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Amor, modo de glosar: sobre escavar as terras dos corpos e das línguas

L’Amour, la façon de gloser: sur creuser les bases des corps et des langues

Resumo:

A partir da imagem do ato de escavar em um poema de Paul Celan, suscita-se uma potência do amor como ação poética capaz de criar novos afetos e sujeitos políticos. Tal noção de amor, avessa à tradição romântica, faz tensionar o limite do indivíduo e tudo aquilo que o caracteriza como pessoa e, por isso, insere-se numa perspectiva crítica em relação ao humanismo e ao projeto teológico-político do capital neoliberal. Para isso, o pensamento de alguns autores aqui se faz reverberar, como é o caso de Nietzsche, Deleuze, Derrida e Safatle. Esse escavar, como ato amoroso, implica num exercício ético e estético sobre os estratos da língua e do corpo como forma de fazer fugir outras potências que fazem marulhar uma política do inumano.

Palavras-chave:
Amor; Língua; Corpo; Glossolalia; Política

Résumé:

À partir de l’image de l’acte de creuser dans un poème de Paul Celan, une puissance d’amour est suscitée en tant qu’action poétique capable de créer de nouvelles affections et sujets politiques. Telle notion d’amour, opposé à la tradition romantique fait tension à la limite de l’individu et tout ce qui le caractérise comme personne. Pour cela, cette notion est insérée dans une perspective critique en relation à l’humanisme et au projet théologique-politique du capital néolibéral. Par conséquent, la pensée de quelques auteurs ici fait réverbérer, c’est le cas de Nietzche, Deleuze, Derrida et Safatle. Cet acte de creuser, en tant qu’acte amoureux implique un exercice éthique et esthétique sur les substrats de la langue et du corps comme forme de faire fuir les autres puissances qui font clapotis une politique inhumaine.

Mots-clés:
Amour; Langue; Corps; Glossolalie; Politique

Abstract:

The act of digging, as pictured in a Paul Celan’s poem, figures as the starting point to evoke the potential of love as a poetic act able to form new affects and political subjects. Such notion about love, contrary to the romantic tradition, leads to a tension between the individual borders and all that makes him a person, in the perspective of a criticism of the humanist perception and of the theological-political project of the neoliberal capital. For this provocative intent, the ideas of some authors, as Nietzsche, Deleuze, Derrida and Safatle, reverberate here. It is a kind of digging that, as the loving act itself, heads to an ethical and aesthetic exercise involving the languages and bodies’ stratum as a way of making escape other potentialities swashing a policy of the inhumane.

Keywords:
Love; Language; Body; Glossolalia; Politics

Consciência cósmica. Já refletiram sobre o cosmos, não? Tem o céu, tem a Terra, tem o sol, o vento sopra. De onde o vento sopra? Onde fica aquele sol? Tudo tem nome. Tem o nome terráqueo, homem terrestre. Qualquer coisinha e já está calculando. Melhor que o terráqueo, quem sabe, o homem cósmico, extraterrestre. Não, extraterrestre não, isso não existe. Ultimamente, tenho pensado só no cosmos. Não sejam terráqueos para sempre, se tornem extraterrestres. Não digo isso em palavras, mas no coração. Fico me dizendo para me tornar um extraterrestre, não um homem da Terra. O princípio do cosmos... não, deve haver algo antes do homem surgir. Quando? Desde quando começou? O princípio do mundo, o princípio do cosmos... quando penso nesses princípios não entendo mais nada (Kazuo Ohno, 2016OHNO, Kazuo. Treino e(m) poema. São Paulo: N-1 edições, 2016., p. 148).

Amar, modo de escavar

Falemos do amor uma vez mais, pensemos sobre isso, regurgitemos, tentemos, quem sabe, fazer fugir potências que possibilitem outros mundos para que ele floresça de fato. Deixemos nossos corpos serem devorados pela experiência de deixá-lo nos atravessar. Mas esqueçamos a história que nos foi contada sobre o amor, a cultura que nos foi dada a seu respeito, o que nas línguas sobre ele foi discursado, os feitos que por ele, pretensamente, foram exercidos, e todos os valores usurpados que edificaram essa fortaleza humana histórico-político-espiritual que conhecemos sob a designação de amor. Esvaziemos a noção de amor que herdamos, toda a sua corte, seus ritos, seus pares, seu glamour, seu cheiro, seu sexo, seu gênero, seus contratos, enfim, esvaziemo-nos disso um pouco e cada vez mais. Assim, ainda haverá amor? É possível amar assim? De que amor estamos falando? Comecemos com um comentário de Vladimir Safatle (2015SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos - Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica , 2015., p. 255) sobre um poema de Paul Celan, que fala sobre como o vínculo entre os amantes pode ser gerado:

Mas, para que os anéis brotem, é necessário que a língua toque o impossível, que ela conjugue de uma forma que a gramática não permite conjugar: ich grab mich, eu me escavo. Nunca a língua viu ação semelhante. Eu me escavo porque há terra em mim, a mesma terra que soterra você. E a primeira escavação é a da língua que precisa deixar de comunicar para passar a escavar a si mesma, desmontar suas próprias regras como quem desconstrói casas na superfície para encontrar outros vestígios de outros tempos no subsolo. É só através de uma torção da língua que os amantes produzem aquilo de que são capazes.

Antes de mais nada, é importante situar o livro de Safatle, que aponta para uma necessidade de que nós, seres humanos, sejamos despossuídos e despersonalizados de valores vinculados ao modus operandi da máquina capitalista e sua produção de subjetividades, de forma a engendrar outros afetos políticos para inauditas experiências contemporâneas. Trata-se de tocar e tensionar o limite do indivíduo e tudo aquilo que o caracteriza como pessoa. Por isso, o amor apresentado por Celan (2015, p. 253) é “como o gesto elementar de uma repetição bruta”, pois o ato de escavar, nesse contexto, é exercido numa atemporalidade. Tal noção de amor nos levaria a passar “De alguém que ainda é uma pessoa, a respeito da qual se pode dizer algo, a ninguém: este, despossuído de predicados; este, que pergunta para onde você foi se não há lugar para ir” (Safatle, 2015, p. 254). Há aqui uma urgente e necessária perda do indivíduo. Lutar para ser ninguém.

Já em Grande Hotel Abismo, Safatle, remetendo à crítica a uma noção humanista do mundo, fala da importância de se desfazer de tudo aquilo que é humano, tudo aquilo que constitui a figura da pessoa humana. Pois busca-se uma potência política no interior do inumano. Adeus ao humanismo. Há claramente ecos de Friedrich Nietzsche (2011NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.), quando ele diz no Zaratustra que o ser humano é algo que deve ser superado, assim como de Gilles Deleuze e Félix Guattari (2000DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia . v. 1. São Paulo: Editora 34 , 2000., p. 49), para quem “[...] não existe amor que não seja um exercício de despersonalização sobre um corpo sem órgãos a ser formado”. A noção de homem é uma invenção cultural, que é perpassada pela história e pelas línguas, delimitando claramente um construto que o separa da natureza e da animalidade. O homem soa como uma figura soberana, capaz de designar todo o cosmos. Ele está num lugar privilegiado diante de toda a existência. A metafísica o serve como serve a própria noção de Deus.

A própria ideia do humanismo pressupõe um “astuto projeto teológico-político” (Deleuze apud Safatle, 2012 SAFATLE, Vladimir. Grande Hotel Abismo: por uma reconstrução da teoria do reconhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2012., p. 226), pois, antes de mais nada, estamos falando da forma humana, e de toda uma ordem de predicados que a perfaz, ou seja, tal ideia de humanidade está impregnada da imagem do homem a fim de demover todo o Outro absoluto que não é humano. Aqui nos deparamos com uma ideia extremamente limitada de alteridade, sobretudo porque tal alteridade também exclui outros humanos taxados como a-normativos. Mas o que o amor tem a ver com isso tudo? A crítica dessa filosofia, que implica o inumano como fonte de inusitadas experiências na política, vai de encontro com a noção de amor romântico e toda sua herança capciosa. Pois tal noção acaba por encerrar valores vinculados à posse, estimulando a tal soberania do indivíduo, sobretudo de um individualismo moral, que muito serve aos planos do capitalismo que se desenvolveu ao longo de séculos como máquina de apropriação e expropriação de subjetividades. Antropofagia e regurgitofagia sofisticadas. Importante deixar claro que toda uma arquitetura jurídica está implicada na ideia de amor romântico, pois a posse sobre coisas e pessoas é um fundamento contratual do pacto amoroso. Isso serve sobremaneira ao mercado do capital. O amor é um grande negócio! Vide o dia dos namorados, os casamentos, os divórcios, as bodas de todas as ordens, as terapias de casal, a repercussão dos crimes passionais, as histórias que nos contam no cinema, nos livros e toda a moralidade perpassada pela substância amorosamente financiada pelo sistema nosso de cada dia. O romantismo implicaria na soberania individual e no individualismo moral, na autenticidade de sentimentos e nos interesses contratuais, assim como em processos de reprodução material da vida e consumo capitalista. Ética do consumo. Ética do empreendedorismo de si. Aqui ninguém ama sem se apropriar ou ser expropriado pelo símbolo do capital: lei do amor! Um embate profundo em face dessa forma de se efetivar afetos políticos a partir de uma lógica neoliberal soa urgente, sobretudo quando se observa a profusão de um neoliberalismo individual que se efetiva numa esfera íntima das relações. O inimigo da nossa potência age micropoliticamente. Ele é molecular.

Enfim, a crítica ao humanismo implica um adeus à essa natureza humana inventada, afinal de contas também somos natureza. E aqui o amor pode ser visto como mineral, vegetal, animal, cósmico. E, de fato, não somos tudo isso? Ainda que os nossos discursos preponderem sobre os atos da vida, ainda que sejamos contratualistas e tenhamos uma dificuldade imensa em nos descontratualizar, pois isso implica operar a vida de forma coercitiva e controlada, ainda que achemos uma pedra algo inorgânico, morto, inerte, ainda que existam todos os aindas, somos essa poeira, talvez a poeira do ao pó retornarás, mas nada cristão, pois o religare aqui é de uma alteridade singular, molecular, imperceptível, para usar o léxico de Deleuze e insinuar o exercício da potência de existir de Baruch Spinoza em sua Ética.

Sejamos inumanos, princípio radical, arrancar de si todo o moralismo existencial, exercer uma ética cruel que pode soar como princípios de um amor fati nietzscheano, aceitar o que vem e o que vai, agindo por uma causa necessária, que também faz reverberar o wu wei do taoísmo chinês antigo, a ação pela não-ação, assim como a natureza que nos tornamos como ação de “[...] sínteses passivas maquinadas pelos objetos parciais, pelos fluxos e pelos corpos, e que funciona como unidade de produção” (Deleuze apud Safatle, 2015SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos - Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica , 2015., p. 268). Abertura ao Outro absoluto que, lacanianamente, soa como

[...] uma maneira de dizer que o amor não é apenas abertura à alteridade de uma outra pessoa, que no fundo seria ‘como nós’. Ele é abertura a uma alteridade mais radical, pois abertura àquilo que, em nós, nos destitui da condição de pessoas (Safatle, 2015SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos - Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica , 2015., p. 267).

Vamos, pois, deixar que nossa humanidade fracasse, fracassar como pessoa é perder o chão e lançar-se naquele abismo insólito habitado por novas formas que nos desarrazoam, nos desequilibram, nos despossuem. É o fracassar cada vez melhor de Samuel Beckett (2010BECKETT, Samuel. Nohow On. New York: Grove Press, 2010.)1 1 No matter. Try again. Fail again. Fail better in Nohow. . Fracassar valores que implicam aquela moldura para uma coerção da vida, valores de plástico. Tocar fogo. Isso é como ser arrebatado por uma máquina diabólica do Espírito Santo, tudo queima e é avariado por línguas estranhas de fogo. Restando as cinzas, é sob elas que resta, sobra, soçobrado o ideal do indivíduo. Fracassemos como pessoas! Máquina de moer o medo. Essa é uma real possibilidade do amor, esse tal amor que nos despossui e nos desampara, caminho para a transvaloração de todos os valores anunciado por Nietzsche2 2 A ideia de transvaloração é desenvolvida por Nietzsche praticamente em toda a sua obra, ganhando maior densidade e cada vez mais intensidade no período que se segue de 1882 a 1888. .

Mas voltemos à reflexão sobre o poema de Celan, ainda temos o que escavar ali. E escavar é uma prática de esvaziamento de si. Fazer vazio. Agir vazio. E preenchê-lo numa entrega desmedida, porosa. Você não o faz de fato, pois algo exerce sobre você, uma potência que lhe desarrazoa, é a tal zona de intensidades3 3 Deleuze e Guattari perpassam de forma singular este texto e, por vezes, transitam por aqui termos como variação contínua, Corpo sem Órgãos, fenômenos de borda, ritornelo, entre outros, sobretudo da obra Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia, que fazem referência direta a eles. Por opção estilística, optamos, sempre que possível, evitar as notas de forma a permitir uma leitura mais fluida. As obras consultadas seguem no rol das referências. em que se possibilita transitar algo, isso arranca sua identidade, faz fugir você de si. Fugido de si é uma alteridade mais radical que se abre, como a possibilidade do amor segundo Celan. As rotas de fuga possibilitam a variação contínua: experimento, logo não sou! Free jazz. Aqui jazz algo que se alastra, multiplicando-se em todas as direções. Não se devém algo, há apenas o devir. Eu me escavo soa como um princípio ético diante da vida, assim como é um princípio ético criar para si um corpo sem órgãos, ou o exercício das potências com seus afetos e afecções em Spinoza, ou mesmo o amor fati de Nietzsche, como já anunciado aqui. Variações menores de uma ética. Quando me escavo assim, como atitude ímpar do exercício de um amor insólito, é o nada que brota diante de mim, em mim, um nada sem pessoa dentro, sem aquela humanidade engendrada ao longo dos séculos, sem aquele romantismo coercitivo. Trata-se de um nada de onde brotam os ninguéns possíveis para um mundo vasto despersonalizado, aberto a outras táticas, práticas, outras fugas, outros afetos políticos. ‘Mais amor por favor’ é terra de ninguém, lambuzando os lençóis da vida, libertando gritos, afora, adentro, corações suados em coquetel molotov, anunciando incêndios, terrorismo poético, resistência, micropolítica.

Delírio das línguas

O poema de Celan fala de uma ação repetida: escavar. Aqui o amor é ação. Escavar vem do latim ex-, para fora, mais cavare, de cavus, “côncavo, que apresenta uma parte vazia, vazio, com material retirado”4 4 Disponível em: <http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/escavar/>. Acesso em: 09 jan. 2017. . Que terra é essa que se retira e que espaço é esse que se cria? Poética do espaço. Espaço vazio. Nadas. O amor como movimento de subtração de algo. Esse algo se acumulou, culturalmente, historicamente, linguisticamente, como uma extensa mitologia dos amantes. Os mitos foram criados e capitalizados. As terras da pessoa, dos eus. Os enamorados forjados na qualidade de indivíduos. Forjados pelas palavras, pela sintaxe do que é dizer ‘eu te amo’, pela profusão dos significados, das interpretações. Mas, para além ou aquém de tudo isso, há que se escavar para possibilitar o vazio. Operação poética sobre a terra, e a terra é pedregulhosa, cheia de sedimentos, é estratificada, muitos minerais, ossaturas, fósseis. Escavar é possibilitar vazios. Vazios de si. Retirar a pessoa que somos, a pessoa que nos foi posta, incutida e cultivada, a humanidade que teima em grudar em nossos ossos. Tirar dessa carne nossa de cada dia o ranço dos discursos, o poderio determinante da língua e as limitações da linguagem. Será possível? Se algo precisa ser retirado a partir de uma escavação tão singular, é porque em algum nível algo nos foi expropriado, seja por um juízo divino, como apontou Antonin Artaud5 5 Pour en finir avec le jugement de dieu, obra radiofônica de Artaud (2004). , seja pela cultura, enfim, por uma tal regra engendrada que tornou-se onipotente e onipresente.

Por que a primeira ação para se amar deve ser uma torção na língua? A língua é um construto que serviu e serve para nos distanciar profundamente da natureza e dos animais, pois pretensamente ela sintetiza uma capacidade única de se elucubrar sobre o mundo. Autoconsciência. Linguagem humana. A língua nos diferencia, nos aparta, nos ascende aos degraus da escala evolutiva, nos torna controladores das coisas, dá-nos a possibilidade de nomear o cosmos. Tal língua nos faz humanos. Essa tal língua também tensiona a linguagem humana, nos faz mergulhar nos conceitos, em processos de significação, de produção de sentido, semântica, discursos. Um incorporal, chamado de ‘o exprimível’ pelos estoicos6 6 Ver A teoria dos incorporais no estoicismo antigo de Bréhier (2012). , permeia os corpos, a tudo perpassa, a tudo parece atravessar. Não é nossa carne, mas parece estar tão emaranhado nela, como é o caso da palavra ‘amor’, o ‘eu te amo’, e toda a proliferação que os séculos de hermenêutica fizeram deitar sobre eles. Torcer a língua sempre colocou o ser humano à berlinda de não mais ser humano. Podemos dar o exemplo dos místicos, de muitos poetas, artistas, esquizofrênicos e toda a sorte de gentes que pactuaram com fenômenos de borda, as bordas da linguagem, as bordas de si, as bordas da humanidade7 7 Para adensar um pouco mais a ideia de Deleuze e Guattari acerca dos fenômenos de borda, evoco Jacques Derrida (2002) e sua outra lógica do limite, tratado em seu livro O animal que logo sou, quando ele se refere “[...] à experiência propriamente transgressal, se não transgressiva, de uma limitrofia [...] o que se avizinha dos limites mas também o que o alimenta, se alimenta, se mantém, se cria e se educa, se cultiva nas margens do limite”. .

Deleuze e Guattari falavam da necessidade de rupturas a-significantes para criar para si um corpo sem órgãos. Um movimento de desarticulação do corpo em consonância com aspectos mais livres da produção linguística. O fora da linguagem. Esse seria o trabalho do escritor, pois “Escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir” (Deleuze; Guattari, 2000, p. 13), o que também denota uma operação sobre a terra, o território da linguagem, no caso, a partir de seu tensor: a língua. Engendrar uma outra língua dentro da língua. Intrusão. Ser estrangeiro de si, pois “[...] assim como a nova língua não é exterior à língua, tampouco o limite assintático é exterior à linguagem: ela é o fora da linguagem, não está fora dela” (Deleuze, 2004, p. 128), isso demanda um ato poético. Um ato literário. E Celan possibilita uma “forma literária de um modo de acontecimento por despossessão” (Safatle, 2015SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos - Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica , 2015., p. 255).

A torção da língua, ou o fora da linguagem anunciado por Deleuze, pressupõe uma torção do pensamento, que certamente implicaria uma torção dos corpos que fazem mundo por meio do desejo. Porque torcer a língua implica torcer o mundo, torcer uma lógica dada, implícita, encarnada. Torcer aquilo que concatena e redimensiona o que chamamos de realidade, aquilo que se apresenta como algo aparentemente inelutável. Porque trata-se antes de mais nada de um potente exercício poético, e tal exercício faz delirar a intelecção, os corpos, o como discursamos o mundo, pois, antes de mais nada, trata-se em ser estrangeiro dentro de seu próprio território cultural. Fugir dentro do contexto da linguagem é fugir para o fora disso. Ainda estamos implicados. Todos os movimentos poéticos flertam com essa propriedade de desagregação ou desarrazoamento da língua como tensor da linguagem, isso é um potencial glossolálico por excelência. Isso pode ser um exercício literário como deveria ser um exercício do desejo num sentido mais amplo. Não há indivíduo aqui, porque deixa-se passar aquilo que marulha, marulhou, marulhará um coletivo, por isso é uma ação de despossessão e despersonalização.

Na obra Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia, Deleuze e Guattari insistiram na potência dessa linguagem que marulha uma coletividade, o social implicado nas ‘transformações incorpóreas’ sofridas diante da linguagem, que, no entanto, diz respeito aos corpos, pois são eles que se transformam. Quando eles dizem que toda a linguagem é discurso indireto, sobretudo discurso indireto livre, é porque a linguagem não é personalizada, não é servidão ao indivíduo, tampouco decalque do eu. Na verdade, ela faz fugir secreções inconscientes, massas de vozes disformes, estranhas heterogeneidades. Acessar tal discurso indireto, impessoal, seria como uma “faculdade mediúnica na verdade, glossolálica ou xenoglóssica” (Deleuze; Guattari, 2002DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka para uma Literatura Menor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002., p. 25).

Escava-se até não ser mais ninguém, assim “[...] florescemos sendo nada, tendo a coragem de levar o ser ao limite do puramente indeterminado” (Safatle, 2015SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos - Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica , 2015., p. 260), pois esse seria o amor necessário e urgente para nossa época, um amor contemporâneo capaz de tocar o impossível. Toda uma filosofia contemporânea que falou sobre essa tal ‘torção da língua’ ou o seu ‘fora’, na maioria das vezes, tratou-a como uma forma de expressão, uma forma literária. O ato poético seria esse ato estético que aponta para uma possibilidade ética. Uma maquinação do desejo num devir literário. ‘Eu te amo’ precisa de uma intervenção violenta, bruta, em que o amor não passe pelo crivo da interpretação, pelo rio das significações, pelo sentido formatado pela língua, há que se experimentar, essa é a tensão. O jagunço Riobaldo, narrador e personagem central de Grande Sertão: Veredas, é arrastado por algo que o entremistura a Diadorim, não há gênero aqui, há pulsão criativa, uma iniciação singular, um pacto. Riobaldo torna-se uma potência política, um circuito de afetos que o coloca em condições de experimentar um embate necessário com o mundo, com a vida. É guerra entrincheirada e emaranhada nos desvios e fugas da língua. Os recônditos mais secretos do sertão são os recônditos mais secretos de si, que são as potências mais delirantes da linguagem. Em Guimarães Rosa (2006ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.) a literatura é delírio. Tornar-se Urutum Branco é um movimento de despersonalização de Riobaldo, pois “[...] é no ponto mais elevado dessa despersonalização que alguém pode ser nomeado, recebe seu nome ou seu prenome, adquire a discernibilidade mais intensa na apreensão instantânea dos múltiplos que lhe pertencem e aos quais ele pertence” (Deleuze; Guattari, 2000DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia . v. 1. São Paulo: Editora 34 , 2000., p. 49). Esse nome foi dado em núpcias com o indiferenciado, com o Outro absoluto, escavar a língua para encontrar o diabo. Pacto.

A língua como tensor da linguagem possibilita certa morte do indivíduo. Pois a língua é um território em que a política das posses constitui os ‘eus’, as pessoas, pois ‘eu’, ‘meu’, ‘posso’, ‘quero’, são índices que amam possuir, psicologia do ser, teologia do indivíduo. Tudo aquilo que nos perfaz na qualidade de pessoa humana é perpassado pela onipresença da língua na sua relação com os limites da linguagem. Ser ninguém é um passo político corajoso, pois o amor como o exercício de uma potência desagregadora daquilo que nos possui linguisticamente

[...] é a invenção de um circuito de afetos inaudito, que gera alianças em meio a despossessões e à violência da despersonalização. Circuito de afetos porque o amor é uma circulação que produz relações que têm seu próprio tempo, um tempo que não se contará entre instante e duração (Safatle, 2015SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos - Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica , 2015., p. 255).

Não se trata daquilo que amo, não se trata do ‘meu’ amor ou do amor de ‘alguém’, trata-se de uma convulsão cósmica, partilhada, devir-amor, pois é um coletivo que nos atravessa e tal coletividade é de uma multiplicidade avassaladora, é legião, turbilhão, a tal alteridade radical, inumana, uma zona indiscernível, “[...] uma sintaxe em devir, uma criação de sintaxe que faz a língua estrangeira na língua, uma gramática em desequilíbrio” (Deleuze, 2004DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 2004., p. 127). O tempo dos amantes naquela inelutável escavação, exercício de potências, revolver a terra de minhocas bizarras e luzidias, os territórios, as carnes, os corpos, os sangues, os ossos, onde transitam os vermes de uma atemporalidade que não se pode mensurar. Os vermes também escavam no poema de Celan. Aqui não há tempo histórico. Há um con-tempo-râneo ético-estético-político se proliferando.

A língua e a linguagem estão tão intrinsecamente ligadas à noção de humanidade que pactuar com o diabo aí é como perder-se num perigoso abismo sem fim. Lembremos o exemplo da carta de Lord Chandos à Francis Bacon, em que Hugo von Hofmannsthal (2008HOFMANNSTHAL, Hugo von. Una Carta (De Lord Philip Chandos a Sir Francis Bacon). Valencia: Pre-Textos, 2008.) toca justamente o limite da língua e sua tensão com a linguagem. A desagregação linguística da qual sofre Chandos é um tête-à-tête com a loucura, uma aproximação da natureza selvagem e a perda de todos os confortos que a humanidade nos relega. Um desamparo desesperador, um tal vazio que consome tudo aquilo que lhe predica e lhe identifica.

Retomando à necessidade de torção da língua, Deleuze chamou uma tal operação poética de fazer a língua gaguejar. Gaguejar na própria língua, fazendo um movimento de variação contínua sobre seus estratos. Trata-se de um uso menor8 8 O conceito de menoridade muito recorrente na obra de Deleuze e Guattari foi abordado de forma mais direta em Kafka para uma literatura menor (2002). . Minorar a língua é fazê-la fugir. Os escritores “fazem-na deslizar numa linha de feitiçaria e não param de desequilibrá-la” (Deleuze, 2004, p. 124). Aqui, para Deleuze, a língua não se confunde com a fala, pois trata-se de “uma linguagem afetiva, intensiva, e não mais uma afecção daquele que fala” (Deleuze, 2004, p. 122). Pôr em movimento, possibilitar devir, pois não se para nunca de experimentar, assim o escritor “faz da gagueira um afecto da língua, não uma afecção da fala” (Deleuze, 2004, p. 125). Ao mesmo tempo em que o filósofo francês fala da possibilidade de não se confundir o gaguejar da língua com o processo da fala, ele indica as variadas possibilidades sonoras a partir dessa operação poética, “bloco sonoro último, um único sopro no limite do grito” (Deleuze, 2004, p. 125). As palavras-sopro de Artaud9 9 Tema também tratado por Derrida em A escritura e a diferença (2009). . A gagueira como potência poética insinua uma materialidade corporal, parece incitar uma voz. Sintaxe desviante forçando cópulas com os limites da linguagem. O amor invadindo outros estratos. Falemos disso mais adiante.

Porque escavar a língua é fazer fugir corpos e vozes

É possível avançar essa reflexão de um escavar rumo ao amor num infindável gaguejar da língua, fazendo de um ato poético a instauração de outros contextos e afetos políticos por meio de uma operação literária? E a estética dos corpos vivos em performance? A torção da língua como ato poético literário implica limites a uma aisthesis. Ainda que tal ato, como potência incorporal, possibilite a transformação dos corpos. Afinal de contas a língua e as potências da linguagem implicam corpos políticos, que são corpos sonoros, sons, vozes, materialidades, corporeidades, o sensível, e flertam com uma noção mais porosa de voz expandida, que implica pensar a vocalidade a partir de afetos e afecções desse próprio corpo, dos limites da linguagem e das potências do pensamento. O que pode o corpo no ato poético em perfomance? A afirmação de Spinoza, ainda no séc. XVI, muito atual por sinal, parece apontar o lume para uma tal poética: “O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo [...]” (Spinoza, 2013SPINOZA, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013., p. 167), pois o corpo é imensuravelmente maior que o conhecimento que dele temos. Há muito o que se escavar. E, partindo dessa poética do sensível, o que pode a voz como ato poético que faz a língua desestabilizar? ‘Eu te amo’ é um enunciado. Ao mesmo tempo, ainda que a língua e seus processos de construção e apreensão de sentidos e significados, o chamado incorporal exprimível, permeie o mundo, as coisas, enfim os corpos, há que se perguntar se a interferência de tais afetos não implicaria outros corpos políticos em ação poética. Ação como manifestação sensorial, como potência que instiga os sentidos. O corpo está aí como zona de intensidades, ele partilha da mesma substância do pensamento nos processos de intelecção, esse é o ensinamento de Spinoza. O corpo é o estrangeiro maior da estética, é ele quem vocaliza, quem escreve, pois se escreve a partir da substância que se é, pelo exercício das potências. Ele mesmo um escavável, um despersonalizável, um despossuível. O ato poético exige sim novos corpos em devires contínuos de experimentação.

Partindo dessa possibilidade do amor em Celan, não se pode amar sem uma desagregação corporal. Sem uma poética do corpo na sua apreensão e produção de sentidos. Demais, o território da estética é profícuo para esse conjunto de práticas de despossessão e despersonalização. A língua perpassa os nervos, os ossos, o sangue, e isso importa uma integridade maior de quem exercita o ato da criação. Escavar, inclusive, deveria ser a prática perene do artista, movimento amoroso, que possibilita os vazios e todos os anéis da criação. Escavar até chegar ao tutano insólito dos ossos, das pedras, gordura que se perdeu do tempo, uma gordura para ungir os corpos amantes e criadores, untar todos os sentidos que implicam a experiência estética. Pois o artista escava desamparado, ele só avança quando aquele euzinho de cada dia se perde cada vez mais. O artista seria um amante natural. Poroso à vida. Vetor de urgentes corpos políticos. Avatar do inumano. Que língua ele haveria de falar? O que haveria de transitar por sua voz? Como haveria de escrever? O que deixar passar entre as moléculas do seu corpo? Uma onda irrefreável tende a tomá-lo num nevrálgico devir imperceptível.

Deixar que algo rumore, trespassando-o, que uma coletividade, uma multiplicidade exerça sobre ele. Glossolalia10 10 Uma abordagem do conceito foi desenvolvida na dissertação de mestrado diferença voz glossolalia artaud performance (Almeida, 2015). . Inclusive, a origem do termo glossa, do qual deriva o vocábulo glosa e o verbo glosar, refere-se, a princípio, ao contexto escrito. No entanto, sua potência desarrazoadora contaminou o território das enunciações, das vozes, dos corpos múltiplos, possibilitando que essa tal torção da língua seja uma torção integral de si. A afirmação da crueldade em Artaud. O rio das línguas que marulham a linguagem, corpos derretidos em pura molecularidade, micropolítica de ossuários, distorção sanguíneo-linguística. Assim, a voz e a dimensão do corpo, fluxo aisthesis, são terras profícuas para fazer vingar esse amor do qual nos aponta Celan.

Importa pensar como a glossolalia faz passar algo de inumano em seu conjunto de práticas. Não há humanismo na glossolalia, ela despossui a pessoa de seus atributos de pensador coeso do real, de pensador coeso de si, interpretador do mundo, condicionador do mundo, despossui a pessoa de elemento fundamental organizador da língua e da linguagem, lança-a a uma natureza mais vasta que os círculos criados e determinados pela humanidade. É como aprender a andar, a falar, mas como um exercício de si inteiramente renovado, pular no abismo da experiência, permitir-se vocalizar uma língua ininteligível e tilintante. Lembremo-nos da experiência de Artaud que, depois de sofrer várias sessões de eletrochoque, tinha a mente, o cérebro e seus suportes linguísticos, humanos e afetivos, transformados em mingau. Não sabia mais desenhar, nem escrever, nem concatenar os pensamentos. Nesse contexto ele usou essa experiência desarrazoadora para exercer outras potências de fazer mundo, a despossessão das formas plásticas nos desenhos, a despossessão da gramática em sua escrita e a despossessão da fala em sua voz. Que tipo de produção de desejo se espalha e se faz quando sua mente vira mingau? Foi nessa época, internado em Rodez, em fins da década de 30 até 1945, que sua produção ganhou um tônus perplexamente desmedido. Artaud foi um desmesurador das fronteiras da linguagem. Borrou tudo. Virou borrão. E o borrão em sua voz, a partir de uma torção linguística, era glossolalia, maquinada no desejo de corromper a língua de si mesma, torná-la uma estrangeira em fuga, irradiando outros afetos políticos.

Certamente não precisamos experimentar um tal limite extremo para exercermos tais potências, pois temos disponível uma tal liberdade que nos exige um outro tipo de entrega, necessariamente intensa e impetuosa, cuja violência, de forma singular, pode ferir princípios morais, personalistas, humanistas, capitalistas, muitas vezes entranhados em nossa práxis. Tal violência soa como um princípio amoral. Perder a medida de si. Tal desmedida faz escapar aquela natureza recôndita que a pele deixa entrar, deixa sair, regulando em prudência diabólica. A arte das doses de Deleuze e Guattari. A glossolalia poderia ser, assim, um potencial desarrazoador da experiência. Síncope, linha de fuga, sair da precisão do sulco, delirium. Amor e glossa. Se aceitarmos o fato de que o amor como ato poético da literatura pressupõe uma torção dos sulcos linguísticos e que a glossa é um termo que se relaciona à linguagem, à língua, à voz e ao pensamento, não deveríamos nos perguntar em que língua há de falar o amor? Há linguagem possível para um tal amor? A voz do impossível teria ressonâncias com seus princípios amorais? Qual o corpo possível para esse tal amor? Bastaria um ato poético literário para que o amor vingasse entre nós? Será? A aisthesis, num sentido mais amplo, na qualidade de encontro inaudito de todos os sentidos e percepções que nos perpassam na potência artística, não seria um vetor das experiências de um tal amor? Até porque esse ato poético literário não é esse incorporal que perpassa os corpos todos? Como seria escavar esses corpos rumo ao brotar dos anéis? Como dizer ‘eu te amo’ numa tal torção da língua? Como se movimentar amorosamente numa tal torção dos corpos? Experimento, logo não logos! Ao menos não absolutamente logos.

Se “O amor é o espaço da desmesura, pois é construção de vínculos através do que não se mede, do que se gasta em um dispêndio sem utilidade, do que nos lembra que ‘o gozo é aquilo que serve pra nada’” (Safatle, 2015SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos - Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica , 2015., p. 265), é porque essa inutilidade do gozo é algo que serve ao ato poético, num verdadeiro desserviço às instituições, contagiando as moralidades, pois o gozo é. É-se gozo. Serve, sobretudo, a um amor despudorado, sem juízos. No contexto desse amor, os amantes gozam e gemem em línguas estranhas, desmedida vocal, devir glossolálico, pois trata-se de um simples querer dizer, sem nada a dizer (Certeau, 2013CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, XVI-XVII siècle II. Paris: Gallimard, 2013.), uma desmedida da língua tensionando o corpo da linguagem, espreitando e convergindo para os corpos licorosos dos amantes. Pura afirmação. O ‘sim’ nitzscheano11 11 A afirmação é um exercício ético na obra de Nietzsche e foi elegantemente abordado por Deleuze em seu livro sobre o filósofo alemão. . Escavar as terras da voz, as terras dos corpos, as terras das linguagens e da língua, escavar todo estrato dado, porque escavar é revigorar de vazios toda a imensidão escavável, ato bruto, matéria-prima, alquimias, desvarios, criação. Até o limite do gozo em desperdício que é pura desmesura. Vamos todos gozar! Vamos todos glosar! Vamos todos glossar!

Estamos a falar de uma experiência limiar, uma anomalia que se processa como um fenômeno abissal, algo que está a bordejar, a adensar os limites. Escavar assim pressupõe um abandono, o afeto do desamparo discutido por Safatle, como meio de incitar novos afetos políticos. Perde-se o rosto, a família, a cultura, a tolerância, os significados, pois trata-se de uma resiliência inumana. Escavar assim é coisa esquizo. Trazer o anômalo para a voz, para o corpo, porque torcer a língua reverbera o sensível. Trazer para si e para a práxis essa glossa, aproximá-la da polpa quente da criação e perder-se em sua natureza que nos expropria de nós mesmos, pois “O anômalo não é nem indivíduo nem espécie, ele abriga apenas afectos, não comporta nem sentimentos familiares ou subjetivados, nem características específicas ou significativas. Tanto as ternuras quanto as classificações humanas lhe são estrangeiras” (Deleuze; Guattari, 2005DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia. v. 4. São Paulo: Editora 34 , 2005., p. 27). Estamos ainda a falar de amor? É isso mesmo, uma língua bruxa desarrazoando seus signos e sua retórica? Os corpos podem amar assim, permeados por esse incorporal transbordante, despossuidor, despersonalizador? Escavar é tanto assim, para todos os lados, uma multiplicidade? Amar assim, corrompendo a língua, implodindo a linguagem, dando passagem para línguas diabólicas e desconhecidas, praticando corpos para uma performance sem indivíduos, laceando os limites da criação, perturbando as bordas, suscitando uma limitrofia, arreganhando os egos, sucumbindo os eus, atrofiando o significado até que ele se perca de uma noção humana. Fuga em debandada de uma legião de corpos vociferando vozes. Ser legião.

Experimentum em amor menor

Estamos a falar de inumano, de possibilidades de amor contemporâneo, glossolalia, potências, afetos políticos, estética, arte, despossessão, sobre o ato insólito de escavar a língua, os corpos, os estratos; estamos, de alguma forma, a discursar ainda. Uns laivos poéticos, mas a língua está aqui, aqui está a linguagem, aqui está a retórica, os escólios, os escólios dos escólios, toda uma marginália, aqui também estão corpos que escrevem, que leem. Há pessoa por aqui? Há ato poético? É possível esse tal ato literário por aqui? Um ato insinuador de pactos e transbordamentos? Ele está em curso? Essas perguntas soam como algo desejando escavar, anseia mesmo ser escavação, pois esse é um território prolífico para a naturalização das pessoas, para a edificação dos eus, para o hábito prático de se fazer pessoa, para a posse dos conceitos, para o exercício de nomear, afinal, tudo aqui ganha um nome. Esse é um território onde as hermenêuticas transitam, lugar com uma história bem conhecida. A ordem dos discursos, como bem apontou Foucault (2016FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2016.)12 12 Aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. . No entanto, lugar escavável, lugar de pactos, território para fugas, de fronteiras estranháveis. Cabe aqui uma xenoglossia? Lugar de esquizofrenias potentes? É possível amar aqui? Podemos fazer dessa instância uma potência amorosa? Promover afetos políticos outros no ato da escrita? Para usar uma palavra repleta de histórias e transtornos, curtida em barricas de línguas e linguagens, como artistas, haveríamos de subjetilizar13 13 O conceito de subjétil foi abordado por Derrida (1998) em Enlouquecer o Subjétil a partir da produção dos cadernos de Artaud no contexto asilar. esse território? Subjétil. Como os gestos-verbos de Artaud subjetilizando a língua francesa, subjetilizando a si mesmo, a sondar, a talhar, a raspar, a limar, a coser, a descoser, a esfarrapar, a costurar e a escavar, esse outro verbo do amor. Munir-se de tais verbos para nossa política afetiva de fazer brotar o amor.

E por que não fazer da palavra amor um subjétil, fazer da sintaxe do amor romântico um subjétil. Enlouquecer o amor. Até porque fazer de algo um subjétil é torcer e violentar sua língua e tensionar seus limites. Violentemos esse território. Vamos todos, por favor, numa liturgia inumana. Pois nossos corpos estão implicados. Até onde podemos chegar se começamos a escavar? Haveremos de fazer brotar nos dedos os anéis?

Escavar, escavar, escavar, escavar, escavar, escavar, resignadamente escavar, escavar, escavar, escavar, escavar. Ritornelo. Eterno Retorno. Repetição. Diferença. Toquemos as chuvas inauditas, porque toda água precisa de um grão corajoso para vingar, porque o sangue precisa de um barro insólito para correr cruel, isso é sobre o nascer do dia, isso é questão de vida e morte, escavar para fazer brotar o olho do sol, olho d’água, deixemos a chuva cair insolitamente, nus, caia chuva!, bebamos disso, lavando-nos para além de nós mesmos, isso ganha força, revoada de pássaros queimando asas num amor sideral, bola de fogo, libélulas e lâmpada, vício dos poetas, gastando a sobriedade da luz na obra pequena de aceitar o necessário e raro, gastando essa coisa noturna, argila primordial, barro esquizo de demiurgos, ato menor, ato moribundo de escavar, escavar, criar um vazio que nos foge... isso faz um burburinho no mundo, algo marulha pelas ruas, inquieta o trânsito, alimenta aquilo que foge para ser livre, um coração pensador se esparrama por aí, espalhar essa dança, isso exerce uma violência digna sobre as vidas... militância e estrelas porque política é derivar sobre o amor, destoar em experiência, escavar o mais fundo das nossas belezas, essa solenidade é poética, sangue, osso e crueldade, que artaud esteja conosco... toque, isso foi gestado, tábua de esmeralda, deitado em orvalho, matizado ao esquisito, maturado à luz das estrelas, convulsionado em desejos, cuidado no sereno dos sonhos, desenredo, está destinado, sem tempo dentro, sem história, dado a sacrifício, iniciado em ordens e círculos, há tempos... toque sem medo porque isso vai te levar com o curso da vida, rio, deixe o tempo se gastar com isso, margens, deixe estar... toque isso com a polpa da sua vida, você fecha os olhos e isso vibra, você está longe e isso está perto, você morre e isso permanece, você vive e isso segue, você está só e isso está junto, você enlouquece e isso te dá lucidez... o que será que será que escava os conceitos até que eles percam o ato de conceituar?, até que eles tomem os corpos e vivam por aí performando à pele dos dias, o que será que será que escava essa terra imensa até que o ato de escavar seja essa pura repetição sem sentido, sem significado?, resignação dos amantes... um cometa abelardo mancha heloisamente uma rota cósmica, ele perdeu seu nome, ela perdeu seu nome, conjugando um verbo inominável que arrasta julietas despossuídas, romeus quebrados, a arte de quebrar pessoas, a arte de glosar em línguas, em militância político-espiritual... o cometa está atravessando, arrasta utopias, heterotopias, suas vestes de barroco angelical, demônio abismal, beliscando, tocando o foda-se, tango sideral, marginal, nagual, chamusca nossa paz, nossas vidas, nossas mortes, sua calda cheiro de absinto e pólvora bordados em chita coloridos olhos retalhos à mão inscrita-se ‘eu sou ninguém, que me importa a humanidade inteira?’, estandarte, é só um modo de usar o amor.... para usar de maneira estranha, amorosa, política e maravilhosa... fogos de artifício, aprèludes, sobe o pano, os náufragos sem esperança...

Ritornelemo-nos à epígrafe de Kazuo Ohno, sobre um princípio extraterrestre, sobre tornarmo-nos essa coisa cósmica, avariada do entendimento, ininteligível, agravando o sensível. Esse princípio não é dito em palavras, é matéria do coração. O estandarte de tal amor bem poderia ser algo assim, escrito num tecido de universo, pele sideral, rumor galáctico, desensimesmado da terra, hieróglifo de uma experiência linguística sem nome, brotado de uma escavação de nossos próprios escombros, assombrosos segredos atemporais. Esse estandarte poroso está cheio dos nossos mortos e vivos, está proliferado de devires, uma legião o habita, transita-o, um pedaço de sangue desarrazoado, há uma multiplicidade aí, bichos e minérios em performance, um coletivo diabólico, amantes das irregularidades, das singularidades, do delírio, tilintando e marulhando tantas vozes, deleuzes, nietzsches, derridas, rosas, safatles, spinozas, ohnos, tantas vozes, que, para escavarmos a língua e toda a terra que nos perfaz, há que se escavar a matéria negra e abismal que somos, ética, estética e política, imperceptivelmente amor.

Referências

  • ALMEIDA, Gil Roberto Gomes. diferença voz glossolalia artaud performance. 2015. 149 f. Dissertação (Mestrado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade de Brasília, Brasília. 2015.
  • ARTAUD, Antonin. Oeuvres. Paris: Quarto Gallimard, 2004.
  • BECKETT, Samuel. Nohow On. New York: Grove Press, 2010.
  • BRÉHIER, Émile. A Teoria dos Incorporais no Estoicismo Antigo. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
  • CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, XVI-XVII siècle II. Paris: Gallimard, 2013.
  • DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 2004.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka para uma Literatura Menor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia. v. 4. São Paulo: Editora 34 , 2005.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia . v. 1. São Paulo: Editora 34 , 2000.
  • DERRIDA, Jacques. O Animal que logo Sou. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
  • DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Perspectiva, 2009.
  • DERRIDA, Jacques; BERGSTEIN, Lena. Enlouquecer o Subjétil. São Paulo: UNESP; Ateliê Editorial; Imprensa Oficial/SP, 1998.
  • FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2016.
  • HOFMANNSTHAL, Hugo von. Una Carta (De Lord Philip Chandos a Sir Francis Bacon). Valencia: Pre-Textos, 2008.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  • OHNO, Kazuo. Treino e(m) poema. São Paulo: N-1 edições, 2016.
  • ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
  • SAFATLE, Vladimir. Grande Hotel Abismo: por uma reconstrução da teoria do reconhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
  • SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos - Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica , 2015.
  • SPINOZA, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
  • 1
    No matter. Try again. Fail again. Fail better in Nohow.
  • 2
    A ideia de transvaloração é desenvolvida por Nietzsche praticamente em toda a sua obra, ganhando maior densidade e cada vez mais intensidade no período que se segue de 1882 a 1888.
  • 3
    Deleuze e Guattari perpassam de forma singular este texto e, por vezes, transitam por aqui termos como variação contínua, Corpo sem Órgãos, fenômenos de borda, ritornelo, entre outros, sobretudo da obra Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia, que fazem referência direta a eles. Por opção estilística, optamos, sempre que possível, evitar as notas de forma a permitir uma leitura mais fluida. As obras consultadas seguem no rol das referências.
  • 4
    Disponível em: <http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/escavar/>. Acesso em: 09 jan. 2017.
  • 5
    Pour en finir avec le jugement de dieu, obra radiofônica de Artaud (2004ARTAUD, Antonin. Oeuvres. Paris: Quarto Gallimard, 2004.).
  • 6
    Ver A teoria dos incorporais no estoicismo antigo de Bréhier (2012BRÉHIER, Émile. A Teoria dos Incorporais no Estoicismo Antigo. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.).
  • 7
    Para adensar um pouco mais a ideia de Deleuze e Guattari acerca dos fenômenos de borda, evoco Jacques Derrida (2002DERRIDA, Jacques. O Animal que logo Sou. São Paulo: Editora UNESP, 2002.) e sua outra lógica do limite, tratado em seu livro O animal que logo sou, quando ele se refere “[...] à experiência propriamente transgressal, se não transgressiva, de uma limitrofia [...] o que se avizinha dos limites mas também o que o alimenta, se alimenta, se mantém, se cria e se educa, se cultiva nas margens do limite”.
  • 8
    O conceito de menoridade muito recorrente na obra de Deleuze e Guattari foi abordado de forma mais direta em Kafka para uma literatura menor (2002).
  • 9
    Tema também tratado por Derrida em A escritura e a diferença (2009DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Perspectiva, 2009.).
  • 10
    Uma abordagem do conceito foi desenvolvida na dissertação de mestrado diferença voz glossolalia artaud performance (Almeida, 2015ALMEIDA, Gil Roberto Gomes. diferença voz glossolalia artaud performance. 2015. 149 f. Dissertação (Mestrado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade de Brasília, Brasília. 2015.).
  • 11
    A afirmação é um exercício ético na obra de Nietzsche e foi elegantemente abordado por Deleuze em seu livro sobre o filósofo alemão.
  • 12
    Aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970.
  • 13
    O conceito de subjétil foi abordado por Derrida (1998DERRIDA, Jacques; BERGSTEIN, Lena. Enlouquecer o Subjétil. São Paulo: UNESP; Ateliê Editorial; Imprensa Oficial/SP, 1998.) em Enlouquecer o Subjétil a partir da produção dos cadernos de Artaud no contexto asilar.
  • 29
    Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2017
  • Aceito
    11 Set 2017
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