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Zoe: vida comum ameaçada

Zoé: la vie commune menacée

Resumo:

Em 2017, o espetáculo de dança Zoe, dirigido pela coreógrafa Francini Barros, foi alvo de censura, por iniciar com um performer nu, na calçada do Teatro Apolo, em Recife. O fato ensejou uma reflexão sobre a arte como mecanismo instaurador de uma utopia frente ao conservadorismo neoliberal. O trabalho que ora se apresenta tem por objetivo compreender como os processos criativos do espetáculo Zoe se colocam como estratégia micropolítica de resistência a esse conservadorismo. Para tanto, instaura um diálogo com o pensamento de Agamben, Foucault, Deleuze, Guattari e Rolnik, para discutir categorias que serviram de base para esta linha argumentativa, como vida comum (zoé), corpo utópico, heterotopia, cultura e subjetividade.

Palavras-chave:
Zoe; Corpo Utópico; Heterotopia; Cultura; Subjetividade

Résumé:

En 2017, le spectacle de danse Zoe, dirigé par le chorégraphe Francini Barros, a été censuré, pour commencer par un artiste nu, sur le trottoir du Teatro Apolo à Recife. Le fait a provoqué une réflexion sur l'art en tant que mécanisme pour établir une utopie contre le conservatisme néolibéral. Cet article vise à comprendre comment les processus créatifs du spectacle Zoe sont placés comme une stratégie micropolitique de résistance à ce conservatisme. Pour ce faire, on dialogue avec Agamben, Foucault, Deleuze, Guattari et Rolnik pour discuter des catégories qui ont servi de base à cette argumentation, telles que la vie commune (zoé), le corps utopique, l’hétérotopie, la culture et la subjectivité.

Mots-clés:
Zoé; Corps Utopique; Hétérotopie; Culture; Subjectivité

Abstract:

In 2017, the dance performance Zoe, directed by the choreographer Francini Barros, was censored because its first scene had a naked performer on the sidewalk of the Apolo Theater in Recife. The fact led to a reflection on art as a mechanism to establish a utopia against neoliberal conservatism. This paper aims at understanding how the creative processes of the performance Zoe are placed as a micropolitical strategy of resistance to that conservatism. In order to do so, it establishes a dialogue with Agamben, Foucault, Deleuze, Guattari and Rolnik to discuss categories that served as a basis for our argumentative line, like ordinary life (zoé), utopian body, heterotopia, culture and subjectivity.

Keywords:
Zoe; Utopian Body; Heterotopia; Culture; Subjectivity

I

No interior da sala do teatro, seis amigos chegam a uma floresta, no fim de uma tarde. A cena retrata um lugar desconhecido a ser desbravado. Os amigos, que estão nus, brincam, se divertem, se relacionam. A noite cai e, com ela, o escuro, que faz revelar medos, inseguranças, instintos de prazer, reações as mais diversas diante das ameaças da natureza. Vêm à tona os bichos ocultos de cada um. Com essas emoções e afetos, os seis se relacionam até o nascer do dia.

Esse é o conceito dramatúrgico do espetáculo Zoe, dirigido pela coreógrafa Francini Barros. O trabalho teve sua estreia em 15 de junho de 2017, no Teatro Apolo, em Recife, numa curta temporada de quatro apresentações, em contrapartida ao incentivo recebido do Fundo de Cultura do Estado de Pernambuco, Funcultura, para a montagem do espetáculo. No programa distribuído ao público, lê-se: “O animal que me olha e revela a mim mesmo, a condição de minha nudez. Sobre ser isso e tantas outras coisas. Território, sexo, amor, dor, prazer. Dor e prazer, tão somente. Essa noite, aqui, nesse lugar. Zoe”.

No prólogo do espetáculo, inspirado no trabalho Puxador, da artista visual Laura Lima, o artista nu, entrelaçado à estrutura arquitetônica do foyer do teatro - no caso do Teatro Apolo, a pilastra de sustentação da escada que conduz ao segundo piso -, busca, infrutiferamente, deslocar essa estrutura para o mundo exterior, numa tentativa tanto de humanização do espaço expositivo, quanto de estetização da vida comum de todos nós (vide Imagem 1).

Um dia após a estreia, que transcorreu sem quaisquer transtornos, a diretora da peça foi comunicada pela coordenação do teatro que a ação de nudez na área pública estava proibida, em respeito à legislação brasileira vigente, segundo a qual nudez em público constitui ato obsceno.

Silêncio. Estupefação. Desânimo. Vulnerabilidade.

A classe artística recifense emitiu uma nota pública de repúdio à censura sofrida, recusando-se a ceder ao autoritarismo injustificável, e mal justificado, da gestão do teatro. Nos três dias seguintes dessa curta temporada, a diretora da peça se dirigia ao público no foyer do Teatro Apolo, acompanhada do performer que realizava a referida cena, dessa vez completamente vestido. Cumprimentando a todas e a todos, ela fazia o seguinte pronunciamento: ‘Este é Adelmo do Vale. Ele é performer de Zoe. Neste momento, ele deveria estar aqui entre vocês realizando a seguinte ação (o performer se enlaça nas cordas presas à pilastra do teatro e realiza a ação de puxá-la para o exterior do teatro). Só que ele deveria estar nu. Por motivo de censura, hoje essa cena não será realizada. Zoe pede desculpas’. Ambos eram ovacionados pelo público, fiel a seus princípios e solidários à situação. Após essa fala, as portas do teatro se abriam para o espetáculo.

Imagem 1
‒ Cena inicial de Zoe, baseada na performance Puxador, de Laura Lima

Zoé, segundo Giorgio Agamben (2010aAGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010a., p. 9), era a palavra utilizada na Grécia antiga para denominar a vida comum, ou “o simples fato de viver comum a todos os seres vivos”. Os filósofos ocidentais da antiguidade, como Platão e Aristóteles, não consideravam a palavra zoé, por não se interessarem pela abordagem de uma vida simplesmente natural; tinham por foco de interesse e estudo a vida politicamente qualificada, vida social, bíos. As duas palavras, bíos e zoé, seriam empregadas pelos gregos para expressar o que simplesmente chamamos vida.

A partir disso, a pesquisa cênica da dança Zoe propôs-se a pensar a vida nua como argumento poético e político. Na qualidade de dispositivo cultural, a cena teve como objetivo trazer de volta à vida o devir animal (zoé) como força motriz para a linguagem, considerando que essa mesma linguagem havia excluído, por hipótese de construção de uma vida social, cultural (bíos), nosso instinto de pertencimento à vida natural. Houve o entendimento, por parte da diretora e dos criadores intérpretes de Zoe, de que a construção da linguagem se daria na adequação dos fluxos de movimentos, do ímpeto inicial pré-reflexivo que os gerou num universo formal já codificado.

O espetáculo de dança em foco faz parte de um conjunto de eventos artísticos que vem sofrendo uma ofensiva violenta por parte do conservadorismo neoliberal vigente. Quais são os dispositivos da arte que se confrontam com os dispositivos de uma sociedade que vive na periferia do capitalismo, de forte conservadorismo moral e num momento delicado de crise do capital, como a nossa? Ante essa questão de ordem mais geral e ampla, nossa problematização recai em saber como o espetáculo Zoe reivindica uma utopia frente às configurações políticas marcadas pelo conservadorismo neoliberal. O objetivo deste artigo é compreender como os processos criativos em Zoe se colocam como estratégias micropolíticas de resistência ao conservadorismo neoliberal, que investe sobre o próprio espetáculo na forma de censura.

Para tanto, faremos algumas considerações sobre a concepção de cultura e sobre o conservadorismo neoliberal, seguidas de reflexões a respeito da proposta de um corpo utópico e da vida em comum no espetáculo Zoe, a fim de identificarmos algumas das estratégias micropolíticas de que se vale o trabalho em foco para desestabilizar os dispositivos conservadores de nossa atual política neoliberal.

II

Por ser hoje um Estado democrático, o Brasil não tem censura oficial. A Constituição Federal de 1988 proíbe qualquer espécie de censura, seja de natureza política, ideológica ou artística (art. 220, §2°). De acordo com Edilsom Farias (2001FARIAS, Edilsom. Democracia, censura e liberdade de expressão e informação na Constituição Federal de 1988. 2001. Disponível em: <Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2195/democracia-censura-e-liberdade-de-expressao-e-informacao-na-constituicao-federal-de-1988 >. Acesso em: 21 jul. 2018.
https://jus.com.br/artigos/2195/democrac...
, s. p.), “[...] do ponto de vista do direito constitucional, censura significa todo procedimento do Poder Público visando a impedir a livre circulação de ideias contrárias aos interesses dos detentores do Poder Político”. A condição fundamental para o exercício da democracia é a livre circulação de ideias e o pluralismo das concepções políticas, ideológicas e artísticas.

Todavia, nenhum direito é absoluto para o sistema constitucional: ou ele está limitado por outros direitos, ou por valores coletivos da sociedade, também eles, amparados pela Constituição. A liberdade de expressão e informação deve estar em consonância com os direitos fundamentais dos cidadãos afetados pelas opiniões e pelas informações, assim como com outros direitos constitucionalmente protegidos: moralidade pública, saúde pública, segurança pública, integridade territorial, por exemplo (Farias, 2001FARIAS, Edilsom. Democracia, censura e liberdade de expressão e informação na Constituição Federal de 1988. 2001. Disponível em: <Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2195/democracia-censura-e-liberdade-de-expressao-e-informacao-na-constituicao-federal-de-1988 >. Acesso em: 21 jul. 2018.
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).

Essa contradição, entre o Estado democrático que protege o direito à liberdade de informação e de expressão e o mesmo Estado que cerceia essa mesma liberdade por uma série de interdições amparadas no sistema constitucional vigente, faz parte da concepção de democracia tal como ela é pensada e praticada pelas sociedades que exercem ou sofrem o impacto do neoliberalismo, sistema político e econômico hoje hegemônico. Trata-se de um sistema que se fundamenta nas suas contradições: faz a guerra para garantir a paz; assume atitudes antidemocráticas para garantir a democracia; cerceia a liberdade de informação e de expressão para proteger essa mesma liberdade (Santos, 2010SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul . Coimbra: Edições Almedina , 2010. P. 23-72.; Quijano, 2010QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2010. P. 73-117.).

É certo que o sistema constitucional brasileiro, bem como o das outras nações modernas, foi e continua sendo elaborado a partir do projeto da Modernidade, que pressupõe o respeito e proteção aos valores capitalistas, colonialistas e patriarcais, os quais formam uma superestrutura normativa para o funcionamento eficaz do Estado moderno. O que foge a isso está sujeito a sanções jurídicas, fato que se agrava pelo atual estado de judicialização da vida social em que nos encontramos.

No caso das artes, como em outros, o direito à liberdade de expressão está sujeito a outros direitos, como vimos. Se tomarmos como exemplo o objeto de nossa análise e seu prólogo, com o performer nu, na calçada pública, puxando as estruturas do teatro, veremos que o argumento usado pelos órgãos competentes foi de ordem moral (moralidade pública): transeuntes foram se queixar à guarda pela presença de um homem nu na rua. A cena foi pensada, a princípio, para acontecer no foyer do teatro. Como as cordas utilizadas pelo performer eram elásticas, o espaço da cena estendeu-se à calçada acidentalmente, pois as cordas cederam à tração para além do previsto. Após o comunicado de censura ser recebido pela coreógrafa, tal argumento foi explicitado à coordenação do teatro, que, ainda assim, não permitiu que a cena fosse realizada, alegando ser o foyer do teatro, também, um espaço público, aberto à livre circulação.

“Há metafísica bastante em não pensar em nada” (Pessoa, 2006PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006., p. 206), já dizia Alberto Caeiro. Todavia, quando certas categorias metafisicas são tomadas umas pelas outras e interferem na vida prática (política, econômica, cultural) dos indivíduos, vale a pena esclarecer seus valores semânticos, a fim de repensar nossas próprias condutas em sociedade. Por exemplo, ética e moral são duas categorias usadas muitas vezes como sinônimas. Mas não é isso o que revelam suas etimologias, respectivamente.

De acordo com Ana Paula Pedro (2014PEDRO, Ana Paula. Ética, moral, axiologia e valores: confusões e ambiguidades em torno de um conceito comum. Kriterion, Belo Horizonte, v. 55, n. 130, p. 483-498, dez. 2014. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script =sci_arttext&pid=S0100-512X2014000200002 >. Acesso em: 21 jul. 2018.
http://www.scielo.br/scielo.php?script =...
, p. 485),

[...] o termo ética deriva do grego ethos, que pode apresentar duas grafias - êthos - evocando o lugar onde se guardavam os animais, tendo evoluído para ‘o lugar onde brotam os actos, isto é, a interioridade dos homens’ (Renaud, 1994, p. 10), tendo, mais tarde passado a significar, com Heidegger, a habitação do ser, e - éthos - que significa comportamento, costumes, hábito, caráter, modo de ser de uma pessoa, enquanto a palavra moral, que deriva do latim mos, (plural mores), se refere a costumes, normas e leis, tal como Weil (2012) e Tughendhat (1999) referem.

Na mesma direção, Deleuze (2010DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2010. , p. 129-130) assevera:

A diferença é esta: a moral se apresenta como um conjunto de regras coercitivas de um tipo especial, que consistem em julgar ações e intenções referindo-se a valores transcendentes (é certo, é errado...); a ética é um conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, em função do modo de existência que isso implica.

Ou seja, enquanto a moral se refere a um conjunto de normas e princípios comportamentais de uma determinada sociedade ou cultura, a ética investiga os princípios e valores que subjazem a essas normas. A moral está na ordem dos valores práticos do cotidiano de uma dada cultura: como devemos nos comportar e viver em sociedade? A ética deriva da postura especulativa: por que devemos nos comportar e viver de um determinado modo, e não de outro? Essa pergunta supõe outras três: Quero? Devo? Posso?

A estética (incluindo a arte) e a ética foram tidas, ao longo da história, como categorias complementares. Coincidentemente, em português, a ética está contida na palavra estÉTICA. Não podemos deixar de considerar a dimensão ética no próprio fazer artístico. O fazer artístico, como fato social, é perpassado pelas três perguntinhas: Eu quero? Eu devo? Eu posso? É aí que nos deparamos com os princípios morais de uma dada sociedade. Mas, convenhamos, a moral revela valores de alguns, não de todos. Numa sociedade complexa e multicultural como a nossa, cada cultura terá estabelecido seus princípios morais, ainda que os valores de algumas culturas se tornem hegemônicos e protegidos legalmente em detrimento de outros. Por exemplo, ficar nu em ambiente público é, em nosso código penal (art. 233), um ato obsceno, mesmo que em muitas comunidades indígenas seus habitantes vivam nus. Caberia, aqui, uma pergunta de ordem ética: por que ficar nu em nossa sociedade é um ato obsceno e condenável? Atentemo-nos para as respostas e verificaremos nos argumentos que a moral sustentada pertence a determinados segmentos e instituições sociais, não a todos. Nossa moral é burguesa, colonial, cristã e patriarcal. E no Brasil, mais do que em outras sociedades, essa moral expressa uma grande hipocrisia, pois se exige esconder aquilo que obsessivamente se quer ver revelado.

Assim sendo, a performance artística deve ser orientada por princípios éticos, mas não deve nada à moral. Fazer uma performance atirando num transeunte qualquer, desavisadamente, fere um princípio ético nosso, qual seja: não devemos nem podemos tirar a vida de outrem por um querer particular. Mas podemos (e devemos, caso queiramos) fazer uma performance artística nos valendo da nudez, pois o ato performativo suspende o cotidiano em que nos encontramos e constrói enquadramentos expressivos plenos de discurso (vide Imagem 2). Ou seja, no terreno das artes, a expressão se reverte em discurso que pode questionar, inclusive, os valores morais cerceadores da expressão. Do ponto de vista ético, não há nesse caso problema algum, haja vista que, numa democracia, o princípio de governabilidade deve se pautar no agenciamento de opiniões e pontos de vista os mais diversos. Um princípio moral não poderá jamais ser um impedimento para que eu possa (e deva) expressar um ponto de vista, inclusive sobre esse mesmo princípio. Se isso é válido para os mais variados tipos de interação social, por que não seria para as artes, também elas uma forma de interação social (Siqueira, 2017SIQUEIRA, Elton Bruno Soares de. Por uma descolonização dos modos de fazer e de receber arte. Quarta Parede , Recife, 2017. Disponível em: <Disponível em: http://4parede.com/por-uma-descolonizacao-dos-modos-de-fazer-e-de-receber-arte/ >. Acesso em: 21 jul. 2018.
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)?

Imagem 2
‒ Cena de Zoe

Para Guattari e Rolnik (2013GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 2013.), o conceito de cultura é profundamente reacionário. Sendo a moral da ordem da cultura, isso implica que a cultura contém uma dimensão moral. Nas palavras de Guattari,

O que caracteriza os modos de produção capitalísticos1 1 “Guattari acrescenta o sufixo ‘ístico’ a ‘capitalista’ por lhe parecer necessário criar um termo que possa designar não apenas as sociedades qualificadas como capitalistas, mas também setores do assim chamado ‘Terceiro Mundo’ ou do capitalismo ‘periférico’, assim como as economias ditas socialistas dos países do leste, que vivem numa espécie de dependência e contradependência do capitalismo. Tais sociedades, segundo Guattari, funcionariam com uma mesma política do desejo no campo social, em outras palavras, com um mesmo modo de produção da subjetividade e da relação com o outro [...]” (Guattari; Rolnik, 2013, p. 413). é que eles não funcionam unicamente no registro dos valores de troca, valores que são da ordem do capital, das semióticas monetárias ou dos modos de financiamento. Eles funcionam também através de um modo de controle da subjetivação, que eu chamaria de ‘cultura de equivalência’ ou de ‘sistemas de equivalências na esfera da cultura’. Desse ponto de vista o capital funciona de modo complementar à cultura enquanto conceito de equivalência: o capital se ocupa da sujeição econômica, e a cultura, da sujeição subjetiva. E quando falo de sujeição subjetiva não me refiro apenas à publicidade para a produção e o consumo de bens. É a própria essência do lucro capitalista que não se reduz ao campo da mais-valia econômica: ela está também na tomada de poder da subjetividade (Guattari; Rolnik, 2013GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 2013., p. 21).

Os autores identificam, na história da civilização ocidental, distintas atribuições para a cultura, que assumiria, de acordo com sua função social, diferentes nomenclaturas. Os significados a elas atribuídos não se apresentariam sucessivamente, mas de forma simultânea no curso da história, representando, nessa simultaneidade, a categoria cultura hegemônica, capturada como instrumento por poderes políticos, econômicos e sociais vigentes. Para os autores, a cultura seria um modo de semiotização equivalente para a produção de poder, assim como o capital o é na equalização das produções econômicas e sociais.

Para a cultura-valor atribui-se um sentido que corresponde a um juízo de valor sobre quem tem ou não cultura. A ela está associado um sentido de hierarquização que atribui valor ascendente a um suposto cultivo do espírito. Na cultura-alma coletiva, cultura torna-se sinônimo de civilização. Trata-se da cultura democrática em que todos podem reivindicar sua identidade. Guattari e Rolnik (2013GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 2013.) atribuem à cultura alma-coletiva um caráter ambíguo, na medida em que ela se presta a qualquer ideologia ou partido, indiscriminadamente. A cultura-mercadoria seria identificada pela cultura de massa, que considera como cultura todos os bens, ou seja, quaisquer dispositivos, objetais ou ideológicos, que contribuem para a formação de mercado e a circulação de capital.

Para os autores, as questões postas à cultura na contemporaneidade devem apresentar a possibilidade de sua fuga dos três campos semânticos mencionados, e sua inserção em esferas micro e macropolíticas que permitam agenciar singularizações que promovam alterações na vida, tanto na esfera individual, quanto na social.

III

A concepção de cultura desenvolvida por Guattari e Rolnik serviu de norte político para o processo de criação do espetáculo Zoe, orientando o trabalho para produzir singularidades que pudessem desestabilizar possíveis filiações dos intérpretes criadores envolvidos na pesquisa, numa indistinção de heranças e etnias, ainda que os cinco dançarinos fossem negros. O processo partiu da investigação de mecanismos de domesticação, de relação corporal entre os intérpretes criadores, de exercícios de reconhecimento do que nomearia no presente momento compaixão em relação aos nossos da mesma espécie. Buscou-se entender o dispositivo da cena da dança como atitude micropolítica ao proporcionar agenciamentos capazes de produzir singularizações, promovendo outros tipos de sensibilidade estética, que atingissem não somente o plano da cena constituída, mas também uma esfera mais humana, ou, para nos valer do conceito central da pesquisa (zoé), uma esfera mais desumana nas relações cotidianas, mais animal.

Como já dito, e conforme faz supor o nome do espetáculo, a obra de Agamben (2010aAGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010a.) serviu de base filosófica para a criação da cena em Zoe. Apesar de o filósofo italiano, ao longo de sua pesquisa, não ter condicionado o desnudamento ao conceito de zoé (Agamben 2010aAGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010a.; 2010bAGAMBEN, Giorgio. Nudez. Lisboa: Relógio D’Água, 2010b.; 2017AGAMBEN, Giorgio. O Uso dos Corpos. São Paulo: Boitempo, 2017.), o espetáculo em foco tomou a vida nua como argumento poético e político para a construção da cena. Como aponta muito apropriadamente Roberta Ramos (2017RAMOS, Roberta. Hipóteses artísticas como mirantes - censura, colonialismo e ambivalências. Quarta Parede, Recife, 2017. Disponível em: <Disponível em: http://4parede.com/01-cena-e-censura-hipoteses-artisticas-como-mirantes-censura-colonialismo-e-ambivalencias/ >. Acesso em: 21 jul. 2018.
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), numa crítica feita ao trabalho de Francini Barros, as imagens e os jogos dos dançarinos oferecem uma compreensão da vida menos guiada pelo princípio do bíos, categoria que Platão e Aristóteles consideram como o estágio mais avançado do desenvolvimento humano. Para os dois filósofos gregos, a simples vida natural ficou confinada ao oîkos, ou seja, à casa, à mera vida reprodutiva. A vida política (bíos politicós), na qualidade de vida pública, torna-se o núcleo das reflexões filosóficas.

Em seu livro Política, Aristóteles (2008ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Edipro, 2008.) reconhece que o advento da linguagem, à qual foi atribuído o estatuto de “suplemento de politização” (Agamben, 2010aAGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010a., p. 10), constitui o marco da diferenciação entre a vida humana politicamente diferenciada e a vida nua animal, na medida em que é responsável pela instauração de juízos de valor dicotômicos, tais como bem e mal, justo ou injusto, certo e errado etc. A zoé só é admitido um par de opostos: prazer e dor.

Ainda segundo Agamben (2010aAGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010a.), Foucault reconhece como advento que marca os limiares da Idade Moderna o ingresso da vida natural nos mecanismos de poder estatal, dando início a uma nova fase da história da humanidade, caracterizada pela politização da vida nua, haja vista que os avanços nas ciências técnicas, humanas e sociais possibilitaram a proteção, a autorização ou a extinção da vida humana segundo necessidades políticas de controle. A política se transformou em biopolítica à medida que a vida animal, vida nua, passou a ser controlada, manipulada, tornando-se moeda de jogo político. Frente às ameaças ao funcionamento estatal, a nova biopolítica empenhou-se em produzir os corpos dóceis de que precisava.

Foucault assinala duas vias de investigação biopolítica: o estudo das técnicas políticas com que o Estado exerce seu controle e o das tecnologias de produção de subjetividades, que permitem aos sujeitos se vincularem à sua própria identidade e à sua própria consciência. Sujeitos que não se desestabilizam são alvos fáceis para o poder estatal, territórios bem construídos e delimitados, sem zonas de vulnerabilidade presentes. São, portanto, considerados instâncias facilitadoras à instauração do poder e do controle.

Trata-se de um paradoxo: é pela exclusão que a vida nua é incluída na política. Nas palavras de Agamben (2010aAGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010a., p. 15), “[...] a vida nua tem, na política ocidental, este singular privilégio de ser aquilo sobre cuja exclusão se funda a cidade dos homens”. Se, para Aristóteles, a pólis é uma criação racional, teleológica, que visa propiciar o bem viver (o belo dia, euemería), por que a prática política desvirtuou esse fim último e o belo dia jamais se realizou? Para Agamben, a própria natureza do poder soberano, que, ao contrário do que pensa Foucault, não seria um conceito anulado pela Modernidade, mas estaria presente até a atualidade, impõe o esquecimento dessa finalidade última. Como o soberano tem o poder de governar sobre o caos, decidindo sobre a vida e a morte dos sujeitos, ele se encontra ao mesmo tempo dentro e fora do ordenamento jurídico. Com isso, há uma negação da teoria contratualista, segundo a qual a pólis surge do consenso entre os homens.

Seguindo essa linha argumentativa, Agamben defende que a tese foucaultiana deve ser revista na medida em que a inclusão de zoé na pólis é muito mais antiga do que atribui o pensador francês. As consequências desse fato e de sua progressão ao longo dos tempos é que a vida nua vem, progressivamente, a coincidir com o espaço político. Exclusão e inclusão, bíos e zoé, tornam-se indiscerníveis.

No que tange ao espetáculo Zoe, uma questão que se colocou à coreografa foi como produzir, na cena, essa zona de indistinção bíos-zoé. Vimos que, para Aristóteles (2008ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Edipro, 2008.), zoé é aprisionada pelos mecanismos de poder e controle a partir do surgimento da linguagem. Voz e linguagem, questões da fala para os filósofos ocidentais da linguagem - Austin, Wittgenstein, Cavell, entre tantos outros -, o que Merleau-Ponty diria fala falante e fala falada; o que Deleuze contextualizaria como linguagem e língua constituída. Trata-se de um problema constante da filosofia ocidental e um problema constante da arte. Partindo do princípio de que dança é linguagem, como articular voz e linguagem de forma a libertar zoé da exclusão?

No processo de ensaio, vieram à tona desejos, repulsas, ameaças de território, impulsos sexuais, fome, compaixão pela dor do outro, ameaças de sobrevivência da espécie; enfim, instintos diversos que nos remetem a nossa condição primeira de ser vivente (vide Imagem 3). Foram selecionados argumentos de humanização para a escrita de movimentos e para o discurso da dança, com o objetivo de construir uma cena em que estivessem todos, criadores intérpretes e espectadores, imersos num mesmo estado de resgate, experimentação ou simples observação dos devires que nos trespassam a partir de nossa condição animal. A construção de linguagem em Zoe passou a buscar a instauração de uma heterotopia que admite a vida nua, livre da exclusão que a inclui na vida dos homens. Zoé como mote primeiro para a criação.

A discussão que Foucault (2013FOUCAULT, Michel. O Corpo Utópico, as Heterotopias. Posfácio de Daniel Defert. São Paulo: Edições n-1, 2013.) abriu com seus conceitos de corpo utópico e heterotopia nos ajuda a compreender o percurso criativo em Zoe. Considerando que o corpo corresponde a um lugar (topía) sem recurso ao qual estamos condenados, ele é o avesso da utopia. Todavia, o próprio Foucault admite que nosso corpo não se deixa reduzir tão facilmente, apresentando suas zonas de fantástico, lugares sem lugar e lugares mais profundos, que vão além do contorno da superfície da pele. Nosso corpo é, ao mesmo tempo, ponderável e imponderável; visível e opaco. Com isso, contrariando sua hipótese primeira de que o corpo se opõe à utopia, Foucault (2013, p. 12) chega a uma belíssima metáfora que expressa bem suas conclusões: “Em todo caso, uma coisa é certa, o corpo humano é o ator principal de todas as utopias”. As utopias irradiam do corpo e a ele refluem, simultaneamente, tornando-o corpo utópico. O corpo do dançarino, por exemplo, na perspectiva de Foucault, consiste num corpo dilatado num espaço que é ao mesmo tempo interior e exterior. Por fim, ele admite que

Meu corpo está, de fato, sempre em outro lugar, ligado a todos os outros lugares do mundo e, na verdade, está em outro lugar que não o mundo. Pois, é em torno dele que as coisas estão dispostas, é em relação a ele - e em relação a ele como em relação a um soberano - que há um acima, um abaixo, uma direita, uma esquerda, um diante, um atrás, um próximo, um longínquo (Foucault, 2013FOUCAULT, Michel. O Corpo Utópico, as Heterotopias. Posfácio de Daniel Defert. São Paulo: Edições n-1, 2013., p. 14).

Se o corpo está sempre em outro lugar, podemos compreendê-lo sendo capaz de instaurar suas próprias heterotopias. Enquanto lugar preciso e real, o corpo pode criar lugares utópicos, fora de todos os lugares: trata-se de espaços destinados a neutralizar, dilatar ou purificar os limites dos nossos próprios corpos socialmente formatados, numa espécie de contestação mítica e real do corpo que nos foi permitido viver. Nas artes da cena, por exemplo, o corpo pode suspender o espaço da vida cotidiana e criar outros tantos lugares, produzindo realidades que fazem denunciar todo o resto do real como ilusão, ou gerando espaços tão perfeitos quanto imperfeita é nossa realidade mesquinha e cotidiana (Foucault, 2013FOUCAULT, Michel. O Corpo Utópico, as Heterotopias. Posfácio de Daniel Defert. São Paulo: Edições n-1, 2013., p. 28).

Quando Foucault associa o corpo à figura do soberano, para tratar o corpo como ponto zero do mundo, onde se cruzam os caminhos e os espaços, nos faz lembrar da concepção nietzschiana de vontade de potência, uma força que nos impulsiona a ir para além dos próprios limites (Nietzsche, 2009NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.). Quanto pode uma força? À medida que a força se torna dominante, ela nos abre para novos horizontes, para novas passagens, para novos caminhos, para novas possibilidades de vida.

Esse corpo utópico, instaurador de heterotopias a partir da vontade de potência, foi o ponto aonde quis chegar Francini Barros, na criação de seu Zoe. Sobre o percurso metodológico desse projeto e sua perspectiva micropolítica, veremos mais detalhadamente a seguir.

IV

Junto aos dançarinos, nos laboratórios para a elaboração da escritura cênica de Zoe, os motes para a criação foram se estabelecendo no sentido de oportunizar aos integrantes, através das vivências práticas de movimento, experiências corporais sensíveis por meio dos distintos sentidos de que dispomos. Procurou-se localizar e identificar devires, dores, desejos, sensações, mapeando-as no corpo para o desenvolvimento de corporeidades não compromissadas com as formas estereotipadas do movimento, mas sim com os fluxos de energia gerados em distintos níveis de intensidade. A construção das corporeidades envolvidas também aconteceu a partir do emprego de técnicas de meditação dinâmica, da prática de asanas da yoga, de exercícios de improvisação em grupo, todos com o intuito de aguçar as percepções e as micropercepções.

Essas imagens, movimentos, elementos dispersos foram mapeados a partir de uma cartografia do desejo. Atenta a seu tempo e às linguagens que o expressam, a coreógrafa e diretora do espetáculo, qual um antropófago, procurou dar língua para afetos que pediam passagem e devorou os que lhe pareceram elementos possíveis para a composição da cartografia que se fazia necessária (Rolnik, 2006ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulinas, 2006., p. 23).

Imagem 3
‒ Cena de Zoe

Procurando alcançar o cerne do movimento da vida nua e natural, ao longo do processo, foram apresentadas cinco problematizações que impulsionavam os dançarinos a tomarem consciência, a partir do corpo, das potencialidades, não somente estéticas, mas também micropolíticas. Foram elas:

  1. Até que ponto podemos sentir a dor do outro, o outro, a terceira pessoa; em se tratando de arte e de vida, a dor de qualquer outro? Desconfiamos de nossa capacidade de sentir compaixão?

  2. A partir de uma conversa informal sobre a suposta pureza das crianças - não seria a maldade uma dimensão ao mesmo tempo implícita e explícita na humanidade? Considerando a história do Coliseu, das guerras e outras atrocidades sociais, de onde viria, então, a crueldade: de um processo social e civilizatório ou do animal nosso de cada um?

  3. Dos processos de espiritualização orientais que acreditam que a partir da meditação e da tomada de consciência, cujo ápice seria a iluminação do ser, como forma de transcender a besta, o instinto animal que existe em cada um de nós.

  4. Da experiência da maternidade, do instinto de preservação da espécie - como reagimos à imagem da criança negra que suga o seio murcho da mãe esquelética? A certeza de que a criança não tem saúde para chorar. Nos olhos da mãe, o pressentimento de que o fim se aproxima.

  5. Sobre a sempre atual questão da filosofia ocidental, a respeito da troca ou da ressignificação das palavras. Corpo isso ou aquilo, com ou sem hífen, carnes, corporeidades etc., sob o risco, ou a evidência de nunca sermos tão poética ou filosoficamente eficientes quanto um Guimarães Rosa, que inventa palavras e significados a partir da necessidade da linguagem. De quem vê por seus próprios olhos e ainda assim se vê.

Na sua cartografia dos desejos, a coreógrafa preocupou-se em identificar e apagar nos movimentos experimentados pelos dançarinos os sistemas de submissão da cultura, que, para Guattari e Rolnik (2013GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 2013.), nos influenciam quando devaneamos, quando fabulamos e amamos, o que torna a palavra cultura uma cilada que impede de se pensar os processos como modos de singularização. A cultura, dessa forma, passa a reproduzir os significados históricos que justificam as censuras sofridas por processos artísticos que se apresentam como modos de construção de sensibilidade e de criatividade produtores de novas subjetividades. A propósito, foi precisamente esse tipo de cultura que balizou a coordenação do Teatro Apolo a tomar medida impeditiva contra a cena inicial do espetáculo, um dia após sua estreia.

A ênfase na vida nua e natural veio a significar, na prática da construção da linguagem cênica, uma tentativa de produção e de articulação das singularizações processuais. Foram recuperados devires, instintos, sensibilidades não formatadas pela percepção, modos diferenciados de relação, formas de mundo possíveis. Nessa escritura dos movimentos, buscou-se o distanciamento da dança dos modos de cultura vigentes através da instauração de outros modos de produção semiótica, que apresentassem outras formas de vida sem caracterizações prévias, por uma sensibilidade estética e, portanto, ética.

Admitindo a cultura como representante da bíos, da vida qualificada, ela está submetida ao juízo moral que enquadra a linguagem no signo e, neste, a adequação entre significante e significado. O cuidado e o esforço maiores da coreógrafa na composição de sua escritura cênica foram não permitir que o trabalho racional sobre a linguagem se sobrepusesse à potencialidade das vivências apresentadas pelos corpos disponíveis de seus dançarinos. Seria cair na cilada da cultura, em que a vida é regida pelo império da bíos.

A micropolítica de Zoe já se inaugura na possibilidade de expressão dos desejos e das necessidades singulares, antes mesmo de serem integrados aos sistemas de semiotização da cena bíos da dança, por meio da valorização de nossos instintos animais de sobrevivência, da saciação da fome, dos instintos de prazer e reprodução, da conquista de território, da preservação da própria espécie. Saliente-se que, a partir dos laboratórios com as problematizações disparadoras do processo, a relação dos performers entre si e com os modos de produção cotidianos do trabalho passaram a se modificar.

Na perspectiva de Foucault (apud Deleuze, 2010DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2010. , p. 127), a subjetivação não consiste nas formas determinadas do saber nem nas regras coercitivas do poder; “[...] trata-se de regras facultativas que produzem a existência como obra de arte, regras ao mesmo tempo éticas e estéticas que constituem modos de existência ou estilos de vida”. Considerando essa concepção de subjetividade, o processo de criação de Zoe investiu, assim, em novos modos de existência, com uma estética e com uma ética orientadas para a vida natural e nua.

Foi no processo de singularização proposto em Zoe, nas plurais subjetividades dele consequentes e no seu compartilhamento com o público que os possíveis agenciamentos postos em curso situaram a potência micropolítica do trabalho. Para Guattari e Rolnik (2013GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 2013., 38), “[...] a garantia de uma micropolítica processual só pode - e deve - ser encontrada a cada passo, a partir dos agenciamentos que a constituem, na invenção de modos de referência, de modos de práxis”.

Na cena final de Zoe, os dançarinos performers, nus e desprovidos de qualquer outra ação senão a de olhar nos olhos dos espectadores, evidenciavam que a cena não tratava do compartilhamento de suas individualidades, mas sim de agenciamentos passíveis de serem estabelecidos a partir das subjetividades vivenciadas, as quais só se consumavam ali, naquele espaço, por relação, no registro do social (vide Imagem 4).

V

Em alguma instância, as censuras em curso sofridas pelos processos artísticos micropoliticamente potentes no país, na atualidade, investem no cerne da subjetividade dominante ao revelá-la. Não se trata necessariamente de uma denúncia da moral constitutiva da esfera cultural por parte desses trabalhos, mas da evidência de seus desdobramentos que, de uma esfera micro a uma macropolítica, multiplicam a potência do devir que anunciam. Na visão de Guattari e Rolnik (2013GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 2013.), a qualquer revolução macropolítica, precedem outras produções de subjetividades.

Foi o caso, por exemplo, da detenção do ator Caio Martinez Pacheco, da Trupe Olho da Rua, que estava apresentando, numa praça de Santos/SP, o espetáculo Blitz - O Império que Nunca Dorme, o qual representava o poder do Estado e da mídia nacionais (outubro/2016). Foi o caso do artista e performer paranaense Maikon Kempinski, conhecido como Maikon K., que foi preso pela Polícia Militar do Distrito Federal, durante a apresentação da performance artística DNA de DAN (julho/2017). O artista realiza a performance nu, inserido numa esfera de plástico transparente, e, antes de ser solto da 5ª Delegacia de Polícia do Distrito Federal, no dia seguinte, teve que assinar um termo circunstanciado de ato obsceno.

Foi ainda o caso do encerramento da exposição Queermuseu - cartografias da diferença na arte da brasileira pelo Santander Cultural, na cidade de Porto Alegre, depois da polêmica que grassou na imprensa e nas redes sociais (setembro/2017). A exposição de temática LGBT+ foi acusada de promover blasfêmia contra símbolos religiosos, além do incentivo à zoofilia e à pedofilia. No Rio de Janeiro, a exposição aconteceria no Museu de Arte do Rio de Janeiro - MAR, mas foi censurada pelo prefeito da cidade, Marcelo Crivella.

Também foi o caso das sanções jurídicas sofridas pelo fluminense Wagner Schwartz, com sua performance La Bête, apresentada pelo Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo na Mostra Panorama da Arte Brasileira, uma leitura interpretativa da obra Bicho, de Lygia Clark (setembro/2017). Um fragmento da apresentação em que uma mulher e sua filha criança manipulavam o artista nu foi exposto na internet de forma isolada, desprovido do contexto da performance, e o artista foi estigmatizado como pedófilo. Público em geral, políticos, lideranças religiosas fundamentalistas, grupos extremistas de direita iniciaram seus ataques públicos, que transformaram o artista num monstro social.

Por último, embora não estejam esgotados os casos, a perseguição e censura em vários estados brasileiros sofridas pelo espetáculo O evangelho segundo Jesus, rainha do céu, de Natalia Mallo, com a atriz trans Renata Carvalho no papel de um Jesus trans (Agosto/2017). A peça já havia sido proibida, por ordem judicial, de se apresentar no SESC Jundiaí em setembro de 2017; e em Salvador, também por ordem judicial, em outubro do mesmo ano. Em maio de 2018, ela foi censurada pela prefeitura do Rio de Janeiro e, em julho de 2018, proibida de participar do Festival de Inverno de Garanhuns, embora sua apresentação tivesse sido garantida pela iniciativa de artistas do estado de Pernambuco (Siqueira, 2018SIQUEIRA, Elton Bruno Soares de. Corpo (hetero)(u)tópico do Jesus, rainha do céu. Quarta Parede , Recife, 2018. Disponível em: <Disponível em: http://4parede.com/09-queer-corpo-heteroutopico-do-jesus-rainha-do-ceu/ >. Acesso em: 21 jul. 2018.
http://4parede.com/09-queer-corpo-hetero...
).

Todos esses casos revelam que a potência estética e política dos trabalhos se esbarra num conservadorismo característico de um Estado de passado colonial, disposto hoje na periferia do capitalismo, com fortes orientações neoliberais. Os argumentos usados pelos órgãos interditores costumam ser de ordem moral (moralidade pública). De todos os exemplos citados, o único que foi censurado com argumento de moralidade pública, mas não de ordem sexual, foi o da Trupe Olho da Rua, que, ao pôr a bandeira do Brasil de cabeça para baixo, mostrou “desrespeito ao símbolo social” (Alves; Hernandes, 2016ALVES, Martha; HERNANDES, Raphael. PM interrompe peça de teatro em praça e prende ator em Santos. Folha de São Paulo, São Paulo, 31 out. 2016. Disponível em: <Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/10/1827987-pm-interrompe-peca-de-teatro-em-praca-e-prende-ator-em-santos.shtml >. Acesso em: 23 jul. 2018.
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/...
, s.p.).

A história, segundo Foucault, nos cerca e nos delimita; não diz o que somos, mas aquilo de que estamos em vias de diferir; não estabelece nossa identidade, mas a dissipa em proveito do outro que somos (Deleuze, 2010DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2010. , p. 119).

Da leitura deleuziana sobre Foucault nos vem a seguinte consideração: até que ponto estamos condenados a um face a face com o poder, submetendo-nos ou procurando detê-lo? Produzir uma dobra na relação de força sobre ela mesma seria, antes, ultrapassar essa força, fazendo com que ela afete a si mesma e não a outras forças. Dobrar a força significa duplicá-la, permitindo-nos resistir ou mesmo nos furtarmos da censura, da moral que nos é imposta, alterando o caráter coercitivo das regras apresentadas, produzindo alternativas possíveis.

Foi o que aconteceu à maioria das atividades artísticas mencionadas, inclusive com Zoe. A censura, seja ela por deliberação jurídica, seja por determinações estatais, constitui-se por linhas de força que provocam uma dobra nas ações artísticas censuradas. Todas essas obras foram, de uma maneira ou de outra, interditadas, porém o ato de censura gerou um efeito contrário ao pretendido: houve uma procura maior a esses produtos, imediatamente depois de terem sido censurados. A repercussão desses casos em várias instâncias comunicacionais não somente fortaleceu a sobrevida dessas obras, as quais se mantiveram ativas e presentes nos locais em que ainda não passaram por algum ato interditor, mas sobretudo favoreceu a potência dos discursos geradores de novos debates, de novos pensamentos, de novas ideias.

Isso não nos permite, no entanto, deixar de reconhecer os efeitos nefastos de opiniões equivocadas e extremistas emitidas nas mídias sociais. No caso de Wagner Schwartz, por exemplo, transformado socialmente, não num criminoso qualquer, mas num pedófilo, crime considerado hediondo e abominável, sua vida pessoal transformou-se num verdadeiro inferno. Uma vez tendo recebido mais de 150 ameaças de morte, o artista teve que dormir cada dia num local diferente, por receio que descobrissem seu endereço. Além disso, teve que desmentir inúmeras vezes, para sua família e amigos, postagens de que teria se suicidado ou que teria sido morto; dentre outros graves problemas enfrentados. Nenhuma performance justifica que o artista seja transformado em mártir.

Com tudo isso, vemos que a preocupação se desloca do que dizemos ou fazemos para o modo de existência que nossas ações implicam e suas consequências micro e macropolíticas, fazendo com que a censura não inviabilize o trabalho, mas paradoxalmente o potencialize como gerador de outras falas e agenciamentos sociais, estéticos e éticos.

Imagem 4
‒ Cena final de Zoe

De Zoe, a proposta para a linguagem constituída foi rachar as palavras da dança para extrair delas, tão somente, outros enunciados possíveis. Da crítica sofrida por Zoe, a produção de dobras permitiu ao espetáculo furtar-se dos valores críticos meramente morais sobre o acontecimento, apoiados em seus argumentos simplistas, para extrair dele visibilidades e linhas de fuga para a arte de forma geral e para Zoe, especificamente.

Referências

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  • 1
    “Guattari acrescenta o sufixo ‘ístico’ a ‘capitalista’ por lhe parecer necessário criar um termo que possa designar não apenas as sociedades qualificadas como capitalistas, mas também setores do assim chamado ‘Terceiro Mundo’ ou do capitalismo ‘periférico’, assim como as economias ditas socialistas dos países do leste, que vivem numa espécie de dependência e contradependência do capitalismo. Tais sociedades, segundo Guattari, funcionariam com uma mesma política do desejo no campo social, em outras palavras, com um mesmo modo de produção da subjetividade e da relação com o outro [...]” (Guattari; Rolnik, 2013, p. 413).
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2018
  • Aceito
    30 Dez 2018
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