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Poética Antropofágico-Perspectivística para uma Re-Visão do Teatro Brasileiro: a cena de origem

Poétique Anthropophagique-Perspectiviste pour une Re-Vision du Théâtre Brésilien: la scène d’origine

Resumo:

O texto apresenta esboços de construção de uma Poética, cuja finalidade é a realização de uma Re-Visão, em cinco momentos-chave, do Teatro Brasileiro. Para tal, busca-se estabelecer uma cena de origem, delineada a partir do encontro - impregnado de atração e repulsa - que se dá no Brasil Colônia, a partir do Século XVI, entre as civilizações ameríndia e europeia. Duas metafísicas e formas de expressão, com isso, formam a base intensiva e panteatral de uma Poética que projeta noções de teatro brasileiro em estado constante de lutas de perspectivas, simbolizadas, em suas origens, por duas bocas antropofágicas entredevorantes: a eucarística cristã mercantilista e a cosmopolítica ameríndia.

Palavras-chave:
Teatro Brasileiro; Poética; Antropofagia; Perspectivismo; Xamanismo

Résumé :

Ce texte présente une ébauche de construction d’une Poétique, dont le but est de faire une Re-vision, en cinq moments clés, du Théâtre Brésilien. Pour ce faire, nous cherchons à établir une scène d’origine, décrite à partir de la rencontre - imprégnée d’attraction et de répulsion - qui se déroule au Brésil, à partir du XVIe siècle, entre les civilisations amérindiennes et européennes. Deux métaphysiques et formes d’expression forment ainsi la base intensive et panteatrale d’une poétique qui projette une notion de théâtre brésilien dans un état constant de luttes de perspectives, symbolisées, à l’origine, par deux bouches anthropophages: l’eucharistie chrétienne mercantiliste et la cosmopolitique amérindiennes.

Mots-clés:
Théâtre Brésilien; Poétique; Anthropophagie; Perspectivisme; Chamanisme

Abstract:

This text presents traces of construction of a Poetics, whose purpose is to develop a Re-Vision of the Brazilian Theater in five key moments. To do so, it is sought to establish a scene of origin, outlined from the encounter - impregnated with attraction and repulsion - that takes place in Colonial Brazil, from the 16th Century, between Amerindian and European civilizations. Two metaphysics and forms of expression thus form the intensive and pantheatrical basis of a Poetics that projects a notion of Brazilian theater in a constant state of struggles of perspectives, symbolized, in its origins, by two anthropophagic interdevouring mouths: the mercantilist Christian eucharist and the Amerindian cosmopolitics.

Keywords:
Brazilian Theater; Poetics; Anthropophagy; Perspectivism; Shamanism

Introdução

A concepção de uma Poética Antropofágico-Perspectivística, para uma Re-Visão do Teatro Brasileiro, tem como finalidade abrir possibilidades de leituras distintas das que norteiam os principais manuais de historiografia teatral canônicos. Essas grandes narrativas cronológicas, estruturadas a partir de ideias-forças nacionais, vão interessar, neste trabalho, somente na medida em que possam ser devoradas, desconstruídas, recortadas de acordo com a situação contextual em análise. Nossa proposta de reflexão teórico-crítica, ao contrário, parte da noção de que o teatro brasileiro pode ser configurado segundo uma luta de perspectivas entre duas metafísicas e modos de produção inventiva, cujas reverberações intensivas ganham maior evidência e relevo em cinco momentos-chave de sua história. As potências em luta são, por um lado, a filosofia da representação ocidental, platônico-aristotélica, direcionada para o Uno e para o Mesmo, a partir de princípios miméticos de gradações de originalidade e autenticidade, de cópia e simulacro de modelos; e, por outro, a metafísica da predação canibal, cuja relação sujeito/alteridade constrói a própria realidade, por meio de uma multipolaridade de perspectivas entredevorantes, em constante metamorfose.

É preciso sublinhar que essa última metafísica e modos de invenção aparecerão aqui mediados por leituras/traduções/traições que tentaram - na busca de alargar ao máximo as possibilidades de nossas linguagens/sensibilidades/língua, ao travesti-las poética e filosoficamente de alteridade e diferença - manter o frescor e as potências vitais de filosofias práticas e expressividades ameríndias, em suas dimensões cósmicas e mágicas. As mediações transcodificadoras às quais nos referimos, e que funcionarão como operadores teórico e crítico para a nossa Re-Visão, são o ideário antropofágico1 1 Ideário que se encontra disseminado, principalmente, pelos manifestos da Poesia Pau-Brasil e Antropófago e pelos textos A crise da filosofia messiânica e A marcha das utopias. , vertente órfica da poesia e crítica civilizacional do escritor modernista Oswald de Andrade, e sua ramificação contemporânea mais instigante, que emerge do pensamento do antropólogo e filósofo Eduardo Viveiros de Castro - artesão de conceitos como Perspectivismo Ameríndio e Multinaturalismo2 2 Conceitos que serão definidos, direta ou indiretamente, ao longo deste artigo. -, tendo como instrumentos auxiliares as noções de história de Walter Benjamin, de teatro da crueldade de Artaud e de cosmopolítica do xamanismo amazônico3 3 “Por serem capazes de ver as outras espécies como estas se veem – como humanas –, os xamãs amazônicos desempenham o papel de diplomatas, operando em uma arena cosmopolítica onde se defrontam os diferentes interesses dos existentes. Nesse sentido, a função do xamã amazônico não difere essencialmente da função do guerreiro. Ambos são comutadores ou condutores de perspectivas; o primeiro opera na zona interespecífica, o segundo na zona inter-humana ou societária” (Castro, 2015a, p. 171). .

Eduardo Viveiros de Castro delineia o conceito de Perspectivismo ameríndio ao afirmar que “o perspectivismo é a retomada da antropofagia oswaldiana em novos termos” (Castro, 2008, p. 116). A intuição poética de Oswald de Andrade, que gerou a ideia viajante da Antropofagia, configurada originariamente nos aforismos elípticos do Manifesto Antropófago, de 1928, hoje, devido às inúmeras releituras e reutilizações recebidas, abriu espaços que desbordam para muito além das diatribes literárias que a impulsionaram. Figura poética/noção polêmica, fundadora de uma modernidade experimental e rizomática, que se espraia por nossa contemporaneidade, tem se mostrado ainda muito produtiva. Antonio Candido e Augusto de Campos se perguntam, em diferentes contextos, se a prática filosófica da Antropofagia de Oswald não é o primeiro esboço de filosofia intrinsecamente brasileira. A verdade é que a Antropofagia acaba por cumprir função central, ao longo dos anos, em momentos capitais de experimentalismo nas artes brasileiras, cultas e populares de massa, como ocorreu, por exemplo, no Concretismo, no Neoconcretismo, na Tropicália, no Movimento Mangue beat.

Viveiros de Castro encontra no Manifesto - texto-corpo que flutua, poroso e múltiplo, no espaço da cultura brasileira -, desvãos pelos quais escorregar e, assim, abrir portas, via (pós) estruturalismo, para adentrarmos em alguns dos meandros do pensamento ameríndio. Se Oswald se aproximou de tal conceituação, de modo intuitivo mitopoético, sob o instrumental das vanguardas, pelas sendas abertas pelo inconsciente psicanalítico, pelo pensamento nietzscheano, pela voga do primitivismo, Viveiros se dispõe a tangenciar a cosmovisão ameríndia por outros caminhos. Parte do pensamento pós-nietzscheano de Deleuze e Guattari para tentar - e admite o convite inevitável ao erro - configurar, parodicamente, não um AntiÉdipo, mas um AntiNarciso (Castro, 2015aCASTRO, Eduardo Viveiros de. Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015a.): uma metafísica (contra) ontológica e cosmopolítica.

Viveiros constrói a sua metafísica canibal como uma resposta à hermenêutica do sujeito ocidental, entregue à autocontemplação espelhada da máxima inaugural cartesiana: “eu penso, logo existo”. O sujeito AntiNarciso está em constante devir e metamorfose, se alimenta e se desloca a partir de alteridades - “o outro existe, logo pensa” (Castro, 2008CASTRO, Eduardo Viveiros de. Eduardo Viveiros de Castro - Encontros. Organização de Renato Stutman. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008. , p. 117) -, mantendo teso o arco da relação de intercâmbio de perspectivas, que se projeta de múltiplos corpos humanos e não-humanos. Interação possível devido à noção de que estes possuem um fundo geral anímico interespecífico comum (a concepção de animismo imanentista é revista e repotencializada, assim como os processos construtivos de feições antropomórficas). O que remete a um complexo múltiplo em que cultura e natureza se entrelaçam, projetando não “[...] uma variedade de naturezas, mas a naturalidade da variação, a variação como natureza” (Castro, 2015a, p. 69), ou melhor, a variação dinâmica natureza-cultura. Como se pode notar, em contraposição sutil às representações multiculturais, que são estruturadas como visões girando em torno de uma Natureza una e passiva.

O foco deste artigo será o delineamento de um esboço teórico para caracterizar uma Poética, oriunda da pré e pós história do que denominamos, benjaminianamente, de cena de origem. Acontecimento-constelação que abre a possibilidade de elos intensivos entre os cinco momentos-chave supracitados, que serão re-vistos em produções posteriores a este trabalho, e que farão parte de um projeto de pesquisa e escrita mais amplo. O primeiro desses momentos se dá no Brasil Colônia, a partir do século XVI, no qual se vislumbra, de modo ambivalente, o confronto e a troca - atravessados por desejos imperialistas inaciano-mercantilistas de um lado e de devoração de alteridades plenas do outro - entre duas civilizações estruturadas: a europeia medieval/renascentista (principalmente em sua faceta Ibérica, já tensionada por uma cultura popular urbana emergente e pela civilização africana) e a ameríndia com, no mínimo, 15 mil anos de existência. O segundo se debruçará sobre a dramaturgia e a cena do século XIX e início do XX, tendo como eixo de reflexão as obras de Qorpo-Santo, de Arthur Azevedo e o poema O Guesa, de Sousândrade.

O terceiro momento abordará a produção literária, performática, teatral, que se apresenta em conexão com o Manifesto Antropófago (Andrade, 1970ANDRADE, Oswald de. Obras Completas VI: Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.), de Oswald de Andrade, durante o final dos anos 1920 e os anos 1930 - em diálogo com as produções de Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Alcântara Machado, Flávio de Carvalho, Raul Bopp. No quarto, iremos refletir sobre o Momento Tropicalista, da segunda metade da década de 1960 e início dos 1970, quando a ideia de antropofagia atravessa as principais manifestações de vanguarda nas artes plásticas, no cinema, na música popular, no teatro. E, finalmente, no quinto e último momento, tentaremos localizar as reverberações - intensivas, residuais, cíclicas - da noção de antropofagia na cultura e na cena teatral, performática, expandida contemporânea.

É bom sublinhar que a palavra cena se configura, aqui, como (pré) forma, com sentido móvel. A cena como possibilidade aberta de significação alternante, partindo da ideia de panteatralidade4 4 Panteatro é um termo concebido neste trabalho com o objetivo de funcionar em contraste à ideia de parateatro, utilizada por Décio de Almeida Prado (1993) em sua história canônica Teatro de Anchieta a Alencar. Analisaremos mais adiante o perfil geral de manuais historiográficos semelhantes a este. Importa, agora, explicitar que o termo parateatro abrange manifestações culturais com laivos antropológicos, teatrais e/ou performáticos que não fazem parte do que é instituído como sendo o conceito sociológico-estético de teatro brasileiro – desdobrado por Décio do clássico Formação da Literatura Brasileira, de Antônio Cândido –, categorizado enquanto tal somente quando há condições para que o complexo autor-texto-companhia teatral-palco-plateia-crítica seja estabelecido e movimentado na história. e interagindo com as ações de performance art e etnocena, como movimentação que abarca, de modo incontornável, artes, saberes, discursos, disciplinas, realidades.

Nossa cena de origem, com isso, será construída a partir de princípios oriundos do pensamento selvagem e da bricolagem5 5 André Gardel (2017), no artigo O “rigoroso olhar índio” da criança, de Walter Benjamin e do xamã amazônico, a partir de conceituação de Lévi-Strauss, escreve: “Essa ciência ‘primeira’, cujo repertório heteróclito e já elaborado, feito não de matérias-primas mas de ‘uma coleção de resíduos de obras humanas’ (Lévi-Strauss, 1989, p. 34), opera por meio de signos – portanto na tensão dinâmica entre a percepção/ imagem e o conceito –, que exigem que ‘uma certa densidade de humanidade seja incorporada ao real’ (Lévi-Strauss, 1989, p. 35). Afora isso, o que caracteriza a operacionalidade de tal ciência é o duplo movimento constante de inventariar e rearranjar os elementos fragmentários, (re) (des) funcionalizados que compõem o seu conjunto que, ‘mesmo sendo extenso, permanece limitado’ (Lévi-Strauss, 1989, p. 32). Uma epistemologia, com isso, sob o signo da variabilidade e da virtualidade, tanto pelo eixo paradigmático de seus elementos em si (elementos de origem, sob o viés de Benjamin) – procedentes de ambientes, contextos, funções, situações, usos, propriedades, relações outras –, quanto de possibilidades relacionais transversais múltiplas de composição e arranjo (semelhantes a constelações benjaminianas)”. , a fim de localizar as forças expressivas em luta de perspectivas, simbolizadas por duas bocas antropofágicas entredevorantes: a eucarística cristã mercantilista e a antropofágica cósmica ameríndia. De um lado, a coralidade dos ritos tribais e as peças-performances-poemas xamânicas, impulsionadas por uma complexa metafísica canibal; de outro, a metafísica ocidental estruturada nas formulações de representação do Uno, expressa no teatro catequético de tese teológica e raiz épica anchietano, centrado na devoração que anula a alteridade em nome do mesmo (ainda que, nesse processo, os modos de operar a linguagem e a cultura contaminem as propostas em jogo), parte constitutiva da diversidade panteatral das Festas de recebimento, ramificação colonial do Auto sacramental ibérico. Dentro desta última antropofagia, o tensionamento da mecânica mimética oriundo da cultura popular urbana, que se realiza a partir de uma cópia de terceiro grau, situação relida e analisada neste trabalho como potência inventiva, tendo em vista a compreensão de crise que o conceito de mímesis, fundador do teatro ocidental, sofre na Modernidade.

A (contra) noção de panteatralidade nasce como réplica das potências teatrais e performáticas da vida/crueldade diante da fala seletiva e excludente, emitida ao se formular a ideia de parateatro. Quer, justamente, trazer a ausência, a falta, o recalcado, a exuberância de possibilidades guardadas no resíduo, na ruína, no que foi silenciado, no que foi desprezado, degradado, para receber a contraluz da análise, do interesse, do foco, ganhando força epistemológica. Pode-se dizer que a panteatralidade é a geratriz de nossa Poética e de nossa cena de origem, pois almeja encontrar e legitimar (pré) formas e forças, em diversos contextos/espaços/ambientes, que foram diminuídas ou abandonadas, criando, assim, ruídos na câmara de ecos mimético-platônica, que assola, como um superego civilizacional, os cânones oficiais, cujos projetos acabam por suplantar “o processo histórico e se tornaram a própria história” (Guinsburg; Patriota, 2012GUINSBURG, Jacó; PATRIOTA, Rosângela. Teatro Brasileiro: idéias de uma história. São Paulo: Perspectiva , 2012., p. 75). Postura de fundo excessivamente judicativo, produtora de uma espiral hierárquica e supressiva, que desdobram o pensamento do filósofo grego.

De fato, o que importa ao platonismo não é a primeira clivagem entre cópia e modelo, mas aquela que determinada pelo rigor do modelo pode determinar e separar as boas das más cópias. As cópias que aspiram ao modelo e as cópias degradadas que não lhe têm mais nenhuma similitude. Dito de outro modo, o principal movimento estratégico do platonismo não foi privilegiar o modelo à cópia, mas selecionar as boas cópias das mal fundadas, que, por seu distanciamento do modelo, passaram às formas denominadas de simulacros-fantasmas ou, simplesmente, simulacros (Vasconcellos, 2006VASCONCELLOS, Jorge. Giles Deleuze e filosofia como ontologia do devir e pensamento da imanência. In: MAIA, Antônio Cavalcanti; BRANCO, Guilherme Castelo (Org.). Filosofia Pós-Metafísica . Rio de Janeiro: Arquimedes Edições , 2006. P. 121-146., p. 125).

No universo pré e pós cena de origem, a panteatralidade, ao partir da degradação do simulacro-fantasma6 6 O estudo do contraponto entre os simulacros-fantasmas platônicos e os espíritos xapiripë – seres transparentes de potências da natureza e da vida em geral com os quais o diplomata cósmico xamã amazônico negocia –, constitutivos do xamanismo yanomami, merecem um estudo aprofundado que, esperamos, possamos fazer em artigo vindouro (Albert; Kopenawa, 2015). , reverte e devora, por exemplo, textos canônicos para encontrar emergências de outras metafísicas, lutas de perspectivas, silenciamentos, ecos vivenciais múltiplos e complexos na superfície de produções que se querem presas aos estilos e modelos de época, mas que, frequentemente, resultam em híbridos inventivos, ao longo de nossa criação cênico-dramatúrgica; manifestações demarcadas como realidades históricas, tidas, no geral, como amadoras, ocasionais, funcionais e/ou vinculadas a contextos meramente de natureza antropológica, cívica, religiosa; as cópias degradadas de terceiro grau, simulacros do simulacro expressivo colonial diante da originalidade e autenticidade da produção de gêneros francesa (tragédia neoclássica), espanhola (tragicomédia e auto sacramental do século de ouro) e italiana (ópera). A panteatralidade, a partir dessas operações, valoriza a diferença, devora o Modelo, potencializa o simulacro, seguindo o pensamento deleuziano, num gesto que é o “[...] mais significativo dos procedimentos de reversão da filosofia da representação, inaugurada por Platão e desenvolvida por Aristóteles” (Vasconcellos, 2006VASCONCELLOS, Jorge. Giles Deleuze e filosofia como ontologia do devir e pensamento da imanência. In: MAIA, Antônio Cavalcanti; BRANCO, Guilherme Castelo (Org.). Filosofia Pós-Metafísica . Rio de Janeiro: Arquimedes Edições , 2006. P. 121-146., p. 126).

Trata-se de um posicionamento antropofágico de rebaixamento para o estômago, vísceras e genitália, para o microbioma, para o baixo corporal metamorfoseante, da sublimidade metafísica do Uno e da concepção de “mímèsis nos gregos, imitatio para os latinos, mimese clássica (Bela Natureza) no século XVII, ilusão mimética (Natureza Verdadeira) no Século das Luzes”, corpo de significações que “[...] atravessa de ponta a ponta a tradição ocidental do teatro, antes de vir a ser questionado pela modernidade” (Sarrazac, 2012SARRAZAC, Jean-Pierre (Org.). Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo. Tradução de André Telles. São Paulo: Cosac Naify , 2012., p. 109). Processo de mastigação dos gêneros puros europeus, iniciado em Portugal, por intermédio da literatura popular de cordel, meio pelo qual a maioria dos clássicos chegou até nós, e definitivamente engolido e refeito na ambiência geopolítico-cultural-religiosa da colônia.

Histórias do Teatro Brasileiro e Cena de Origem

Os trabalhos historiográficos que chamamos acima de canônicos e que balizam, direta ou indiretamente, a produção crítico-teórica sobre teatro no Brasil - “com distinções em termos de abordagem, de regiões, de período e, inclusive, de manifestações artísticas” (Guinsburg; Patriota, 2012GUINSBURG, Jacó; PATRIOTA, Rosângela. Teatro Brasileiro: idéias de uma história. São Paulo: Perspectiva , 2012., p. 265) -, ao construírem narrativas abrangentes, organizadas cronologicamente, se empenham em unificar, em grandes sínteses, as distintas experiências teatrais, sob a égide de uma ideia-força principal: a busca do próprio da nação. Esse centro ideológico, que sofreu variações ao longo de mais de cem anos de produtividade, inicialmente se deu, no século XIX, pela busca de um nacionalismo ontológico7 7 Segundo o poeta concretista Haroldo de Campos, no artigo Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira, o paradigma do nacionalismo ontológico é uma transposição, “para as nossas latitudes tropicais”, de “um episódio da metafísica ocidental da presença” e se baseia na ideia de evolução natural, de fundo “organicista-biológico”, já que busca “a origem e o itinerário” de um “Logos nacional pontual”. Tal episódio, chamado de “logocentrismo platonizante”, tem como finalidade capturar “o momento de encarnação do espírito (do Logos) nacional”, para, assim, pavimentar “o traçado retilíneo dessa logofania na história” (Campos, s/d, p. 110-111). , por meio do qual, a partir da criação de marcos e gradações, se definiria a identidade do país emergente. Essa perspectiva, de cunho romântico, fez do teatro um braço dramatúrgico da literatura brasileira, num momento em que própria literatura brasileira foi pensada como um ramo torto da europeia. Se a perfeição dos modelos artísticos e os valores civilizatórios adequados, para os críticos e intelectuais empenhados em pensar o teatro no Brasil à época, estavam no repertório e na moral imperialista do Velho Mundo, especialmente na França, a seleção do material produzido deveria se aproximar ao máximo desses padrões éticos e estéticos.

E foi a partir dessas premissas que algumas ideias passaram a vigorar com bastante ênfase entre nós: o teatro deveria ser o veículo condutor de valores morais, culturais e artísticos, e mais especialmente tinha que levar em conta a preocupação em fortalecer a identidade nacional por meio de obras que valorizassem os sentimentos nobres e a fruição estética. Nesse caso, os gêneros adequados seriam a tragédia e o drama (Guinsburg; Patriota, 2012GUINSBURG, Jacó; PATRIOTA, Rosângela. Teatro Brasileiro: idéias de uma história. São Paulo: Perspectiva , 2012., p. 264).

Tal superego estético-civilizatório, de bases clássicas, ecoando pelos movimentos do século XIX afora, trouxe a reboque para o país, além de paradigmas europeus de modelos fechados de validação artística e crítica, todo um ideário racista e eugenista, oriundo das várias correntes cientificistas do período. Nossa elite intelectual e política crioula, seguindo a norma formativa histórico-popular dos Estados-nações, quis conceber um povo brasileiro a fórceps, idealizando o índio e, para dizer o mínimo, desprezando os afrodescendentes, ao mesmo tempo que não se sentia mestiça e local e, sim, branca e europeia, uma vez que o pensamento imperialista do período afirmava que países miscigenados ou tropicais jamais poderiam atingir o estágio científico de uma verdadeira civilização. Diante desse paradoxo, de afirmação e negação de si, nossas elites seguiram caminhos muito semelhantes - por outras vias e num âmbito sócio-étnico-cultural mais amplo - aos trilhados pelos jesuítas, nos séculos de colonização, de extirpar os maus costumes e os valores pulsantes de outras metafísicas e manifestações expressivas que circulavam, múltiplos, pela terra brasilis.

As histórias brasileiras do teatro que floresceram no século XX mantiveram, no geral, a ideia-força de busca seletiva de uma identidade nacional, acoplada à noção obsedante de atraso ou falta em relação à produção europeia e, agora, também, norte-americana. As periodizações, ainda muito próximas das escolas literárias, nortearam os marcos fundacionais cronológicos, assim como se manteve o texto dramatúrgico como carro-chefe na composição teatral, com a diferença de que, sob a força dialética de aspectos cênicos, de formação de companhias e casas de espetáculos, de jogos comparativos com outras artes cênicas, e da emergência de manifestações populares subalterno-revolucionárias rurais e urbanas. São, na verdade, exercícios de refundação do teatro por meio de processos modernizadores, simultaneamente impregnando o nacionalismo de fundo de espírito crítico estético e político. Essas produções, dentre as quais podemos citar autores como Lafayette Silva, Sábato Magaldi, J. Galante, Gustavo Dória, Décio de Almeida Prado, “[...] suplantaram o processo histórico e se tornaram a própria história que, constituída de sentidos e finalidades, teceu mecanismos que fundamentaram hierarquias, valores e fixaram uma imagem do teatro brasileiro” (Guinsburg; Patriota, 2012GUINSBURG, Jacó; PATRIOTA, Rosângela. Teatro Brasileiro: idéias de uma história. São Paulo: Perspectiva , 2012., p. 75).

Sob outro ponto de vista, surge, ainda, um manual de história do teatro mundial, a História do Teatro, de Nelson Araújo, que insere o teatro africano em suas origens, do mesmo modo que o teatro de língua portuguesa nas periodizações gerais, num nítido esforço de inserção de viés antropológico e globalizante. A produção historiográfica de Hermilo Borba Filho, por sua vez, pode ser pensada como desdobramento dos movimentos regionalistas modernistas, com o adendo de que Hermilo se debruça sobre elementos da performatividade e teatralidade de manifestações tradicionais folclóricas nordestinas, relidas, em aproximação ao teatro contemporâneo, em sua autonomia espetacular de linguagem, sem abandonar, entretanto, o perfil nacional-popular, de cunho armorial, que legitima as raízes e arcaísmos das culturas populares nacionais pelo enquadramento da produção culta ocidental.

Imagens fixadas do teatro brasileiro, que servem de fonte para as pesquisas monográficas universitárias atuais; conforme constatam Guinsburg & Patriota (2012GUINSBURG, Jacó; PATRIOTA, Rosângela. Teatro Brasileiro: idéias de uma história. São Paulo: Perspectiva , 2012., p. 89), “[...] os livros de J. Galante de Souza, Sábato Magaldi e Gustavo Dória são recorrentes na bibliografia dos estudos sobre teatro brasileiro”, e completam afirmando que “[...] em menor grau, mas com relevância [...] estão as reflexões de Lafayette Silva, Hermilo Borba Filho e Nelson Araújo”. Por outro lado, o período contemporâneo também presenciou a hegemonia das grandes sínteses históricas ser posta em xeque por narrativas fragmentadas, com lugares de fala diversificados e particularizados, centradas, muitas vezes, na reflexão sobre a especificidade do próprio fazer artístico.

Nossa proposição de compreensão de processo histórico assume outras perspectivas, ao entretecer tanto a intuição mitopoética presente no Manifesto Antropófago - evidente na imagem-aforismo que profetiza, xamanicamente, que “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi carnaval” (Andrade, 1970ANDRADE, Oswald de. Obras Completas VI: Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970., p. 16), pois, devorando a psicanálise, sinaliza para a emergência de um fundo recalcado que jamais deixou de espocar pela superfície hegemônica da vida e criação brasileira séculos afora -, quanto a relação intensiva que pode ser estabelecida com a constelação estética e epistemológica em que a história está inserida no pensamento de Walter Benjamin.

Em Benjamin a sua teoria estética coincide com o seu modelo epistemológico. Para ele, a arte não tem história, o elo entre as diferentes obras não é cronológico, mas intensivo. Assim também com os fatos e as coisas. O caráter intensivo retira a arte (e as coisas) de um continuum histórico que as subsume a um encadeamento significativo (Santi, 2006SANTI, Angela. Constelações estéticas, estilhaços epistemológicos. In: MAIA, Antônio Cavalcanti; BRANCO, Guilherme Castelo (Org.). Filosofia Pós-Metafísica. Rio de Janeiro: Arquimedes Edições, 2006. P. 27-46., p. 27).

Importa, de imediato, sublinhar, na citação acima, que o caráter intensivo em jogo não se prende só a obras de arte mas, também, a fatos e coisas, o que abre portais para reflexões sobre as tensões entre ideia e história, por um lado, e, por outro, para um tipo de teoria especial confeccionada por Benjamin, na qual o marxismo se deixa atravessar, entre outros, pelo “Romantismo revolucionário”, que faz uma “crítica cultural à civilização moderna (capitalista) em nome de valores pré-modernos (pré-capitalistas)”, realizando não uma volta ao passado, mas um “desvio por este, rumo a um futuro utópico” (Löwy, 2005LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses ‘Sobre o conceito de história’. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 18; 19). Portanto, por meio de um tipo especial de gótico8 8 Daí epítetos que Benjamin recebeu como os de rabino marxista, marxista gótico, marxista surrealista, marxista da Escola de Iena, que realçam, ainda, a sua condição de crítico-poeta, cujo pensamento analítico se dava também por elipses, imagens, alegorias. , “sensível à dimensão mágica das culturas do passado” (Löwy, 2005, p. 26), ou do matriarcado idealizado de Bachofen, de iluminações profanas diversas, ou, ainda, do resgate do fascínio de Marx e Engels por um comunismo primitivo, na aurora da história. Este trabalho traz a metafísica canibal, como proposição de alteridade extraocidental, para dialogar com a visada bem particular de história de Walter Benjamin.

A noção de origem benjaminiana embasa o processo histórico que estamos chamando de cena de origem; e foi desenvolvida, de modo mais amplo, nos textos Origem do Drama Trágico Alemão e no arquifamoso estudo Sobre o conceito de história, e deve ser entendida em contraponto dialético com a imagem/conceito de gênese. O fenômeno da origem implica, antes de tudo, em uma restauração e reprodução em movimento de uma gênese, que, por sua vez, “equivale à irrupção pontual de um evento, de um dado, de um acontecimento”. No entanto, a origem não é o dado bruto, “não pode ser reificada e nivelada com o nível dos puros eventos” (Santi, 2006SANTI, Angela. Constelações estéticas, estilhaços epistemológicos. In: MAIA, Antônio Cavalcanti; BRANCO, Guilherme Castelo (Org.). Filosofia Pós-Metafísica. Rio de Janeiro: Arquimedes Edições, 2006. P. 27-46., p. 28; 29). Dessa maneira, a origem é a construção do antes e do depois, a pré e pós história dos fatos, da gênese; é a forma mutante que emerge da trajetória intensiva de uma ideia em confronto e busca de conquista da história.

Sob esse aspecto, a cena de origem é a retirada, por parte do historiador, do acontecimento bruto do progresso teleológico, de irrupção pontual dentro de uma corrente cega de fatos contínua e linear, homogênea, para impregná-lo de múltiplos tempos, a fim de que se restabeleça saturado e prenhe de agoras: “[...] cada acontecimento contém sua pré e pós-história, que deve ser definida por um historiador perspicaz, capaz de reconhecer no fato presente uma ‘identidade’ aberta no tempo” (Santi, 2006SANTI, Angela. Constelações estéticas, estilhaços epistemológicos. In: MAIA, Antônio Cavalcanti; BRANCO, Guilherme Castelo (Org.). Filosofia Pós-Metafísica. Rio de Janeiro: Arquimedes Edições, 2006. P. 27-46., p. 30). Daí a dialética de extremos, que propicia a coexistência de contrastes distantes e contíguos, situação temporal em que o “passado pode encontrar-se com o presente”, quando a ideia de origem é apropriada como reminiscência, que se atualiza em ciclos: “A ideia, para Benjamin, contém os particulares como atualizações para as quais tende, na medida em que contém em si uma história interna que deve ser ‘cumprida’, vivida, virtualmente” (Santi, 2006, p. 31).

Benjamin usa uma imagem, que não poderia se adequar melhor ao ideário metamórfico antropofágico e perspectivístico ameríndio, de “um salto de tigre em direção ao passado” para se referir ao “faro para o atual” da moda, “onde quer que ele esteja na folhagem do antigamente” (Benjamin, 1994BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994., p. 230). Salto este cuja força motriz reverbera no que propomos, sem perder de vista que a presa que é caçada no passado - que não se parece em nada com o belo animal aristotélico9 9 Na Poética, Aristóteles compara o mythos a um ser vivo, a um belo animal, “cuja ‘beleza reside na extensão e na ordenação’” da tragédia. Para “subverter a estética clássica”, “onde se elabora uma concepção organicista da peça de teatro”, “Jean-Pierre Sarrazac opõe ao ‘belo animal’ da Poética ‘a estranha besta, metade gato, metade cordeiro’ descrita por Kafka” no texto Uma cruza, como sendo “a imagem de um drama moderno e contemporâneo” (Sarrazac, 2012, p. 41-42). , e, sim, com uma híbrida cruza kafkiana10 10 Assim Kafka descreve a Cruza metamorfoseante: “Tenho um curioso animal, metade gatinho, metade cordeiro. É uma herança de meu pai. Em minha companhia desenvolveu-se completamente; antes era mais cordeiro do que gato. Agora é metade um e metade outro. Do gato tem a cabeça e as unhas, do cordeiro o tamanho e a forma; de ambos os olhos, que são ariscos e faiscantes, a pele suave e ajustada ao corpo, os movimentos a um tempo saltitantes e furtivos” (Borges; Guerrero, 1982, p. 50). -, nasce da ruína-encontro originária da cena teatral brasileira.

O fenômeno de origem, assim, guarda em si a virtualidade de repotencializar inúmeras ruínas (esse trabalho parte da metafísica e metamorfose ameríndia, se posicionando ao lado de outras filosofias e processos criativos extraocidentais, como, por exemplo, os de natureza afro, que podem gerar novas Re-Visões), superpostas no monte imenso que o anjo do quadro de Paul Klee - o AngelusNovus, devorado por Walter Benjamin, que o transfigura em anjo da história -, vê proliferarem do passado. “Com olhos escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas”, o arcanjo alegórico se depara não com “uma cadeia de acontecimentos”, mas com “uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína”: a história dos vencidos, dos excluídos, dos marginalizados. O trágico da situação é que o querubim “gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos”, mas é impelido para o futuro, a contragosto, por uma tempestade que “sopra do paraíso” e que “chamamos de progresso” (Benjamin, 1994, p. 226).

As movimentações particulares que atualizam a história interna dessa cena de origem intensiva são os cinco momentos-chave destacados, vistos como alegorias da constelação movente que se (de) forma a partir da cena do encontro-ruína, cuja luta de vida e morte de perspectivas reverbera em situações e contextos os mais diversos11 11 Podemos, por exemplo, pensar na disputa pela área do entorno do Teatro Oficina, estabelecida entre Zé Celso Martinez Correia e Sílvio Santos, como uma luta de perspectivas panteatrais, alegoria intensiva contemporânea da cena de origem do Teatro Brasileiro. .

Xamanismo Amazônico e Crueldade Artaudiana

Mais um instrumento auxiliar de operacionalização de nossa Poética será agora introduzido: as energias metamórficas de fuga da representação presentes nas peças-performances-poemas xamânicas. Partiremos de algumas proposições de abertura de frestas no cânone ocidental feitas por Artaud (1985ARTAUD, Antonin. Os Tarahumaras. Tradução de Anibal Fernandes. Lisboa: Relógio D’Água, 1985.) - intelectual que devorou alteridades extraocidentais e se deixou reconfigurar em sua arte e discurso por essas outras metafísicas -, que viveu experimentos ritualísticos no México com a tribo Nahua dos Tarahumaras, que são do mesmo tronco linguístico dos Astecas, agenciadoras de caminhos importantes em suas práticas teóricas. Interessa-nos, sobretudo, a “fome do incomensurável” que Artaud não vê no homem moderno ocidental e que o “conjunto de meios” do teatro ajudaria a saciar, promovendo uma “modificação ontológica”, nos colocando “no caminho da geração de um novo corpo” (Quilici, 2015QUILICI, Cassiano Sydow. O Ator-performer e as Poéticas da Transformação de Si. São Paulo: Annablume , 2015., p. 102).

Se a sociologia clássica vê no rito, ainda, uma representação encenada, por meio de uma linguagem concreta de códigos não apenas verbais, habilitada por valores coletivos e concepções míticas abstratas, o que fortaleceria os laços identitários da sociedade, restabelecendo, após as crises, a lei e a ordem, são a partir de estudos antropológicos como os de Vitor Turner que o rito “[...] constitui-se como um acontecimento singular, em que existe certo espaço para a emergência do estranho, do não-idêntico, do que não se conforma à norma” (Quilici, 2004QUILICI, Cassiano Sydow. Antonin Artaud: Teatro e Ritual. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2004., p. 67). Turner vai enfatizar os aspectos sagrados, violentos, teatrais contidos na liminaridade dos rituais, que ofereceriam um caos produtivo para revitalizar as estruturas sociais sedimentadas, por intermédio de “[...] um continente para a experiência da desordem, do desmanche das referências e dos contornos, da abertura para a dimensão do ‘sagrado’”, em contraponto à “resolução racional dos conflitos” (Quilici, 2004, p. 68) apregoada pelas sociedades modernas, com seus sistemas jurídicos e políticos.

Ainda segundo a leitura de Quilici, Turner coloca o teatro como “um dos herdeiros dos vastos sistemas de rituais das sociedades pré-industriais”, que possuíam códigos de expressões interligados e inseridos na vida, ainda não desmembrados pela modernidade cientificista em campos específicos e autônomos. Teatralidade presente nas expressividades e experiências dos participantes dos ritos, “[...] traduzidas muitas vezes em imagens míticas, que dissolvem as fronteiras entre o mundo humano e o mundo natural e imaginal”. Nas sociedades modernas, o teatro e as artes “incorporam o sentido do entretenimento, do jogo e do lazer, perdendo algo da ‘seriedade’ e da mistura com a vida”; contudo, Turner “reconhece que há propostas no teatro moderno e contemporâneo, como as de Artaud, Grotowisky, Peter Brook, Julian Beck, Tadashi Suzuki, entre outros, que pretendem justamente recuperar a experiência do numinoso e do sagrado” (Quilici, 2004, p. 68-69).

Experiências do sagrado, em Artaud, que emergem das palavras-coisas vida e crueldade, vistas no teatro físico-metafísico do francês como praticamente sinônimas. E que atuam como instrumentos de combate ao mundo da representação ocidental, procedimento que prolifera, como um vírus, não só no teatro, nas artes ou na cultura, mas em todas as camadas da vida e do pensamento. O rito, por seu turno, traz a possibilidade vital e cruel das experiências de transformações e metamorfoses orgânicas, saindo do conhecimento que nasce do controle da simbolização e da conceituação, dos esquemas lógicos que levam ao uno e à ausência de conflito. Adentrando, como excedente que incorpora recursos desprezados pela razão descriminativa, na força agonística de um saber que mergulha na realidade em toda a sua espessura - visível e invisível, de combate, predação, devoração.

O teatro ritual artaudiano, desse modo, se quer duplo virtual do momento cataclísmico, do entrelugar onde tem início as lutas cósmicas, geradoras de forma e especiação, língua e ser, tempo e espaço, a fim de reconfigurar, após tal experiência limite, corpo, espírito, linguagem.

O teatro torna-se o ‘duplo’, não da realidade cotidiana e sensível, mas de uma realidade invisível, ‘perigosa e típica’. O teatro da crueldade pretende assim ampliar nossa experiência do real. Agindo sobre a sensibilidade e intelecto, ele almeja um salto, que nos levaria à apreensão de uma realidade que se confunde com o drama da própria criação (Quilici, 2004QUILICI, Cassiano Sydow. Antonin Artaud: Teatro e Ritual. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2004., p. 77).

Esse entrelugar e esse momento, que ampliam nossa experiência do real por meio de processos de dissolução e reelaboração que renovam a vida e a cultura, configuram os mundos visitados pelo xamã amazônico em sua viagem-transe extrospectiva. Próprio do universo mítico, esse caosmos originário é um plano de consistência em que os seres não são nem humano nem não-humano, nem mortos nem vivos, e a metamorfose constante é a dinâmica virtual de figuração do devir, tempo-espaço de acontecimentos pré-cosmológico, pré-especiação, pré-forma. Campo de imanência que se dá como transe - em trânsito, se movimentando, se metamorfoseando -, não como êxtase/entusiasmo, que implica em sair de si para receber - e responder em possessão - um deus vinho12 12 Mircea Eliade faz uma instigante afirmação que, no mínimo, merece também um novo artigo. Ao estudar o xamanismo na Grécia Arcaica, o aproxima de Apolo e não de Dioniso, o que, para o nosso trabalho, traria outra perspectiva de aproximação mítica entre as origens do teatro ocidental e as metamorfoses ameríndias (Eliade, 2002). ou um deus uno totalizador, por exemplo. Por meio do consumo regulado e elaborado de vegetais alucinógenos, o xamã amazônico abre-se à natureza/cosmo, experienciada em sua multiplicidade e variação. E, lucidamente (dentro do sonho, performando e narrando), inicia a sua viagem de negociação de vida e morte de perspectivas - agências “ao mesmo tempo inteligíveis e radicalmente outras” - pelos “fundamentos invisíveis do mundo” (Castro, 2015bCASTRO, Eduardo Viveiros de. O recado da mata. In: ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A Queda do Céu: palavras de um xamã yanomami . Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras , 2015b. P. 11-41., p. 38).

Para tal, os xamãs exploram a sua autodiferença interna, a sua “superposição intensiva de estados heterogêneos” (Castro, 2015aCASTRO, Eduardo Viveiros de. Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015a., p. 56), e recuperam o momento originário de transparência entre as dimensões corporal e espiritual, ao contrário dos corpos opacos da realidade mundana visível. Assim, adentram e atualizam o plano em que “o regime ontológico” é o da transformação “anterior à forma”; da relação “superior aos termos, e o intervalo é interior ao ser” (Castro, 2015a, p. 58). Para atingir esse ponto, é necessário um longo e sistemático processo, iniciado já na infância pelo xamã amazônico, de iluminação prática do corpo-espírito, de autoinvestigação de sutis estados físicos e psíquicos, exercitado nas suas viagens-sonhos. Processo contíguo ao de Artaud, buscando refazer-se constantemente, colocando “em jogo a existência do artista como um todo”:

Como se Artaud tivesse desenvolvido a capacidade de ‘se ver’ impessoalmente, sendo ao mesmo tempo ator e espectador. No limite, é a própria ideia de um ‘si mesmo’ que a sua escritura tende a desmanchar (Quilici, 2015QUILICI, Cassiano Sydow. O Ator-performer e as Poéticas da Transformação de Si. São Paulo: Annablume , 2015., p. 103).

E é por meio desse exercício de viver, ver e se observar, dialogando e narrando - no qual “pontos de vista ontologicamente heterogêneos são comparados, traduzidos, negociados e avaliados” - que emerge a performatividade “cosmopolítica ou cósmico-diplomática” (Castro, 2015bCASTRO, Eduardo Viveiros de. O recado da mata. In: ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A Queda do Céu: palavras de um xamã yanomami . Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras , 2015b. P. 11-41., p. 39) do xamã, ao executar suas peças-performances-poemas. Que são, na verdade, a realização prática do princípio filosófico do “onirismo especulativo”, no qual uma “experiência ativamente ‘extrospectiva’ da viagem alucinatória ultracorpórea ocupa o lugar da introspecção ascética e meditabunda” (Castro, 2015b, p. 40). O corpo, atravessado de perspectivas, ilumina-se por inteiro, respondendo a cada uma delas performativamente, com danças e cantos, narrativas poéticas, desenhos mágicos. Ações em comunidade que Antônio Risério chamou de atos performágicos13 13 No texto Palavras canibais, do livro Textos e tribos, Risério apresenta-nos a seguinte descrição, feita por Viveiros de Castro, dos cantos dos “magos notívagos que – com suas vozes, gestos e baforadas – dominam a madrugada aldeã” dos arawetés amazônicos: “‘O canto é uma função do sonho e/ ou da ingestão de tabaco. Normalmente, a geração de um canto segue esta sequência: um homem dorme, sonha, acorda, fuma, e começa a cantar, narrando o que viu e ouviu no sonho; quando os deuses e mortos querem vir à terra, então o canto se desdobra em uma narração da descida destes seres. Há uma progressão de intensidade, que nem sempre se completa: canto na rede; canto dentro de casa, com fumo e aray; saída para o pátio, com dança e canto que manifesta a presença de deuses e mortos na terra. As sessões de xamanismo alimentar ou de recondução de almas são o ponto máximo da sequência, quando o xamã sai de seu pátio e interfere sobre pessoas e objetos da aldeia’” (Risério, 1993, p. 164; 165). .

Nesses encontros com outros seres transparentes, outros vivos-mortos (atenção: não mortos-vivos, que são os zumbis contemporâneos!), é necessária a aprendizagem das línguas em jogo, por meio de significantes flutuantes14 14 A noção de significante flutuante é originária da leitura que Lévi-Strauss faz, em Introdução à Obra de Marcel Mauss (2003), sublinhando que existe nos códigos uma superabundância de significantes em relação aos significados, uma vez que estes últimos são fixados progressivamente ao longo do uso da língua. ou significados sem sentido referenciável15 15 José Gil define assim os significados sem sentido referenciável: “No universo simbólico das sociedades primitivas pode observar-se uma situação estranha [...] tudo o que o homem sabia ter um sentido, não era por isso identificável, enquadrável nos sistemas de correspondências já elaboradas entre os signos e as coisas. Assim se cria uma situação paradoxal: há um sentido, há significado, mas é impossível atribuir-lhe um sentido referenciável e preciso (que torne a coisa não apenas significante mas conhecida)” (Gil, 1997, p. 16). , para a comunicação, uma vez que será estabelecida uma relação de luta antropofágica de intencionalidades que podem resultar em situações limites. Fato esse que implica numa sutil e perigosa operação de tradução. Ação que exige precaução, pois são transcodificações sensoriais de alteridades/corporeidades específicas, sem uma supralíngua - já que não há um supramundo, nem a coisa em si na filosofia ameríndia, apenas cruzamentos, linhas de fuga, devorações de perspectivas na superfície/profundidade do contínuo devir relacional.

A função político-religiosa da atuação do xamã amazônico em relação às tribos com as quais interage é a de mobilizar o “exterior do socius” (Castro, 2015aCASTRO, Eduardo Viveiros de. Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015a., p. 174) e trazê-lo para dentro da tribo, injetando nesta uma lufada cósmica, mantendo a comunidade atravessada pelas potências de vida e de morte16 16 O xamã cumpre, dessa forma, o papel que Tadeusz Kantor, em seu Teatro da Morte, sugere para o artista: o de abandonar a roda, a tribo, a sociedade para vivenciar a morte, a catábase de heróis paradigmáticos como Orfeu/ Hércules/ Odisseu/ Eneias, para depois retornar e modificar o senso comum, a doxa, os hábitos e costumes (Kantor, 2008). . Arejamento fundamental para a manutenção de formações sociais ameríndias que bloqueiam “a constituição de chefaturas ou Estados dotados de uma interioridade metafísica robusta” (Castro, 2015a, p. 178). A ideia de que algumas sociedades ameríndias não são um proto-Estado mas se estruturaram contra o Estado, talhada por Pierre Clastres (Clastres, 1978CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. Tradução de Theo Santiago. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.), advém, dentre outros fatores, de gestos desconstrutores de práticas sedentárias, como, por exemplo, as movimentações coletivas de tribos amigas e inimigas, conduzidas pelo xamã na busca nômade da terra-sem-mal17 17 Local mágico/ concreto que se crê acessível na terra, no qual se vive sem esforço de sobrevivência – as flechas caçam por si sós, a lavoura e a colheita também não exigem trabalho, e todos dançam e cantam e se embriagam o tempo todo – junto com os seus ancestrais, os heróis civilizadores, os demiurgos. .

O esfriamento histórico da função do xamã amazônico leva ao devir sacerdote, que separa, no rito sagrado, oficiante e vítima, e passa a ser toda a fonte da religiosidade oficial de “inclusão transcendente”, que é capturada pelo socius e pelo Estado, como veio a ocorrer nas “chamadas ‘altas culturas’ andinas e mesoamericanas”. A partir de então, há o “fim da bricolagem cosmológica do xamã” e o “começo da engenharia teológica do sacerdote” (Castro, 2015aCASTRO, Eduardo Viveiros de. Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015a., p. 179).

Entre a Verdade Revelada e a Verdade Devorada

Vamos, agora, entender como o estômago18 18 “[...] reencontramos aqui a ideia nietzscheana da digestão como atividade mais espiritual do homem, já que, como afirmado em Assim falou Zaratustra, o espírito é estômago” (Ferraz, 2015, p. 88). é usado pelo corpo místico político-religioso sacerdotal ibérico, a contraface perspectivística em luta com a boca antropofágica xamânica. Pode-se pensar a antropofagia católica irradiando-se por duas perspectivas básicas: a antropofagia do corpo de Cristo, efetuada pelo fiel a fim de manter a unidade mística do rebanho por meio do sacramento da eucaristia, e a morte e devoração das múltiplas alteridades bárbaras de infiéis levadas a cabo pelo expansionismo da Igreja Católica. Partiremos de exemplos colhidos no Sermão do Espírito Santo (Vieira, 2000VIEIRA, Antônio. Sermões: Padre Antônio Vieira. Organização e Introdução de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2000.), de Padre Antônio Vieira, para lidar com essa antropofagia bifronte cristã.

Segundo Vieira, Deus, com o fito de reunificar o povo de Israel, se dirige a Ezequiel e pede-lhe para que devore os papiros nos quais se encontra a luz do verbo sagrado, que deve ser disseminada, em nome da fé. Numa atitude nitidamente de fundo antropofágico, o Profeta, além de devorar de uma só vez, diz, ainda, que eram doces e saborosas...19 19 Não podemos deixar de traçar uma doce e saborosa analogia entre a fala do profeta Ezequiel e a resposta dada pelo chefe principal Cunhambebe a Hans Staden – após este último lhe perguntar, conforme consta em seu diário de prisioneiro dos tupinambás, como podia devorar um semelhante, pois somente um animal irracional faz isso –, pegando uma perna de um inimigo assada para comer e dizendo: não me amole, eu sou um jaguar, está gostoso (Staden, 2008). Complementar a esse ato, mas em outro ponto da escrita temporal cristã, está o sacramento da eucaristia, no qual a paixão e a ressurreição são revividas no rito de devoração do corpo e do sangue de Cristo, por meio das potências simbólicas da hóstia e do vinho. Os primeiros reformistas chamavam, devido à liturgia desse sacramento, os católicos de canibais, pois instituíam o corpo de Cristo em presença, visível, mediado por um sacerdote e sendo devorado pelos fiéis, ao contrário da relação protestante direta com deus, de fé invisível, por meio da palavra bíblica.

Outra ação antropofágica, que direcionou a catequese e dominação imperialista ibérica no espaço geopolítico que se tornará o do Estado-nação Brasil, é a que se descortina na parábola da visão de Pedro, seguida da audição de uma enigmática ordem divina. O apóstolo se encontra na cidade de Jope em oração e vê, descendo do céu, um lençol branco de quatro pontas amarradas, carregado de bichos peçonhentos. A imagem desaparece e volta a reaparecer, quando, então, Pedro escuta a voz de Deus sentenciar: mata e come! Sem nada entender, se prepara para realizar, homem de fé extrema que é, a tarefa árdua exigida. Até que desvenda, antes, a charada proposta pelo Criador, no momento em que recebe um membro do exército romano pedindo para ser convertido ao cristianismo: os animais de peçonha eram todos os povos não cristãos dos quatro cantos do mundo, que teriam que ser mortos e devorados para fortalecer o corpo místico da Igreja de Cristo.

Nos dois movimentos canibais católicos se encontram, aplicando um dos aforismos do Manifesto Antropófago, elementos de “baixa antropofagia” (Andrade, 1970ANDRADE, Oswald de. Obras Completas VI: Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970., p. 19). Um tipo de antropofagia que deseja absorver o outro eliminando a sua alteridade cultural, matando-o em suas crenças e hábitos, a fim de que renasça cristão e se fortaleça, dentro de uma hierarquia bem demarcada, o corpo místico devorador de almas da Igreja, que se quer única e universal.

Mas qual foi a antropofagia que o baixo canibalismo cristão e o capital em suas origens mercantilistas encontraram no Novo Mundo? Diferentemente da noção de superioridade racial e intelectual, de povo eleito, ou da perspectiva que localiza almas passíveis de serem salvas, ainda que em corpos vistos pelos jesuítas como animalescos, os Tupinambá da costa brasílica do Século XVI viram nos europeus a encarnação da diferença em si, em outras palavras, um manjar dos deuses para a volúpia potencializadora antropofágica. A base mítica tupi, cuja cosmogonia se estrutura a partir de uma falta primordial, prevê em cada ser, em potência, como virtualidade, o outro: daí o desejo inexorável de autotransformação, impulsionado pela alteridade radical, que faz aflorar o que é outro em mim. O poeta Rimbaud, com seu pensamento selvagem, vai na mosca, com língua de sapo: Je est un autre20 20 Tradução livre nossa: eu é um outro. Trecho extraído de Lettre de Rimbaud à Paul Demeny. 15 de Maio de 1871 (Rimbaud, 2017). .

O sujeito por excelência tupinambá, um semideus como os grandes guerreiros - e os xamãs -, é um sujeito magnificado (Sztutman, 2012SZTUTMAN, Renato. O Profeta e o Principal: ação política ameríndia e os seus personagens. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Fapesp, 2012., p. 70). Adquire mais um nome, após a realização de cada ritual antropofágico, sempre que tenha executado um inimigo, o que lhe dá direito a talhar nova escarificação na pele - havia guerreiros com mais de 130 escarificações. Esses sujeitos estão interessados em incorporar a potente anguera21 21 Anguera é uma das almas dos tupinambás, que dá agilidade e agudeza, perseguida, numa batalha espiritual de perspectivas que dura dias, após a morte do inimigo, pelo homicida no rito antropofágico. Era também a alma que “partia para enfrentar as provas de além-túmulo” e “cujo destino pode ser a terra-sem-mal ou o universo aquático e subterrâneo de anhanga” (Mussa, 2009, p. 185). do inimigo morto, após ser caçado em batalha. O que requer uma luta espiritual de perspectivas na qual pode sair vencedor ou não. O matador é o único que não come a carne do inimigo no festim canibal, apenas a tribo e os convivas aliados. O embate espiritual, que exige regimes alimentares, purificações, isolamento, só finaliza quando o inimigo aparece em sonho ao homicida, ensinando a este uma nova canção, cuja pessoa lírica da letra é a voz do próprio inimigo, para ser cantada e dançada, no terreiro da aldeia, pela voz do matador. Todo o processo gera, então, um eu outro, um meu seu, uma (contra) ontologia, movida pela dinâmica da vingança, motor da sociedade Tupinambá.

A modificação de uma festividade milenar tupinambá, a festa dos mortos, ocorrida após o contato com os europeus, nos auxilia a compreender a força de incorporação de alteridades, em outra instância que não a do ritual propriamente antropofágico. Chamadas de Santidades pelos jesuítas, a festa tem início quando os pajés chegam à aldeia e são recebidos como Karaíbas22 22 Grandes feiticeiros primordiais, geralmente heróis culturais civilizadores. , entrando em uma oca especial para que a performatividade ritualística se dê. Em tal recinto, enquanto uma melodia triste e monótona é entoada e dançada em roda pelos membros da aldeia, os pajés conversam com os seus maricás - cabaças com penas, olhos, narizes, cabelos afixados - e simultaneamente fumam e espargem pelos presentes a fumaça do tabaco. Com o transe instaurado, quem inicia falação é o maracá, por meio da voz do pajé que, numa ação de ventriloquismo, traz para a comunidade a presença de seus ancestrais. Estes estimulam a tribo a vingarem e devorarem os seus inimigos, a saírem em busca da Terra-sem-mal. Nesse momento, os membros da tribo também fumam o tabaco e há movimentações gerais de transes de diversas naturezas, o que implica pensar em uma xamanização generalizada.

A Santidade de Jaguaripe, ocorrida no recôncavo baiano durante os anos de 1580 e 1585, como nos narra Ronaldo Vainfas (2010VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras , 2010.), refaz a festa dos mortos por meio da incorporação potencializadora da alteridade inimiga. Atraiu gente diversa da colônia - outros índios aldeados, colonos, jesuítas dissidentes -, que se identificaram mais com a verdade devorada do que com a verdade revelada. A morfologia da festa recebe deslocamentos internos sem perder, contudo, sua feição geral. O maracá se transforma, ao incorporar a imagética católica, numa estátua de pedra-mármore chamada Tupanasu, ou deus grande. Metamorfose que nasce de uma redevoração, já que os soldados de Cristo antropofagizaram um de seus heróis civilizadores, Tupã, a fim de desconstruir, por dentro, a torpe cultura bárbara tupinambá, impregnado-a da verdade e glória de Deus. Os pajés adquirem nomes de santos e surge até uma índia xamã, que se chama Santa Maria Mãe de Deus, mudando de nome por meio dos ritos de batismo, e não mais pela luta de conquista da anguera do inimigo. Os membros da tribo cantam e dançam com terços nas mãos e os pajés, em suas viagens astrais, se comunicam e trazem notícias das palavras do santo Papa ou do Cristo em pessoa (Vainfas, 2010).

Por outro lado, os processos de antropofagia cristã podem ser investigados nos autos tupi-medievais (Bosi, 1996BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras , 1996.) anchietanos, que fazem parte de eventos mais abrangentes chamados de Festas de recebimento. A temporalidade das tais festas é mítica por excelência, ou seja, se dá como desdobramento in facti de gestos e eventos primordiais, sacralizados no evangelho e na mitologia católica dos mártires e santos da Igreja. Receber um visitador superior da metrópole, trazendo relíquias sagradas para a colônia ou para as missões de realização em massa dos sacramentos, produz a materialização de presença da salvação. Mais do que ensinar, os jesuítas exigem de seus fiéis a proclamação corpórea, sensorial da salvação, da entrega a deus e ao corpo místico da Igreja. Dado eminentemente performativo, estético-religioso, que se amplifica nos diálogos e falações produzidas ao longo das procissões, nas representações de realismo exacerbado que levam à exteriorização emotiva extremada (Luz, 2010LUZ, Guilherme Amaral. Quando o verbo se faz carne: a festa da missão. In: MOSTAÇO, Edélcio (Org.). Para uma História Cultural do Teatro . Florianópolis; Jaraguá do Sul: Design Editora, 2010. P. 109-139.).

Sob esse ângulo, o gênero teatral da tradição devorado pelo complexo de recebimento, nos quais o material textual anchietano está inserido e entretecido, é o Auto sacramental ibérico, em muitos aspectos vivo nas festas coloniais. A começar pela origem fundamentada, no século XIII, no sacramento da Eucaristia, absorvendo manifestações profanas e elementos populares e pagãos, dentro de uma forma processional, entremeada de cenas dialogadas, danças e cantos. Base que ganhará definição e lugar de destaque no calendário católico, após a assunção tridentina da transubstanciação.

O rito da saudação lacrimosa, o erujupe - no qual as mulheres das aldeias tupinambás choravam, durante um bom período de tempo, a chegada, por exemplo, de algum parente distante ou aliados de tribos amigas, dizendo-se saudosas e que sofreram muito enquanto a pessoa em questão esteve ausente, para, logo a seguir, mudarem de atitude e iniciarem os preparativos das festas alegres de recepção -, sob interpretação jesuítica, era visto como a festa de recebimento dos ameríndios para a chegada da boa nova católica do velho mundo (Luz, 2010LUZ, Guilherme Amaral. Quando o verbo se faz carne: a festa da missão. In: MOSTAÇO, Edélcio (Org.). Para uma História Cultural do Teatro . Florianópolis; Jaraguá do Sul: Design Editora, 2010. P. 109-139.), vindos de longe nas caravelas, numa transfusão de intencionalidades com óbvios fins catequéticos.

Os rizomas entredevorantes se estendem e circulam no evento festivo religioso. Os índios dos aldeamentos, além de participarem da encenação dos roteiros anchietanos, e também ser plateia, no sentido comunitário-ritualístico do termo, atuavam no acontecimento performativo em toda a sua extensão: desde o recebimento do padre visitador, portador de relicários, a quilômetros de distância do centro dramático do evento, a encenações, ao longo do percurso, de performances surpresas de guerra, de danças a moda de, de cânticos e ações tribais. Performance, teatralidade, deslizamento pela realidade não se excluíam, antes interagiam e se superpunham na arte ambiental/real da floresta tropical, espaço sagrado, mapeado e dominado há milênios pela civilização ameríndia.

Algumas cenas dos autos tupi-medievais anchietanos (Anchieta, 1999ANCHIETA, José de. Teatro. Seleção e Tradução de Eduardo Navarro. São Paulo: Martins Fontes, 1999.), originadas no seio do discurso jesuítico, permitem vazamentos desestabilizadores da figura alegórica cerrada catequizadora, a partir de perspectivas da experiência religiosa que desbordam dos roteiros cênico-festivos. Quando, por exemplo, um Anjo aparece, em Recebimento do Padre Marçal Beliarte, como índio principal e mata um demônio de nome Macaxera, com a ibirapema estraçalhando seu crânio, local onde reside a anguera do inimigo, e logo a seguir muda de nome, ainda que seja Anhangupiara -“vocábulo criado a partir da aglutinação dos substantivos anhangá e jupiara”, cujo significado na tradução latinizante do tupi anchietano seria inimigo de anhangás, ou seja, de demônios -, o complexo canibal tupinambá está exposto num texto acionado por agentes e recebido por plateia ameríndia. Para completar, a acepção principal do nome Macaxera, que acaba de ser espiritualmente devorado pelo Anjo matador (eco do espírito cruzadista da religiosidade católica), designa a mandioca, a sua farinha, com a qual “[...] os jesuítas faziam pão e, na falta do trigo, a utilizavam na consagração eucarística” (Luz, 2010LUZ, Guilherme Amaral. Quando o verbo se faz carne: a festa da missão. In: MOSTAÇO, Edélcio (Org.). Para uma História Cultural do Teatro . Florianópolis; Jaraguá do Sul: Design Editora, 2010. P. 109-139., p. 132-133).

Bocas civilizacionais se entredevorando no ambiente geopolítico das festas de recebimento do século XVI: o anjo é matador de anhangás, mas o demônio é da mesma matéria - o nome-coisa mandioca - da hóstia redentora, corpo de Cristo transubstanciado. Trata-se de um inimigo/amigo - como ocorre nos processos de amizade e reinimização do prisioneiro sacrificado no rito antropofágico? Comer a superposição de estados heterogêneos Jesus/demônio/macaxera leva à guerra de vingança, à unyo mística, à inclusão transcendente, à exclusão imanente, ao corpo da Igreja, ao Paraíso, aos caosmos original, à terra-sem-mal? Eis alguns elementos da potência virtual em jogo na luta antropofágico-perspectivística que constitui a panteatralidade intensiva de nossa cena de origem.

Referências

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  • VIEIRA, Antônio. Sermões: Padre Antônio Vieira. Organização e Introdução de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2000.
  • 1
    Ideário que se encontra disseminado, principalmente, pelos manifestos da Poesia Pau-Brasil e Antropófago e pelos textos A crise da filosofia messiânica e A marcha das utopias.
  • 2
    Conceitos que serão definidos, direta ou indiretamente, ao longo deste artigo.
  • 3
    “Por serem capazes de ver as outras espécies como estas se veem – como humanas –, os xamãs amazônicos desempenham o papel de diplomatas, operando em uma arena cosmopolítica onde se defrontam os diferentes interesses dos existentes. Nesse sentido, a função do xamã amazônico não difere essencialmente da função do guerreiro. Ambos são comutadores ou condutores de perspectivas; o primeiro opera na zona interespecífica, o segundo na zona inter-humana ou societária” (Castro, 2015a, p. 171).
  • 4
    Panteatro é um termo concebido neste trabalho com o objetivo de funcionar em contraste à ideia de parateatro, utilizada por Décio de Almeida Prado (1993PRADO, Décio de Almeida. Teatro de Anchieta a Alencar. Col. Debates. São Paulo: Perspectiva , 1993.) em sua história canônica Teatro de Anchieta a Alencar. Analisaremos mais adiante o perfil geral de manuais historiográficos semelhantes a este. Importa, agora, explicitar que o termo parateatro abrange manifestações culturais com laivos antropológicos, teatrais e/ou performáticos que não fazem parte do que é instituído como sendo o conceito sociológico-estético de teatro brasileiro – desdobrado por Décio do clássico Formação da Literatura Brasileira, de Antônio Cândido –, categorizado enquanto tal somente quando há condições para que o complexo autor-texto-companhia teatral-palco-plateia-crítica seja estabelecido e movimentado na história.
  • 5
    André Gardel (2017GARDEL, André. O “rigoroso olhar índio” da criança, de Walter Benjamin e do xamã amazônico. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC, 14., 2017, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Universidade Estadual de Rio de Janeiro, 2017.), no artigo O “rigoroso olhar índio” da criança, de Walter Benjamin e do xamã amazônico, a partir de conceituação de Lévi-Strauss, escreve: “Essa ciência ‘primeira’, cujo repertório heteróclito e já elaborado, feito não de matérias-primas mas de ‘uma coleção de resíduos de obras humanas’ (Lévi-Strauss, 1989, p. 34), opera por meio de signos – portanto na tensão dinâmica entre a percepção/ imagem e o conceito –, que exigem que ‘uma certa densidade de humanidade seja incorporada ao real’ (Lévi-Strauss, 1989LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. Campinas: Papirus, 1989., p. 35). Afora isso, o que caracteriza a operacionalidade de tal ciência é o duplo movimento constante de inventariar e rearranjar os elementos fragmentários, (re) (des) funcionalizados que compõem o seu conjunto que, ‘mesmo sendo extenso, permanece limitado’ (Lévi-Strauss, 1989, p. 32). Uma epistemologia, com isso, sob o signo da variabilidade e da virtualidade, tanto pelo eixo paradigmático de seus elementos em si (elementos de origem, sob o viés de Benjamin) – procedentes de ambientes, contextos, funções, situações, usos, propriedades, relações outras –, quanto de possibilidades relacionais transversais múltiplas de composição e arranjo (semelhantes a constelações benjaminianas)”.
  • 6
    O estudo do contraponto entre os simulacros-fantasmas platônicos e os espíritos xapiripë – seres transparentes de potências da natureza e da vida em geral com os quais o diplomata cósmico xamã amazônico negocia –, constitutivos do xamanismo yanomami, merecem um estudo aprofundado que, esperamos, possamos fazer em artigo vindouro (Albert; Kopenawa, 2015ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A Queda do Céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.).
  • 7
    Segundo o poeta concretista Haroldo de Campos, no artigo Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira, o paradigma do nacionalismo ontológico é uma transposição, “para as nossas latitudes tropicais”, de “um episódio da metafísica ocidental da presença” e se baseia na ideia de evolução natural, de fundo “organicista-biológico”, já que busca “a origem e o itinerário” de um “Logos nacional pontual”. Tal episódio, chamado de “logocentrismo platonizante”, tem como finalidade capturar “o momento de encarnação do espírito (do Logos) nacional”, para, assim, pavimentar “o traçado retilíneo dessa logofania na história” (Campos, s/dCAMPOS, Haroldo de. Da Razão Antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. São Paulo: Perspectiva, s/d., p. 110-111).
  • 8
    Daí epítetos que Benjamin recebeu como os de rabino marxista, marxista gótico, marxista surrealista, marxista da Escola de Iena, que realçam, ainda, a sua condição de crítico-poeta, cujo pensamento analítico se dava também por elipses, imagens, alegorias.
  • 9
    Na Poética, Aristóteles compara o mythos a um ser vivo, a um belo animal, “cuja ‘beleza reside na extensão e na ordenação’” da tragédia. Para “subverter a estética clássica”, “onde se elabora uma concepção organicista da peça de teatro”, “Jean-Pierre Sarrazac opõe ao ‘belo animal’ da Poética ‘a estranha besta, metade gato, metade cordeiro’ descrita por Kafka” no texto Uma cruza, como sendo “a imagem de um drama moderno e contemporâneo” (Sarrazac, 2012, p. 41-42).
  • 10
    Assim Kafka descreve a Cruza metamorfoseante: “Tenho um curioso animal, metade gatinho, metade cordeiro. É uma herança de meu pai. Em minha companhia desenvolveu-se completamente; antes era mais cordeiro do que gato. Agora é metade um e metade outro. Do gato tem a cabeça e as unhas, do cordeiro o tamanho e a forma; de ambos os olhos, que são ariscos e faiscantes, a pele suave e ajustada ao corpo, os movimentos a um tempo saltitantes e furtivos” (Borges; Guerrero, 1982BORGES, Jorge Luís; GUERRERO, Margarita. O Livro dos Seres Imaginários. Tradução de Carmen Vera Cirne Lima. Porto Alegre: Globo, 1982., p. 50).
  • 11
    Podemos, por exemplo, pensar na disputa pela área do entorno do Teatro Oficina, estabelecida entre Zé Celso Martinez Correia e Sílvio Santos, como uma luta de perspectivas panteatrais, alegoria intensiva contemporânea da cena de origem do Teatro Brasileiro.
  • 12
    Mircea Eliade faz uma instigante afirmação que, no mínimo, merece também um novo artigo. Ao estudar o xamanismo na Grécia Arcaica, o aproxima de Apolo e não de Dioniso, o que, para o nosso trabalho, traria outra perspectiva de aproximação mítica entre as origens do teatro ocidental e as metamorfoses ameríndias (Eliade, 2002ELIADE, Mircea. O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes , 2002.).
  • 13
    No texto Palavras canibais, do livro Textos e tribos, Risério apresenta-nos a seguinte descrição, feita por Viveiros de Castro, dos cantos dos “magos notívagos que – com suas vozes, gestos e baforadas – dominam a madrugada aldeã” dos arawetés amazônicos: “‘O canto é uma função do sonho e/ ou da ingestão de tabaco. Normalmente, a geração de um canto segue esta sequência: um homem dorme, sonha, acorda, fuma, e começa a cantar, narrando o que viu e ouviu no sonho; quando os deuses e mortos querem vir à terra, então o canto se desdobra em uma narração da descida destes seres. Há uma progressão de intensidade, que nem sempre se completa: canto na rede; canto dentro de casa, com fumo e aray; saída para o pátio, com dança e canto que manifesta a presença de deuses e mortos na terra. As sessões de xamanismo alimentar ou de recondução de almas são o ponto máximo da sequência, quando o xamã sai de seu pátio e interfere sobre pessoas e objetos da aldeia’” (Risério, 1993RISÉRIO, Antônio. Palavras canibais. In: RISÉRIO, Antônio. Textos e Tribos: poéticas extraocidentais nos trópicos brasileiros. Rio de Janeiro: Imago, 1993. P. 149-181., p. 164; 165).
  • 14
    A noção de significante flutuante é originária da leitura que Lévi-Strauss faz, em Introdução à Obra de Marcel Mauss (2003MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2003), sublinhando que existe nos códigos uma superabundância de significantes em relação aos significados, uma vez que estes últimos são fixados progressivamente ao longo do uso da língua.
  • 15
    José Gil define assim os significados sem sentido referenciável: “No universo simbólico das sociedades primitivas pode observar-se uma situação estranha [...] tudo o que o homem sabia ter um sentido, não era por isso identificável, enquadrável nos sistemas de correspondências já elaboradas entre os signos e as coisas. Assim se cria uma situação paradoxal: há um sentido, há significado, mas é impossível atribuir-lhe um sentido referenciável e preciso (que torne a coisa não apenas significante mas conhecida)” (Gil, 1997GIL, José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1997., p. 16).
  • 16
    O xamã cumpre, dessa forma, o papel que Tadeusz Kantor, em seu Teatro da Morte, sugere para o artista: o de abandonar a roda, a tribo, a sociedade para vivenciar a morte, a catábase de heróis paradigmáticos como Orfeu/ Hércules/ Odisseu/ Eneias, para depois retornar e modificar o senso comum, a doxa, os hábitos e costumes (Kantor, 2008KANTOR, Tadeusz. O Teatro da Morte. Organização e Apresentação de Denis Bablet. São Paulo: Perspectiva , 2008.).
  • 17
    Local mágico/ concreto que se crê acessível na terra, no qual se vive sem esforço de sobrevivência – as flechas caçam por si sós, a lavoura e a colheita também não exigem trabalho, e todos dançam e cantam e se embriagam o tempo todo – junto com os seus ancestrais, os heróis civilizadores, os demiurgos.
  • 18
    “[...] reencontramos aqui a ideia nietzscheana da digestão como atividade mais espiritual do homem, já que, como afirmado em Assim falou Zaratustra, o espírito é estômago” (Ferraz, 2015FERRAZ, Maria Cristina Franco. Outras metafísicas: do cordeiro de Nietzsche ao jabuti antropófago. In: FERRAZ, Maria Cristina Franco. Ruminações: cultura letrada e dispersão hiperconectada. Rio de Janeiro: Garamond, 2015. P. 73-84., p. 88).
  • 19
    Não podemos deixar de traçar uma doce e saborosa analogia entre a fala do profeta Ezequiel e a resposta dada pelo chefe principal Cunhambebe a Hans Staden – após este último lhe perguntar, conforme consta em seu diário de prisioneiro dos tupinambás, como podia devorar um semelhante, pois somente um animal irracional faz isso –, pegando uma perna de um inimigo assada para comer e dizendo: não me amole, eu sou um jaguar, está gostoso (Staden, 2008STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasil: primeiros registros sobre o Brasil. Tradução de Angel Bojadsen. Introdução de Eduardo Bueno. Porto Alegre: L&PM, 2008. ).
  • 20
    Tradução livre nossa: eu é um outro. Trecho extraído de Lettre de Rimbaud à Paul Demeny. 15 de Maio de 1871 (Rimbaud, 2017RIMBAUD, Arthur. Lettre de Rimbaud à Paul Demeny - 15 mai 1871. In: RIMBAUD, Arthur. Arthur Rimbaud - Correspondance. 2017. Disponível em: <Disponível em: https://fr.wikisource.org/wiki/Lettre_de_Rimbaud_%C3%A0_Paul_Demeny_-_15_mai_1871 >. Acesso em: 30 jun. 2018.
    https://fr.wikisource.org/wiki/Lettre_de...
    ).
  • 21
    Anguera é uma das almas dos tupinambás, que dá agilidade e agudeza, perseguida, numa batalha espiritual de perspectivas que dura dias, após a morte do inimigo, pelo homicida no rito antropofágico. Era também a alma que “partia para enfrentar as provas de além-túmulo” e “cujo destino pode ser a terra-sem-mal ou o universo aquático e subterrâneo de anhanga” (Mussa, 2009MUSSA, Alberto. Meu Destino é ser Onça. Rio de Janeiro: Record, 2009., p. 185).
  • 22
    Grandes feiticeiros primordiais, geralmente heróis culturais civilizadores.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    15 Dez 2017
  • Aceito
    02 Jul 2018
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