e travestis, enfim, mulheres marginalizadas pelas estruturas cis-heteropatriarcais da sociedade colonial, da cultura e da própria arte, para juntas realizarmos a remontagem da performance com a finalidade de expandir seu conteúdo e alcance, abarcando a experiência de outras corpas e, assim, outras subjetividades e vivências silenciadas pelas diversas formas de assédio a que somos submetidas cotidianamente.

Assim, após reunir um grupo de 11 mulheres interessadas na realização da performance, pude trocar, conversar e experimentar com cada uma delas de maneira diversa sobre nossas experiências plurais com assédio e violência, culminando na ação coletiva Desmascarar o Abuso - Sair do Silêncio, que foi performada por mim juntamente com Beatriz Borges, Manoella Pedra, Vulpi e Abigail Nunes, em junho de 2019, na Feira de São Joaquim, em Salvador, durante a realização da (71)Interferências - mostra itinerante de performance e intervenção urbana (Imagem 3).

Imagem 3
Performance coletiva Desmascarar o Abuso - Sair do Silêncio realizada em Salvador (BA), em 2019. Foto: Breu.

Como esperado, a performance revelou um lugar provocativo ainda mais evidente e forte, próprio do fazer coletivo. A partir dos diálogos sobre nossos incômodos e sobre tudo o que a ação nos acionou de sentimento, experiência e memória, novos elementos entraram no universo da performance, como o espelho, sugerido por Abigail para evidenciar partes do seu corpo mais olhadas invasivamente na rua, revertendo o olhar de quem olha para seu próprio reflexo no espelho, e a ação de incitar as pessoas que tiram partes da máscara a escrever suas próprias palavras no corpo performático, movida por Manuella.

Desse modo, ressalto que, após a performance, continuamos movidas a desenvolver desdobramentos e reverberações para uma ação futura, a fim de criar novos enfrentamentos para a questão do assédio, destacando a necessidade despertada em todas nós que realizamos essa última ação no sentido de propor, além da exposição do abuso e todas as suas especificidades relacionadas à violência contra nossos corpos e subjetividades nos espaços públicos, reações que ressaltem o viés combativo diante do sofrimento de sair do silêncio, identificado por nós, neste momento, como o aspecto mais relevante da ação2 2 Registro em vídeo disponível em: <https://youtu.be/qTsutI-Z0Sg>. Acesso em: 02 mar. 2020. .

Como já mencionei anteriormente, poderia trazer várias ações performativas que dialogam com toda a abordagem teórica que trouxe até agora, que falam de mulheres, objetificação e silenciamento e constroem uma narrativa de si mesmas pelo corpo, contrariando essa história única de subalternidade passiva. Neste momento, recorro às minhas irmãs performêras que estão fora de um circuito mais conhecido da arte contemporânea, trazendo como exemplos de ação performativa que utiliza a palavra em sua composição: Desbunde da performer Val Souza, Corpo que sangra - Corpo palavra da multiartista Tusi Camb, Com-partilha de Shirley Ferreira, Escandalosa de Brisa Morena, Cualquiera! Cualquer cosa sobre todo en mi de Maria Tuti Luisão, entre outras.

Em todas elas a marca das questões do silenciamento, do apagamento da subjetividade e da objetificação transparecem com força cortante e corporificada. Relembro, neste momento, então, a lição da a artista e pesquisadora Grada Kilomba (2019)KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Ed. Cobogó, 2019. , que traz no texto A Máscara uma significativa contribuição sobre o processo histórico de invisibilização, notadamente das mulheres negras, que demonstra a persistência do trauma colonial e seu desvelamento através da fala do sujeito colonizado/a, desnudada/o também pela ação das mulheres que performam.

Nesse sentido, igualmente, importa a lembrança de que as ações performativas citadas surgiram antes das reflexões teóricas e independente delas. No caso de Desmascarar o Abuso - Sair do Silêncio, o próprio esforço teórico construído por mim, autora da ação, é uma ramificação e uma interlocução entre prática e teoria, que pode abrir caminho para outras possíveis reflexões acerca dessa relação de complementaridade no campo das artes performativas.

A ação performativa conversa na prática com a discussão sobre discurso, poder e subalternidade, que torna possível lê-las dentro de uma perspectiva emanada das vivências de mulheres marginalizadas pelo projeto colonial, a partir da negação do lugar passivo de desumanização/coisificação que permite o assédio, a inferiorização, por meio da ocupação do lugar do afronte, ou seja, posicionando-se como sujeitas autônomas que se contrapõem, questionam e dizem não à lógica cis-heteropatriarcal colonial que vê esses corpos como públicos, disponíveis, como objetos do desejo alheio.

A performance, assim, funciona como linguagem na criação de narrativas em primeira pessoa, que alumiam a presença de sujeitos mulheres de voz e conhecimento, dotadas de subjetividades múltiplas, que não partem da noção ocidental universalizante, mas de uma perspectiva de retomada de territórios de memória e de produção de modos de fazer-saber-viver, pois falam por si mesmas, baseadas em suas experiências vividas. Fatos que nos levam à discussão que se segue, como conclusão preliminar, transitória e em constante movimento no sentido de enxergar a potência de descolonização na arte da performance praticada por essas mulheres, a partir dessa ideia de narrativa em primeira pessoa na dimensão da corporeidade.

Prática Performativa: narrativa de si-mesma pelo corpo

Nas ações performativas abordadas neste ensaio, as palavras funcionam juntamente com o corpo como instrumento que reflete a necessidade de falar de si, ressignificando experiências de silenciamento e de desumanização. Inegavelmente, a arte da performance carrega em si mesma essa potência, evidenciando a narrativa autoral, como aduz Glusberg (2005, p. 100)GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance. Translation by Renato Cohen. São Paulo: Perspectiva, 2005., ao afirmar que “[...] as performances recuperam o corpo como veículo do fazer artístico” utilizando o “[...] próprio corpo do artista, dado que a maior parte das performances tem como protagonista seus próprios criadores”.

Isso posto, retomo meu objetivo de compreender essas ações performativas na qualidade de propulsoras do corpo-palavra como instrumento criativo, desencadeando a conclusão preliminar de que a ação de falar e/ou escrever nossas memórias e vivências, propondo formas de diálogo entre elas, significa olhar para nós mesmas e, a partir daí, enxergarmos o mundo, interagirmos com ele e, de certa maneira, ressignificar experiências e assim transformá-las.

Nesse sentido, Audre Lorde (1984)LORDE, Audre. Poetry is no luxury. In: LORDE, Audre. Sister Outsider: essays and speeches. New York: The Crossing Press Feminist Series, 1984. (Tradução de Tatiana Nascimento do ensaio Poesia não é um luxo). Available at: <https://traduzidas.wordpress.com/2013/07/13/poesia-nao-e-um-luxo-de-audre-lorde/>. Accessed on: Jun. 21, 2019.
https://traduzidas.wordpress.com/2013/07...
defende o poder de transformação contido no exercício da escrita, destacando que para nós, que somos mulheres, e dentro desse nós mais ainda para muitas de nós que somos negras, lésbicas, transexuais, travestis, não-binárias, enfim, aquelas que constituem o grupo que venho denominando de mulheres marginalizadas, a poesia não é um luxo.

Quando escrevemos, quando falamos com nossas próprias palavras, partilhamos nossas vivências singulares, pois, como afirma Haraway (2009, p. 47)HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz (org.). Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. P. 33-118., “[...] não existe nada no fato de ser mulher que naturalmente una as mulheres. Não existe nem mesmo uma tal situação - ‘ser’ mulher”. Como elucida a autora, a categoria mulher simboliza ela própria um esforço teórico altamente complexo, tendo sido construída “por meio de discursos científicos sexuais e de outras práticas sociais questionáveis”, de maneira que, a “[...] consciência de classe, de raça ou de gênero é uma conquista que nos foi imposta pela terrível experiência histórica das realidades sociais contraditórias do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado”.

O exercício da narrativa de si mesma, seja na fala ou na escrita, na perspectiva da corporeidade, mostra, portanto, que nós estamos aqui! Existimos, somos muitas, diversas e, com nossas subjetividades complexas, resistimos. Assim, essa prática, que pode também ser descrita como narrativa de si, escancara a necessidade de expor verdades, antes renegadas aos esconderijos secretos do único lugar possível para nós mulheres na sociedade e cultura ocidental em que estamos inseridas, qual seja, o refúgio do privado; verdades estas experienciadas no cotidiano das corpas femininas que sofrem secularmente a tentativa de apagamento pelas estruturas e estratégias de colonização, adestramento e condicionamento do corpo-mente; verdades como a desumanização, a objetificação e a invisibilidade a que somos submetidas, sobretudo, as mulheres negras. E a arte da performance guarda a potência de expressar verdadeiramente essa situação.

Desse modo, a prática com a palavra reverbera na forma de fazer arte eminentemente do corpo, já que se trata da expressão na dimensão da corporeidade, ainda mais se tratando de corpos marcados na pele e no espírito pela violência, tendo em vista estarmos falando de ações realizadas por mulheres negras, lésbicas, travestis, logo, que carregam em si mesmas a intersecção dos traumas coloniais levantados por Kilomba (2019)KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Ed. Cobogó, 2019. . Aliás, o fato de que o corpo desempenha na arte da performance um lugar central se amplifica de maneira mais marcante falando-se de corpos dissidentes.

Nesse contexto, deve-se enfatizar ainda que, ao trazer luz à questão do uso da palavra como forma de resistência e ressignificação por parte dessas mulheres marginalizadas na performance, meu objetivo não é minimizar experiências anticoloniais de povos, culturas e línguas ágrafas, uma vez que estas também construíram e constituem conhecimento, arte e resistência, sem dúvida, porém, estão fora do âmbito específico do qual e no qual estou a falar aqui, onde quero destacar justamente a necessidade do uso subversivo da língua gráfica imposta pelo colonizador, contra ele e seu próprio sistema de dominação, criando fissuras e tensões na sua forma de linguagem e discurso.

Como bem traduz Kilomba (2019, p. 27)KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Ed. Cobogó, 2019. , a língua impôs nosso silêncio dentro de “[...] uma história de vozes torturadas, línguas rompidas, idiomas impostos, discursos impedidos e dos muitos lugares que não podemos entrar, tampouco permanecer para falar com nossas vozes”, mas temos agora conseguido falar em primeira pessoa “[...] sobre resistência, sobre uma fome coletiva de ganhar a voz, escrever e recuperar nossa história escondida”.

Nesse sentido, não é colocar a palavra num pedestal que inferioriza outras formas de comunicação, pelo contrário, levando em conta que justamente falando de performance o que se coloca no centro, como também já posto neste ensaio, é o uso do corpo, da experiência da artista que performa, o uso da palavra faz parte da experiência desses corpos marginalizados no mundo colonial, sendo necessária sua apropriação, pois não queremos somente falar, mas do mesmo modo sermos ouvidas e compreendidas em nossas reivindicações.

Não é exaustivo lembrar que o contexto colonial atual ainda nos faz remeter ao questionamento de quem pode falar ou não, quais vozes são legitimadas e quais não são e dentro de quais espaços! Ainda com Kilomba (2019, p. 27)KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Ed. Cobogó, 2019. , é nessa perspectiva que “Escrever, portanto, emerge como ato político [...] o ato da escrita como um ato de tornar-se e, enquanto escrevo, me torno escritora e narradora da minha própria realidade, a autora e autoridade na minha própria história”.

Ao ressoar bell hooks (1990, p. 152)hooks, bell. Yearning: Race, Gender and Culture Politics. Cambridge: South End Press, 1990., posso dizer que “[...] a linguagem também é um lugar de luta” e que essa história única que contam sobre nós “[...] pode ser interrompida, apropriada e transformada pela prática artística e literária”. Assim, trata-se de usar a linguagem e a performance com a palavra como ato de descolonização a partir da oposição e reinvenção que nos torna sujeitas, como

[...] espaço de recusa, onde se pode dizer não ao colonizador, não ao opressor [...] E só se pode dizer não, falar a voz da resistência, porque existe uma contra-linguagem. Embora possa se assemelhar à língua do colonizador, ela sofreu uma transformação, foi irrevogavelmente alterada. Embora eu tenha deixado esse espaço marginal concreto, mantive vivas em meu coração as formas de conhecer a realidade que afirmam continuamente não apenas a primazia da resistência, mas a necessidade de uma resistência sustentada pela rememoração do passado que inclui a memória de línguas quebradas que nos oferecem modos de falar que descolonizam nossa mente, e nossa própria existência (hooks, 1990hooks, bell. Yearning: Race, Gender and Culture Politics. Cambridge: South End Press, 1990., p. 225).

Obviamente cabe a crítica, aprendendo com Lélia Gonzalez, através de Djamila Ribeiro (2017, p. 26)RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Coleção Feminismos plurais. Belo Horizonte: Letramento, 2017., que traz “[...] a reflexão de como a linguagem dominante pode ser utilizada como forma de manutenção de poder, uma vez que exclui indivíduos que foram apartados das oportunidades de um sistema educacional justo”, isto é, de como “[...] a linguagem a depender da forma como é utilizada, pode ser uma barreira ao entendimento e criar mais espaços de poder em vez de compartilhamento, além de ser um - entre tantos outros - impeditivo para uma educação transgressora”.

Ainda de um ponto de vista crítico desse recorte, reconheço, ainda com Djamila Ribeiro (2017, p. 90)RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Coleção Feminismos plurais. Belo Horizonte: Letramento, 2017., que

[...] pensar lugares de fala para essas pensadoras seria desestabilizar e criar fissuras e tensionamentos a fim de fazer emergir não somente contra discursos, posto que ser contra, ainda é ser contra a alguma coisa. Ser contra hegemônica, ainda é ter como norte aquilo que me impõe.

Nesse sentido, importa o fato de que

[...] sim, esses discursos trazidos por essas autoras são contra hegemônicos no sentido de que visam desestabilizar a norma, mas igualmente são discursos potentes e construídos a partir de outros referenciais e geografias; visam pensar outras possibilidades de existências para além das impostas pelo regime discursivo dominante (Ribeiro, 2017RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Coleção Feminismos plurais. Belo Horizonte: Letramento, 2017., p. 90).

Levando isso em consideração, não se pode também ignorar a relevância da reivindicação pelo lugar de intelectualidade por parte dos grupos colonizados, fundamentada em ensinamentos tanto de Gonzalez e Ribeiro como de bell hooks. Essa postura firma-se numa oposição à ideia colonial de que não somos capazes de construir conhecimento nesse local do exercício do pensamento, da escrita, da teoria e da intelectualidade. Isso não por meio de uma arbitrária imposição de epistemologia de verdade, mas convocando sua reflexão (Ribeiro, 2017).

Não é o uso da palavra contraposta a um não uso da palavra por opção, cultura, etc., mas, sim, a palavra que irrompe como resistência dentro de um contexto exposto por Jurema Werneck (2010, p. 10)WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas contra o sexismo o racismo. Revista da ABPN, Uberlândia, v. 1, n. 1, p. 8-17, 2010., quando afirma a presença de diversas articulações empreendidas num contexto de luta “[...] contra a violência do aniquilamento - racista, heterossexista e eurocêntrico - com vistas a garantir nossa participação ativa no agenciamento das condições de vida para nós mesmas e para o grupo maior a que nos vinculamos”.

Ainda em suas palavras, tais

[...] articulações que se desenvolveram apesar (e a partir) das ambiguidades e limitações de identidades fundadas em atributos externos impostos pelo olhar dominador, de forte marca fenotípica (visual) e cuja amplitude de aniquilamento estende-se ao genocídio e ao epistemicídio (Werneck, 2010WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas contra o sexismo o racismo. Revista da ABPN, Uberlândia, v. 1, n. 1, p. 8-17, 2010., p. 10).

Sobre o assunto, remeto-me mais uma vez à decisiva contribuição de Sueli Carneiro (2005, p. 10)CARNEIRO, Sueli A. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. ao explicar que o epistemicídio se constitui como um dispositivo que empreende “[...] as estratégias de inferiorização intelectual do negro [e demais indivíduos localizados em grupos subalternizados pela norma colonial, como as mulheres] ou sua anulação enquanto sujeito de conhecimento”, ou seja, “[...] formas de sequestro, rebaixamento ou assassinato da razão. Ao mesmo tempo, e por outro lado, o faz enquanto consolida a supremacia intelectual da racialidade branca”.

É para contrariar tal narrativa que venho aqui trazer mulheres artistas usando da palavra para questionarem lugares socialmente estabelecidos de inferioridade e objetificação, como no caso da performance Desmascarar o abuso - Sair do silêncio, que coloca em xeque o assédio naturalizado em nossa sociedade colonial patriarcal, por meio do emprego das palavras dos próprios assediadores.

Afinal, não sejamos ingênua/os ao imaginar que vivemos num mundo onde os saberes e formas diversas de sua produção são vistos de forma igualitária, pelo contrário, como já explicado introdutoriamente neste texto, o contexto é de epistemicídio passado e presente, empreendido por processos de negação de povos colonizados como sujeitos de conhecimento, a partir da desvalorização de sua percepção de mundo, sendo que, sem dúvidas, um dos instrumentos para tal foi a imposição da palavra, da língua do colonizador. De maneira que, uma vez dela se apropriando, esses povos mostraram e mostram seu poder de ressignificação e resistência, não para legitimar mais uma vez o colonizador negando suas origens de oralidade ou menosprezando seu não uso, mas colocando em par de igualdade tais formas de conhecer e explicar o mundo de acordo com sua vivência.

Ainda recorrendo a Djamila Ribeiro (2017, p. 45)RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Coleção Feminismos plurais. Belo Horizonte: Letramento, 2017., fazendo reverberar as lições de Patricia Hill Collins, trata-se de “[...] de demarcar possibilidades de transcendência da norma colonizadora”, no sentido de que utilizar do poder da fala é reconhecer a “[...] importância de as mulheres negras fazerem um uso criativo do lugar de marginalidade que ocupam na sociedade a fim de desenvolverem teorias e pensamentos que reflitam diferentes olhares e perspectivas”.

Diante disso, a teoria aqui exposta é aquela que vai de encontro à retórica inútil que só reproduz a hierarquização de saberes, a fala difícil e rebuscada que exclui a experiência comum das pessoas fora da academia, ou seja, é contrária aquela teoria cujo desempenho só alcança um reduzido número de pessoas que frequentam um determinado círculo acadêmico e/ou artístico, se aproximando mais de uma teoria escrevivida em pretoguês, referenciando Conceição Evaristo (2011)EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres negras. Belo Horizonte: Nandyala, 2011. e Lélia Gonzalez (1983)GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: SILVA, Luiz António Machado et al. Ciências Sociais Hoje 2: movimentos sociais urbanos, minorias e outros estudos. Brasília: ANPOCS, 1983. P. 223-244. , pois, por falar em línguas, ainda com Anzaldúa (2000, p. 230)ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 229-236, 2000. (originally published in 1981)., dentro da academia, o tempo todo “[...] me sinto roubada de minha língua nativa”, uma vez roubada de minha própria história ancestral, mas é ela que quero recuperar contando uma outra narrativa a partir do corpo.

É o pensamento de Jota Mombaça (2016, p. 351)MOMBAÇA, Jota. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2016. Available at: <https://issuu.com/amilcarpacker/docs/rumo_a_uma_redistribuic__a__o_da_vi>. Accessed on: Nov 28th, 2019.
https://issuu.com/amilcarpacker/docs/rum...
, quando afirma “[...] a teoria como uma forma de arte” capaz de “[...] rastrear nos limites da forma (de pensar, de articular e de escrever teoria no marco das ditas ciências sociais) um outro pensamento”.

Diante de tudo isso, entender a performance arte como linguagem, como um pensamento também que atravessa o corpo de quem a pratica, é entender esse corpo como uma unidade onde sentir não é separado do pensar, mas onde a experiência do corpo é o que move o pensamento, que é, então, um sentir-pensar, uma vez que não simplesmente temos um corpo, mas somos um corpo, contrariando desde essas primeiras linhas a lógica dualista ocidental que forçou o entendimento de que o pensamento opõe-se ao sentir, ocupando-se das ideias, enquanto o corpo limita-se aos sentidos.

Haraway (1995, p. 30)HARAWAY, Donna. Saberes localizados: questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, v. 5, p. 07-41, 1995. fala de uma “[...] corporificação feminista”, no sentido de desenvolver uma “[...] escrita feminista do corpo”, um pensamento crítico, localizado e responsável, construído com base na visão “[...] desde um corpo, sempre um corpo complexo, contraditório, estruturante e estruturado” em contraposição “[...] a visão de cima, de lugar nenhum, do simplismo”.

Assim, percebe-se que a dimensão da corporeidade embasada na experiência vivida presente na arte da performance de mulheres artistas vai além de um mero uso do corpo, mas é capaz de acionar uma prática artística que pode ser entendida como uma escrita feminista decolonial da experiência. Falando de performance, ressalto-a como uma arte capaz de evidenciar todos esses aspectos e, com efeito, criar referências imagéticas e contranarrativas de um outro conceito de mulher, tendo em vista que, consonante ao pensamento de Tania Alice (2014, p. 34)ALICE, Tania. Diluição das fronteiras entre linguagens artísticas: a performance como (r)evolução dos afetos. Catálogo Nacional do SESC - Reflexões sobre a linguagem da performance no Brasil. “O que é performance? , 2014. Available at: <http://taniaalice.com/wp-content/uploads/2012/11/palco2014_Artigo_Tania.pdf>. Accessed on: July 15th, 2019.
http://taniaalice.com/wp-content/uploads...
, “[...] a performance não representa, mas é, transforma, recria, remodela modelos vigentes, tornando visível e palpável o invisível e o despercebido, e propõe alternativas para a transformação. Acredita. Impulsiona”.

Ao ter escolhido enfatizar a palavra interligando essas ações performativas, destaco então a sua potência na qualidade de instrumento de expressão de subjetividades contra o epistemicídio. Como descreve Haraway (2009, p. 85)HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz (org.). Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. P. 33-118., em seu brilhante Manifesto Ciborgue, o alfabetismo tem importância especial para as mulheres marginalizadas, uma vez que envolve uma história na qual “[...] elas arriscaram a vida para aprender e para ensinar a ler e a escrever”. Menção que me faz lembrar Maria Bethânia, quando canta, com toda a sensibilidade: “Vou aprender a ler pra ensinar os meu camaradas [...]”

Assim, faço minhas as palavras de Haraway (1985, p. 86), no sentido de que

[...] a escrita tem um significado especial para todos os grupos colonizados. A escrita tem sido crucial para o mito ocidental da distinção entre culturas orais e escritas, entre mentalidades primitivas e civilizadas. Mais recentemente, essas distinções têm sido desconstruídas por aquelas teorias pós-modernas que atacam o falogocentrismo do ocidente, com sua adoração do trabalho monoteísta, fálico, legitimado e singular - o nome único e perfeito. Disputas em torno dos significados da escrita são uma forma importante da luta política contemporânea. Liberar o jogo da escrita é uma coisa extremamente séria. A poesia e as histórias das mulheres de cor estadunidenses dizem respeito, repetidamente, à escrita, ao acesso ao poder de significar; mas desta vez o poder não deve ser nem fálico nem inocente.

Nessa perspectiva feminista-decolonial-ciborgue, o uso da palavra “[...] tem a ver com o poder de sobreviver, não com base em uma inocência original, mas com base na tomada de posse dos mesmos instrumentos para marcar o mundo que as marcou como outras” (Haraway, 2009HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz (org.). Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. P. 33-118., p. 86).

Neste ponto, convoco as leitoras e leitores deste texto a retornar à apresentação da performance Desmascarar o abuso - Sair do silêncio e refletir autonomamente sobre os apontamentos teóricos aqui expostos. Parece-me não haver mistérios em decifrar aquilo que Djamila Ribeiro explicita ao afirmar que

O uso do lugar de fala não parte da experiência isolada de indivíduos, mas das múltiplas condições que resultam nas desigualdades e hierarquias que localizam grupos subalternizados. As experiências desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e não humanizada faz com que as produções intelectuais, saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado, além das condições sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente. Isso, de forma alguma, significa que esses grupos não criam ferramentas para enfrentar esses silêncios institucionais, ao contrário, existem várias formas de organização políticas, culturais e intelectuais. A questão é que essas condições sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produções (Ribeiro, 2017RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Coleção Feminismos plurais. Belo Horizonte: Letramento, 2017., p. 63).

A performance, assim como as demais citadas, faz ecoar a brilhante fala da autora, a qual sublinho em seguida e que acaba sintetizando o que venho querendo demonstrar com todo o esforço intelectual deste texto, de que: “O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir” (Ribeiro, 2017RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Coleção Feminismos plurais. Belo Horizonte: Letramento, 2017., p. 64).

É válido retomar ainda aos ensinamentos de Audre Lorde (1984, p. 1)LORDE, Audre. Poetry is no luxury. In: LORDE, Audre. Sister Outsider: essays and speeches. New York: The Crossing Press Feminist Series, 1984. (Tradução de Tatiana Nascimento do ensaio Poesia não é um luxo). Available at: <https://traduzidas.wordpress.com/2013/07/13/poesia-nao-e-um-luxo-de-audre-lorde/>. Accessed on: Jun. 21, 2019.
https://traduzidas.wordpress.com/2013/07...
, quando fala da “[...] poesia como uma destilação revelatória da experiência, não o jogo de palavras estéril que, muitas vezes, os patriarcas brancos distorceram a palavra poesia para significar - para cobrir um desejo desesperado por imaginação sem vislumbre”.

Vendo desse modo, não acho que seria exagero identificar a própria performance arte como também uma destilação revelatória da experiência e, com isso, seguindo as palavras de Lorde a respeito da poesia, e aqui fazendo também uma possível aproximação com a arte da performance, destaco:

[...] para mulheres, então, poesia não é um luxo. Ela é uma necessidade vital de nossa existência. Ela forma a qualidade da luz dentro da qual predizemos nossas esperanças e sonhos em direção à sobrevivência e mudança, primeiro feita em linguagem, depois em ideia, então em ação mais tocável. Poesia é a maneira com que ajudamos a dar nome ao inominado, para que possa ser pensado. O horizonte mais distante de nossas esperanças e medos é calçado por nossos poemas, talhado das experiências pétreas de nossas vidas diárias (Lorde, 1984LORDE, Audre. Poetry is no luxury. In: LORDE, Audre. Sister Outsider: essays and speeches. New York: The Crossing Press Feminist Series, 1984. (Tradução de Tatiana Nascimento do ensaio Poesia não é um luxo). Available at: <https://traduzidas.wordpress.com/2013/07/13/poesia-nao-e-um-luxo-de-audre-lorde/>. Accessed on: Jun. 21, 2019.
https://traduzidas.wordpress.com/2013/07...
, p. 1).

Diante de todo o exposto nestas linhas de palavras, memórias e sentimentos, nada mais justo que encerrar este ensaio, que especula sobre a performance de mulheres artistas como potência descolonizadora a partir da narrativa de si pelo corpo, com as palavras de Conceição Evaristo (2011, p. 9)EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres negras. Belo Horizonte: Nandyala, 2011. em sua obra Insubmissas lágrimas de mulheres, quando notavelmente alude: “E, quando se escreve, o comprometimento (ou o não comprometimento) entre o vivido e o escrito, aprofunda mais o fosso. Entretanto, afirmo que, ao registrar estas histórias, continuo no premeditado ato de traçar uma escrevivência”.

  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • 1
    Trata-se do livro, de autoria desta crítica e teórica pós-colonial indiana, denominado Pode o subalterno falar?.
  • 2
    Registro em vídeo disponível em: <https://youtu.be/qTsutI-Z0Sg>. Acesso em: 02 mar. 2020.

References

  • AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade São Paulo: Pólen, 2019.
  • ALICE, Tania. Diluição das fronteiras entre linguagens artísticas: a performance como (r)evolução dos afetos. Catálogo Nacional do SESC - Reflexões sobre a linguagem da performance no Brasil. “O que é performance? , 2014. Available at: <http://taniaalice.com/wp-content/uploads/2012/11/palco2014_Artigo_Tania.pdf>. Accessed on: July 15th, 2019.
    » http://taniaalice.com/wp-content/uploads/2012/11/palco2014_Artigo_Tania.pdf
  • ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 229-236, 2000. (originally published in 1981).
  • CARNEIRO, Sueli A. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
  • COLLING, Leandro. A emergência dos artivismos das dissidências sexuais e de gêneros no Brasil da atualidade. Revista Sala Preta, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 152-167, 2018.
  • EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres negras Belo Horizonte: Nandyala, 2011.
  • FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. Revista Sala Preta, São Paulo, v. 8, p. 235-246, 2009.
  • GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance Translation by Renato Cohen. São Paulo: Perspectiva, 2005.
  • GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: SILVA, Luiz António Machado et al. Ciências Sociais Hoje 2: movimentos sociais urbanos, minorias e outros estudos. Brasília: ANPOCS, 1983. P. 223-244.
  • GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Translated by Fernanda Miguens, Maurício Barros de Castro and Rafael Maieiro, revised by Joaze Bernardino-Costa. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, jan./abr. 2016.
  • HARAWAY, Donna. Saberes localizados: questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, v. 5, p. 07-41, 1995.
  • HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz (org.). Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. P. 33-118.
  • hooks, bell. Yearning: Race, Gender and Culture Politics. Cambridge: South End Press, 1990.
  • KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Ed. Cobogó, 2019.
  • KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • LORDE, Audre. Poetry is no luxury. In: LORDE, Audre. Sister Outsider: essays and speeches. New York: The Crossing Press Feminist Series, 1984. (Tradução de Tatiana Nascimento do ensaio Poesia não é um luxo). Available at: <https://traduzidas.wordpress.com/2013/07/13/poesia-nao-e-um-luxo-de-audre-lorde/>. Accessed on: Jun. 21, 2019.
    » https://traduzidas.wordpress.com/2013/07/13/poesia-nao-e-um-luxo-de-audre-lorde/
  • LUGONES, María. Rumo ao feminismo decolonial. Revista Estudos Feministas, Santa Catarina, v. 23, n. 3, p. 935-952, 2014.
  • MARTINS, Catarina. Mulheres poderosas: género, raça, sexualidade, classe, nação e outras categorias nómadas na literatura contemporânea de mulheres africanas. In: COLLING, Leandro (org.). Dissidências Sexuais e de Género Salvador: Edufba, 2016. P. 179-191.
  • MBEMBE, Achille. As Formas Africanas de Auto-Inscrição. Revista Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, a. 23, n. 1, p. 171-209, 2001.
  • MESSEDER, Suely. Memórias e cenas narradas sobre a infância e as relações de gênero na linha de vida da professora universitária e da pesquisadora encarnada. Periódicus - Revista de estudos indisciplinares em gêneros e sexualidades, Salvador, v. 1, n. 9, maio/out. 2018.
  • MOMBAÇA, Jota. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2016. Available at: <https://issuu.com/amilcarpacker/docs/rumo_a_uma_redistribuic__a__o_da_vi>. Accessed on: Nov 28th, 2019.
    » https://issuu.com/amilcarpacker/docs/rumo_a_uma_redistribuic__a__o_da_vi
  • RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Coleção Feminismos plurais. Belo Horizonte: Letramento, 2017.
  • SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos: modos e significações. Brasília: UNB, 2015.
  • SARDENBERG, Cecília Maria Bacellar. Da Crítica Feminista à Ciência. Uma Ciência Feminista? In: COSTA, Ana Alice Alcântara; SARDENBERG, Cecília Maria Bacellar (org.). Feminismo, Ciência e Tecnologia Salvador: Coleção Bahianas, 2002. P. 89-129.
  • SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô Petrópolis: Vozes, 2017.
  • SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Translation by Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
  • WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas contra o sexismo o racismo. Revista da ABPN, Uberlândia, v. 1, n. 1, p. 8-17, 2010.

Editado por

Editora-responsável: Celina Nunes de Alcântara

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2019
  • Aceito
    18 Mar 2020
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Av. Paulo Gama s/n prédio 12201, sala 700-2, Bairro Farroupilha, Código Postal: 90046-900, Telefone: 5133084142 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: rev.presenca@gmail.com