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A Dramaturgia do Corpo no Teatro Indiano como Visível Poesia

La Dramaturgie du Corps dans le Théâtre Indienne come Visible Poésie

Resumo:

No presente artigo, discute-se o conceito de dṛśya kāvya (visível poesia) da tradição cênica indiana como proposta de dramaturgia do corpo. Partindo do impacto que as tradições cênicas asiáticas provocaram no teatro europeu no século XX, são analisados alguns conceitos e técnicas de atuação do teatro-dança clássico indiano (em particular, Orissi e Kathakali), baseadas na tradução da palavra em gesto corporal. Questiona-se também a relevância dessa discussão para um teatro que busca distanciar-se de um modelo logocêntrico, numa perspectiva intercultural.

Palavras-chave:
Trabalho do Ator; Interculturalismo; Teatro-Dança Clássico Indiano; Kathakali; Orissi

Résumé:

Cet article vise à analyser le concept de dṛśya kāvya (la poésie visible), de la tradition théâtrale indienne, entant que une proposition de dramaturgie du corps. À partir de l'impact que le traditions du spectacle asiatiques ont provoqué sur le théâtre européen au cours du XX siècle, nous allons examiner certains concepts et techniques de jeu de la théâtre-danse classique indienne (plus précisément, Orissi et Kathakali), basé sur la traduction poétique du mot dans le geste corporel. Nous allons se questionner sur la pertinence de cette discussion pour un théâtre qui cherche à se démarquer d'un modèle logocentrique, dans une perspective interculturelle.

Mots-clés:
Travail de l'Acteur; Interculturalisme; Théâtre-Danse Classique Indienne; Kathakali; Orissi

Abstract:

This article intends to analyze the concept of dṛśya kāvya (visible poetry) from the Indian scenic tradition, as a proposal to a dramaturgy of the body. Starting from the impact that the Asian scenic tradition caused in the European theater in the 20th century, we will examine some concepts and acting techniques from the Indian classical dance-theater (specially Orissi and Kathakali), which are based in the translation of the word into physical gesture. We also question the relevance of this discussion to a theater seeking to distance itself from a logocentric model, in an intercultural perspective.

Keywords:
Actor's Craft; Interculturalism; Indian Classical Dance-Theatre; Kathakali; Orissi

Introdução

Antonin Artaud (1984ARTAUD, Antonin. A Encenação e a Metafísica. In: ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Max Limonad, 1984. P. 46-63., p. 51-53) define a "linguagem física e concreta" da cena - "[...] que se dirige antes de mais nada aos sentidos ao invés de dirigir-se em primeiro lugar ao espírito como faz a linguagem das palavras" - como "poesia no espaço"; e cita o Teatro de Bali como um exemplo eficaz dessa poesia que buscava. A tradição clássica1 1 A utilização do vocábulo clássico em referimento à arte tradicional indiana é questionável, uma vez que refere-se à arte e cultura dos antigos gregos e romanos. Ele é, no entanto, adotado pelos estudiosos indianos, que também criaram critérios para classificar as diversas manifestações cênicas indianas como clássicas (margi), quando estão fundamentadas na tradição dos tratados antigos - em especial o Nāṭyaśāstra - ou populares (desi), quando não possuem essas referências. Atualmente, essa classificação é determinada oficialmente pela Sangeet Natak Akademy - instituição governamental de fomento às artes cênicas. Os estilos Orissi e Kathakali são considerados clássicos, ao lado de outros, como Bharata Natyam, Manipuri, Kathatk, Kuchipudi, Mohini Attam e Sattriya (Kothari, 2010). indiana, por sua vez, define o teatro, distinguindo-o da literatura, como dṛśya kāvya - literalmente, visível poesia. Traçando linhas transversais entre esses dois conceitos, este artigo aborda a dramaturgia do corpo no teatro-dança clássico indiano como mote para pensar a relação entre ação física e palavra na arte do ator.

Além de revisitar conceitos como "ator lírico" e "corpo-orquestra" (Vescovi, 2007VESCOVI, Renzo. Scritti dal Teatro Tascabile. Organização de Mirella Schino. Roma: Bulzoni , 2007., p. 166-167), "corpo crível", "credibilidade" e "legibilidade" da ação (Ruffini, 1996RUFFINI, Franco. Prefazione. In: RUFFINI, Franco. Teatro e Boxe: "l'atleta del cuore" nella scena del Novecento. Bologna: Il Mulino , 1996. P. 7-21., p. 8-10), que fornecem aporte teórico mais amplo ao tema, a discussão coloca-se a partir da singularidade da experiência profissional intercultural dos autores deste artigo, adquirida em mais de vinte anos de pesquisa entre Oriente e Ocidente, em particular com a prática dos teatros-dança clássicos indianos Kathakali, estilo masculino originário do estado do Kerala, e Orissi2 2 Os nomes Orissi e Odissi referem-se ao mesmo estilo de teatro-dança clássico indiano e podem ser igualmente encontrados na literatura especializada. Neste artigo, iremos considerar a nomenclatura Orissi, utilizada por Ashish Khokar e Mohan Khokar (2011) e Mohan Khokar (1979), renomados pesquisadores e autores de obras de referência sobre o assunto, especialmente o livro The dance Orissi. , estilo do estado de Odisha. Essa pesquisa iniciou-se no Teatro Tascabile di Bergamo (TTB), um dos grupos históricos do teatro italiano, reconhecido como um importante teatro-laboratório sobre a arte do ator na Europa, que se destaca pelo estudo teórico-prático do teatro oriental3 3 "São especialistas em dançar o Kathakali, com uma maestria que faz com que sejam aceitos como especialistas até mesmo na Índia" (Barba, 1993, p. 218). "[...] quando se faz referência a um modo 'sério' de ocupar-se de teatros asiáticos, o TTB é um dos nomes que vem súbito à mente" (Schino, 2004, p. 15). e pelos espetáculos de teatro de rua4 4 "[...] um dos maiores especialistas da Europa" (Schino, 1997, p. 316). . No lastro dos teatros-laboratório surgidos nos anos 1960-1970, o grupo italiano é um exemplo significativo quando se trata da apropriação de técnicas orientais para o desenvolvimento de uma linguagem teatral própria, fortemente baseada na ideia de dṛśya kāvya.

Influências dos Teatros Asiáticos nos Teatros-Laboratório da Europa

Segundo Mirella Schino (2012SCHINO, Mirella. Alquimistas do Palco: os laboratórios teatrais na Europa . São Paulo: Perspectiva , 2012.), a noção de teatro-laboratório, longe de ser um ponto de referência ou representar um modelo a ser seguido, representa um certo tipo de orientação mental que caracterizou determinados grupos surgidos na segunda metade do século XX na Europa, cujos exemplos mais emblemáticos são o Teatr Laboratorium, de Jerzy Grotowski, o Centre International de Recherche Théâtrale, de Peter Brook e o Odin Teatret, de Eugenio Barba. O sentido do termo teatro-laboratório está relacionado a algumas palavras-chave: treinamento, atividade permanente do ator, desvinculada da preparação de um espetáculo específico; corpo, entendido como expressão física usualmente associada a uma linguagem simbólica; pedagogia, designando processos autônomos de treinamento do ator e, no caso de grupos mais maduros, a transmissão desses conhecimentos práticos.

Com base nessas palavras-chave, é possível estabelecer uma ligação direta entre grupos teatrais surgidos na Europa na segunda metade do século XX e o período da Grande Reforma5 5 De acordo com Schino (2012, p. IX e 196), Grande reforma, ou Wielka Reforma como dizem estudiosos e teatrantes poloneses, é o termo que busca "expressar as mudanças radicais que aconteceram no teatro nas primeiras três décadas do séc. XX". Alguns protagonistas do período são Stanislávski, Meyerhold, Craig, Appia, Copeau, Fuchs e Reinhardt, também conhecidos como "diretores pedagogos", interessados mais na pesquisa, em estúdios, escolas e ateliês, do que na atração de público, e que "estabeleceram práticas e poéticas que não podem ser confinadas a um ou mais espetáculos". do teatro ocidental, no início desse mesmo século. Essa ligação caracteriza a tradição dos teatros-laboratório. Quem inaugura essa linhagem é, certamente, Stanislávski, especialmente no que diz respeito ao trabalho realizado em seus estúdios teatrais. Em seguida, emergem outros nomes que, como o mestre russo, interessavam-se por questões que iam além da preparação de espetáculos, como Vakthangov, Meyerhold, Copeau, Decroux, Appia e Craig (Schino, 2012SCHINO, Mirella. Alquimistas do Palco: os laboratórios teatrais na Europa . São Paulo: Perspectiva , 2012.).

Desde o início do século XX, os protagonistas da Grande Reforma das artes cênicas ocidentais passaram a questionar a hegemonia do texto no fenômeno teatral e perseguir a ideia de uma arte total, em que todos os elementos do espetáculo estivessem em harmonia. Esse movimento foi buscar no Oriente uma de suas principais fontes de inspiração, pois nas artes cênicas asiáticas o ator é o fulcro do espetáculo, conjugando, na sua performance, palavra, ação e musicalidade. A partir das primeiras visões de espetáculos asiáticos pelo público europeu, por volta do final do século XIX, o teatro-dança oriental provocou, durante o século XX, tantas e tão significativas reflexões que não é exagerado dizer que o contato com esta realidade espetacular modificou o modo de pensar as artes cênicas no Ocidente (Savarese, 1992SAVARESE, Nicola. Teatro e Spettacolo fra Oriente e Ocidente. Roma-Bari: Laterza, 1992.).

Podemos considerar que o interesse pelo teatro asiático, especialmente no que diz respeito à arte do ator, é também um traço comum que perpassa as pesquisas dos teatros-laboratório, desde a Grande Reforma até hoje. Enquanto o vislumbre do teatro oriental serviu como contraponto para os protagonistas da Grande Reforma na crítica ao teatro burguês logocêntrico europeu, o teatro asiático representou uma fonte de aprendizado de técnicas precisas de encenação e atuação para os grupos da segunda metade do século XX.

O início do interculturalismo nas artes cênicas, porém, foi marcado pela falta de conhecimento real a respeito das realidades cuja visão provocou o pensamento, pois as experiências interculturais seminais de protagonistas da Grande Reforma do teatro ocidental basearam-se em encontros fugazes com a arte cênica asiática nos palcos europeus. Com muita propriedade, Savarese (1992SAVARESE, Nicola. Teatro e Spettacolo fra Oriente e Ocidente. Roma-Bari: Laterza, 1992., p. XXXII) define as reflexões, surgidas a partir desses encontros, como "mal-entendidos mais ou menos fecundos", que teriam mais a dizer sobre os artistas europeus, que viram no teatro oriental a materialização de sua própria utopia teatral, do que a respeito dos teatros asiáticos por eles assistidos.

Analogamente, na introdução de seu livro sobre o Yoga, Mircea Eliade (1996ELIADE, Mircea. Prefácio à edição francesa. In: ELIADE, Mircea. Yoga: imortalidade e liberdade. São Paulo: Palas Athena, 1996. P. 9-16., p. 9) aponta para o vasto horizonte e, ao mesmo tempo, para os limites com os quais nos confrontamos, quando nos aprofundamos no conhecimento de uma "espiritualidade exótica", e afirma que:

A descoberta da Índia, entretanto, continua, e nada nos permite supor que tenha chegado ao fim. A análise de uma cultura estrangeira revela, sobretudo, aquilo que se busca ou aquilo que já se está preparado para descobrir. A descoberta da Índia não se completará a não ser no dia em que as forças criadoras da Europa estiverem irremediavelmente exauridas.

A "descoberta da Índia", como descrita por Eliade (1996ELIADE, Mircea. Prefácio à edição francesa. In: ELIADE, Mircea. Yoga: imortalidade e liberdade. São Paulo: Palas Athena, 1996. P. 9-16., p. 9), é marcada por atitudes e métodos de abordagem que respondem a problemas próprios da cultura europeia em seus diferentes momentos históricos. Apesar dessa limitação, que caracterizou todo o orientalismo europeu, o conhecimento sobre a Ásia evoluiu, principalmente no século XX, permitindo a superação de certas atitudes etnocêntricas. A atual relação da Europa (e mais recentemente dos Estados Unidos da América) com o dito terceiro mundo, entretanto, está ligada historicamente à expansão colonialista que se iniciou no século XVI e terminou nos séculos XIX e XX, com os movimentos nacionalistas de independência. O interculturalismo europeu formou-se a partir desses pressupostos colonialistas, contaminados pelo orientalismo,

[...] ou seja, uma maneira de relacionar-se com o Oriente baseada no lugar especial que ele ocupa na experiência europeia ocidental. O Oriente não é só adjacente à Europa, é também onde estão sediadas as maiores, mais ricas e mais antigas colônias europeias; é a fonte de suas línguas e civilizações; é o concorrente principal no campo cultural; é um dos mais recorrentes e radicados símbolos do Diverso. E ainda, o Oriente contribuiu, por contraposição, a definir a imagem, a ideia, a personalidade e a experiência da Europa (ou do Ocidente) (Said, 2004SAID, Edward. Introduzione. In: SAID, Edward. Orientalismo: l'immagine europea dell'Oriente. Milano: Feltrinelli, 2004. P. 11-36., p. 11).

Assim como o conhecimento sobre o pensamento indiano avançou na Europa, os contatos com as artes cênicas asiáticas tornaram-se cada vez mais intensos. Nos últimos cinquenta anos, grandes artífices das artes cênicas europeias, como Jerzy Grotowski e Eugenio Barba, criaram laços mais profundos e duradouros com a Ásia, que implicaram muitas viagens - algumas delas de longa permanência -, trocas de experiências e colaborações artísticas. A busca pelo aperfeiçoamento técnico desvinculado da preparação de espetáculos encontrou inspiração no treinamento dos atores do teatro tradicional asiático. Outros grupos surgidos nesse período, como o Teatro Tascabile di Bergamo, influenciados por essas experiências, seguiram o mesmo rumo.

A aproximação do TTB às formas de teatro-dança clássico indiano iniciou-se em 1977 e foi impulsionada, em um primeiro momento, por uma necessidade de "conquista das técnicas" da arte do ator (Vescovi, 2007VESCOVI, Renzo. Scritti dal Teatro Tascabile. Organização de Mirella Schino. Roma: Bulzoni , 2007., p. 84). Ao longo de dezenas de anos, a partir de uma profunda pesquisa teórico-prática, que incluiu períodos de estudo anuais na Índia com seus atores, Renzo Vescovi, diretor do TTB, concebeu determinadas noções de atuação fortemente influenciadas por esse mergulho na prática do teatro indiano, que seriam as linhas mestras do trabalho realizado pelo grupo para o desenvolvimento de uma linguagem teatral própria.

O aprendizado direto com os gurus indianos, especialmente dos estilos Orissi (com Aloka Panikar) e Kathakali (com John Kalamandalam)6 6 O TTB trabalha há muitos anos com outra dança indiana, o Bharata Natyam (com Usha Raghavan). O grupo realizou experiências com outras formas cênicas asiáticas, como a dança indiana Kuchipudi (com Satya Priya Ramana), o Teatro Balinês (com I Made Djimat) e a Ópera de Pequim (com Pei Yan Ling). Porém, Orissi e Kathakali foram o ponto de partida das pesquisas e permanecem como principais referências. , por parte dos atores italianos do TTB, forneceram a Vescovi as bases para o desenvolvimento de dois conceitos complementares: o ator lírico e o corpo-orquestra. Interessa-nos enfatizar aqui como, em tais noções, inspiradas na arte do ator indiano, Vescovi aproxima a linguagem do corpo à linguagem poética:

O ator 'lírico' constrói sua densidade específica em modo análogo ao ator oriental. Uma das principais características que configura essa densidade é, talvez, a arte do movimento, organizada de acordo com a técnica de contraponto, ou concertística, do corpo-orquestra.

O que, talvez melhor do que qualquer outro paralelo, possa ilustrar a noção de corpo-orquestra é uma possível analogia com a organização poética da linguagem. De acordo com a célebre definição de Jakobson - do uso consciente das características formais da linguagem poética, particularmente, as rítmicas e fonosimbólicas - o ator lírico potencializa a capacidade de organização da energia dançante do seu próprio corpo, concedendo-a ao espectador, através da definição de diferentes níveis de elaboração das diversas partes do corpo, num jogo simultâneo. Concretamente, isso acontece através da determinação de segmentos do corpo, em suas unidades mínimas, visando uma estruturação progressiva, duplamente articulada (dos fonemas às palavras e, dessas, ao discurso) (Vescovi, 2007VESCOVI, Renzo. Scritti dal Teatro Tascabile. Organização de Mirella Schino. Roma: Bulzoni , 2007., p. 166-167, grifo do autor).7 7 A tradução deste e de todos os textos em língua estrangeira citados neste artigo é nossa.

Dṛśya Kāvya e Poesia no Espaço

Um particular protagonista da Grande Reforma foi Antonin Artaud, que deixou forte marca na história do teatro, não pela realização de espetáculos, mas por seus escritos sobre um "teatro possível" (Taviani, 1995TAVIANI, Fernando. Uomini di Scena, Uomini di Libro: introduzione alla letteratura teatrale italiana del Novecento. Bologna: Il Mulino , 1995., p. 31). Artaud não constituiu um teatro-laboratório, mas propôs a construção do ser humano a partir do corpo, liberando-o de seus automatismos por meio das "ferramentas do teatro" (Ruffini, 2012RUFFINI, Franco. O Extremismo de Stanislávski. In: SCHINO, Mirella. Alquimistas do Palco: os laboratórios teatrais na Europa. São Paulo: Perspectiva, 2012. P. 90-108., p. 90).

Em uma conferência na Sorbonne, em 10 de dezembro de 1931, Artaud (1984ARTAUD, Antonin. A Encenação e a Metafísica. In: ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Max Limonad, 1984. P. 46-63., p. 50-51) perguntava-se:

Como é que no teatro, pelo menos no teatro tal como o conhecemos na Europa, ou melhor, no Ocidente, tudo aquilo que é especificamente teatral, isto é, tudo aquilo que não obedece à expressão do discurso, das palavras [...] seja deixado em segundo plano? [...] Como é que o teatro ocidental (digo ocidental porque felizmente há outros, como o oriental, que souberam conservar intacta a ideia do teatro, enquanto que no ocidente essa ideia, como todo o resto, se prostituiu) não enxerga o teatro sob outro aspecto que não o do teatro dialogado?

Intitulado A encenação e a metafísica, em O teatro e seu duplo (Artaud, 1984ARTAUD, Antonin. A Encenação e a Metafísica. In: ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Max Limonad, 1984. P. 46-63.), esse texto é marcado pela revolta de Artaud contra a visão logocêntrica, que tornou-se um elemento determinante para a tradição teatral ocidental desde Aristóteles até o século XIX, e subjugou a cena - "[...] lugar periférico da redundante exterioridade, da sensualidade do corpo, da instabilidade, em suma, da teatralidade" -, ao texto - "refúgio do sentido imutável da interpretação e alma da peça" (Pavis, 1998PAVIS, Patrice. Dizionario del Teatro. Organização de Paulo Bosisio. Bologna: Zanichelli, 1998., p. 487-488).

Artaud (1984ARTAUD, Antonin. A Encenação e a Metafísica. In: ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Max Limonad, 1984. P. 46-63., p. 51-52) reivindica para a cena "um lugar físico e concreto" com sua linguagem própria: "a linguagem concreta e física do palco". Na sua visão, essa é a "linguagem material e sólida através da qual o teatro pode se distinguir da palavra", e define essa linguagem como "poesia do espaço":

[...] digo que existe uma poesia para os sentidos, assim como há uma poesia para a linguagem e que esta linguagem física e concreta à qual me refiro só é verdadeiramente teatral na medida em que os pensamentos que expressa escapam à linguagem articulada. [...] Esta linguagem feita para os sentidos deve antes de mais nada tratar de satisfazê-los. [...] E isto permite a substituição da poesia da linguagem por uma poesia no espaço que se resolverá exatamente naquele domínio das coisas que não pertence estritamente às palavras (grifos nossos).

Como exemplo de sua concepção de "poesia no espaço", Artaud (1984ARTAUD, Antonin. A Encenação e a Metafísica. In: ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Max Limonad, 1984. P. 46-63., p. 52-53) cita o Teatro de Bali, que assistiu em agosto de 1931, na Exposição Colonial de Paris. Quando Artaud identifica no teatro balinês - e, por extensão, no teatro oriental - a "poesia no espaço" que perseguia, o "mal-entendido" revela-se particularmente "fecundo" (retomando a expressão já citada de Savarese8 8 Cf. p. 157. ), se confrontado com o conceito de dṛśya kāvya (visível poesia), descrito no Abhinavabhāratī, célebre comentário do filósofo indiano Abhinavagupta9 9 Filósofo da arte e da religião hindu, que viveu no Kashmir (Índia) de 950 a 1020 d.C. ao Nāṭyaśāstra (Kulkarni, 2003KULKARNI, V. M. Abhinavagupta's concept of kāvya and nāṭya. In: KULKARNI, V. M. Abhinavabhārati Text: restored and other articles. Ahmedabad: Shresthi Kasturbhai Lalbhai Smarak Nidhi, 2003. P. 171-183.).

O Nāṭyaśāstra é um dos mais antigos e o mais importante dos tratados sobre o teatro-dança clássico indiano, cuja autoria é atribuída ao mítico Bharata Muni. Não se sabe exatamente quando foi escrito (a data da sua composição é extremamente controversa, podendo variar do século V a.C. ao século VI d.C., de acordo com diferentes estudiosos), nem quem é o seu autor (não existe nenhuma evidência histórica sobre Bharata Muni, e é provável que o Nāṭyaśāstra tenha sido escrito durante séculos por diversos autores anônimos)10 10 Neste artigo, tomamos como referência as traduções do Nāṭyaśāstra de Aya Rangacharya (2003) e Manomohan Ghosh (1995). . Também não há muitas informações históricas sobre o nāṭya - o teatro sânscrito nele descrito. Sabemos, porém, que na antiguidade os dramas sânscritos eram encenados em diversas partes da Índia, e o Nāṭyaśāstra é o registro de uma tradição cênica muito mais antiga que o próprio tratado11 11 Para mais informações sobre o Nāṭyaśāstra, cf. Gomes (2005). (Rangacharya, 1998RANGACHARYA, Adya. Introduction to Bharata's Nāṭyaśāstra. New Delhi: Munshiram Manoharlal , 1998.). O Nāṭyaśāstra foi a principal referência dos artistas e estudiosos indianos protagonistas do movimento conhecido como revival (renascimento), que re-inventou a tradição do teatro-dança clássico indiano na primeira metade do século XX12 12 Durante a colonização inglesa, as danças indianas, consideradas obscenas, foram perseguidas e até mesmo proibidas. No início do século XX, quando muitas dessas tradições pareciam perdidas ou degeneradas, no bojo do processo de independência da Índia, surgiu um movimento de resgate da cultura indiana, no qual o revival da dança teve um papel importante. A partir dos anos 1930, o teatro-dança indiano foi reinventado por intelectuais e artistas, com forte referência à tradição do Nāṭyaśāstra e outros tratados antigos (Khokar, 1979). .

Aristóteles, na Poética (1987ARISTÓTELES. Poética. In: ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; Poética. Organização José Américo Motta Pessanha. São Paulo: Nova Cultural, 1987. P. 197-260. (Coleção Os Pensadores)., p. 207), afirma que o espetáculo é "o mais emocionante, mas também o menos artístico e menos próprio da poesia", pois "mesmo sem representação e sem atores pode a tragédia manifestar seus efeitos". Abhinavagupta, no texto restaurado por Kulkarni (2003KULKARNI, V. M. Abhinavagupta's concept of kāvya and nāṭya. In: KULKARNI, V. M. Abhinavabhārati Text: restored and other articles. Ahmedabad: Shresthi Kasturbhai Lalbhai Smarak Nidhi, 2003. P. 171-183.), afirma, ao contrário, que quando a poesia não é encenada, não é possível haver o completo prazer estético ou rasa (literalmente, sabor); apesar disso, pode haver algum prazer estético apenas na leitura, se a poesia, por meio de suas descrições vívidas e elegantes, agir como um drama no palco da mente do espectador. O filósofo indiano considera o nāṭya - teatro sânscrito descrito no Nāṭyaśāstra - como dṛśya kāvya13 13 Dṛśya: visível, evidente, para ser visto, digno de ser visto, bonito, prazeroso; [...] qualquer objeto visível [...]. Kāvya: dotado das qualidades do sábio ou poeta, vindo do sábio, profético, inspirado, poético; [...] poema, composição com um tema coerente e de um único autor [...] (Monier-Williams, 1994, p. 280 e 491). (visível poesia): um tipo de composição poética que se dirige a olhos e ouvidos, e não apenas aos ouvidos, como a poesia escrita (considerando que a palavra escrita, apesar de ser lida com os olhos, é uma representação gráfica da palavra falada, proferida pela boca e captada pelo ouvido). O conceito de dṛśya kāvya combina o visível e poético, de modo que o sabor da mistura seja diferente do sabor dos dois elementos separadamente.

O nāṭya - teatro-que-dança as palavras - e o naṭa - ator-que-dança as palavras

Segundo o Nāṭyaśāstra (Rangacharya, 2003RANGACHARYA, Adya (Org.). The Nāṭyaśāstra . New Delhi: Munshiram Manoharlal , 2003., p. 43), as ações dos Deuses são naturalmente justas, mas as ações dos homens requerem um esforço consciente, logo, todos os detalhes dessas ações devem ser rigorosamente prescritos. Esse tipo de cuidado com o detalhe torna-se ainda mais importante quando os homens tentam representar em cena os deuses e os heróis. O comportamento apropriado para esse tipo de representação é o nāṭyadharmī, onde todas as ações são codificadas e possuem um simbolismo preciso. No Nāṭyaśāstra, são detalhadamente descritos, como em uma coreografia de dança, os movimentos das diversas partes do corpo (Rangacharya, 2003, p. 83-90), caminhadas (Rangacharya, 2003, p. 101-11) e posturas corporais. Um exemplo dessas posturas corporais são os 108 karaṇas (Rangacharya, 2003, p. 23-31), que descrevem poses retratadas em estátuas e decorações de vários templos na Índia, como o de Konarak, em Odisha, e o de Citambaram, no Tamil Nadu.

Essa descrição de coreografias de ações revela um traço particular da cultura teatral indiana, que não estabelece uma diferença nítida entre os conceitos de ator e dançarino. As palavras naṭa e naṭaka, normalmente traduzidas como ator e drama, respectivamente, derivam, ambas, da raiz sânscrita nrit, cujo significado é dança. O nāṭya designa uma realidade espetacular que se aproxima muito mais de um "teatro dançado" do que de um "teatro falado" e, portanto, a tradução de nāṭya deveria ser, não apenas "arte do teatro", mas "arte do teatro-que-dança" (Savarese, 1992SAVARESE, Nicola. Teatro e Spettacolo fra Oriente e Ocidente. Roma-Bari: Laterza, 1992., p. 173).

A arte do naṭa, como descrita no Nāṭyaśāstra, inclui o uso da voz, havendo nesse tratado inclusive capítulos que abordam a "representação verbal e a prosódia" (Rangacharya, 2003RANGACHARYA, Adya (Org.). The Nāṭyaśāstra . New Delhi: Munshiram Manoharlal , 2003., p. 116-119) e "regras para o uso das linguagens" (Rangacharya, 2003, p. 138-147), mas em Orissi e Kathakali os atores não falam em cena, assim como na maioria dos estilos atuais de teatro-dança clássico indiano14 14 A exceção mais representativa em relação a esse aspecto de não utilização da voz falada no teatro indiano é o Kuttiyattam, considerada a forma teatral indiana mais próxima ao teatro sânscrito descrito no Nāṭyaśāstra. Originário do Kerala, o Kuttiyattam é uma das mais importantes influências para a criação do Kathakali. . O texto poético torna-se letra de canção, entoada pelo cantor da pequena orquestra que divide a cena com o dançarino. O mecanismo de composição coreográfica desses estilos de teatro-dança é uma pantomima estilizada, com lógica análoga à língua de sinais dos surdos-mudos: a cada palavra da canção corresponde um gesto codificado, um hasta15 15 O teatro-dança clássico indiano utiliza a gestualidade do ritual tântrico para criar uma linguagem de gestos codificados. O culto tântrico usa técnicas de concentração ritual e de interação com o divino baseadas em gestos rituais chamados mudrā (selo, forma) e em palavras chamadas mantra (hino, invocação). Nas artes cênicas, esses gestos, despidos de sua eficácia ritual, são designados como hasta (mãos) (Padoux, 2010). , que tem forma e significado preciso, expressando uma ideia, um sentido, como um ideograma vivo.

Artaud (1984ARTAUD, Antonin. A Encenação e a Metafísica. In: ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Max Limonad, 1984. P. 46-63., p. 53-54), em A encenação e metafísica, refere-se a um tipo de "pantomima não pervertida" como "uma forma de poesia no espaço":

E me deixarão falar um instante, espero, deste outro aspecto da linguagem teatral pura, que escapa à palavra, desta linguagem pelos signos, gestos e atitudes com um valor ideográfico tal como se pode ver ainda em certas pantomimas não pervertidas. Por pantomima não pervertida, entendo a pantomima direta onde os gestos, ao invés de representarem palavras, corpos de frases, como em nossa pantomima europeia, já velha apenas com seus 50 anos [...], representam ideias, atitudes do espírito, aspectos da natureza, e isso de um modo efetivo, concreto, isto é evocando sempre objetos ou detalhes naturais, como essa linguagem oriental que representa a noite através de uma árvore na qual um pássaro que já fechou um olho, começa a fechar o outro (grifo nosso).

Já salientamos o quanto os mal-entendidos fecundos16 16 Cf. p. 157. de Artaud sobre o teatro balinês não têm uma relação direta com a realidade do teatro asiático, mas, justamente devido à fecundidade de seu pensamento, vamos nos permitir o exercício de verificar se o seu conceito de "pantomima não pervertida" poderia se aplicar ao teatro-dança clássico indiano. Ao referir-se a essa pantomima como "linguagem teatral pura", com "signos, gestos e atitudes com um valor ideográfico", que "representam ideias, atitudes do espírito, aspectos da natureza, e isso de um modo efetivo, concreto", a afirmação estaria correta; no entanto, seria impreciso supor que essa linguagem não representa "palavras, corpos de frases".

No teatro-dança clássico indiano é tão próxima a relação entre o gesto do ator e o texto cantado pelos cantores, que podemos dizer que, para o ator/dançarino indiano, a palavra é essencial. Na sua ação, o texto entrelaça-se com a música e com todos os outros elementos da cena. O Nāṭyaśāstra atribui uma importância central à palavra, ao contrário do senso comum, que costuma descrever o teatro oriental como um teatro do corpo.

O ator tem que ter uma atenção particular às palavras, porque as palavras são o corpo da arte dramática. Os gestos, figurinos e maquiagem, junto com a expressão das emoções, são secundários porque esses apenas clarificam o sentido das palavras. Os Śāstras são feitos de palavras; dependem das palavras. Então não há nada mais importante que a palavra. A palavra está na fonte (raiz) de tudo (Rangacharya, 2003RANGACHARYA, Adya (Org.). The Nāṭyaśāstra . New Delhi: Munshiram Manoharlal , 2003., p. 116).

No dṛśya kāvya, o ator cria um novo sentido visível que se combina ao sentido sonoro das palavras da poesia, por meio de um trabalho coordenado de todo o corpo, de acordo com o ritmo e a melodia da música. Essa relação íntima entre gesto e palavra não está em contradição com o fato de que essa linguagem silenciosa aponta para os limites da palavra. Concordamos com Quilici (2015QUILICI, Cassiano Sydow. Teatros do Silêncio. In: QUILICI, Cassiano Sydow. O Ator-Performer e as Poéticas da Transformação de Si. São Paulo: Annablume, 2015. P. 51-65., p. 56-57) quando afirma que a linguagem física baseada em signos não verbais apontada por Artaud, em seus textos sobre o teatro balinês, não pode ser facilmente traduzida em uma linguagem lógica e discursiva, pois nos propõe a convivência com um certo vazio de significado que acolhe experiências não necessariamente apreensíveis pelas palavras. No teatro-dança clássico indiano, entretanto, essa linguagem corporal não prescinde das palavras, mas tece com elas novos sentidos que apontam para o inefável.

Os espaços silenciosos, experiências ainda não codificadas, manchas de consciência, que emergem nas frestas e nas fissuras da linguagem, são assim valorizados. É a partir dessa experiência que se escolhe a linguagem, ou seja, a linguagem germinará desse vazio (Quilici, 2015QUILICI, Cassiano Sydow. Teatros do Silêncio. In: QUILICI, Cassiano Sydow. O Ator-Performer e as Poéticas da Transformação de Si. São Paulo: Annablume, 2015. P. 51-65., p. 57).

Ler a Ação, Acreditar na Ação - a dramaturgia do corpo no teatro-dança clássico indiano

Diante de tantas abordagens possíveis à noção de dramaturgia do corpo, sugerimos uma distinção - proposta por Ruffini (1996RUFFINI, Franco. Prefazione. In: RUFFINI, Franco. Teatro e Boxe: "l'atleta del cuore" nella scena del Novecento. Bologna: Il Mulino , 1996. P. 7-21.) - de dois aspectos na ação do ator: a legibilidade e a credibilidade. Essa distinção é de imediata evidência semântica e pode ser considerada implícita nas pesquisas sobre a arte do ator, pelo menos a partir do século XX. "Do outro lado da ribalta, o espectador reage lendo o significado da ação [do ator], mas também reage acreditando na lógica da ação em cena" (Ruffini, 1996, p. 10). Credibilidade e legibilidade são aspectos independentes presentes na ação do ator; não se trata de estabelecer uma hierarquia entre eles, mas de compreender que as vias que conduzem a um e a outro são autônomas. "A legibilidade é uma questão semântica, enquanto que a credibilidade é uma questão orgânica. Não quer ser explicada; deve ser experimentada" (Ruffini, 1996, p. 12).

Segundo Ruffini (1996RUFFINI, Franco. Prefazione. In: RUFFINI, Franco. Teatro e Boxe: "l'atleta del cuore" nella scena del Novecento. Bologna: Il Mulino , 1996. P. 7-21., p. 11), a historiografia do teatro do século XX privilegiou a via da legibilidade, por meio, por exemplo, de uma interpretação da psicotécnica de Stanislávski, mais como análise de personagem do que como estímulo à organicidade do ator. Ele afirma ainda que esse privilégio quase cancelou da historiografia uma "[...] ciência do ator, não finalizada à construção de códigos, mas à reconstrução da vida, malgrado os códigos e convenções da cena", apesar de essa "ciência do ator" ter certamente existido.

Podemos afirmar que "o 'corpo crível' do ator corresponde ao nível pré-expressivo" (Ruffini, 1996RUFFINI, Franco. Prefazione. In: RUFFINI, Franco. Teatro e Boxe: "l'atleta del cuore" nella scena del Novecento. Bologna: Il Mulino , 1996. P. 7-21., nota 4, p. 11), no qual o ator constrói sua presença, independente daquilo que exprime, ou do fato mesmo de querer exprimir algo (Barba, 1993BARBA, Eugenio. La Canoa di Carta. Bologna: Il Mulino, 1993.). Para Ruffini (1996), o nível pré-expressivo, ou o corpo crível, é um objetivo conscientemente perseguido pelos atores das tradições cênicas orientais, enquanto que, para o ator ocidental, esse objetivo pode não ser, necessariamente, consciente.

A linguagem dos hastas (gestos)17 17 Cf. nota 15. , em Orissi e Kathakali, assim como em outros estilos de teatro-dança clássico indiano, apresenta uma particularidade interessante nessa relação entre legibilidade e credibilidade: a grande maioria dos espectadores, seja na Índia ou em outros países, não é capaz de compreender o que dizem os atores com os hastas, nem o que dizem os cantores, pois os textos que cantam são normalmente em sânscrito, uma língua morta, o que dificulta a legibilidade das ações. Na via da credibilidade, porém, o observador é capturado pela presença do ator, pela precisão de suas ações. A densidade da linguagem poética, encarnada no corpo do ator, permite diversos níveis de leitura para diversos espectadores, de acordo com suas próprias referências culturais.

A palavra sânscrita que define esse tipo de atuação é abhinaya, formada pelo prefixo abhi (na direção de) e da raiz ni (levar). O abhinaya define os meios expressivos usados pelo ator para levar as palavras do autor a tornarem-se dṛśya kāvya (visível poesia), e é dividido em quatro partes: āṅgika abhinaya (movimentos corporais), vācika abhinaya (uso da voz), āhārya abhinaya (figurinos e maquiagem) e sāttvika abhinaya (estados psíquicos) (Gomes, 2007GOMES, Ricardo Carlos. Kathakali Vesham: l'aprendistato dell'attore Kathakali. 2007. Tese (Doutorado em Storia, Teoria e Tecnica del Teatro e dello Spettacolo) ‒ Dipartimento di Arti e Scienze dello Spettacolo, Università degli Studi di Roma La Sapienza, Roma, 2007.).

De todos os abhinayas, o āṅgika abhinaya é o fundamental para o ator/dançarino indiano, pois a relação com a palavra se manifesta na linguagem gestual, o corpo dá vida aos figurinos, e os sentimentos se manifestam em ações corporais. O āṅgika abhinaya se divide em duas categorias: nṛtta (dança pura, sem conteúdo narrativo - cuja legibilidade se limita à pura fruição estética) e nṛtya (dança expressiva, que conta uma história e exprime um particular estado de ânimo - sendo sua legibilidade relativa ao nível de leitura do espectador).

A linguagem dos hastas (gestos)18 18 Cf. nota 15. é uma língua como qualquer outra, com as suas próprias palavras e sintaxe. A relação dessa linguagem com o texto poético não é mecânica, mas complexa e articulada. Nos diferentes estilos de teatro-dança indiano, essa língua articula-se com características muito específicas, como um particular dialeto. Para nossa reflexão, tomaremos como exemplo os estilos Orissi e Kathakali.

A Poesia em Ação em Orissi

Um dos principais textos utilizados como base nas composições coreográficas de Orissi é o Gītagovinda - O pastor do canto -, poema lírico-dramático do século XII, de autoria de Jayadeva. Composto em sânscrito (embora controvérsias apontem para uma versão original em idioma proto-bengalês), o Gītagovinda é um dos grandes textos da literatura indiana, além de fonte de inspiração do Vaishnavismo medieval e contemporâneo (Boccali, 1982BOCCALI, Giuliano. Prefazione. In: JAYADEVA. Gītagovinda. Organização e tradução Giuliano Boccali. Milano: Adelphi, 1982. P. 11-34.; Miller, 1984MILLER, Barbara Stoler. The Gītagovinda of Jayadeva: Love song of the Dark Lord. Delhi; Patna; Varanasi, 1984.; Vatsyayan, 1981VATSYAYAN, Kapila. Gita Govinda: the processes of diffusion. Marg - a Magazine of the Arts, Mumbai, v. 34, n. 3, p. 24-35, jun. 1981.).

O Gītagovinda trata dos encontros e desencontros amorosos entre a Rādhā e Kṛṣṇa, como alegoria do amor entre a alma humana e a divindade (Boccali, 1982BOCCALI, Giuliano. Prefazione. In: JAYADEVA. Gītagovinda. Organização e tradução Giuliano Boccali. Milano: Adelphi, 1982. P. 11-34.; Miller, 1984MILLER, Barbara Stoler. The Gītagovinda of Jayadeva: Love song of the Dark Lord. Delhi; Patna; Varanasi, 1984.); a pastora e o deus são os protagonistas mais representativos da bhakti (amor devocional), movimento religioso de origem popular centrado no caráter pessoal de devoção à divindade (Khokar, M.; Khokar, A., 2011KHOKAR, Ashish; KHOKAR, Mohan. The Dance Orissi. New Delhi: Abhinav, 2011.). Kṛṣṇa é encarnação de Viṣṇu, encarregado de salvar o mundo da Kali Yuga - a era da escuridão e da destruição. No Gītagovinda, além de divindade, Kṛṣṇa apresenta-se em sua veste de herói dramático (nāyaka), e tem como complemento a heroína (nāyikā) Rādhā, sua amante preferida entre as pastoras (Miller, 1984).

Os primeiros passos na transposição da função desse texto poético, de ritualística a suporte para performance artística, deram-se no âmbito do templo do deus Jagannath, outra forma de Viṣṇu, assim como Kṛṣṇa (Khokar, M.; Khokar, A., 2011KHOKAR, Ashish; KHOKAR, Mohan. The Dance Orissi. New Delhi: Abhinav, 2011.). O ritual sem testemunhas, realizado em seus primórdios pelas servas do deus (as maharis) no sanctum santorum, passou a ocupar o salão da dança (nāṭyamandapa) do templo, em performances solistas, com grande uso de gestos. Por fim, uma versão mais espetacular era apresentada em festividades em torno do templo, com meninos (os goti puas) atuando como Kṛṣṇa, Rādhā e as outras pastoras. É possível que, em parte, o Gītagovinda tenha sido concebido para ser representado (Khokar, M.; Khokar, A., 2011; Miller, 1984MILLER, Barbara Stoler. The Gītagovinda of Jayadeva: Love song of the Dark Lord. Delhi; Patna; Varanasi, 1984.; Vatsyayan, 1981VATSYAYAN, Kapila. Gita Govinda: the processes of diffusion. Marg - a Magazine of the Arts, Mumbai, v. 34, n. 3, p. 24-35, jun. 1981.).

Orissi foi recriada no bojo do movimento de revival da dança indiana19 19 Cf. nota 12. a partir de diversas referências: esculturas e relevos dos templos, pinturas, manuscritos e tratados clássicos (Nāṭyaśāstra; Abhinaya Chandrika e Abhinaya Darpana Prakasha), dramas folclóricos e, principalmente, a dança das maharis (servidoras do deus Jagannath, no templo de Puri, Orissa) e dos goti puas, meninos que dançam com figurinos femininos. A sistematização técnica de Orissi começou em 1940 e o reconhecimento como estilo clássico ocorreu nos anos 1950, graças à colaboração de numerosos professores, alunos, estudiosos, dançarinos, organismos e instituições. A contribuição pioneira nesse processo veio dos gurus Pankaj Charan Das, Kelu Charan Mahapatra, Deba Prasad Das e Mayadhar Raut, que tem em comum a influência direta das maharis, dos goti puas, e a formação artística na companhia teatral Annapurna (Khokar, M.; Khokar, A., 2011KHOKAR, Ashish; KHOKAR, Mohan. The Dance Orissi. New Delhi: Abhinav, 2011.). A partir de então, Orissi perdeu sua função ritualística para tornar-se um fato artístico. Em um espetáculo de formato clássico desse estilo, uma única atriz-dançarina, trajando figurino tradicional, interpreta todos os personagens da história, enquanto a lateral da cena é ocupada pelos músicos da pequena orquestra composta de pakhawaj (tambor de duas peles), harmonium (pequeno teclado de fole), sitar (instrumento de cordas), manjira (par de címbalos) e (veṇu) flauta transversa (Raut, 2007RAUT, Madhumita. Odissi - What, Why & How. New Delhi: B. R. Rhythms, 2007. ).

As coreografias de dança expressiva (nṛtya) de Orissi utilizam-se de recursos metafóricos sobrepostos; a palavra poética é traduzida em corpo poético, por meio de uma linguagem corporal formalizada e codificada. Essa tradução se dá pela combinação entre as técnicas do padartha abhinaya - tradução do texto da canção em gestos, palavra por palavra - e do sāñcarī bhāva - momento de improvisação, que utiliza a linguagem corporal para seguir o sentido geral do texto, mas não de forma não literal (Vescovi, 2007VESCOVI, Renzo. Scritti dal Teatro Tascabile. Organização de Mirella Schino. Roma: Bulzoni , 2007.). Ambas as técnicas têm como principal recurso os hastas - gestos das mãos. Assim como estas, outras partes do corpo - como cabeça e olhos - contam com posições, forma e significado codificados, estabelecidos em tratados clássicos20 20 Cf. nota 1. . Fazem parte também do vocabulário corporal de Orissi poses, atitudes e modos de caminhar para representar deuses e heróis (Kṛṣṇa, tocando flauta transversal; Kāma, disparando flechas de amor; Gaṇeṡa, balançando sua tromba; Rāma, empunhando seu arco), cuidados de beleza feminina (mirar-se no espelho, trançar os cabelos, colocar o sinal na testa, vestir o sari), animais, instrumentos musicais, e outros.

Os gestos (hastas) utilizados em Orissi são classificados como gestos com uma só mão (asaṃyuta) e com duas mãos combinadas (saṃyuta). Além de seus significados e formas originais, esses gestos podem adquirir dezenas de outros significados, de acordo com seu uso - os chamados viniyogas (Coomaraswamy; Duggirala, 2003COOMARASWAMY, Ananda; DUGGIRALA, Gopala K. The Mirror of Gesture: Being the Abhinaya Darpana of Nandikésvara. New Delhi: Munshiram Manoharlal, 2003.). Normalmente, a técnica do padartha abhinaya é utilizada nas partes cantadas, e o sāñcarī bhāva desenvolve-se nas partes instrumentais ou em momentos de repetição de um refrão (Vescovi, 2007VESCOVI, Renzo. Scritti dal Teatro Tascabile. Organização de Mirella Schino. Roma: Bulzoni , 2007.). Cada composição musical em Orissi obedece a um rāga (escala musical), que denota características específicas, como um sentimento ou uma estação do ano, conferindo uma atmosfera precisa à cena (Martinez, 1997MARTINEZ, José Luiz. Hindustani Classical Music and the Rasa Theory: a semiotic interpretation. In: MARTINEZ, José Luiz. Semiosis in Hindustani Music. Helsinki: International Semiotics Institute; Imatra, 1997. P. 195-368.).

Para exemplificar a relação entre texto e ação no teatro-dança clássico indiano, tomemos como exemplo uma coreografia de Orissi que privilegia nṛtya (dança expressiva), criada por um dos fundadores do estilo, o guru Mayadhar Raut. Conhecida como Yahi Mādhava (Vá embora, Mādhava), a coreografia tornou-se uma verdadeira pièce de résistance do repertório clássico desse estilo. O texto poético que deu origem à coreografia corresponde à Oitava Parte do Gītagovinda, intitulada Kṛṣṇa envergonhado (Miller, 1984MILLER, Barbara Stoler. The Gītagovinda of Jayadeva: Love song of the Dark Lord. Delhi; Patna; Varanasi, 1984.) ou descoberto (Boccali, 1982BOCCALI, Giuliano. Prefazione. In: JAYADEVA. Gītagovinda. Organização e tradução Giuliano Boccali. Milano: Adelphi, 1982. P. 11-34.), na qual o ciúme de Rādhā - a amante preferida do deus - atinge seu ápice.

Em Yahi Mādhava, Rādhā representa a expressão máxima de khaṇḍitā nāyikā21 21 O Nāṭyaśāstra estabelece quatorze tipos de heróis dramáticos (nāyakas), e oito de heroínas (nāyikās) (Coomaraswamy, 2000). - a heroína ofendida - de todo o Gītagovinda. A entrada de Rādhā em cena, empunhando a lâmpada à óleo, com a qual busca Kṛṣṇa na escuridão da noite, é acompanhada pela introdução instrumental da música. Segue-se uma pequena composição de hastas (gestos), sem acompanhamento de palavras da canção, que poderiam traduzir-se da seguinte maneira: por que Kṛṣṇa não está aqui comigo? Em seguida, Rādhā adormece, numa pose estilizada de repouso. A sincronia entre música e ação torna-se explícita quando a súbita intervenção da flauta provoca uma reação de surpresa na atriz-dançarina, como se Rādhā fosse acordada pelo som da flauta de Kṛṣṇa que se aproxima. Porém, assim que o vê, Rādhā percebe o motivo da ausência dele. O corpo de Kṛṣṇa revela sinais da noite de amor passada com outra mulher, que a atriz-dançarina descreve numa série de gestos. A chegada do herói marca a convenção espacial e dialética que se estabelece entre os dois personagens; de forma imaginária, Kṛṣṇa permanece posicionado na diagonal do proscênio, para onde a atriz-dançarina se dirige. A partir desse preâmbulo, a coreografia prossegue com a técnica do padartha abhinaya (tradução palavra por palavra), apresentando diversos momentos da heroína ofendida que destrata o herói/amante, ao mesmo tempo em que, como devota fervorosa - como expressão da bhakti22 22 Cf. p. 166. -, Rādhā prega ao deus Kṛṣṇa que venha acudi-la nesse momento desesperado. Como exemplo de sāñcarī bhāva (improvisação) em Yahi Mādhava, além da entrada de Rādhā em cena, há o momento em que a heroína destrata o amante, jogando a seus pés os presentes que havia preparado para ele (água perfumada, guirlanda de flores, etc.) (Vescovi, 1981VESCOVI, Renzo. Il Sapore della Danza: Aloka Panikar. Roma: Cooperativa Nuovo Cinema; Istituto di Cultura Scenica Internazionale; Teatro tascabile di Bergamo, 1981.).

Cada estrofe do Canto XVII, no qual a coreografia e a canção Yahi Mādhava se baseiam, conclui-se com o refrão: Yahi Mādhava, yahi Keśava, ma vada kaitava vadam. A tradução do sânscrito desse verso é: Vá embora, Mādhava, vá embora, Keśava, não dizer mentirosas palavras (Jayadeva, 1982JAYADEVA. Gītagovinda . Organização e tradução Giuliano Boccali. Milano: Adelphi , 1982.). O mesmo verso é repetido duas vezes no refrão da canção e, para cada vez, a dançarina executa uma composição diferente de gestos, revelando diversas possibilidades de tradução das palavras em gestos. Assim, na primeira vez: Yahi Mādhava (Vá embora Mādhava, epíteto de Kṛṣṇa; relacionado à primavera), a expressão é traduzida por sūcī hasta, indicando Kṛṣṇa, em modo ameaçador; yahi Keśava (vá embora Keśava: epíteto de Kṛṣṇa, relacionado ao episódio em que mata o demônio Keśī), a expressão é traduzida pelas duas mãos em catura hasta, expressando destruição; ma vada (não dizer), a expressão é traduzida por patāka hasta, com uma mão sobre a boca e outra que acena negativamente, denotando impedimento da fala; kaitava (mentirosas), é traduzida por kartarīmukha hasta, denotando a língua de duas pontas da serpente; vadam (palavras), é traduzida por probhodika hasta, para significar discurso, aquilo que sai da boca. Na repetição do verso, são usadas variantes de gestos e significados para as mesmas palavras, como, por exemplo, usar a pose de Kṛṣṇa tocando flauta, para traduzir o epíteto Keśava.

Não apenas em Orissi, mas em diversos estilos de teatro-dança clássicos indianos, toda a atitude da atriz-dançarina é moldada por formas pré-estabelecidas. Como bem disse Savarese (1992SAVARESE, Nicola. Teatro e Spettacolo fra Oriente e Ocidente. Roma-Bari: Laterza, 1992., p. 340), um dos segredos dos teatros dança asiáticos não está no virtuosismo do movimento, como os giros e saltos do balé clássico ocidental, mas no cessar do movimento: "não é o movimento, mas a pose final [...] que decide sobre sua beleza e vitalidade". Ou, como observa Clarice Lispector (1999LISPECTOR, Clarice. Notas sobre a dança hindú. In: LISPECTOR, Clarice. Para não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. P. 162-163., p. 162) em suas Notas sobre dança hindu: "O dançarino faz gestos hieráticos, quadrados, e para. É que parar por vários instantes também faz parte. É a dança do estatelamento: os movimentos param as coisas. O dançarino passa de uma imobilidade a outra, dando-me tempo para a estupefação".

Em Orissi, especialmente nas coreografias que privilegiam nṛtya (dança expressiva), a passagem de um gesto a outro - que inclui posições codificadas de cabeça, olhos, torso, braços, mãos, pernas e pés - determina a qualidade no acabamento de cada pose. Esse rigor técnico é o que possibilita a legibilidade dos gestos, para conhecedores da linguagem dos hastas (como pode ocorrer na Índia, entre críticos, especialistas e público apaixonado), e sua credibilidade, para um público leigo (a maioria, até mesmo na Índia), retomando a distinção de termos, proposta por Ruffini23 23 Cf. p. 164. . Mesmo quando não é possível a decodificação do significado dos hastas, relacionados a contextos e personagens da tradição literária, filosófica e religiosa indiana, há a beleza, a vitalidade e a estupefação que tornam os gestos críveis ao espectador sensível.

Como em outros estilos de teatro-dança clássico indiano, em Orissi é o corpo que fala. Porém, sua linguagem não é prosa, mas poesia. A poesia libera, tanto o gesto quanto a palavra que o inspirou, para uma gama de possibilidades de significações. Essa mesma ideia está presente em Paz (1982PAZ, Octavio. Poesia e poema. In: PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. P. 15-31.), que expande a ideia de poesia para além do estilo literário, e de palavra, para além de seu valor semântico, tornando-a palavra poética, concepção livre de aplicação a qualquer obra de arte. Essa liberdade é própria da poesia, que, nesse aspecto, difere da prosa:

Na prosa a palavra tende a se identificar com um de seus possíveis significados, à custa dos outros: ao pão, pão; e ao vinho, vinho. Essa operação é de caráter analítico e não se realiza sem violência, já que a palavra possui vários significados latentes, tem uma certa potencialidade de direção e sentido. O poeta, em contrapartida, jamais atenta contra a ambiguidade do vocábulo. No poema a linguagem recupera sua originalidade primitiva, mutilada pela redução que lhe impõem a prosa e a fala cotidiana. [...] A palavra, finalmente em liberdade, mostra todas as suas entranhas, todos os seus sentidos e alusões, como um fruto maduro ou como um foguete no momento de explodir no céu. O poeta põe em liberdade sua matéria. O prosador aprisiona-a (Paz, 1982PAZ, Octavio. Poesia e poema. In: PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. P. 15-31., p. 26).

Tomemos como exemplo o gesto utilizado no refrão de Yahi Mādhava - descrito acima - para traduzir a palavra mentira: o gesto utilizado alude à língua de duas pontas da serpente, simbolizando o oposto da verdade, que é unívoca; ou ainda poderia sugerir que, para o amor, a mentira pode ser tão letal quanto o veneno do réptil. A relação entre palavra e gesto suscita algo que não está dado: uma imagem poética.

[...] a pedra da estátua, o vermelho do quadro, a palavra do poema, não são pura e simplesmente pedra, cor, palavra: encarnam algo que os transcende e ultrapassa. Sem perder seus valores primários, seu peso original, são também como pontes que nos levam à outra margem, portas que se abrem para outro mundo de significados impossíveis de serem ditos pela mera linguagem. Ser ambivalente, a palavra poética é plenamente o que é ‒ ritmo, cor, significado ‒ e, ainda assim, é outra coisa: imagem. A poesia converte a pedra, a cor, a palavra e o som em imagens. E essa segunda característica, o fato de serem imagens, e o estranho poder de suscitarem no ouvinte ou no espectador constelações de imagens, transforma em poemas todas as obras de arte (Paz, 1982PAZ, Octavio. Poesia e poema. In: PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. P. 15-31., p. 27).

Corpo e Palavra no Kathakali

No āṅgika abhinaya (atuação com o corpo)24 24 Cf. p. 165. do Kathakali, o trabalho com o rosto é extremamente refinado e elaborado, mesmo em relação a outros estilos indianos. Os movimentos dos olhos (netrabhinaya) e de outras partes do rosto - como lábios, bochechas, e sobrancelhas - são usados de modo voluntário, preciso e codificado para exprimir os sentimentos (rasabhinaya). Orissi, por exemplo, possui exercícios específicos relacionados ao netrabhinaya, pois a direção do olhar, assim como os movimentos ritmados dos olhos, também é muito importante nesse estilo. Em relação ao rasabhinaya, entretanto, não há no estilo Orissi indicações tão precisas e específicas para os movimentos dos músculos do rosto, como há no Kathakali. Nele, a coordenação entre gesto e movimento das pupilas é fundamental na expressão dos hastas. O olhar do ator de Kathakali é um dos recursos mais importantes, não só para dirigir a atenção do espectador, mas também para expressar o significado das palavras.

Apesar da extrema formalização, na linguagem musical e corporal do Kathakali existe grande liberdade interpretativa. Os padam (textos) do Kathakali são compostos em versos, cantados pelos cantores e encarnados pelo ator por meio da dança expressiva (nṛtya). Cada verso é repetido um certo número de vezes para permitir ao ator expressar o seu significado. O número dessas repetições não é fixo, logo, o tempo empregado para executar a gestualidade de cada palavra pode variar, dentro de certos limites, de acordo com a elaboração do seu sentido. O ator pode jogar com o ritmo da ação dentro do ritmo da música, construindo assim a sua interpretação pessoal.

Mesmo em um padam [texto]25 25 Diálogos ou solilóquios cantados pelos cantores e acompanhados pelos músicos, enquanto são interpretados pelos atores com os hasta (gestos). Junto com os sloka (prelúdios), constituem o texto (attakkatha) de uma história no Kathakali. temos liberdade para interpretar, mas sem romper com a música. Não podemos interferir na música. É preciso ler entre as linhas. Então, cada linha você tem que ler e preencher com alguma coisa. Desse modo, mesmo em um padam você tem a possibilidade de interpretar coisas novas [...] Você tem que seguir as regras na escola, no kalari26 26 Kalari é o nome dado ao espaço de aulas e treinamentos do Kathakali. . Mas quando você vai para o palco, lá é preciso ter alguma coisa nova, porque você é um artista, não uma máquina (Nambudiri, 2007NAMBUDIRI, Naripatta. Entrevista concedida a Ricardo Carlos Gomes. In: GOMES, Ricardo Carlos. Kathakali Vesham: l'aprendistato dell'attore Kathakali . 2007. Tese (Doutorado em Storia, Teoria e Tecnica del Teatro e dello Spettacolo) ‒ Dipartimento di Arti e Scienze dello Spettacolo, Univesità degli Studi di Roma La Sapienza, Roma, 2007., p. 92).

Os músicos devem ser capazes de acompanhar o ator, fazendo a cada momento as variações necessárias para valorizar seus gestos. A música é sempre presente e tem forte ligação com a dramaturgia. O rāga (escala musical), o tāla (ritmo) e o kāla ou laya (tempo) da música são determinados pelo bhava (sentimento), em cada cena, em cada momento. Uma mudança na ação dramática determina uma mudança musical. O acompanhamento musical do Kathakali é composto somente por instrumentos percussivos: dois tambores - o chenda e o maddalam - e dois címbalos - chenkala e ilattalam - estes últimos tocados por dois cantores, únicos responsáveis pela melodia. O trabalho do músico de Kathakali não se restringe apenas à música, mas implica a ação cênica. O entrosamento entre músicos e atores deve ser total. Para obter uma simbiose perfeita entre a voz dos cantores e os gestos dos atores, os primeiros, além de cantar, devem interpretar as falas das personagens e, os segundos, devem agir dançando, mesmo quando estão sentados. Todos os gestos, as ações e as expressões do rosto e dos olhos são executados rigorosamente dentro do ritmo, em contínuo diálogo com os tambores, que contribuem para ilustrar o sentido das ações e enriquecer o seu efeito. Quando ator e músico conseguem criar a justa harmonia, temos a impressão que o som dos tambores emana do corpo do ator.

Eu poderia dizer que mais que o ator, o percussionista tem que ser bom. Por isso alguns atores só querem interpretar com um particular percussionista. Desse modo eles podem passar o sentido melhor, é mais fácil. [...] Quando eu movo a mão, o percussionista tem que saber que eu vou olhar para lá. Ele capta o sinal no meu corpo, capta o sentido. Desse modo ele pode me dar um bom efeito sonoro. [...] O percussionista tem que seguir o ator. Kathakali kottal é tocar os tambores para o Kathakali, Kathakali pattu é cantar para o Kathakali; logo, a primeira coisa é a atuação, o ator (Nambudiri, 2007NAMBUDIRI, Naripatta. Entrevista concedida a Ricardo Carlos Gomes. In: GOMES, Ricardo Carlos. Kathakali Vesham: l'aprendistato dell'attore Kathakali . 2007. Tese (Doutorado em Storia, Teoria e Tecnica del Teatro e dello Spettacolo) ‒ Dipartimento di Arti e Scienze dello Spettacolo, Univesità degli Studi di Roma La Sapienza, Roma, 2007., p. 91).

Quando usamos as palavras na vida cotidiana, utilizamos uma série de signos não verbais - respiração, movimentos dos olhos, gestos, entonações - ligados a processos psíquicos em ato dentro de nós, que expressam significados que estão além das palavras. O trabalho do ator baseia-se nessa linguagem não verbal, pois o significado profundo das palavras será compreendido pelo espectador somente se o ator for capaz de construir uma linguagem artística análoga à comunicação não verbal da vida cotidiana, capaz de exprimir ao mesmo tempo aquilo que as palavras dizem e aquilo que elas não podem dizer. Se observamos a questão desse ponto de vista, notamos que o trabalho do ator de Kathakali não difere na sua essência daquele de um ator que usa a voz para dizer um texto. A diferença está no nível da linguagem: no Kathakali, e em outras formas de teatro clássico indiano, além da linguagem das palavras, cantadas pelo cantor, temos também o plano da linguagem gestual/corporal, em diálogo com as palavras cantadas.

Quando uma palavra é representada com os hastas, há três níveis de significado: o primeiro é o karta, o sujeito da representação, o significado denotativo da palavra; depois temos o karma, a ação que revela a sua natureza intrínseca, as suas características principais; enfim, há o kṛiya, as ações específicas desse sujeito no contexto do drama. Vejamos um exemplo, para compreender como esses três níveis semânticos se desenvolvem na prática. Elaborando a imagem da flor de lótus, o ator primeiramente nos mostra a flor que desabrocha: começa o movimento com as mãos fechadas para em seguida abri-las lentamente, unindo os pulsos e colocando os dedos como se fossem as pétalas de uma flor; o ator olha a flor que suas mãos representam e exprime com os olhos e com o rosto a felicidade dessa visão, cheira a flor e se delicia com seu perfume. Nesse momento, os seus olhos fazem rápidos movimentos, como se eles acompanhassem os movimentos de uma abelha que voa em torno da flor até pousar sobre ela, sugar o seu néctar e ir embora voando. Nesse caso, o karta é representado pelas mãos em forma de flor, o karma pelo seu desabrochar e pelo ator que a olha e sente seu perfume, enquanto que o kṛiya (que no caso da flor é passivo) são as ações da abelha representadas pelo ator apenas com os olhos (Gomes, 2007GOMES, Ricardo Carlos. Kathakali Vesham: l'aprendistato dell'attore Kathakali. 2007. Tese (Doutorado em Storia, Teoria e Tecnica del Teatro e dello Spettacolo) ‒ Dipartimento di Arti e Scienze dello Spettacolo, Università degli Studi di Roma La Sapienza, Roma, 2007.).

A possibilidade de desenvolver mais amplamente ou não esses três níveis de expressão está ligada à importância que uma determinada palavra tem dentro do discurso e da história. Os pequenos detalhes da expressão, do rosto e dos movimentos dos olhos, em sintonia com os gestos, amplificados pela prodigiosa técnica de atuação do Kathakali, são os instrumentos para interpretar, junto com os músicos, as ideias e sentimentos que a imaginação do ator sugere, pois, como afirma Meyerhold, "[...] não se trata apenas de movimentos, nem apenas de palavras, mas também de cérebro... O cérebro tem que estar em primeiro lugar, porque é o verdadeiro motor do objetivo da ação, o cérebro é que orienta, que determina a sequência dos movimentos, sua acentuação e tudo mais" (Mejerchol'd, 1993MEJERCHOL'D, Vsevolod. L'Attore Biomeccanico: testi raccolti e presentati da Pesocinskij N. a cura di Malcovati F. Milano: Ubulibri, 1993., p. 18).

Quando você usa a sua mente vai haver alguma ênfase. Isso pode acontecer em diferentes níveis. Se você faz um mudrā27 27 Nesse contexto, a palavra mudrā é usada como sinônimo de hasta. Cf. nota 15. , na sua mente essa ênfase vai ser diferente a cada momento. Senão, a flor de lótus vai ser sempre a mesma. Mas dependendo de como a sua mente trabalha, a flor vai ser diferente. É só o que eu posso dizer: os pequenos detalhes da flor, o seu perfume... assim - se a sua mente está trabalhando, se as pessoas estão recebendo isso - você pode desenvolver o mudrā (Nambudiri, 2007NAMBUDIRI, Naripatta. Entrevista concedida a Ricardo Carlos Gomes. In: GOMES, Ricardo Carlos. Kathakali Vesham: l'aprendistato dell'attore Kathakali . 2007. Tese (Doutorado em Storia, Teoria e Tecnica del Teatro e dello Spettacolo) ‒ Dipartimento di Arti e Scienze dello Spettacolo, Univesità degli Studi di Roma La Sapienza, Roma, 2007., p. 101-102).

Para além dos recursos linguísticos, o abhinaya (atuação)28 28 Cf. p. 165. do ator de Kathakali prevê o movimento harmônico de todo o corpo. A ideia de envolvimento de todo o corpo do ator na ação, reivindicada por Meyerhold, quando afirma que "[...] cada movimento, mesmo que seja do dedo mindinho, deve repercutir imediatamente em todas as partes do corpo" (Mejerchol'd, 1993MEJERCHOL'D, Vsevolod. L'Attore Biomeccanico: testi raccolti e presentati da Pesocinskij N. a cura di Malcovati F. Milano: Ubulibri, 1993., p. 95), é colocada em prática com a técnica do anusarikiuka, palavra que quer dizer seguir, obedecer e, no Kathakali, é usada para indicar que o corpo deve acompanhar o gesto para dar-lhe maior ênfase.

Não deve ser uma coisa mecânica ou exagerada. Neste gesto, o corpo deve fazer anusarikiuka com um pequeno movimento circular. Quando você faz [o gesto] sem a colaboração do corpo, faz só por fazer. É preciso ajudar o gesto com um pequeno movimento de anusarikiuka [acompanhamento] do corpo. Sem colocar ar demais aqui [aponta para o peito], sem rigidez. É preciso relaxar o corpo (Nair, 2007NAIR, Padmanabhan. Registro da aula ministrada a Giusepe Chierichetti e Alessandro Rigoletti. In: GOMES, Ricardo Carlos. Kathakali Vesham: l'aprendistato dell'attore Kathakali . 2007 Tese (Doutorado em Storia, Teoria e Tecnica del Teatro e dello Spettacolo) ‒ Dipartimento di Arti e Scienze dello Spettacolo, Univesità degli Studi di Roma La Sapienza, Roma, 2007. , p. 104).

O domínio de todas essas técnicas, porém, não basta para exprimir a vida interior das personagens. O Nāṭyaśāstra (Rangacharya, 2003RANGACHARYA, Adya (Org.). The Nāṭyaśāstra . New Delhi: Munshiram Manoharlal , 2003., p. 76) diz que a emoção é necessária para representar corretamente o comportamento dos homens, suas dores e os prazeres. Somente o tempo pode concluir a formação de um ator, com o seu amadurecimento, sua observação da vida, e também com o contato com os mestres, com a visão de muitos espetáculos e a formação do seu gosto estético.

Teatro como Palavra Poética

Para finalizar nossa reflexão sobre dramaturgia do corpo em diálogo com a noção de dṛśya kāvya (visível poesia), retomemos as considerações de Paz (1982PAZ, Octavio. Poesia e poema. In: PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. P. 15-31., p. 27), assinaladas anteriormente29 29 Cf. p. 171. , sobre as propriedades da "palavra poética" de gerar imagens, diferentemente da prosa. A densidade da linguagem poética encarnada no corpo do ator/dançarino do teatro-dança clássico indiano permite diversos níveis de leitura para diversos espectadores, de acordo com suas próprias referências culturais. Essa mesma densidade é aquela que aproxima a linguagem teatral não verbal à "constelação de imagens", suscitada pela palavra poética, e por todas as obras de arte que transcendem a linguagem verbal, como descrito por Paz (1982, p. 26-27).

Ao pensarmos dramaturgia do corpo como inter-relação entre palavra e ação na arte do ator, como Paz (1982PAZ, Octavio. Poesia e poema. In: PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. P. 15-31.), estamos atribuindo ao ator a qualidade do poeta. O ator lírico transforma seu corpo orquestra30 30 Cf. p. 158-159. em linguagem poética, em palavra poética, em corpo crível31 31 Cf. p. 164. , que se afasta da legibilidade, da razão, da prosa. A sugestão para essa aproximação entre arte do ator e poesia, chega-nos por via de dṛśya kāvya (visível poesia), noção desenvolvida no teatro dança-clássico indiano, e estruturada no abhinaya (meios expressivos usados pelo ator para levar as palavras de um texto poético ao espectador), que, no caso de Orissi e Kathakali, privilegiam o āṅgika abhinaya (expressão pelo corpo). Por outros caminhos, essa mesma sugestão remete-nos a Artaud (1984ARTAUD, Antonin. A Encenação e a Metafísica. In: ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Max Limonad, 1984. P. 46-63., p. 52), a suas intuições sobre o teatro de Bali, sobre a "poesia no espaço", no qual a materialidade do corpo e do gesto do ator compõe uma linguagem destinada mais aos sentidos do que à razão.

Transitando entre o teatro ocidental e o teatro asiático, poderíamos dizer que o teatro-dança clássico indiano já havia encontrado há muitos séculos aquilo que Artaud (1984ARTAUD, Antonin. A Encenação e a Metafísica. In: ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Max Limonad, 1984. P. 46-63., p. 95) demandava ao teatro ocidental de seu tempo, ou seja:

Não se trata de suprimir a palavra do teatro mas de fazer com que mude de destinação, e sobretudo de reduzir o lugar que ocupa [...] mudar a destinação da palavra no teatro é servir-se dela num sentido concreto e espacial e de significação no domínio concreto; é manipulá-la como um objeto sólido e que abala as coisas, primeiro no ar e depois num domínio infinitamente mais misterioso e secreto [...]

Abordar a dramaturgia do corpo no teatro-dança clássico indiano pode propor motes para a reflexão sobre o trabalho do ator brasileiro contemporâneo? Essas técnicas de atuação orientais, aparentemente tão distantes de nós, podem ser relevantes para o teatro que fazemos, aqui e agora? São questões que não podem prescindir da relação intrínseca entre pesquisa e biografia, característica da pesquisa artística. Nossa experiência pessoal com o teatro asiático - fortemente marcada pela relação com um particular teatro-laboratório europeu -, e a bagagem de conhecimentos acumulados, desenvolveram a sensibilidade que permite-nos formular essas questões sob certas premissas. Consideramos o interculturalismo teatral europeu como uma referência fundamental, mas, ao mesmo tempo - conscientes do valor, mas também dos limites dessa abordagem europeia - nos perguntamos como um pesquisador brasileiro pode utilizar essas referências para pensar uma possível relação intercultural entre Brasil e Índia, considerando que Ásia e América Latina ocupam lugar análogo no imaginário europeu, como representantes da alteridade.

Em nossas pesquisas práticas e teóricas dos últimos vinte anos, estamos em busca de uma perspectiva intercultural para o trabalho do ator que permita-nos incorporar às técnicas ocidentais as tradições cênicas asiáticas, na certeza de que a riqueza de seu patrimônio artístico e espiritual é não apenas relevante, mas pode vir a ser fundamental para um teatro que se distancia de um modelo logocêntrico.

O teatro ocidental moderno, como aponta De Marinis (2011DE MARINIS, Marco. Il Teatro dell'Altro - Interculturalismo e Transculturalismo nella Scena Contemporanea. Firenze: La casa Husher, 2011., p. 9), é, na sua essência, intercultural - porque nasce do encontro-confronto de identidades (de artistas e espectadores) pessoais, profissionais e socioantropológicas diferentes - e transcultural, na medida em que (quando produz experiência real) tende a superar os dados culturais de origem, colocando em questão as identidades - individuais e coletivas - codificadas.

Como vimos, a tentativa de aproximar conceitos aparentemente distantes e de culturas diversas não é novidade no âmbito teatral. Por ora, este artigo pretende apenas ser uma provocação/convite que aponte para muitos outros desdobramentos, contribuindo para a discussão contemporânea sobre dramaturgia do corpo no teatro; no Ocidente e no Oriente; na Europa e na Ásia; na Itália, na Índia, no Brasil, no mundo.

Referências

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  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • 1
    A utilização do vocábulo clássico em referimento à arte tradicional indiana é questionável, uma vez que refere-se à arte e cultura dos antigos gregos e romanos. Ele é, no entanto, adotado pelos estudiosos indianos, que também criaram critérios para classificar as diversas manifestações cênicas indianas como clássicas (margi), quando estão fundamentadas na tradição dos tratados antigos - em especial o Nāṭyaśāstra - ou populares (desi), quando não possuem essas referências. Atualmente, essa classificação é determinada oficialmente pela Sangeet Natak Akademy - instituição governamental de fomento às artes cênicas. Os estilos Orissi e Kathakali são considerados clássicos, ao lado de outros, como Bharata Natyam, Manipuri, Kathatk, Kuchipudi, Mohini Attam e Sattriya (Kothari, 2010KOTHARI, Sunil. New Directions in Indian Dance. Mumbai: Marg, 2010.).
  • 2
    Os nomes Orissi e Odissi referem-se ao mesmo estilo de teatro-dança clássico indiano e podem ser igualmente encontrados na literatura especializada. Neste artigo, iremos considerar a nomenclatura Orissi, utilizada por Ashish Khokar e Mohan Khokar (2011KHOKAR, Ashish; KHOKAR, Mohan. The Dance Orissi. New Delhi: Abhinav, 2011.) e Mohan Khokar (1979KHOKAR, Mohan. Traditions of Indian Classical Dance. New Delhi: Clarion Books, 1979.), renomados pesquisadores e autores de obras de referência sobre o assunto, especialmente o livro The dance Orissi.
  • 3
    "São especialistas em dançar o Kathakali, com uma maestria que faz com que sejam aceitos como especialistas até mesmo na Índia" (Barba, 1993BARBA, Eugenio. La Canoa di Carta. Bologna: Il Mulino, 1993., p. 218). "[...] quando se faz referência a um modo 'sério' de ocupar-se de teatros asiáticos, o TTB é um dos nomes que vem súbito à mente" (Schino, 2004SCHINO, Mirella. Vasi capillari. Teatro e Storia, Roma, Bulzoni, n. 24, anno XVII (2002-2003), p. 13-25, 2004., p. 15).
  • 4
    "[...] um dos maiores especialistas da Europa" (Schino, 1997SCHINO, Mirella. Il Crocevia del Ponte d'Era. Roma: Bulzoni, 1997., p. 316).
  • 5
    De acordo com Schino (2012SCHINO, Mirella. Alquimistas do Palco: os laboratórios teatrais na Europa . São Paulo: Perspectiva , 2012., p. IX e 196), Grande reforma, ou Wielka Reforma como dizem estudiosos e teatrantes poloneses, é o termo que busca "expressar as mudanças radicais que aconteceram no teatro nas primeiras três décadas do séc. XX". Alguns protagonistas do período são Stanislávski, Meyerhold, Craig, Appia, Copeau, Fuchs e Reinhardt, também conhecidos como "diretores pedagogos", interessados mais na pesquisa, em estúdios, escolas e ateliês, do que na atração de público, e que "estabeleceram práticas e poéticas que não podem ser confinadas a um ou mais espetáculos".
  • 6
    O TTB trabalha há muitos anos com outra dança indiana, o Bharata Natyam (com Usha Raghavan). O grupo realizou experiências com outras formas cênicas asiáticas, como a dança indiana Kuchipudi (com Satya Priya Ramana), o Teatro Balinês (com I Made Djimat) e a Ópera de Pequim (com Pei Yan Ling). Porém, Orissi e Kathakali foram o ponto de partida das pesquisas e permanecem como principais referências.
  • 7
    A tradução deste e de todos os textos em língua estrangeira citados neste artigo é nossa.
  • 8
    Cf. p. 157.
  • 9
    Filósofo da arte e da religião hindu, que viveu no Kashmir (Índia) de 950 a 1020 d.C.
  • 10
    Neste artigo, tomamos como referência as traduções do Nāṭyaśāstra de Aya Rangacharya (2003RANGACHARYA, Adya (Org.). The Nāṭyaśāstra . New Delhi: Munshiram Manoharlal , 2003.) e Manomohan Ghosh (1995GHOSH, Manomohan (Org.). The Nāṭyaśāstra. Calcutta: Manisha Granthalaya, 1995.).
  • 11
    Para mais informações sobre o Nāṭyaśāstra, cf. Gomes (2005GOMES, Ricardo. A tradição do ator entre Oriente e Ocidente. Revista Sala Preta, São Paulo, Universidade de São Paulo, v. 5, p. 39-46, São Paulo, 2005. Disponível em: <Disponível em: http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57263/60245 >. Acesso em: 31 maio 2015.
    http://www.revistas.usp.br/salapreta/art...
    ).
  • 12
    Durante a colonização inglesa, as danças indianas, consideradas obscenas, foram perseguidas e até mesmo proibidas. No início do século XX, quando muitas dessas tradições pareciam perdidas ou degeneradas, no bojo do processo de independência da Índia, surgiu um movimento de resgate da cultura indiana, no qual o revival da dança teve um papel importante. A partir dos anos 1930, o teatro-dança indiano foi reinventado por intelectuais e artistas, com forte referência à tradição do Nāṭyaśāstra e outros tratados antigos (Khokar, 1979).
  • 13
    Dṛśya: visível, evidente, para ser visto, digno de ser visto, bonito, prazeroso; [...] qualquer objeto visível [...]. Kāvya: dotado das qualidades do sábio ou poeta, vindo do sábio, profético, inspirado, poético; [...] poema, composição com um tema coerente e de um único autor [...] (Monier-Williams, 1994MONIER-WILLIAMS, Monier. Sanskrit English Dictionary. New Delhi: Munshiram Manoharlal , 1994. P. 280 e 491., p. 280 e 491).
  • 14
    A exceção mais representativa em relação a esse aspecto de não utilização da voz falada no teatro indiano é o Kuttiyattam, considerada a forma teatral indiana mais próxima ao teatro sânscrito descrito no Nāṭyaśāstra. Originário do Kerala, o Kuttiyattam é uma das mais importantes influências para a criação do Kathakali.
  • 15
    O teatro-dança clássico indiano utiliza a gestualidade do ritual tântrico para criar uma linguagem de gestos codificados. O culto tântrico usa técnicas de concentração ritual e de interação com o divino baseadas em gestos rituais chamados mudrā (selo, forma) e em palavras chamadas mantra (hino, invocação). Nas artes cênicas, esses gestos, despidos de sua eficácia ritual, são designados como hasta (mãos) (Padoux, 2010PADOUX, André. Comprender le Tantrisme: les sources hindoues. Paris: Abin Michel, 2010. ).
  • 16
    Cf. p. 157.
  • 17
    Cf. nota 15.
  • 18
    Cf. nota 15.
  • 19
    Cf. nota 12.
  • 20
    Cf. nota 1.
  • 21
    O Nāṭyaśāstra estabelece quatorze tipos de heróis dramáticos (nāyakas), e oito de heroínas (nāyikās) (Coomaraswamy, 2000COOMARASWAMY, Ananda. The Eight Nāyikās. New Delhi: Munshiram Manoharlal Publishers, 2000. ).
  • 22
    Cf. p. 166.
  • 23
    Cf. p. 164.
  • 24
    Cf. p. 165.
  • 25
    Diálogos ou solilóquios cantados pelos cantores e acompanhados pelos músicos, enquanto são interpretados pelos atores com os hasta (gestos). Junto com os sloka (prelúdios), constituem o texto (attakkatha) de uma história no Kathakali.
  • 26
    Kalari é o nome dado ao espaço de aulas e treinamentos do Kathakali.
  • 27
    Nesse contexto, a palavra mudrā é usada como sinônimo de hasta. Cf. nota 15.
  • 28
    Cf. p. 165.
  • 29
    Cf. p. 171.
  • 30
    Cf. p. 158-159.
  • 31
    Cf. p. 164.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2016
  • Aceito
    04 Set 2016
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