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Praças em Cena: algumas ações estético-políticas do início da década de 2010

Places en Scène: quelques actions esthético-politiques du début de la décennie 2010

Resumo:

O início da década de 2010 foi marcado pela eclosão de grandes protestos, como a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street, as Jornadas de Junho, entre outros. Apesar da diferença de contextos, a maior parte dessas manifestações populares apresentava características comuns, dentre elas uma forte interação entre corpo, estética e política. O artigo se propõe a destacar o aspecto performativo dessas insurreições, a partir de exemplos que ocorreram em praças do mundo todo.

Palavras-chave:
Performance; Protesto; Política; Ativismo; Levante

Résumé:

Le début de la décennie 2010 a été marqué par l’éclosion de plusieurs manifestations telles que le Printemps Arabe, l’Occupy Wall Street, les Journées de Juin, entre autres. Malgré la différence de contextes, la plupart de ces manifestations populaires présentaient des caractéristiques similaires, parmi lesquelles une forte interaction avec le corps, l’esthétique et la politique. L’article propose de relever l’aspect performatif de ces insurrections à partir d’exemples qui ont eu lieu sur des places partout dans le monde.

Mots-clés:
Performance; Protestation; Politique; Activism; Soulèvement

Abstract:

The beginning of the 2010s was marked by the bursting of major uprisings such as the Arabic Spring, the Occupy Wall Street, the June Days, among others. Despite the distinct contexts, most of these popular protests-demonstrations showed similarities - among them, a strong interaction between body, aesthetics and politics. The article proposes to highlight the performative aspect of these insurrections from examples that took place in squares around the globe.

Keywords:
Performance; Protest; Politics; Activism; Uprising

Forma e Protesto

A escrita da História é atravessada por uma série de movimentos bruscos e inesperados que reorientam o curso dos acontecimentos. Nesse contexto, ao longo das décadas, os protestos populares apresentam-se como uma forma de expressão ativa desses movimentos, estruturando-se sobre uma inegável relação entre esgotamento, indignação, poder e coletividade. De modo geral, os protestos e as manifestações revelam situações de inflamação que encenam a convicção de um grupo de ter alcançado o seu limite. O que está em jogo nesses casos não é apenas um sofrimento individual, mas um sentimento compartilhado de que algum direito não está sendo respeitado e de que os cidadãos estão sendo privados de algo indispensável à liberdade ou à vida digna.

O que caracteriza um levante? Rebelião, revolta organizada, revolta desorganizada, ausência de sossego. Esses são alguns significados para a palavra sublevação. As pautas que guiam um protesto são inúmeras, podendo estes fazer oposição a uma questão específica, como uma lei, uma injustiça fiscal, políticas de austeridade, ou então se apresentarem em reação a um regime legal, como, por exemplo, um levante contra o regime colonial, escravidão, apartheid, regimes autoritários, fascismo e capitalismo, entre outros.

Quais aspectos visuais, narrativos e sensoriais se destacam nesses eventos? As formas como esses protestos estruturam-se também podem variar, sendo possível citar a presença de cartazes, megafones, carros de som, marchas, fechamento de avenidas, ocupação de espaços públicos, vigílias, eventos culturais e assim por diante. Os modos de apresentação formal lidam com a política não apenas em um sentido prático no âmbito das reivindicações, mas também como uma expressão estética do modo de se manifestar. Tal percepção evoca uma abordagem sensível e imagética dos protestos, trazendo à tona uma forte interação entre arte e luta.

Sem dúvidas, um aspecto que merece ser destacado nas insurreições do início da década de 2010 é o encontro entre corpo, estética e política. Este artigo se propõe a observar alguns exemplos de protestos contemporâneos, tendo como foco principal determinadas características performativas. Evidente que o conceito de performance é muito amplo e não cabe em uma única definição, na medida que este se trata de um sistema flexível e em constante mutação, que abala noções como arte, artista, ação, obra e cena. Escolhe-se a princípio trabalhar com a ideia de “vontade performativa” de Eleonora Fabião, sendo esta compreendida como um processo de “[...] desnaturalização dos habitats e de seus habitantes, das relações entre gente, meio, coisa e tradição” (Fabião, 2010FABIÃO, Eleonora. Corpo Cênico, Estado Cênico. Revista Contraponto, Itajaí, UNIVALI, v. 10, n. 3, 2010. Disponível em: <Disponível em: http://www6.univali. br/seer/index.php/rc/article/view/2256 >. Acesso em: 14 out. 2013.
http://www6.univali. br/seer/index.php/r...
, p. 8). Isso significa dizer que, mais do que o reconhecimento institucional da arte como título, o interesse recai aqui sobre uma maneira criativa de observar e recriar o cotidiano, bem como as relações presentes na esfera pública.

Além do conceito de Fabião, o coletivo carioca 28 de Maio também propõe, em seu contramanifesto, uma formulação expandida ao campo da teoria da arte, através do conceito de ação estético-política, que poderá auxiliar no presente debate. De acordo com o contramanifesto do grupo, “[...] uma ação estético-política é antes de tudo uma ação anticapitalista, ou seja, é uma ação contra o mercado das artes, uma ação contra-arte” (Coletivo 28 de maio, 2017COLETIVO 28 DE MAIO. O que é uma ação estético-política? (um contramanifesto). Revista Vazantes, Dossiê: Matéria, Materialização, (Novos) Materialismos, Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Artes, n. 1, p. 1-8, 2017., p. 1). Isso não significa que seus proponentes ignorem o sistema da arte, as teorias da arte, da filosofia da arte ou a estética. Para eles, mais importante que sabermos se somos artistas ou não, a urgência dos fatos nos convoca a pensar em que redes estão sendo construídas, quais são as zonas de risco, com o que somos afetados e como podemos afetar os outros. O que está em jogo é justamente a zona de indiscernibilidade e risco, que não permite de fato saber do que se trata. “Arte ou protesto? Arte ou crime?” (Coletivo 28 de maio, 2017, p. 2). A percepção de Fabião sobre vontade performativa e a elaboração conceitual do coletivo 28 de Maio parecem ir ao encontro aos casos observados. Contudo, antes de entrar nos exemplos propriamente ditos, apresenta-se aqui um pouco do contexto no qual eles se inserem.

Onda Viral de Protestos

É possível dizer que a segunda década do século XXI foi marcada por uma eclosão de protestos em todo o planeta. Em 2008, o colapso do Lehman Brothers Bank desencadeou uma crise global, que foi sentida nos mercados financeiros do mundo todo. As bolsas de valores despencaram, diversos bancos anunciaram perdas bilionárias e os meses seguintes foram de muita instabilidade para a economia.

No final de 2010, um inesperado acontecimento se deu na Tunísia. O vendedor de rua Mohamed Bouazizi colocou fogo no próprio corpo, após a polícia confiscar toda a sua mercadoria e pedir suborno. O icônico evento foi visto como um disparador da Revolução Tunisiana, responsável por tirar o até então presidente Ben Ali do poder. Logo, diversos países do Oriente Médio e Norte da África puderam testemunhar uma onda de protestos populares que ficou conhecida como a Primavera Árabe.

Em 2011, na Espanha, a principal praça de Madrid foi ocupada pelo movimentos dos indignados do Puerta del Sol, que exigia democracia real ya!. O protesto repercutiu em diversas cidades do país. Em setembro desse mesmo ano, nos Estados Unidos, manifestantes estiveram no Zuccotti Park em Nova York, como parte do movimento Occupy Wall Street e se declararam como os noventa e nove por cento (da população), exigindo uma profunda reforma no setor financeiro e na classe política, classificada, por eles, como os um por cento. Além dos eventos já mencionados, é possível citar o Movimento Verde, no Irã, o Geração à Rasca, em Portugal, a ocupação da praça Sintagma, na Grécia, e a ocupação da Praça Taksim, na Turquia. Protestos semelhante também aconteceram na Ucrânia, na Alemanha, no Canadá, na Austrália, em Taiwan, na Coréia do Sul, no Japão, na África do Sul, na Argentina, no Chile, no Brasil, totalizando cerca de 84 países. Estudiosos, teóricos e jornalistas passaram a associar e a conectar esses levantes, como uma onda global de protestos.

Ainda que as motivações e as condições que fomentaram os protestos fossem as mais diversas, tendo reivindicações específicas em cada região, determinadas características pareciam se repetir em variados contextos sob formas de lutas semelhantes. De algum modo é como se estruturas, slogans e modos de protestar passassem por um processo de contágio. Henrique Soares Carneiro aponta para uma “sincronia cosmopolita febril e viral” (Carneiro, 2012CARNEIRO, Henrique Soares. Apresentação: Rebeliões e ocupações de 2011. In: HARVEY, David et al. Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo editorial, 2012. P. 7-14., p. 8) na sequência de rebeliões. De fato, a expressão “viralização” foi frequentemente usada para se referir a esses eventos, tanto no espaço público, quanto no espaço virtual.

A insatisfação relacionada à ideia de representatividade era um assunto reincidente em diferentes casos. Nos países árabes, por exemplo, as insurreições exigiam a destituição de governantes após longos períodos sob um regime ditatorial. Já em países da Europa, nos Estados Unidos e na América Latina, esse assunto se apresentava através de slogans como não nos representa ou de lemas como que se vayan todos!, proferido espontaneamente durante protestos populares na Argentina.

Além da revolta diante de uma certa ilusão democrática e de um desconforto em relação aos dirigentes, os acontecimentos em questão apresentavam uma espécie de catarse, uma consciência de solidariedade mútua e um êxtase político, no qual os envolvidos sentiam-se parte de um processo coletivo. A rebelião popular voltou a ser um tema frequente na vida dos cidadãos, não sendo raras as comparações com o ano de 1968 e até mesmo com insurreições mais antigas, como a Primavera do Povos, em 1848.

Em 2013, no Brasil, houve uma série de manifestações, que tomou ruas, praças e avenidas de 12 capitais e outras cidades de médio porte, em um processo que ficou conhecido como as Jornadas de Junho. O movimento, que a princípio parecia ser uma reação contra o aumento no preço das tarifas de ônibus, logo revelou muitas outras demandas, como a indignação diante dos gastos altíssimos com a Copa das Confederações de 2013 e com a Copa do Mundo de 2014, denúncias contra a má qualidade de serviços públicos, o aumento da inflação, denúncias de corrupção, lutas por questões territoriais, raciais e de gênero, revolta diante da violência brutal da polícia, dentro e fora dos protestos, a criminalização de movimentos sociais, entre outros temas.

O excesso de demandas, a heterogeneidade dos manifestantes e a própria ausência de um programa claro e de uma liderança bem definida eram recorrentes em levantes do Brasil e do mundo. O que vocês querem, afinal? foi uma pergunta feita aos manifestantes em um tom de crítica à ausência de um claro direcionamento nas manifestações. Mas se por um lado a indefinição de um conteúdo programático em grandes ações coletivas poderia representar um movimento massivo, alienado e sem reflexão, por outro, também é possível pensar que essas ações vinham se estabelecendo como uma espécie de reação a questões difíceis de serem formuladas, provavelmente porque os conceitos utilizados como democracia, liberdade e direitos se apresentavam em crise e em conflito com a realidade em que se desenvolviam.

A palavra ocupação ganhou um foco considerável a partir da década de 2010, podendo ser usada em diferentes contextos. Durante as manifestações, palavras de ordem como Occupy everything ou Ocupar e resistir foram altamente disseminadas. Os manifestantes se deslocavam até um ponto da cidade, onde permaneciam durante um tempo, algumas horas e às vezes dias. Algumas pessoas aglomeravam-se em acampamentos. Embora individualmente as pessoas se alternassem, durante um tempo finito elas se propunham a permanecer como parte de uma multidão.

A caracterização e a irreverência apareceram igualmente em diferentes protestos no mundo todo. Elementos como glitter, bambolês, luzes de led, vídeos projetados em prédios, figurinos, instrumentos, bem como concertos e festivais musicais foram vistos nos espaços das ruas, como se, de alguma forma, a luta fosse atravessada por características de festividades. A luta coletiva foi celebrada e também produzida, caracterizada, a fim de manter a efervescência dos acontecimentos, atrair novos participantes e conseguir ultrapassar as barreiras da divulgação. Aparecer e tornar visível, transformar a causa em imagem, enxergar a questão e mostrá-la ao mundo, essas foram e ainda são questões muito caras aos levantes contemporâneos. Mas como tornar visível uma causa em meio ao excessivo fluxo de imagens e informações do caos contemporâneo? Levando em consideração o fato de que determinados conceitos bastante consolidados no vocabulário das insurreições encontram-se em tensão com a realidade em que se apresentam, de que maneira as linguagens dos protestos podem se reinventar?

É nesse contexto de estetização dos protestos que destacaremos a seguir alguns exemplos onde parece haver uma certa performatização dos gestos de insurreição - por vezes mais explícitos, por vezes mais velados - que provocam uma curiosidade sobre o próprio gesto de protestar. Os exemplos não chegam a se inserir completamente na categoria arte, no sentido mais institucional, na medida em que são menos palpáveis em sua materialidade, como seria o caso de um show musical, por exemplo. Mas também fogem a uma ideia mais óbvia de manifestação, considerando que trazem à tona uma maneira criativa no modo de se apresentar. Essa zona limiar entre um e outro é que interessa a nossa abordagem. Importante ressaltar que este é apenas um recorte possível e que as escolhas feitas não dão conta de resumir ou fazer um retrato singular da relação entre protestos e performance, em meio a uma gama incontável de exemplos que se multiplicam. Ainda assim, tais acontecimentos trazem alguns pontos relevantes para esta discussão sobre a noção de ação estético-política.

Alguns Exemplos

Protestos dos Aplausos - Bielorrússia - junho e julho de 2011

Entre os meses de junho e julho de 2011, centenas de pessoas passaram a bater palmas e a colocar o celular para vibrar, todas as quarta-feitas, às 19h, como forma de expressão contra o poder do presidente Alexander Lukashenko, na Bielorrússia. O movimento começou por meio de uma convocação pela página do Facebook, Revolução Mediante as Redes Sociais, mas rapidamente se espalhou (Dozens, 2011DOZENS arrested in Belarus ‘clapping’ protest. Al Jazeera, Doha, 03 jul. 2011. Disponível em: <Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/europe/2011/07/201173184516320207.html >. Acesso em: 06 jul. 2018.
https://www.aljazeera.com/news/europe/20...
, on-line). A ação não oferecia nenhum perigo físico, nem aos participantes, nem à oposição. Todavia, depois de um mês de protestos, as autoridades policiais anunciaram rígidas restrições ao aplauso. Somente veteranos de guerra ou ex-soldados poderiam bater palmas e aqueles que não cumprissem a medida deveriam ser presos. Como consequência, as autoridades impuseram limitações quanto ao uso da internet e sites independentes não puderam mais ser acessados por funcionários de empresas públicas durante o expediente. Os aplausos tornaram-se símbolo de resistência e oposição.

Thriller - Chile - junho de 2011

Um flash mob1 1 Flash mobs: aglomerações momentâneas de pessoas que se reúnem em um certo lugar para realizar uma ação inusitada, previamente combinada, de curta duração. de caráter extremamente político se deu em junho de 2011, em Santiago, no Chile. A ação aconteceu na Praça da Constituição, em frente à Casa da Moeda. Cerca de dois mil estudantes fantasiados de mortos-vivos dançaram a música Thriller, do ícone pop Michael Jackson, em homenagem à educação chilena. Morí pagando mi Educacíon, estava escrito em um dos cartazes segurado por um universitário (En Chile..., 2011EN CHILE jóvenes bailan ‘Thriller’ por una mejora en la educación. Cubadebate. Contra el Terrorismo Mediático, La Habana, 26 jun. 2011. Disponível em: <Disponível em: http://www.cubadebate.cu/noticias/2011/06/26/en-chile-jovenes-bailan-thriller-por-una-mejora-en-la-educacion/#.XUDLRehKi70 >. Acesso em: 26 jun. 2011.
http://www.cubadebate.cu/noticias/2011/0...
). Além desse protesto, que foi bastante disseminado por vídeos no YouTube, os estudantes chilenos exploraram diversas formas criativas de reivindicação, como intervenções artísticas nas ruas, exigências escritas nos ônibus, entre outros. As ações eram normalmente estruturadas através de convocatórias no Facebook, como, por exemplo, uma curiosa maratona-protesto, que foi organizada em torno da Casa da Moeda, na qual centenas de estudantes passaram mais de 270 horas correndo em torno do edifício. O humor e a teatralidade eram características marcantes desses protestos. Tais aspectos exerceram um papel fundamental na divulgação dos eventos e mostraram que, apesar de toda a dor e revolta, a luta também podia ser alegre e engraçada.

Nessa ocasião, o país vivia uma das maiores manifestações da sua história, desde o fim da sua ditadura, em 1990. Milhares de estudantes foram às ruas e ocuparam escolas e universidades com o intuito de exigir uma educação pública de qualidade e maior participação democrática. Os protestos dos estudantes somavam força a outros protestos sociais, que de uma maneira ou de outra questionavam o modelo neoliberal, como, por exemplo: protestos a favor da redistribuição dos recursos oriundos da extração do cobre, protestos a favor da proteção dos índios Mapuche e protestos em defesa da liberdade sexual.

Homem de pé - Turquia - junho de 2013

Um outro exemplo que confundiu a polícia e as autoridades aconteceu em junho de 2013, na Turquia. O artista e coreógrafo Erdem Gündüz chegou na Praça Taksim, em Istambul, por volta das seis da tarde e ficou parado de pé até às duas da madrugada, quando a polícia apareceu para tirá-lo dali. A princípio, Gündüz não havia feito nenhum anúncio da sua ação. Apenas chegou e ficou parado em silêncio, olhando para a frente, em direção ao Centro Cultural Ataturk. O local sofria a ameaça de ser transformado em um centro comercial gigantesco e essa possibilidade incitava os protestos.

Além de uma posição de defesa ao Centro Cultural, a ação de Gündüz representava uma provocação pacífica à violenta repressão do premiê Recep Tayyip Erdogan, que havia ocorrido contra ativistas, uma semana antes, em um parque próximo à Taksim. Cinco mil pessoas haviam ficado feridas e pelo menos quatro haviam morrido. O local fora fechado logo que começaram os protestos e os policiais expulsaram os manifestantes, mas os pedestres podiam entrar. Gündüz aproveitou-se dessa brecha para iniciar a sua ação.

Logo na primeira hora, a polícia vasculhou os bolsos e a mochila de Gündüz e foi embora, pois não havia nada de relevante com ele. Gündüz permaneceu e os passantes começaram a chamá-lo de duran adam, que significa homem de pé, em turco. Aos poucos, centenas de pessoas foram aderindo ao gesto, paradas em silêncio, viradas na mesma direção. Depois de seis horas, Gündüz foi levado pela polícia, mas ele não foi acusado de nenhum crime. O protesto continuou no dia seguinte. Dez pessoas que se recusaram a sair da praça foram detidas. O gesto foi repetido em outras cidades e a ação de Gündüz foi amplamente difundida pela internet. A hashtag #duranadam dominou o Twitter turco e a polícia começou a prender pessoas por causa de suas postagens, alegando falsa informação.

Sem Título ou E as Pessoas da Sala de Jantar - Brasil - agosto de 2013

Em agosto de 2013, na praça da Cinelândia, no Rio de Janeiro, as atrizes Ariane Hime e Fernanda Vizeu fizeram um ato performativo em meio a bombas de gás lacrimogênio jogadas pela Polícia Militar para dispersar os manifestantes, durante um protesto em apoio aos professores da rede municipal. Na ocasião, elas montaram uma espécie de cenário com cadeiras e uma mesa de jantar. As duas usavam máscaras de gás e, apesar da fumaça e da correria, elas encenavam um jantar de frente para uma televisão, como se estivessem alienadas à violenta realidade do entorno (Hime; Vizeu, 2016HIME, Ariane; VIZEU, Fernanda. Relapse: artists run contemporary collective platform for creative multidisciplinar exchange. 2016. Disponível em: <Disponível em: https://relapse-collective.com/Fernanda-Vizeu-and-Ariane-Hime >. Acesso em: 26 jun. 2018.
https://relapse-collective.com/Fernanda-...
).

Além de uma denúncia à truculência policial, tal ação estético-política fazia uma clara provocação a veículos oficiais de comunicação, como a televisão e os jornais, que visivelmente recusavam-se a mostrar as barbaridades realizadas pelo Estado ou descreditavam a legitimidade dos manifestantes, nomeando-os como vândalos e baderneiros. Nesse sentido, a ação performativa da dupla fazia uma forte crítica a qualquer crença de que a imprensa institucional mostra a verdade sobre os acontecimentos. Afinal de contas, enquanto uma parcela dos cidadãos que vai para as ruas lutar pelos direitos da população sofre repressão com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha, outra parte permanece em estado de anestesia, influenciada por grandes empresas de mídia que não mostram nada além daquilo que lhes convém.

Ironicamente, após um vídeo e uma foto da ação terem sido rapidamente difundidos pelas redes sociais, obtendo grande número de visualizações, o jornal Extra - braço de um dos maiores conglomerados de comunicação do país - fez uma matéria sobre a ação, batizando-a de E as pessoas na sala de jantar, em referência à canção Panis et Circenses, do grupo Os Mutantes. Desse modo, a crítica sobre a negligência foi publicada justamente no espaço daqueles que eram criticados.

Desdobramento sobre os casos

Sobre as quatro ações escolhidas é pertinente dizer que o ato de ocupar um espaço público é absolutamente corporal e dá a ver um elo de resistência. Todas essas ações tornam evidente uma conexão entre pessoas que insistem em estarem juntas pelos seus direitos. De um modo ou de outro, as manifestações evocam rupturas no sistema, na medida em que provocam um desarranjo na coreografia funcional das ruas e promovem um encontro que vem justamente para questionar uma cadeia produtiva. Seja no espaço da rua, seja no espaço virtual, os corpos se fazem evidentes. E o que significa fazer parte de uma multidão? De uma multidão crescente? Como a aglomeração de pessoas em um espaço público afeta a materialidade do espaço?

Segundo Judith Butler (2011BUTLER, Judith. Discurso de Judith Butler no Occupy Wall Street. 23 out. 2011. Disponível em: <Disponível em: https://coletivo28dejunho.wordpress.com/2011/10/25/judith-butler-discursa-no-occupy-wall-street/ >. Acesso em: 23 nov. 2011.
https://coletivo28dejunho.wordpress.com/...
, s. p.), em referência aos protestos, “[...] a praça e a rua não são apenas os apoios materiais para a ação, mas eles próprios fazem parte de qualquer teoria da ação pública e corporativa que possamos propor”. Nesse sentido, a reivindicação pelo espaço público ultrapassa a luta pelo espaço propriamente dito, sendo também uma luta pelos corpos, pela visibilidade dos corpos, “uma luta contra o desrespeito, o abandono e o apagamento” (Butler, 2011, s. p.). A reunião de pessoas em um espaço público tornava visível não apenas a presença dos corpos, mas também a presença de corpos em relação (entre si, entre discursos, entre a cidade). “Não existe corpo sem o olhar do outro. Nunca se está sozinho no palco mundo” (Rivera, 2015RIVERA, Tânia. Por uma ética do estranho. In: FABIÃO, Eleonora; LEPECKI, André (Org.). Ações. Rio de Janeiro: Programa Rumos Itaú Cultural, 2015. P. 294-306., p. 302).

Apesar da relação concreta com a cidade, a internet é fundamental para a disseminação de protestos semelhantes aos que foram citados aqui. Qual a razão e qual o impacto de se fazer um protesto performance em um espaço concreto, como uma praça ou uma rua, atualmente, quando a força do espaço virtual é tão forte? Como o espaço virtual afeta esses encontros e como é por ele afetado? Ainda é possível fazer uma distinção entre esses dois espaços? De certo modo, os meios virtuais também configuram um lugar de encontro, podendo ser compreendidos, de certa forma, como praças virtuais.

Importante ressaltar que o cyber ativismo oferece hoje uma outra relação com o espaço, permitindo aos sujeitos participar efetivamente dos acontecimentos, sem estar presentes corporalmente. Através das telas dos computadores e celulares, milhares de pessoas atuam de diversas formas, como, por exemplo, divulgando local e horário dos protestos, denunciando abusos do Estado, promovendo a busca por advogados, dando conselhos práticos de como escapar da polícia e de como fazer barricadas, ocupando-se da cobertura dos acontecimentos e disseminação da informação e servindo, muitas vezes, como alternativa à mídia oficial. Diante das redes sociais, os participantes passam por um processo transitório, contagioso e imediato.

Seguindo no debate incitado pelas ações escolhidas, é necessário reafirmar a potência performativa dos gestos. No ato dos aplausos na Bielorrússia, por exemplo, o simples gesto de bater palmas - que é absolutamente banal no cotidiano -, quando colocado em contexto e relação, adquire uma potência de significação que confunde e apavora as autoridades. A proibição dos aplausos revela os absurdos do sistema jurídico e a dificuldade das autoridades em lidar com uma forma de contestação que escapa a um modelo de levante mais tradicional, mostrando que o que está em jogo muitas vezes não é a violência dos manifestantes, mas a crítica ao poder.

De modo semelhante, o gesto pacífico - mas nem por isso passivo - de Erdem Gündüz e dos outros cidadãos turcos abala o poder institucional, justamente pela sua pluralidade de significados. O gesto de permanecer de pé carrega uma complexidade discursiva que não permite com que ele seja enquadrado em uma única definição. Ao mesmo tempo provoca um nó, um silêncio e uma dificuldade de formulação que ultrapassam a própria ação. Diante da força autoritária que reprime, centenas de pessoas ocupam um espaço que lhes é de direito sem dizer nada, revelando a ironia da realidade. Sem voz e sem movimento, os manifestantes falam, em silêncio, o que não pode ser dito. Juntos, eles falam calados o que precisa ser dito.

Indo por uma via formal completamente diferente do caso de Erdem Gündüz aparece o flash mob dos estudantes chilenos. A escolha pela música e dança pop, assim como a adoção de uma maquiagem e um figurino de zumbis não deixam dúvidas sobre a intenção de provocação. O humor e a teatralidade mostram que os protestos não precisam ser apenas duros e em linguagem combativa para serem levados a sério. Também podem ser irreverentes e festivos. Muitas vezes, inclusive, essa linguagem atrai olhares e o interesse de participantes em potencial.

O protesto E as Pessoas da Sala de Jantar também utiliza uma escolha formal que flerta com o teatro. Ao usarem a rua em estado de guerra como palco para a cenografia, as performers reivindicam a necessidade de um olhar mais direcionado para a situação extrema que lhes afeta, tanto no contexto público quanto no âmbito privado. Ao representarem uma cena no meio do caos, as artistas provocam um tensionamento entre o real e a ficção e acrescentam uma camada crítica sobre as narrativas que estruturam a sociedade - sobre o perigo daquilo que se revela e sobre aquilo que se deturpa ou se esconde.

A lista de exemplos no início do século XXI, em que a estética performativa burla regras impostas por instâncias conservadoras e revela a contradição do sistema, é enorme. Além das ações estético-políticas listadas, há muitas outras que vêm se desenrolando ao longo dos últimos anos. É provável que o fenômeno performativo dos modos de insurgir esteja intimamente relacionado à efemeridade de nossos tempos. Afinal, é justamente esse ponto efêmero, tão caro à própria natureza da performance, que impede com que determinados atos sejam assimilados, decodificados e explicados pela lógica conservadora, confundindo e provocando as instâncias autoritárias.

A efemeridade não apenas como um traço temporal, mas também espacial e corporal, como nos fala Ana Kiffer. Em uma análise sobre os protestos de 2013, Kiffer faz referência a corpos múltiplos que surgem, insurgem e se unem em diferentes lugares, por diferentes causas: “[...] o corpo ninja, Black Blocks, corpos que resistem na linha de frente à violência absurda do Estado, corpos ‘tropa de nhoque’, ‘todo o corpo é mulher’, ‘toda mulher é vadia’, ‘todo cu é laico’” (Kiffer, 2015KIFFER, Ana. Teatro e Vida: dobras, passagens, limites e saídas. In: DIAS, Ângela Maria; GLENADEL, Paula (Org.). Cenas de Arte e Ficção - teatralidades contemporâneas. Rio de Janeiro: Confraria do vento, 2015. P. 27-37., p. 35). Segundo a autora, os corpos - individual ou coletivamente - mostram algo que já não pode ser apreendido por uma estética binária. Eles lidam com passagens, com gestos e transitoriedades. Os debates contemporâneos mostram que é preciso falar sobre o corpo, tornar visível o corpo, mudar de corpo, reconhecer os corpos.

Os protestos em questão não configuram um acontecimento coletivo no sentido de uma única identidade ou de uma única vontade. Pelo contrário, o que os protestos da primeira década trazem de mais perturbador é a relação com uma série de multiplicidades que se fazem visíveis. Inclusive, boa parte dos eventos abordados lidam com o desaparecimento do estatuto de artista em uma espécie de devir-anônimo. A história das visibilidades nesses casos se estabelece por processos de mudança social e de reinvenção da linguagem, da percepção, de substâncias, de formas em diferentes escalas. Nota-se uma série de acontecimentos que explodem no campo social e liberam novas possibilidades, criam existências e subjetividades, produzem novos discursos, novos tempos, novas implicações e deixam claro que é preciso a criação de novos modos de agenciamento coletivo correspondentes às novas subjetividades e, por consequência, novos modos de lutar.

Fica difícil analisar de forma precisa os legados imediatos de cada protesto, tendo em vista a proximidade temporal com o período estudado. Impossível dizer se esses protestos foram derrotados ou vitoriosos em relação às suas demandas iniciais, até porque o caráter heterogêneo não nos permite avaliar o que é a vitória e a derrota em diferentes casos. Nas vésperas da década de 2020, o conservadorismo, o controle e o medo vêm se alastrando de maneira epidêmica pelo Brasil e por outros países, justamente após um período em que o mundo questionou tão vivamente os limites da democracia e da representatividade.

Ainda assim, os eventos estético-políticos em questão provocam uma reflexão sobre o trânsito entre forças e corpos na esfera pública e, consequentemente, seus reflexos na vida privada. No que diz respeito à onda viral de protestos, torna-se importante entender seus efeitos, buscar linhas de causa e consequência, mas também, além disso, pensar em como lidar com os novos agenciamentos concretos e subjetivos que se revelam, sem deixar que o acontecimento fique ultrapassado. Se, por um lado, a segunda metade da década de 2010 é marcada pela ascensão de uma onda conservadora, por outro, pode-se dizer que esse é um período muito potente de ebulição e consolidação de maneiras de insurgência e do empoderamento de muitos grupos e causas. Parece ser sintomático nesse período, em que o impulso pela construção de novas bases e organizações ganha tanta força, que haja também uma reação de controle desses novos empoderamentos.

A manifestação performativa acaba por desautomatizar lugares já instituídos e viciados, criando perguntas e revelando os absurdos da nossa política. A noção de ação estético-política permite que uma ação criativa efetiva possa ser realizada por qualquer pessoa interessada em provocar e problematizar a vida, e não apenas por aqueles que tenham algum reconhecimento ou se intitulem institucionalmente como artistas. Teóricos, professores, provocadores e ativistas: “TODA E QUALQUER PESSOA É CAPAZ DE FAZER UMA AÇÃO ESTÉTICO POLÍTICA2 2 O trecho aparece todo em letras maiúsculas na publicação do grupo. ” (Coletivo 28 de maio, 2017, p. 2). De que forma cidadãos, sejam eles artistas ou não, podem se expressar e agir em meio à história que lhes atravessa? Como criar e interferir diretamente no presente que se aproxima?

Aqui, a relação entre arte e protesto toca essa inquietação criativa de não apaziguamento e busca pela reinvenção. Em meio à sufocante opressão conservadora, que insiste na manutenção de um poder velho e ultrapassado, os exemplos citados, bem como outros exemplos com os quais se avizinham, lidam com um empoderamento criativo, capaz de se questionar, de produzir novas formas, de se reinventar. Ainda que determinadas ações estético-performativas não cheguem à resolução definitiva de um problema, elas acabam por promover momentos de respiros, inspirando novas lutas, auxiliando na manutenção da força e possibilitando outras maneiras de olhar.

Referências

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  • CARNEIRO, Henrique Soares. Apresentação: Rebeliões e ocupações de 2011. In: HARVEY, David et al. Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo editorial, 2012. P. 7-14.
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  • RIVERA, Tânia. Por uma ética do estranho. In: FABIÃO, Eleonora; LEPECKI, André (Org.). Ações. Rio de Janeiro: Programa Rumos Itaú Cultural, 2015. P. 294-306.
  • 1
    Flash mobs: aglomerações momentâneas de pessoas que se reúnem em um certo lugar para realizar uma ação inusitada, previamente combinada, de curta duração.
  • 2
    O trecho aparece todo em letras maiúsculas na publicação do grupo.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    11 Mar 2019
  • Aceito
    24 Jul 2019
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