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Teatralidade, entre Teorias e Práticas: um olhar sobre a abordagem do Théâtre du Soleil

Resumo:

Este artigo aborda a problemática atual da noção de teatralidade, tratando de suas diversas definições, críticas e abordagens no que se refere à prática teatral ocidental, de acordo com teóricos e artistas desde o início do século XX. Baseado em uma abordagem histórica da teatralidade, o artigo revisita sobretudo suas relações com as noções de performance e de performatividade, criando fundamentos para analisar a emergência de teatralidade na criação de Macbeth (2014), no Théâtre du Soleil.

Palavras-chave:
Teatralidade; Performatividade; Théâtre du Soleil; Ariane Mnouchkine; Processo Criativo

Résumé:

Cet article aborde la problématique actuelle de la notion de théâtralité, couvrant ses nombreuses définitions, critiques et approches sur la pratique théâtrale en Occident, d'après plusieurs théoriciens et artistes depuis le début du XXe siècle. Appuyé par une approche historique de la théâtralité, l'article revisite notamment ses rapports avec la performance et la performativité, donnant ainsi des fondements pour analyser l'émergence de la théâtralité dans la création de Macbeth (2014) au Théâtre du Soleil.

Mots-clés:
Théâtralité; Performativité; Théâtre du Soleil; Ariane Mnouchkine; Processus Créatif.

Abstract:

The present article approaches the contemporary problematics around the notion of theatricality; its various definitions, criticisms and approaches concerning performing arts in the West, according to theorists and artists since the beginning of the 20th century. Supported by a historical approach of theatricality, this article revisits its relation to the notions of performance and performativity, providing material to analyze the emergence of theatricality in the creation of Macbeth (2014) at the Théâtre du Soleil.

Keywords:
Theatricality; Performativity; Théâtre du Soleil; Ariane Mnouchkine; Creative Process

Conceito frequentemente citado e criticado dentro e fora do meio teatral, a noção de teatralidade é problemática entre artistas e teóricos desde o momento em que começou a ser empregada, no início do século XX. No entanto, a partir dos anos 1980, o termo passa a ser questionado, graças à irrupção de discussões em torno das noções contemporâneas de transdisciplinaridade e de performatividade, entre outras. Mas de qual teatralidade estamos falando? Como produzi-la ou torná-la possível? Por que esse termo sempre gerou tantas conotações depreciativas? Existiria teatro sem teatralidade?

Em seu dicionário do teatro, Patrice Pavis (2003PAVIS, Patrice. Dictionnaire du Théâtre. Paris: Armand Colin, 2003., p. 358) ressalta a dificuldade de definir o conceito: "Nossa época teatral se caracteriza pela busca dessa teatralidade que foi por muito tempo ocultada. Mas o conceito tem algo de místico, generalizante, talvez até idealista e etnocêntrico". No prefácio de um periódico que abordou o tema da teatralidade em 2002, Josette Féral (2002FÉRAL, Josette. Foreword. SubStance: The rise and fall of Theatricality - Special Issue, v. 31, n. 2/3, Issue 98/99, p. 3-13, 2002., p. 4) afirma: "É justamente porque a noção de teatro mudou, que temos que continuar a redefinir a noção de teatralidade".

Este artigo aprofundará alguns dos questionamentos que permeiam a teatralidade a partir dos espetáculos do Théâtre du Soleil - e, mais precisamente, da sua adaptação de Macbeth, da qual participamos, entre 2013 e 2015. Introduzimos o tema a partir de uma breve definição proposta por Josette Féral (2012FÉRAL, Josette. Les Paradoxes de la Théâtralité. Théâtre/Public, Paris, n. 205, p. 8-11, automne 2012. (Entre-deux. Du théâtral et du performatif)., p. 9):

[a teatralidade seria] um processo no qual o sujeito (aqui o artista) modifica a perspectiva das coisas afim de obrigar o espectador a 'vê-las de maneira diferente'. [...] Ela implica a existência de uma defasagem entre a vida e a cena, entre a ação natural e a ação teatralizada.

Nos espetáculos do Théâtre du Soleil, cada elemento usado em cena (e para a cena) dá suporte ao jogo cênico, a fim de que este seja transposto teatralmente e convencionado. Tudo é criado com uma perspectiva do todo, ao longo do período de ensaios e da definição da estrutura do espetáculo. Essa teatralidade depende, entre outras coisas, de convenções criadas com as ferramentas dadas pelo espaço, pelos figurinos, pela música e pela iluminação para sustentar o jogo cênico. Porém, para tornar possível a "desafasagem entre a vida e a cena" mencionada por Féral, a teatralidade depende tanto da performance dos artistas quanto da identificação e do olhar do espectador.

Um evento, considerado como teatral hoje em dia, não o seria (e nem o será) em qualquer outra época - se admitirmos, em uma concepção contemporânea do termo, que é o olhar do espectador que faz emergir a teatralidade. Trata-se de um fenômeno que depende ao mesmo tempo de um sujeito/objeto observado (o performer ou a cena) emissor/portador de signos, e de um observador (o espectador) que seja capaz de identificar e de decifrar esses signos enquanto tais11 11 Esta reflexão baseia-se principalmente na abordagem de Josette Féral sobre a teatralidade. . Essa fórmula pode variar em função de inúmeras condições: o contato entre os dois, a bagagem e o meio cultural, a época e o espaço de apresentação, o contexto social e político em questão, e, é claro, o desejo de comunicar (transmitir e receber) por meio de convenções, signos e códigos comuns.

Apesar da sua raiz antiga, atribuída ao latim clássico theatralis, a implicação do termo nas teorias das artes cênicas só surgiu no início do século XX - nas publicações de Nicolas Evreinov sobre o conceito de teatralnost. Embora tenha sido brevemente retomado nos anos 1950 por Roland Barthes, o interesse sobre o termo ressurgiu apenas nos anos 1980, questionado pelo grande movimento de transdiciplinaridade das artes e pela performance. Desde então, a teatralidade é objeto de diferentes interpretações, incidindo sobre meios e regras distintos, nem sempre ligados ao teatro. Mesmo na era do (pós) pós-dramático e do (pós) pós-moderno, na qual os teóricos se questionam sobre o esgotamento da transgressão das fronteiras artísticas, ainda é necessário rever a noção de teatralidade.

A Performance entra em Jogo

A última grande transformação das referências atreladas à noção de teatralidade no meio artístico provém de discussões e movimentos iniciados nos anos 1970 em torno da performance (e, com isso, da performatividade). A performance se insere no meio teatral ao mesmo tempo que o rejeita - rejeitando, com isso, a noção de teatralidade. De um lado, os performance studies, conduzidos por Richard Schechner, privilegiaram as esferas sociais da performatividade e do ato artístico de performar, e relativizaram o papel do artista (o performer) e do espectador. De outro, com a Performance Art, a irrupção da performance nas manifestações e nos estudos teatrais dilacera progressivamente os limites do representável e do cênico. O efeito de presença, o caráter ficcional, e a verdade do corpo teatral são constantemente questionados por artistas e teóricos.

De acordo com a análise de Janelle Reinelt (2012REINELT, Janelle. La Politique du Discours: performativité et théâtralité. Théâtre/Public, Paris, n. 205, p. 12-20, automne 2012. (Entre-deux. Du théâtral et du performatif)., p. 13), "[...] este uso do termo 'performance' pertence à história do teatro de vanguarda, ou antiteatro, e é fundado na rejeição de aspectos da prática tradicional do teatro". Entretanto, não podemos esquecer que, apesar de terem a mesma raiz, os termos "performance" e "performatividade" não são permutáveis! Para além dessa referência histórica, Josette Féral (2012FÉRAL, Josette. Les Paradoxes de la Théâtralité. Théâtre/Public, Paris, n. 205, p. 8-11, automne 2012. (Entre-deux. Du théâtral et du performatif)., p. 11) nos relembra:

A teatralidade tem a ver também com o corpo, com as pulsões, com o desejo e portanto com a performatividade. [...] A performatividade é o que permite que qualquer apresentação seja vista como uma atividade singular e em constante transformação a cada vez que se produz. Já a teatralidade é o que permite ao espectador identificar rupturas neste movimento performativo, podendo inscrever a cena no ato representativo.

Citada como referência no assunto por diversos teóricos - tais como André Helbo, Marlvin Carlson, Patrice Pavis e Richard Schechner -, Josette Féral se ocupa em teorizar as práticas atuais ao mesmo tempo em que revisita as teorias mais relevantes do século XX, atualizando-as e questionando-as. Sua abordagem coloca a recepção do espectador em evidência dentro da emergência da teatralidade, e abre o diálogo entre performatividade e teatralidade - perspectivas que nos parecem fundamentais para tratar a questão da teatralidade no Théâtre du Soleil.

A abordagem de Féral nos interessa particularmente por introduzir as noções de clivagens e de alteridade como base de sua teoria da teatralidade - precisamente no momento em que essas noções convergem com a noção de espetacularidade: no centro da teoria, então, está a identificação de certas referências teatrais e de um espaço extracotidiano, com leis e regras específicas que levam o espectador a ter um olhar diferente, olhar outro sobre o evento teatral. Este olhar é sempre duplo devido à dualidade ficção/realidade, própria à espetacularidade, na qual se inscreve a denegação do espectador - o famoso "eu sei, mas mesmo assim..."12 12 Esta frase é frequentemente utilizada para explicar o processo de denegação do espectador de teatro, resumidamente definida aqui: "O modo de adesão por identificação e denegação pertence a um contrato especificamente teatral: o espectador se identifica com os personagens ao mesmo tempo em que está consciente de que a ação cênica é uma ilusão" (Bouko, 2010, p. 228). . A abordagem sugere também que a emergência da teatralidade seja compreendida como um processo não-autônomo e não-qualitativo - o que significa que ela só se produz por meio de um processo contínuo do observado/observador, não podendo ser medida em intensidade ou em graus.

Com essa noção volúvel de teatralidade mais bem enquadrada, seguiremos a discussão cobrindo outras abordagens teóricas sobre a teatralidade antes de passar ao estudo de caso do Théâtre du Soleil.

Teatralidade, Conotações e Críticas

A noção de teatralidade permeia com frequência as ciências literárias e sociais, a filosofia, a psicologia e a antropologia. Antes de abordar as teorias mais recentes, nas quais a teatralidade começa a ser desmistificada, passaremos por algumas contradições e críticas enfrentadas desde o início do século XX, a fim de contextualizá-la historicamente.

No ensaio Résistance à la théâtralité (2012), Marvin Carlson salienta diversas problemáticas envolvendo o uso do termo teatralidade. Remarcaremos duas delas, as quais serão abordadas com mais atenção neste artigo: 1) a resistência à sua legitimação, reforçada pelo predomínio do realismo e da produção centrada no texto no teatro ocidental tradicional; 2) sua relação contraditória e ambígua com os conceitos de performance e performatividade. Entre uma e outra, poderemos enquadrar melhor e relativizar a questão da teatralidade tal qual nós a encontramos atualmente no Théâtre du Soleil.

Introduziremos essas problemáticas por meio de dois casos que ilustram o desafio da aceitação da teatralidade ao longo do século passado, tanto por uma oposição ao realismo ocidental quanto pela rejeição ao não-performativo.

Um Século entre Moscou e Paris

Em novembro de 1906, em Moscou, Meyerhold encena a peça Barraca de Feira, do poeta Alexandre Blok. Este poeta lírico, bem como muitos outros artistas da época, vê a teatralidade no teatro como uma falta deliberada de sinceridade, verdade e lirismo; e, consequentemente, a representação do grotesco, esquemático, estereotipado. De acordo com Gérard Abensour (1982ABENSOUR, Gérard. Blok face à Meyerhold et Stanislavski, ou le problème de la théâtralité. Revue des Études Slaves, Paris, tome 54.4, p. 671-679, 1982., p. 671), teórico que analisou o diário e as anotações publicadas de Blok, "nesta ótica, ser teatral é ser falso". Não agrada ao poeta essa teatralidade, e considera Meyerhold um homem modernista, de veia expressionista, que produzia um teatro desprovido de psicologismo. Para Blok, o psicologismo é justamente característica daquilo que alimenta a alma. Ele decide, então, utilizar um dispositivo dramatúrgico para tentar distanciar teatro e teatralidade, a fim de denunciar sua falsidade e reencontrar a sinceridade de personagens humanizados. Abensour (1982, p. 672) descreve a situação tal qual ela se passou em 1906, e critica a atitude de Blok:

O poeta introduz em sua peça um personagem que, em princípio, não revela nenhuma teatralidade. Trata-se do Autor. Ele entra em cena com uma roupa cotidiana, e declara diretamente ao público suas boas intenções de maneira bastante sincera. [...] Ora, por um efeito inverso, seu personagem anti-teatral acaba revelando sua teatralidade interior, ou seja, sua falta de verdade e de humanidade. A intriga imaginada pelo poeta era em realidade um clichê teatral já desgastado, desprovido de qualquer verdade profunda. [...] Toda a existência de Blok se volta contra a tal pobreza conceitual, contra uma vulgaridade que aqui é sinônimo de teatralidade (grifos nossos).

No artigo de Gérard Abensour, publicado em 1982ABENSOUR, Gérard. Blok face à Meyerhold et Stanislavski, ou le problème de la théâtralité. Revue des Études Slaves, Paris, tome 54.4, p. 671-679, 1982., já podemos perceber um certo questionamento dessa concepção de teatralidade representando tudo o que revela o "mau gosto", ou que escapa ao "realismo benigno"13 13 As duas expressões são utilizadas por Blok: a primeira descreve o teatro de Meyerhold, e a segunda o de Stanislavski (Abensour, 1982, p. 672 e 675). tão desejado pelo teatro em voga do início do século.

Cento e sete outonos após o caso de Blok encontramos a seguinte passagem em nossas anotações pessoais14 14 Este trecho foi retirado do nosso caderno de anotações da observação participante no Théâtre du Soleil, e foi escrito na data que o precede. , durante o processo criativo de Macbeth no Théâtre du Soleil:

Dia 5 de novembro de 2013: Maurice e Juliana improvisam uma cena do segundo ato, onde o casal Macbeth se encontra às escondidas após o assassinato do rei Duncan. Ariane os interrompe antes do fim da cena com o seguinte comentário: 'Não é isso. Vocês estavam na teatralidade, e não no teatro...' Fiquei surpresa! Por que ela havia usado esse termo?! Em seguida ela se dirige a nós, que assistíamos à cena na arquibancada: 'Mas vocês entendem o que eu quero dizer quando falo em teatralidade, não?'. E continua a comentar a improvisação, usando palavras como interpretação forçada, estado superficial, clichês, estereótipos e falta de verdade. Ficou claro que ela sentiu necessidade de justificar seu pensamento, já que a teatralidade é um termo cheio de conotações. Quando uma conotação pejorativa acaba sendo usada no contexto artístico, é preciso evitar ambiguidades.

Ao longo do processo criativo, Mnouchkine utilizou diversas vezes o termo teatralidade com a mesma conotação pejorativa - coisa que ela talvez não fizesse em outro contexto. Não pretendemos aqui dar opiniões sobre o uso que a encenadora faz desse termo na intimidade dos ensaios. Entretanto, é interessante observar que ela emprega a noção de teatralidade em um sentido negativo, enquanto o adjetivo teatral exprime todo o sentido de sua busca artística mais profunda: os momentos de verdade do Teatro, com T maiúsculo.

O Teatral e o Realismo

Durante o século que separa Mnouchkine de Blok, observamos um grande paradoxo: se a busca pelo realismo foi fortemente transformada, a conotação pejorativa da teatralidade permanece, fazendo oposição à autenticidade (a verdade) da performance teatral. Para introduzir o assunto, citamos Marvin Carlson (2012CARLSON, Marvin. Résistance à la Théâtralité. Traduit de l'anglais par Virginie Magnat. Théâtre/Public, Paris, n. 205, p. 28-35, automne 2012. (Entre-deux. Du théâtral et du performatif)., p. 31-32):

O declínio do interesse pelo termo 'teatralidade' [...] foi sem dúvida reforçado pelo predomínio do realismo no teatro ocidental convencional do século XX. Do ponto de vista da tradição realista, a teatralidade também é vista de forma muito negativa, uma vez que, ao aparecer ou ser reconhecida enquanto tal, ela coloca em xeque a ilusão que o próprio procedimento do teatro tenta negar.

Blok está historicamente inserido no contexto descrito por Carlson, ao contrário de artistas excepcionais como Meyerhold, Artaud, Barba, Brook e Mnouchkine, que, ao longo do século, tentaram fugir dessa tradição realista15 15 Este exemplo é apenas uma ilustração dos dois casos apresentados. O poeta Alexandre Blok parte de um grande movimento histórico, preferia o realismo teatral às estéticas propostas pela vanguarda do início do século XX. . Para isso, eles frequentemente recorreram às artes tradicionais orientais, distanciadas da forma realista ocidental. Nas tradições orientais, esses artistas descobriram um espetáculo formal convencionado, codificado. As fronteiras entre teatro, dança e música não eram tão claras quanto no Ocidente e, na espetacularidade, não havia espaço para a linguagem cotidiana, realista.

A oposição entre os teatros de Blok e de Mnouchkine parece óbvia, pois ela rejeita o realismo e o psicologismo tão desejado por Blok16 16 A noção de realismo para Mnouchkine não é exata: ao longo dos ensaios de Macbeth ela empregava o termo para fazer referência à interpretação realista cotidiana, mas também para falar de uma "falta de poesia" e da "ausência do teatral". . Porém, a categorização não é tão simples: Blok nega o teatral em busca do "realismo benigno" de Stanislavski, enquanto a rejeição da teatralidade para Mnouchkine não se resume à conotação pejorativa do termo.

Apesar da semelhança entre os termos, suas implicações não são equivalentes: para Blok, o antídoto da "teatralidade rígida e estereotipada" (de Meyerhold) estaria na sinceridade e no psicologismo dos personagens realistas (de Stanislavski). Ora, a encenadora do Théâtre du Soleil não quer nem um, nem outro! Ela busca o Teatro, o Teatral, o Poético; e rejeita com isso o realismo, o ilustrativo e o estereotipado17 17 Tentaremos esclarecer esta noção de "teatral" tão valorizada por Ariane Mnouchkine: de acordo com o que pudemos compreender ao observar seu trabalho, o jogo "teatral" se equilibra em uma "corda bamba", ameaçado pela maioria das convenções teatrais ocidentais; de um lado, ele corre o risco de cair nas trevas do realismo e, de outro, no artificial da teatralidade. .

O Teatral e o Performativo

Excetuando-se as referências ao teatro realista, algumas palavras-chave utilizadas por esses dois artistas acentuam nosso interesse pelos dois casos e podem nos servir como objeto de análise na compreensão geral do termo-alvo desta pesquisa.

Elas são, entre outras: estereótipo, clichê e ausência/falta de verdade. Em diferentes níveis, a noção de teatralidade sugere, tanto para Blok como para Mnouchkine, o contrassenso do que faz do teatro uma arte cênica do presente. Por essa perspectiva, qualquer procedimento, seja ele utilizado pelo ator ou não, que imponha uma "[...] divisão entre o 'eu' e seu 'personagem', sugere inevitavelmente que o segundo é menos autêntico, mais artificial" (Carlson, 2012CARLSON, Marvin. Résistance à la Théâtralité. Traduit de l'anglais par Virginie Magnat. Théâtre/Public, Paris, n. 205, p. 28-35, automne 2012. (Entre-deux. Du théâtral et du performatif)., p. 29). E é precisamente evocando a temática da performatividade do ator, seja ela autêntica ou artificial, que entraremos em nossa segunda problemática: a teatralidade em relação com a performatividade.

De acordo com Marvin Carlson (2012CARLSON, Marvin. Résistance à la Théâtralité. Traduit de l'anglais par Virginie Magnat. Théâtre/Public, Paris, n. 205, p. 28-35, automne 2012. (Entre-deux. Du théâtral et du performatif)., p. 30), desde Sartre, passando por Artaud, Michael Fried e toda uma corrente de artistas e teóricos modernistas entre os anos 1960 e 1980, a teatralidade foi alvo de conceitualizações negativas e limitadas, enquanto a performance, ao contrário, atraía mais sucesso e visibilidade. Sobre essa mesma época, Carlson cita David Marshall: "O tipo de teatralidade que parece suspeito aos olhos desses teóricos encontra-se especificamente [...] em 'sua aparência literal ou figurativa de um espetáculo diante de espectadores'" (Carlson, 2012, p. 30).

De acordo com Carlson, os ataques dirigidos contra a teatralidade ao longo do século passado costumam ligá-la aos aspectos vazios, rígidos e repetitivos da representação, ameaçando, por sua existência, a autenticidade do eu real, inédito e subjetivo do ator. Desde os anos 1980, quando o termo performance teve um boom de popularidade nos textos de teóricos, a teatralidade foi frequentemente rejeitada e tornou-se essencialmente uma noção oposta à performatividade.

Para Desmistificar a Teatralidade

Josette Féral propõe então a desmistificação do termo, por meio de um olhar, enfim, mais positivo, mas ainda distante da performance. Em 1982, em uma edição especial do periódico Modern DramaMODERN Drama, Special issue. Theory of Drama and Performance, Toronto: University of Toronto Press, v. 25, n. 1, mars 1982. , ela definia o teatro "[...] como uma estrutura narrativa de representação que reinscrevia o sujeito no simbólico por meio de 'códigos teatrais', enquanto a performance existia para desfazer esses 'códigos e competências', permitindo assim que o 'fluxo do desejo' do sujeito pudesse se exprimir" (Féral apud Carlson, 2012CARLSON, Marvin. Résistance à la Théâtralité. Traduit de l'anglais par Virginie Magnat. Théâtre/Public, Paris, n. 205, p. 28-35, automne 2012. (Entre-deux. Du théâtral et du performatif)., p. 31).

Vinte anos mais tarde, em outro número de mesma temática - sob sua própria organização - Féral publica uma nota pessoal para corrigir sua primeira abordagem de 1982: tendo inicialmente definido teatralidade e performatividade como termos opostos, ela se convence de que essa oposição era apenas retórica. Sua redefinição sugere, em suma, que a performatividade representaria o aspecto único e inédito de cada evento teatral, enquanto a teatralidade lhe permitiria ser um procedimento reconhecível e pleno de significados para o espectador, impregnado de signos, códigos e referências.

Essa redefinição se aproxima da teoria de Jean Alter (1990ALTER, Jean. A Sociosemiotic Theory of Theatre. Philadelphia: University of Pennsylvania, 1990.), na obra A Sociosemiotic Theory of Theatre, publicada em 1990, na qual a relação entre performance e teatralidade vai ainda mais longe, como descreve Carlson (2012CARLSON, Marvin. Résistance à la Théâtralité. Traduit de l'anglais par Virginie Magnat. Théâtre/Public, Paris, n. 205, p. 28-35, automne 2012. (Entre-deux. Du théâtral et du performatif)., p. 33):

[o conceito de performance] pode ser estendido a todo e qualquer componente do teatro - figurinos, cenário, iluminação, encenação. Com isso, figurinos deslumbrantes, efeitos de luzes, efeitos cênicos ou ainda o modo com o qual o encenador manipula cada uma destas formas de virtuosismo podem todos ser considerados, de acordo com Alter, como formas de evidenciar o aspecto performativo, tanto quanto a técnica e as qualidades artísticas do ator.

Nessa perspectiva, a teatralidade não se apoia mais sobre a forma de uma encenação, seja ela naturalista ou estilizada, como propunham os movimentos de vanguarda do início do século XX. Ela deixa de se opor à performance, e não depende mais da performatividade de seus sujeitos e objetos para se produzir. Ela não é mais sinônimo de rigidez ou de artificialidade, mas de um discurso autônomo e extracotidiano, com suas próprias convenções. Essa teatralidade não é uma noção qualitativa, na qual existiriam temas mais teatrais que outros. Ela deve, entretanto, se diferenciar de acordo com os níveis de recepção e decodificação dos espectadores, podendo ser mais ou menos sensíveis/reativos ao processo de comunicação em questão.

O processo de teatralização de um evento teatral torna-se, de certo modo, o resultado de uma sequência de ações performativas do artista e do espectador, dentro de um contexto de convenções teatrais e culturais pré-estabelecidas. Esse acordo implícito e constantemente renovado é justamente o que permite que o teatro aconteça.

Entre Teoria e Prática

As primeiras reflexões em torno da teatralidade no início do século XX foram desenvolvidas no contexto dos movimentos de vanguarda de "reteatralização do teatro", opondo-se principalmente às tradições do naturalismo e do realismo. Em seu dicionário do teatro, Pavis (2003PAVIS, Patrice. Dictionnaire du Théâtre. Paris: Armand Colin, 2003., p. 358) define esta reteatralização:

Enquanto o naturalismo apaga ao máximo os vestígios da produção teatral para criar a ilusão de uma realidade cênica verossímil e natural, [...] a reteatralização não 'esconde seu jogo' e exagera nas regras e convenções de interpretação, apresenta o espetáculo em sua única realidade de ficção lúdica.

Para o russo Nicolas Evreinov, a teatralidade é concebida como um "instinto de transfiguração" pré-estético, dando origem a todas as artes e para além do teatro, mas também como uma oposição ao naturalismo que produz as "ilusões de vida real" (Evreinov, 1930EVREINOV, Nicolas. Le Théâtre dans la Vie. Paris: Stock, 1930., p. 153-154). Mais tarde, nos anos 1950, Roland Barthes e Bernard Dort, inscritos no questionamento do teatro centrado no texto, veem a teatralidade pela materialidade do corpo do ator apesar do texto: "[a teatralidade] é o teatro menos o texto" (Barthes, 1964BARTHES, Roland. Le Théâtre de Baudelaire (1954). In: BARTHES, Roland. Essais Critiques. Paris: Le Seuil, 1964. P. 41-47., p. 41).

Alguns teóricos mais contemporâneos limitam-se à análise semiótica da representação para identificar seus signos teatrais (Fischer-Lichte, 1995), outros se estendem ao princípio de toda relação de tensão entre corpo e linguagem para além do teatro (Bernard, 2012BERNARD, Michel. Voix de l'Auteur, Voix de l'Acteur. Théâtre/Public, Paris, n. 205, p. 36-43, automne 2012. (Entre-deux. Du théâtral et du performatif).). No entanto, o que para nós representa o aspecto mais pertinente das pesquisas contemporâneas, levando em consideração a interdisciplinaridade e a imprecisão das fronteiras entre as artes, é a seguinte constatação: "A teatralidade não pode mais ser entendida como uma propriedade do teatro, mas de todo e qualquer evento que, em um dado espaço-tempo, reúne um observado e um observador" (Fernandez, 2011FERNANDEZ, Laure. Cadres et Écarts: de la théâtralité en art contemporain, un théâtre à côté du théâtre. In: NAUGRETTE, Catherine. Qu'est-ce que le Contemporain? Paris: L'Harmattan, 2011. P. 73-78. V. 1., p. 74).

A fim de dar sequência ao nosso estudo sobre a emergência da teatralidade no contexto atual do Théâtre du Soleil, fundaremos nossa análise principalmente sobre duas teorias contemporâneas: a de Josette Féral (2011FÉRAL, Josette. Théorie et Pratique du Théâtre: au-delà des limites. Montpellier: L'Entretemps, 2011.), sobre as três clivagens da teatralidade; e a de Willmar Sauter (2000SAUTER, Willmar. The Theatrical Event: dynamics of performance and reception. Iowa City: University of Iowa Press, 2000.), sobre os três modos de comunicação do evento teatral. Introduziremos rapidamente as duas teorias em um primeiro momento, para, em seguida, analisá-las com mais profundidade.

Inserida no pensamento contemporâneo mencionado acima, Josette Féral elaborou sua teoria situando a teatralidade sobre três clivagens. A primeira encontra-se entre o espaço do cotidiano e o espaço de representação; a segunda opõe realidade e ficção dentro do próprio espaço de representação; e a terceira se aproxima do conceito de performatividade, pois diz respeito à dupla leitura feita pelo espectador entre as forças pulsionais do ator e o simbólico representado/interpretado por ele.

A teoria de Sauter pode, de forma pertinente, reforçar a emergência da teatralidade em paralelo às três clivagens de Féral. Ele estabelece um esquema de modos de comunicação entre performer (a apresentação) e espectador (a percepção), em três níveis: o modo sensorial abrange toda interação pessoal entre o performer e seu espectador; o modo artístico representa o efeito estético, em relação a gênero, estilo e talento, que caracteriza a comunicação como extracotidiana; e o modo simbólico é baseado no caráter representativo e ficcional aceito pelo espectador ao reconhecer a alteridade da apresentação.

Liviu Dospinescu analisa esses modos de comunicação por meio das noções contemporâneas de performatividade e de teatralidade. Segundo Dospinescu, a performatividade pertenceria ao modo sensorial, uma vez que estritamente ligada à interação emocional e cognitiva entre o performer e o espectador. Quanto à teatralidade, ela diria respeito ao modo simbólico, definido como "[...] a encarnação das ações para fins de representação ou de apresentação de imagens ficcionais". O modo artístico, conclui Dospinescu (2005DOSPINESCU, Liviu. Interfaces et Interférences dans la Communication Théâtrale Moderne: de l'espace vide... et son archétype beckettien. L'Annuaire Théâtral: revue québécoise d'études théâtrales, Montréal, n. 37, p. 197-216, 2005. , p. 201), pertenceria "tanto à performatividade quanto à teatralidade".

A análise seguinte será baseada em cada uma das três clivagens de Féral, e será, ao mesmo tempo, permeada pelos modos de comunicação de Sauter. Teremos agora a oportunidade de aprofundar essas noções, relacionando-as à prática observada no Théâtre du Soleil.

A Teatralidade Começa em Outro Lugar

Se a teatralidade é produzida essencialmente pelo olhar do espectador - e se considerarmos que o espectador foi informado e está consciente do evento teatral em questão -, podemos então afirmar que essa teatralidade não se limita ao momento da representação, mas começa muito antes. Sobre esse aspecto, o semiólogo André Helbo (2007HELBO, André. Le Théâtre: texte ou spectacle vivant?. Paris: Klincksieck, 2007., p. 63-69) atribui ao espectador o papel de actante observador, com a função de respeitar o contrato espetacular próprio ao teatro. Desse modo, a semiótica contemporânea transgride o princípio unidirecional de emissão/recepção de um remetente a seu destinatário. Ao dar ao espectador um papel mais ativo no processo de comunicação espetacular, a semiótica nos permite perceber a emergência da teatralidade para além da relação palco/plateia.

Essa noção nos interessa no caso do Théâtre du Soleil, onde o lugar e a recepção do espectador o preparam com antecedência a viver o espetáculo. Nas palavras de Mnouchkine, "[...] para que possamos receber o público em nossa casa, neste lugar de teatro, temos que criar o mundo a cada dia"18 18 Ariane Mnouchkine, durante uma reunião com os atores, alguns minutos antes da entrada do público no hall do Théâtre du Soleil. . O que ela chama de "criar o mundo" seria a primeira das três clivagens que constituem a teatralidade: aquela que distingue, na perspectiva do espectador, o espaço cotidiano do espaço de representação.

Ao pagar seu ingresso e entrar no espaço de apresentação, o espectador assina um acordo tácito, um contrato espetacular, conferindo um sentido particular a tudo o que pertence a esse mundo espetacular: "[...] o espectador, por sua vez, percebe as fricções e tensões entre os diferentes mundos que a teatralidade coloca em jogo. Ele se vê forçado, pela própria situação, a ter um olhar diferente" (Féral, 2011FÉRAL, Josette. Théorie et Pratique du Théâtre: au-delà des limites. Montpellier: L'Entretemps, 2011., p. 105). Estamos aqui no modo sensorial proposto por Sauter, em que ocorrerão as primeiras interações com a apresentação espetacular e, portanto, as primeiras percepções do espectador.

Essa noção de teatralidade é ainda mais complexa quando se refere ao nosso objeto de análise: ou consideramos que ela se produz antes do espectador entrar na sala de espetáculo, instaurando uma espécie de liminaridade performativa no próprio teatro; ou aceitamos que o espaço de representação pode ser estendido a outros espaços do teatro, como o hall de entrada, a sala ao lado da plateia, a Cartoucherie do Bois de Vincennes - sede do Théâtre du Soleil - como um todo, a partir do seu portal de entrada.

Imagem 1:
O público se instala no hall de entrada do Théâtre du Soleil, uma hora antes da apresentação de Macbeth. Em 2014, na Cartoucherie de Vincennes, Paris.

Escolhendo uma abordagem ou outra, a constatação da performatividade é clara. Ariane Mnouchkine deu a seguinte entrevista em uma rádio francesa, um mês após a estreia de Macbeth, em maio de 2014:

Stéphane Capron: antes de tudo, entrar no Théâtre du Soleil é um grande acontecimento. Ariane Mnouchkine, você está na entrada, recepciona os espectadores, destaca os ingressos, e em seguida o espetáculo começa já no hall de entrada, que é decorado de acordo com o tema do espetáculo. [...] e em seguida quando entramos na sala, abaixo das arquibancadas, podemos observar a intimidade dos atores. Então, a gente se sente um pouco voyeur, vendo eles se vestirem, se maquiarem, e isso já faz parte do espetáculo, desde os primeiros minutos.

Ariane Mnouchkine: no fundo, o que acontece nesta primeira hora, ou nestes três quartos de hora, enquanto eles [os espectadores] estão com a gente, comem com a gente, é que eles também se esquecem um pouco. Eles esquecem o que aconteceu ao longo do dia, esquecem as tensões do dia, esquecem o prosaísmo da vida cotidiana em uma cidade como Paris. E no fundo eles se preparam. E o hall de entrada serve pra isso, ele serve pra mostrar o mundo tal qual ele poderia ser, ou seja, um lugar onde existe uma verdadeira convivialidade, um respeito pelo momento presente, pela harmonia, pela qualidade das coisas que nós tentamos oferecer a eles (Transcrição da entrevista com Patrick Cohen, Radio France Inter, 30 de maio de 2014COHEN, Patrick. Radio France Inter. Transcription de l'entretien avec Patrick Cohen le 30 mai 2014. Disponible sur: <Disponible sur: http://www.franceinter.fr/player/reecouter?play=909990 >. Consulté le 18 juillet 2014.
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).

Como podemos perceber nesse trecho de conversa, existe realmente uma intenção, por parte da trupe, de preparar o público, de permitir que ele se desvencilhe do cotidiano para mergulhar na poesia do espetáculo. Todo gesto intencional pode ser interpretado como um ato performativo, pertencendo ao ritual teatral que provoca a clivagem entre o espaço cotidiano e o espaço de representação.

É importante frisar que, para analisar uma situação prática, somos obrigados a abandonar a ideia de "espectador ideal ou implícito", como ressalta Malgorzata Sugiera (2002SUGIERA, Malgorzata. Theatricality and Cognitive Science: The Audience's Perception and Reception. SubStance: The rise and fall of Theatricality- Special Issue, v. 31, n. 2/3, Issue 98/99, p. 225-235, 2002., p. 266). Utilizaremos aqui a abordagem de André Helbo que, segundo análise de Catherine Bouko, sugere a concepção de um espectador ativo e autônomo que "[...] não é apenas confrontado a um sistema de signos que lhe é proposto; [mas que] cria genuinamente seu próprio sistema de significações a partir de uma base de signos emitidos pela instância produtora" (Bouko, 2010, p. 219).

Segundo Helbo (2007HELBO, André. Le Théâtre: texte ou spectacle vivant?. Paris: Klincksieck, 2007., p. 66):

Todo espetáculo envolve uma multiplicidade de polos, parcerias, contextos. Em vez da filiação linear, é o modelo do polissistema que prevalece, ou até mesmo o modelo de uma convenção efêmera que não exclui a produção de um texto espetacular pelo próprio espectador.

No entanto, apesar da infinidade e da diversidade de textos espetaculares, criados por espectadores nos termos desse in-between, que já é espetacular antes mesmo da apresentação, a performatividade já está presente, graças aos esforços dos artistas. Encontramos em nossas anotações pessoais do processo criativo de Macbeth um outro exemplo do ritual performativo que retrata o divisor físico e concreto entre os dois mundos:

Dia 29 de maio de 2014: O Théâtre du Soleil comemora hoje cinquenta anos de sua fundação. Como de costume, por volta das 18h30min, uma hora antes do espetáculo, Ariane encerra a sua reunião com os atores e se dirige à entrada do teatro para abrir as portas ao público. Ela faz o ritual sagrado do Teatro antes de abrir a grande porta vermelha: bate várias vezes à porta, dá os últimos três toques, e em seguida abre as portas do antro mágico. Hoje, porém, fomos surpreendidos pelo público que, por saber que se tratava de um dia de comemorações, nos aplaudiu durante muito tempo diante da porta, antes de entrar. Alguns espectadores estavam muito emocionados e nos falavam sobre isso em frente ao bar do teatro.

O aplauso dos espectadores do lado de fora do teatro no momento em que Mnouchkine abriu a porta é uma prova espontânea da clivagem realizada simultaneamente por um grupo de espectadores, e pode também ser considerada como um modo simbólico de comunicação. Talvez nem todos os espectadores que aplaudiam soubessem da comemoração, mas ainda assim todos mantiveram o princípio de alteridade (colocando-se do lado de fora do teatro durante os aplausos) - o que nos permite considerar que os espectadores anteciparam, e ampliaram, esse procedimento já incrustado nas convenções culturais teatrais entre público e artistas. Essa alteridade é indispensável à emergência da teatralidade: ela confirma que o espectador reconhece as convenções que o permitem manifestar-se de acordo com o contrato espetacular em questão.

Um Vai e Vem entre Realidade e Ficção

A segunda clivagem proposta por Josette Féral se produz dentro do espaço de representação e diz respeito mais uma vez à distinção realidade/ficção feita pelo espectador. Ele vai e vem entre a identificação dos símbolos e convenções que são apresentados a ele, seu desejo de acreditar na ilusão cênica, e a evidência da verdade material dos corpos e objetos que criam essa ilusão. Podemos observar aqui de forma concreta o modo de comunicação artístico proposto por Willmar Sauter, próprio à performatividade e à teatralidade. O espectador começa a reconhecer as convenções que lhe são apresentadas, e pode então decodificá-las de acordo com suas competências e conhecimentos, sua "enciclopédia pessoal"19 19 Termo comumente usado no campo da semiótica. Citamos Helbo (2007, p. 86): "[...] a identificação dos traços pertinentes depende do meu conhecimento do mundo. Neste caso, a iconicidade geral (não construída) faz com que o signo incluído na representação possa ser aquele que eu reconheço no mundo real. Um espetáculo com bases no meio social do ator [...] só faz sentido para aqueles que possuem um repertório cultural passível de identificar tais traços pertinentes". .

Citamos Dospinescu (2005DOSPINESCU, Liviu. Interfaces et Interférences dans la Communication Théâtrale Moderne: de l'espace vide... et son archétype beckettien. L'Annuaire Théâtral: revue québécoise d'études théâtrales, Montréal, n. 37, p. 197-216, 2005. , p. 202), que sugere uma relação entre as duas teorias: "O quadro [da teatralidade] é estabelecido pelo olhar do espectador ou, pelo menos, aceito por ele quando imposto pela encenação; o jogo cênico se refere então ao valor simbólico que lhe confere o espectador após ter operado uma clivagem entre realidade e ficção". É importante frisar mais uma vez que no Théâtre du Soleil existe, por parte dos artistas, uma intenção voluntária de fazer emergir a teatralidade: a transparência, revelada por diferentes procedimentos teatrais, evidencia a maquinaria do teatro e a emergência da poesia diante dos olhos do espectador.

Um dos procedimentos mais claros dessa clivagem entre realidade e ficção é o ato de mostrar que o artista está trabalhando; que ele se prepara para passar à ficção. O camarim onde os atores se vestem e se maquiam encontra-se abaixo das arquibancadas da plateia, e ficam visíveis ao público através de pequenas janelas costuradas em um tecido pendurado. É claro que os espectadores não adentram esse espaço, que só é acessível aos olhares, e aos flashs das câmeras e dos celulares do público. Por meio desse procedimento, o espectador sente-se mais próximo da intimidade dos atores.

Imagem 2:
O camarim antes da apresentação de Macbeth, de onde se pode ver, ao fundo, espectadores observando os atores. Em 2015, na Cartoucherie de Vincennes, Paris.

Essa transparência é, em seguida, reforçada pela performance do músico Jean-Jacques Lemêtre: parte da música do espetáculo é tocada ao vivo no palco, ao lado da cena, onde os instrumentos musicais estão à vista de todos. Ariane Mnouchkine comenta essa ideia de transparência:

Porque é teatro! Não se deve nunca negar o teatro. A sensação de ver a vida, de ver mais do que a vida, sabendo ao mesmo tempo que ela é construída poeticamente; acho que isso é o cúmulo do prazer: acreditarmos ao mesmo tempo que sabemos como é feito. É o contrário da impostura, o contrário da ilusão. [...] É muito, muito importante que a maravilha seja, no fundo, possível. Quer dizer que sabemos que o ator está colocando sua máscara, sua maquiagem, e o público, no fundo, está retirando a sua, ao mesmo tempo. A gente sente, as pessoas se transformam durante aquela hora. Elas têm um outro rosto, elas se desarmam um pouco, se preparam para receber e fazer esse trabalho que se faz no teatro: a gente trabalha, e o público trabalha o tempo todo no teatro (Transcrição da entrevista com Patrick Cohen, Radio France Inter, 30 de maio de 2014COHEN, Patrick. Radio France Inter. Transcription de l'entretien avec Patrick Cohen le 30 mai 2014. Disponible sur: <Disponible sur: http://www.franceinter.fr/player/reecouter?play=909990 >. Consulté le 18 juillet 2014.
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).

É interessante perceber a existência de algumas precauções tomadas antes que a "intimidade" dos atores seja revelada ao público. Mais uma vez, provocado pela consciência de um observador, o sujeito observado faz seu gesto performativo. Mnouchkine pede aos atores que sejam cuidadosos quando "o público entra no espaço deles"20 20 Geralmente, meia hora ou quarenta e cinco minutos antes do início do espetáculo, os espaços dos camarins e da plateia são abertos aos espectadores. Ariane Mnouchkine vem então avisar os atores dizendo: "atenção, o público vai entrar no espaço de vocês". : ela se refere principalmente às etapas mais sutis da transformação do ator em personagem enquanto ele se veste e se maquia, que é quando o espectador, como voyeur, começa a fazer suas primeiras leituras e reconhecimentos da ficção e dos seus personagens.

Usamos intimidade entre aspas porque, apesar de tudo, ela precisa ser relativizada. Talvez o espectador não perceba, mas essa intimidade compartilhada pelos atores é também uma espécie de performance, um ritual que pertence ao evento teatral como um todo. A partir do momento em que os atores sabem que são observados, seus comportamentos mudam, e isso é inevitável.

Para garantir sua intimidade real, desprovida de qualquer gesto performativo e privada dos olhares exteriores, existe uma sala fechada ao lado do camarim, o chamado gourbi: é nesse espaço, de acesso restrito ao público, que os atores guardam seus pertences pessoais. Apesar da presença do público no teatro, os atores dividem seu tempo antes da apresentação entre o gourbi e o camarim, conscientes do que desejam esconder ou revelar aos espectadores.

As Forças Simbólicas e Pulsionais do Ator

A terceira e última clivagem evocada por Josette Féral diz respeito ao trabalho do ator e, portanto, se aproxima ainda mais do conceito de performatividade. Trata-se de um novo vai e vem, dessa vez sob o equilíbrio frágil estabelecido pelo ator entre suas forças simbólicas (sua alteridade, a ilusão provocada por sua interpretação, seu não-eu) e pulsionais (seu corpo em trabalho, em performatividade, seu não-não-eu).

Essa abordagem de Féral integra, de certa forma, os três modos de comunicação propostos por Sauter, em diferentes níveis: a comunicação sensorial ainda é preservada, enquanto os modos artístico e simbólico se encontrariam dentro desse vai e vem entre o pulsional e o simbólico do ator, na medida em que, claro, ele é percebido pelo espectador. Citamos Dospinescu (2005DOSPINESCU, Liviu. Interfaces et Interférences dans la Communication Théâtrale Moderne: de l'espace vide... et son archétype beckettien. L'Annuaire Théâtral: revue québécoise d'études théâtrales, Montréal, n. 37, p. 197-216, 2005. , p. 202): "De acordo com Sauter, no que diz respeito à interação entre apresentação e percepção, nada pode ser simbólico em si, a menos que o observador o perceba de tal forma".

Richard Schechner (1985SCHECHNER, Richard. Between Theater and Anthropology. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1985., p. 112) ressalta, por sua vez, a evidência da teatralidade que sempre acompanha a performance: o conceito de não-eu e de não-não-eu (do inglês not me... not not me) refere-se à dupla negação experimentada pelo ator ao (simbolicamente) deixar de ser ele mesmo, uma vez que ele interpreta um outro, ainda estando consciente de que ele é sem ser (pulsionalmente). Josette Féral (2011FÉRAL, Josette. Théorie et Pratique du Théâtre: au-delà des limites. Montpellier: L'Entretemps, 2011., p. 90) explica brevemente esse fenômeno, ligando-o à noção de teatralidade: "[...] a teatralidade do performer situa-se então no deslocamento operado pelo ator entre ele como si mesmo e ele como outro, nessa dinâmica que ele apresenta".

No entanto, não queremos nos afastar do papel que tem o espectador nessa dualidade do jogo do ator, porque ele também é confrontado a esse embate de forças durante toda a apresentação. Podemos ainda afirmar que esse embate é ainda mais latente ao espectador que assistiu à preparação dos atores antes de uma apresentação do Théâtre du Soleil. Essa experiência não reduz de maneira alguma o efeito de ilusão da apresentação em si, ao contrário e, em outra perspectiva, potencializa a percepção do simbólico e acentua as fricções e tensões da ação cênica, como explica Josette Féral (2011FÉRAL, Josette. Théorie et Pratique du Théâtre: au-delà des limites. Montpellier: L'Entretemps, 2011., p. 105):

O olhar do espectador lê então, sobre os corpos em cena, o trabalho destas forças sempre ativas que renovam constantemente o processo de jogo e o fragilizam. [...] Ele tem prazer em reconhecer os signos oferecidos ao seu olhar e sua subversão permanente pelo próprio ato da ilusão. Ele observa, assim, o ator que se esforça para controlar esta tensão profunda no cerne do jogo cênico - tensão que o coloca continuamente em perigo, em estado de vulnerabilidade permanente. [...] A beleza do jogo do ator provém precisamente desse combate incessante entre o domínio do seu corpo e os transbordamentos que o ameaçam.

Imagem 3:
O agradecimento dos atores ao final de uma apresentação de Macbeth. Em 2014, na Cartoucherie de Vincennes, Paris.

A preparação do espaço teatral, a recepção e o acolhimento atencioso dos espectadores, a convivência incentivada pelos espaços comuns compartilhados pelo público nas horas que precedem ao espetáculo, o contato muito próximo com os atores no bar do teatro ou através das janelas do camarim, e a presença afetuosa da chefe da trupe, são elementos que potencializam a qualidade do processo de comunicação instaurado entre os membros do Théâtre du Soleil e seu público.

Nessas condições, acreditamos ter elementos teóricos suficientes para afirmar um desejo ou uma pré-disposição à emergência da teatralidade no evento teatral apresentado pelo Théâtre du Soleil, e que pudemos testemunhar durante o processo de criação e a temporada de Macbeth, entre outubro de 2013 e março de 2015.

Références

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  • COHEN, Patrick. Radio France Inter. Transcription de l'entretien avec Patrick Cohen le 30 mai 2014. Disponible sur: <Disponible sur: http://www.franceinter.fr/player/reecouter?play=909990 >. Consulté le 18 juillet 2014.
    » http://www.franceinter.fr/player/reecouter?play=909990
  • DOSPINESCU, Liviu. Interfaces et Interférences dans la Communication Théâtrale Moderne: de l'espace vide.. et son archétype beckettien. L'Annuaire Théâtral: revue québécoise d'études théâtrales, Montréal, n. 37, p. 197-216, 2005.
  • EVREINOV, Nicolas. Le Théâtre dans la Vie. Paris: Stock, 1930.
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  • SUGIERA, Malgorzata. Theatricality and Cognitive Science: The Audience's Perception and Reception. SubStance: The rise and fall of Theatricality- Special Issue, v. 31, n. 2/3, Issue 98/99, p. 225-235, 2002.
  • 24
    Este texto inédito também se encontra publicado em francês neste número do periódico.
  • 11
    Esta reflexão baseia-se principalmente na abordagem de Josette Féral sobre a teatralidade.
  • 12
    Esta frase é frequentemente utilizada para explicar o processo de denegação do espectador de teatro, resumidamente definida aqui: "O modo de adesão por identificação e denegação pertence a um contrato especificamente teatral: o espectador se identifica com os personagens ao mesmo tempo em que está consciente de que a ação cênica é uma ilusão" (Bouko, 2010, p. 228).
  • 13
    As duas expressões são utilizadas por Blok: a primeira descreve o teatro de Meyerhold, e a segunda o de Stanislavski (Abensour, 1982ABENSOUR, Gérard. Blok face à Meyerhold et Stanislavski, ou le problème de la théâtralité. Revue des Études Slaves, Paris, tome 54.4, p. 671-679, 1982., p. 672 e 675).
  • 14
    Este trecho foi retirado do nosso caderno de anotações da observação participante no Théâtre du Soleil, e foi escrito na data que o precede.
  • 15
    Este exemplo é apenas uma ilustração dos dois casos apresentados. O poeta Alexandre Blok parte de um grande movimento histórico, preferia o realismo teatral às estéticas propostas pela vanguarda do início do século XX.
  • 16
    A noção de realismo para Mnouchkine não é exata: ao longo dos ensaios de Macbeth ela empregava o termo para fazer referência à interpretação realista cotidiana, mas também para falar de uma "falta de poesia" e da "ausência do teatral".
  • 17
    Tentaremos esclarecer esta noção de "teatral" tão valorizada por Ariane Mnouchkine: de acordo com o que pudemos compreender ao observar seu trabalho, o jogo "teatral" se equilibra em uma "corda bamba", ameaçado pela maioria das convenções teatrais ocidentais; de um lado, ele corre o risco de cair nas trevas do realismo e, de outro, no artificial da teatralidade.
  • 18
    Ariane Mnouchkine, durante uma reunião com os atores, alguns minutos antes da entrada do público no hall do Théâtre du Soleil.
  • 19
    Termo comumente usado no campo da semiótica. Citamos Helbo (2007HELBO, André. Le Théâtre: texte ou spectacle vivant?. Paris: Klincksieck, 2007., p. 86): "[...] a identificação dos traços pertinentes depende do meu conhecimento do mundo. Neste caso, a iconicidade geral (não construída) faz com que o signo incluído na representação possa ser aquele que eu reconheço no mundo real. Um espetáculo com bases no meio social do ator [...] só faz sentido para aqueles que possuem um repertório cultural passível de identificar tais traços pertinentes".
  • 20
    Geralmente, meia hora ou quarenta e cinco minutos antes do início do espetáculo, os espaços dos camarins e da plateia são abertos aos espectadores. Ariane Mnouchkine vem então avisar os atores dizendo: "atenção, o público vai entrar no espaço de vocês".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2016

Histórico

  • Recebido
    15 Dez 2014
  • Aceito
    11 Nov 2015
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