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A criança errante e a errância da infância no ‘Teatro Infantile’ de Chiara Guidi

The wandering child and the wandering of the childhood of Chiara Guidi’s ‘Teatro Infantile’

RESUMO

A criança errante e a errância da infância no ‘Teatro Infantile’ de Chiara Guidi – O artigo discute o status da criança no Teatro Infantile com base em entrevistas e publicações de Chiara Guidi e leituras críticas sobre a poiesis e a praxis de seu trabalho. A análise das criações infantis permitiu identificar a transformação da criança-espectadora para a criança-atriz. A Escola Experimental e o Festival Puerilia conduzem a criança ao papel de atuante e mestre de jogo das experiências teatrais. Por fim, os métodos e práticas de Chiara Guidi consideram a criança como modelo e imago, origem e finalidade do teatro de laboratório.

Palavras-chave:
Teatro; Criança; Método Errante; Experimentação; Pedagogia Alternativa

ABSTRACT

The wandering child and the wandering of the childhood of Chiara Guidi’s ‘Teatro Infantile’ – From the Chiara Guidi’s speech and writings and the critical readings of the poietic and praxis of works, it would be a question of examining the status of the child in the Teatro Infantile. The analysis of her youth creations would make it possible to identify the shift from childspectator to that of child-actor. Then, those of the experimental school and the Puerilia festival would lead to giving the child the role of actor and master of the play of theatrical experiences. Finally, those of the Chiara Guidi’s methods and practices would contribute to placing the child both as model and imago, origin and purpose of laboratory theatre.

Keywords:
Theatre; Child; Wandering Method; Experimentation; Alternative Pedagogy

RÉSUMÉ

L’enfant errant et l’errance de l’enfance du ‘Teatro Infantile’ de Chiara Guidi – À partir des entretiens et publications de Chiara Guidi et des lectures critiques de la poïétique et praxis des œuvres, il s’agirait de questionner le statut de l’enfant dans le Teatro Infantile. L’analyse des créations jeunesse permettrait d’identifier le basculement de l’enfant-spectateur à celui d’enfant-acteur. Puis, celles de l’école expérimentale et du festival Puerilia conduiraient à accorder à l’enfant le rôle d’actant et de maître du jeu des expériences théâtrales. Enfin, celles des méthodes et pratiques de Chiara Guidi concourraient à placer l’enfant à la fois comme modèle et imago, origine et finalité du théâtre laboratoire.

Mots-clés:
Théâtre; Enfant; Méthode Errante; Expérimentation; Pédagogie Alternative

Em diversas criações teatrais contemporâneas as crianças se revelam não só como figuras singulares e marginais, mas também, paradoxalmente, como figuras obsessivas, especialmente quando atuam, como é o caso das obras das companhias Grenade (1998-2019) e Kabinet K (2002-2021), ou dos espetáculos W. H.O, de Thierry Micouin (2006); Enfant, de Boris Charmatz (2011); Maudit soit l’homme qui se confie en l’homme, de Angelica Liddell (2011); Sparks, de Francesca Grilli (2015 e 2021); Five easy pieces, de Milo Rau (2016); La Dispute, de Mohamed El Khatib (2019). Além disso, a criança suscita diversas reflexões na cena contemporânea. Ela problematiza, por um lado, as modalidades de presença e representação, tanto em cena quanto como objeto de discurso; por outro lado, ela afeta questões de ordem poética, pois reflete o tipo de envolvimento do processo criativo com o território da infância.

O status da criança e sua presença evidenciada são proeminentes nas práticas e criações de Socìetas Raffaello Sanzio, companhia teatral italiana, cujo trabalho qualificamos como experiencial1 1 As práticas e criações da Socìetas Raffaello Sanzio podem ser qualificadas como ‘experienciais’, pois se baseiam na experimentação de métodos, conhecimentos e formações, concebidos pela coleta de experiências de vida e de jogo da companhia, seus membros, públicos, fábrica de imaginários e laboratório dramatúrgico. . Sediada no Teatro Comandini de Cesena, ela foi fundada em 1981 por Claudia Castellucci, Paolo Guidi, Romeo Castellucci2 2 Influenciado pelo trabalho de Chiara Guidi, Romeo Castellucci se interessa pelo que a criança encarna em cena quando ela não se apresenta como criança e a impulsiona, desse modo, na cena de alguns de seus espetáculos: Genesi, from the museum of sleep (1999), Il combattimento (2000), A.#02 (2002), Br.#04 (2003), Inferno (2008), Purgatorio (2008), Sul concetto di volto nel figlio di Dio (2011), Il Primo Omicidio (2019), Requiem (2019) e, recentemente, Bros (2021) entre outros. O palco de teatro se torna o lugar da performatividade experiencial e experimental da criança, mas de uma perspectiva diferente da de Chiara Guidi. e Chiara Guidi3 3 Site da companhia Socìetas Raffaello Sanzio, com sua teatrografia, arquivos e publicações : https://www.arch-srs.com/srs; https://www.societas.es/teatrografia/; https://www.societas.es/chiara-guidi- pubblicazioni/; https://www.societas.es/societas-raffaello-sanzio-pubblicazioni/. . Para esta última, o lugar da criança é original e necessário no teatro, seja no palco ou fora dele, visível ou não, furtivo ou evidente. De fato, a criança tem orientado suas pesquisas e criações: inicialmente, desde 1992, como espectadora de suas criações infantis; a partir de 1995, como atriz, em sua Escola Experimental de Teatro Infantil (Scuola sperimentale di teatro infantile); em 2011, como experimentadora e mestre do jogo em seu Festival Puerilia, e, finalmente, a partir de 2013, como sujeito e provocadora em seu ‘método errante’ (metodo errante). Guidi precisa: “O teatro não tem que ser conhecido, mas procurado. Por esta razão, preciso ocasionalmente de crianças, por sua capacidade imediata de questionar, tocar para entender, brincar se aproximando da linguagem, do pensamento, da realidade” (Guidi apud Pizzichillo, 2015PIZZICHILLO, Camilla. Festival Puerilia, Cesena: Les enfants dans l’expérience théâtrale. Inferno, revue électronique, Cesena, 2015.).

Portanto, esta contribuição visa questionar o status da criança – percebida como origem e finalidade, modelo e imago do teatro de laboratório de Chiara Guidi, chamado ‘Teatro Infantil’ (Teatro Infantile) – e examinar as especificidades de seus processos e criações, pesquisas e questões nas quais a criança errante e a errância da infância são força motriz. O objetivo é identificar as estratégias dramatúrgicas e estéticas implementadas nos processos criativos e produções de Chiara Guidi para o público infantil, para, em seguida, explorar as questões estéticas e práticas da Escola Experimental de Teatro Infantil e do Festival Puerilia, e analisar, enfim, o modo como todas essas abordagens e experiências inspiraram, guiaram e conduziram à formalização de seu ‘método errante’. Para tal, o presente artigo se fundamenta em uma análise de artigos, entrevistas e livros de Chiara Guidi, leituras críticas de suas criações, assim como em uma experiência pessoal como pesquisadora convidada no Teatro Comandini antes e durante o Festival Puerilia 2014. Em última análise, este estudo revela o modo como esta prática é singular e inovadora, tornando possível criar um tempo-espaço para crianças, aberto à criação de experimentos e conhecimentos do mundo por meio da arte, porque “à sua maneira, a arte diz o que as crianças dizem” (Deleuze, 1993, p. 86DELEUZE, Gilles. Ce que les enfants disent. In: DELEUZE, Gilles. Critique et clinique. Paris: Éditions de minuit, 1993. chap. IX. (coll. Paradoxe).).

I) A experiência teatral da criança espectadora

Desde o início dos anos 1990, a Socìetas Raffaello Sanzio cria espetáculos para o público infantil como Buchettino (1992), Hänsel and Gretel (1994) e, mais tarde, L’épreuve d’un autre monde (2000), todos dirigidos por Chiara Guidi.

Buchettino é uma fábula acústica, inspirada em O Pequeno Polegar, de Charles Perrault, que conta com o poder imaginativo das crianças por meio do mundo do som. A respeito da dimensão acústica das criações da Socìetas Raffaello Sanzio, a professora de Artes Cênicas da Universidade de Salerno, Annamaria Sapienza, ressalta: “O componente sonoro é pesquisado em cada elemento da representação, do texto aos objetos, em busca de uma força de base invisível e penetrante, que sustente a forma mais autêntica da experiência teatral [e] uma fisicalidade acústica capaz de se tornar forma, figura no espaço4 4 Em italiano: “La componente sonora è ricercata in ogni elemento della rappre-sentazione, dal testo agli oggetti, alla ricerca di una forza di base invisibile e pervasiva che sostiene la forma più autentica dell’esperienza teatrale [e] di una fisicità acustica capace di diventare forma, figura nello spazio”. ” (Sapienza, 2017SAPIENZA, Annamaria. Vedere il suono. Il metodo errante di Chiara Guidi tra infanzia e voce. Acting Archives Review, n. 13, 2017.). Assim, em Buchettino, embora nada seja mostrado, tudo é sugerido e o surgimento de imagens é ativado pela escuta. A voz da narradora, única atriz no palco, mistura-se com os murmúrios do vento, o uivo dos lobos, os passos pesados e a falta de ar do ogro, o estalido das árvores na floresta etc., que estimulam todos os sentidos e despertam a imaginação da criança-espectadora. “A melhor maneira de ouvir uma fábula [precisa Chiara Guidi] é deitando e fechando os olhos. Toda fábula está perto do sono: não só porque é contada antes de dormir, mas também porque ajuda a criar o momento em que se deixa a vida para trás” (Guidi, 2001GUIDI, Chiara. Buchettino. Document de communication du spectacle. Paris: Festival d'Automne, 2001.). É por isso que cada criança-espectadora é convidada a vestir um pijama e um gorro branco, entrar em um espaço bastante intimista – uma caixa de madeira, pouco iluminada, que se transforma gradualmente em uma caixa de ressonância – e a se acomodar confortavelmente em um dos cinquenta beliches que formam o dormitório no qual será contada a história do Pequeno Polegar.

Nesta encenação, há a dialética entre o mundo externo e a interioridade, representada pelo quarto fechado como uma fortaleza, mas exposta à tempestade de acontecimentos; e o movimento ternário entre solidão, coletividade e comunhão, sugerido pela experiência da escuridão e da posição horizontal vivida perto dos outros (Guidi, 2001GUIDI, Chiara. Buchettino. Document de communication du spectacle. Paris: Festival d'Automne, 2001.).

Como aponta Chiara Guidi, “voltamos às origens e podemos decidir ‘suspender’ nossa própria existência, ou seja, tudo o que vivemos apesar da existência” (Guidi, 2001GUIDI, Chiara. Buchettino. Document de communication du spectacle. Paris: Festival d'Automne, 2001.).

Em Hänsel and Gretel, inspirado no conto dos irmãos Grimm, o narrador convida a criança-espectadora a segui-lo nos meandros de um cenário desmedido, um labirinto de madeira de 200 metros semelhante ao sistema digestivo humano, cujos corredores estão indicados com nomes de aves. Ao longo da deambulação-evasão, a criança-espectadora descobre primeiro as duas camas sobre uma plataforma, comparáveis a catafalcos, de Hänsel e Gretel; depois, uma clareira no final da floresta; a casa de doces e, finalmente, a gaiola da bruxa e o forno ardente no qual ela irá morrer. O espectador encontra, um a um, o narrador-mágico, interpretado por Franco Pistoni; Hänsel e Gretel, interpretados por Demetrio e Theodora, os filhos de Romeo Castellucci e Chiara Guidi; a avó, a madrasta e a bruxa, todos interpretados por Claudia Castellucci. Apesar de um dispositivo imersivo, nesse espetáculo a criança-espectadora permanece à margem do palco, com exceção dos filhos de Castellucci e Guidi, mas ela é claramente convidada a ultrapassar seu status de espectadora. Ela ainda não é, no entanto, totalmente ativa.

Contudo, ao final do espetáculo, todos os espectadores (crianças e adultos) são convidados a encontrar a equipe artística para finalmente colocar a realidade à prova pelo olhar da criança-espectadora. Mais do que um trabalho de mediação, trata-se de

[...] de aprender a estar diante do olhar da criança, incentivando-o, tornando-o nosso [explica Lucia Amara, filósofa e colaboradora de Chiara Guidi]. Este olhar nunca é ingênuo e, ao mesmo tempo, deve ser construído pelo adulto que conduz a criança. O mecanismo é uma alquimia de relações e reciprocidades contínuas, de fluxos e transformações recíprocas que vão em duas direções5 5 Em italiano: “Imparare a stare di fronte allo sguardo del bambino, sostenendolo e facendolo nostro a nostra volta. Questo sguardo non è mai ingenuo e al contempo va anche costruito dall’adulto che guida il bambino. Il meccanismo è un’alchimia di relazione e reciprocità continua, di flussi e trasformazioni scambievoli che vanno in due sensi”. (Amara, 2021AMARA, Lucia. Il teatro infantile di Chiara Guidi. Entretien mené par Giorgiomaria Cornelio. Il Tascabile, revue électronique, 2021.).

Sendo assim, se a ideia era atribuir uma segunda vida às coisas (principalmente aos elementos cênicos: objetos, animais, atores, cenários etc.) durante a apresentação, trata-se de desmistificar a ficção do espetáculo para permitir o deslocamento do olhar em sua tentativa de repensar a realidade. Obedecendo a uma perspectiva de renovação, essa dinâmica se concentra, desse modo, no olhar oblíquo e maiêutico que emerge da relação dramatúrgica do espectador com a fábula. Longe da “mercantilização” de espetáculos infantis ou das políticas comerciais para esse público, que constroem “os desejos da criança e até os manipulam desonestamente, apelando para o que é ‘adequado para a criança’ ou ‘sob medida para a criança’6 6 Em italiano: “I desideri del bambino e li manipola anche subdolamente facendo appello a ciò che è ‘adatto al bambino’, o ‘su misura del bambino’”. ” (Amara, 2021AMARA, Lucia. Il teatro infantile di Chiara Guidi. Entretien mené par Giorgiomaria Cornelio. Il Tascabile, revue électronique, 2021.), no Teatro Infantil de Chiara Guidi a criança não é apenas uma receptora passiva, mas uma espectadora ativa por trazer um olhar. É por essa razão que Chiara Guidi prefere o termo Teatro Infantile ao invés de Teatro per Bambini (teatro para crianças) para se referir às suas práticas e criações. O nome incorpora dentro de si o principal polo dialético da representação, ou seja, a criança. Além disso, a criança não é vista como a receptora do espetáculo, mas como seu princípio constitutivo. Além disso, o espetáculo não é destinado somente a crianças. Essa definição de Teatro Infantil leva em consideração o adulto que questiona seu próprio olhar por meio do olhar da criança. De fato, o Teatro Infantil, diz Chiara Guidi, “[...] precisa daquele analfabetismo próprio da infância, daquela tensão inata na brincadeira, capaz de experimentar um outro mundo, de ver a presença por trás das imagens e de devolver à palavra seu som7 7 Em italiano: “Il Teatro infantile – dice Chiara Guidi – ha bisogno di quell’analfabetismo proprio dell’infanzia, di quella tensione innata al gioco, capace di mettere in prova un altro mondo, di vedere la presenza che sta dietro le immagini e di restituire alla parola il suo suono” (Guidi, 2018). ” (Guidi, 2018GUIDI, Chiara. Communication. In: CONFERENCE IL TEATRO INFANTILE, 2018, Théâtre Rasi, Ravenna. Communication [...]. Ravenna, 2018.). Portanto, a palavra “infância” não é usada para se referir a um período da vida, mas a “[...] um sentir e um experimentar e fala no limite da linguagem, no limiar do nãofalado, onde a fala do homem se mistura e se funde com a dos animais, onde está próxima do peso real das coisas e da intimidade com um corpo8 8 Em italiano: “Infanzia non intesa come un’età della vita, ma come un sentire e provare la parola sul limite stesso del linguaggio, sulla soglia del non-dire, là dove la parola degli umani si mescola e si salda con quella degli animali, […] là dove è prossima al peso reale delle cose e all’intimità con un corpo”. ” (Guidi, 2016GUIDI, Chiara. Buchettino. Note de présentation du spectacle. Cesena, 2016.). Trata-se da experiência da infância tal como descrita por Giorgio Agamben:

[...] não pode ser simplesmente algo que precede cronologicamente a linguagem e deixa de existir em um dado momento para ter acesso ao discurso; não é um paraíso que deixaríamos definitivamente um dia para começar a falar; originalmente ela coexiste com a linguagem, ou melhor, constitui-se no próprio movimento da linguagem que a expulsa para produzir o homem como sujeito (Agamben, 1989, p. 89AGAMBEN, Giorgio. Enfance et histoire. Trad. de l'italien par Yves Hersant. Paris: Payot, 1989. (coll. Critique de la philosophie).).

O mesmo acontece no espetáculo L’Épreuve d’un autre monde, criado mais tarde, em 2000, que confunde tanto a criança quanto o adulto que o acompanha ao propor uma experiência teatral fora do comum. Em um primeiro momento, as crianças são separadas de seus acompanhantes e convidadas a colocar longas túnicas e balaclavas de elfo brancas. O dramaturgo, filósofo e crítico de teatro Bruno Tackels sugere, que, dessa forma, elas são “[...] privadas do que estão acostumadas a ser socialmente. Elas estarão, no espaço de uma hora de apresentação, livres da escória de um mundo que desvirtua o essencial: a possibilidade do ato livre” (Tackels, 2005, p. 98TACKELS, Bruno. Les Castellucci. Écrivains de plateau I. Besançon: Solitaires Intempestifs, 2005.). Enquanto isso, os espectadores adultos são convidados a entrar em uma sala, no centro da qual se encontra uma cúpula de papelão com um buraco na altura de uma pessoa, permitindo que sejam voyeurs do que está acontecendo ali dentro. Embora seus olhos estejam cobertos por um tule e, depois, por uma fumaça espessa, os espectadores adultos testemunham a experiência lúdica das crianças.

Estas vão, inicialmente, para um quarto branco com uma cama imensa e um mosquiteiro. Lá, elas encontram uma velha rainha doente e seus criados, prestes a partir rumo a um dos palácios reais do tipo Nacérida. Eles vão em busca do mago malvado e do animal que pode devolver a juventude roubada da rainha. Para cumprir sua missão, as crianças são convidadas, primeiramente, a ouvir e discriminar os sons do mago para tornar sua presença nítida. Em seguida, elas devem imitar seus gestos e dançar com ele até a exaustão para, enfim, amordaçá-lo. Estas ações permitem a liberação do Corsário, o cavalo de mil passos de dança, curandeiro dos males que a rainha sofre depois de ter sido enfeitiçada pelo mago. Assim termina a representação-laboratório, sempre sob o olhar dos adultos espectadores. Enquanto permanecem apenas como observadoras externas da ação dramática, as crianças são os atores. Esse dispositivo se tornou possível por uma trajetória reflexiva e prática, relacionando pesquisa e experimentação, que Chiara Guidi conduz desde suas primeiras criações infantis.

Buchettino e Hänsel and Gretel representam, portanto, o início de uma pesquisa maior e mais precisa do território da criança, que inspirará a instituição da Escola Experimental de Teatro Infantil, em 1995. Esta última influenciará criações posteriores como a de L'Épreuve d'un autre monde, em 2000, cuja experiência teatral acaba de ser descrita e analisada, e na qual a criança é convidada a se engajar plenamente. Desse modo, “[...] a dupla armadilha do espetáculo-para-crianças e da oficina-pedagógica-para-crianças [é] desarmada” (Tackels, 2005, p. 102TACKELS, Bruno. Les Castellucci. Écrivains de plateau I. Besançon: Solitaires Intempestifs, 2005.).

II) A criança atuante na Escola Experimental de Teatro Infantil

De 1995 a 1998, Chiara Guidi criou e desenvolveu uma Escola Experimental de Teatro Infantil, sob o nome de La Scuola sperimentale di teatro infantile (Guidi; Castellucci, 1996GUIDI, Chiara; CASTELLUCCI, Romeo. Scuola sperimentale di teatro infantile I et II. Cesena: Edizioni Socìetas, 1996.), na qual “infância universal” – fórmula escolhida por Chiara Guidi para designar “uma infância entendida como uma entidade irredutível9 9 Em italiano: “un’infanzia universale, un’infanzia intesa come entità irriducibile”. ” (Amara, 2021AMARA, Lucia. Il teatro infantile di Chiara Guidi. Entretien mené par Giorgiomaria Cornelio. Il Tascabile, revue électronique, 2021.) – e a arte se encontram e se confrontam na errância do jogo, ou seja, pela observação, divagação, coleta, desvio, tentativa e erro e experimentação teatral. Um grupo de trinta crianças, que responderam ao anúncio lançado pela Socìetas Raffaello Sanzio, participa de laboratórios de prática teatral semanais, durante três anos consecutivos. A abordagem não convencional se baseia na imersão total da criança-atriz no universo de um conto, interpretado por e com a criança e não para ela. Para Chiara Guidi (2014)GUIDI, Chiara. Puerilia. Livret de l’édition. Cesena, 2014., não é uma questão de

[...] se revigorar ou tirar proveito delas. Mas adentrar e tocar, através das crianças, o conto de fadas, o conto mítico, o teatro (ou melhor, uma espécie de pré-teatro) e a gênese de um ato de criação. [Guidi] queria que a arte do jogo/cena se inscrevesse na fronteira do conto de fadas para colocar em prática uma experiência artística10 10 Em italiano: “Non per essere consolati da loro o per goderne. Ma per entrare e toccare attraverso i bambini la fiaba, il raconta mitico, il teatro (o meglio una sorta di pre-teatro) e la genesi di un atto di creazione. Volevo che l'arte del gioco all'interno del confine fiabesco mettesse in atto un'esperienza d'arte” (Guidi apud Amara, 2014). .

Chiara Guidi recusa as práticas clássicas de atuação e confia na improvisação, deixando as crianças jogarem sem dirigi-las, deixando-as errar, ir aqui e ali sem objetivo, enganar-se e recomeçar, criar e destruir. Lucia Amara (2021)AMARA, Lucia. Il teatro infantile di Chiara Guidi. Entretien mené par Giorgiomaria Cornelio. Il Tascabile, revue électronique, 2021. precisa que “o ‘método infantil’ de Chiara não pretende substituir uma pedagogia, ainda menos fazer parte de uma linha de pensamento pedagógico ou de uma tradição. Sua particularidade é nascer e ser gerado a partir de uma prática artística ‘adulta’, que mantém seu caráter, sem de forma alguma ser ‘reduzida’ ou ‘adaptada’ para as crianças11 11 Em italiano: “Il ‘metodo infantile’ di Chiara non aspira a sostituirsi a una pedagogia, né tanto meno a inserirsi nel solco di un pensiero pedagogico, o di una tradizione. La sua peculiarità è quella di nascere e generarsi da una prassi artistica ‘adulta’, di cui serba intonso il suo carattere, senza in alcun modo ‘ridurlo’ in scala o ‘riadattarlo’ per piccoli”. ”. O objetivo é “elaborar um laboratório que traga o teatro de volta às suas questões essenciais: proporcionar uma experiência, levar as crianças a descobrirem sua própria imaginação, pela travessia coletiva de um espaço ‘fabuloso’. [...] Aqui, as crianças estão imersas em um mundo totalmente isolado da realidade externa” (Tackels, 2005, p. 94-95TACKELS, Bruno. Les Castellucci. Écrivains de plateau I. Besançon: Solitaires Intempestifs, 2005.).

Desde os primeiros encontros, Chiara Guidi convida as crianças a cruzarem os limites: primeiro relacionais – quando os adultos acompanhantes deixam as crianças no Teatro Comandini –, em seguida espaciais e temporais – quando as crianças entram no estabelecimento, e, depois, dentro dele, movendo-se de uma área para outra, cruzando os ‘limites impostos à estranheza12 12 Em italiano: “della stranezza i limiti to imposto” (Guidi; Amara, 2019, p. 19). ’. Desse modo, as crianças são convidadas primeiro a buscar seu ‘figurino’ – uma túnica branca, desbotada e propositalmente ainda manchada – na entrada, a ‘primeira zona’, à qual elas têm acesso desde a chegada. Em seguida, elas devem se reunir para ouvir as instruções do dia. Para acessar a ‘segunda zona’, é preciso que uma criança abra uma passagem imaginária. Esta conduz à ‘zona de acordo e confiança’, chamada de ‘toca’ ou ‘refúgio’ pelas crianças. Elas desenvolvem juntos ali uma estratégia para ocupar o teatro e habitá-lo coletivamente, estratégia que deve ser implantada na próxima zona, ou seja, o palco, ‘apossado’ por um ‘usurpador’, ou seja, um ator, permitindo que o essencial do drama esteja em ação. O palco é, portanto, tanto um tabuleiro de jogo quanto um lugar de ‘lutas e combates13 13 Esse espaço é assim chamado porque os jogos muitas vezes envolvem lutar contra um dragão, capturar um monstro, libertar um personagem das garras de outro, lutar contra um inseto gigante etc. ’. Uma ‘quarta zona’ imaterial, que corresponderia a um ‘não-lugar intransitável’, ainda está faltando, segundo Chiara Guidi.

Deslocando-se pelo teatro e pelo palco segundo as regras espaciais e temporais estabelecidas por Chiara Guidi, obedecendo também as instruções de jogo e indumentárias, dentro de uma relação de confiança e de errância, a criança é inconscientemente convidada a romper com o “habitus” (Bourdieu, 1972BOURDIEU, Pierre. Esquisse d’une théorie de la pratique. Genève: Librairie Droz, 1972.). Ao mesmo tempo, isso favorece um senso de distância, que “é um princípio determinante do gesto pedagógico, ou daquele que orienta as crianças ‘para a arte’14 14 Em italiano: “La distanza sia un principio determinante del gesto pedagogico, o di chi guida ‘ad arte’ i bambini”. ” (Amara, 2021AMARA, Lucia. Il teatro infantile di Chiara Guidi. Entretien mené par Giorgiomaria Cornelio. Il Tascabile, revue électronique, 2021.), e uma relação de confiança e proximidade.

Portanto, por uma abordagem proxêmica, Chiara Guidi cria um espaço-tempo à margem da realidade, no qual as crianças se desenvolvem dentro do hic et nunc da ação dramática, permanecendo abertas à sua imaginação, permitindo que outros lugares, tempos, personagens etc. surjam, somados a outras realidades, que elas fazem coexistir por meio do jogo, corpo e voz, “jogos de sonhos”, como diria Jean-Pierre Sarrazac (2004)SARRAZAC, Jean-Pierre. Jeux de rêve et autres détours. Belval: Circé, 2004., nas andanças da infância.

Os eventos construídos com as crianças na Escola Experimental visam, portanto, recuperar uma dimensão lúdica ancestral, tocar o absoluto da narrativa pela teatralidade primordial da infância, entrar nos territórios do imaginário que antecedem o teatro, em um estado não-formalizado, mas autêntico, capaz de captar e transformar em representação a visão produzida pela criatividade infantil15 15 Em italiano: “Gli eventi costruiti con i bambini alla Scuola Sperimentale mirano, dunque, a recuperare una dimensione ludica ancestrale, toccare l’assolutezza del racconto attraverso la teatralità primordiale dell’infanzia, entrare nei territori dell’immaginario che precedono il teatro, in uno stato non formalizzato ma autentico capace di cogliere e trasformare in rappresentazione la visione prodotta dalla creatività puerile”. (Marino, 2014MARINO, Massimo. Il metodo errante di Chiara Guidi. Doppiozero, revue électronique, 2014.).

A Escola Experimental de Teatro Infantil torna-se, assim, o lugar da liberdade para a experimentação e a aquisição de conhecimentos diretos do mundo. No entanto, em sua forma atual, Chiara Guidi e Lucia Amara consideram que essas são apenas as balizas “[...] de uma pragmática do estado infantil, estabelecendo formas que podem ser definidas como arquetípicas, pois dizem respeito ao esqueleto a partir do qual qualquer ambiente de aprendizagem deve começar, [...] um laboratório científico, uma apneia necessária para deixar as crianças habitarem16 16 Em italiano: “una pragmatica dello stato infante stabilendo forme che possono definirsi archetipiche, poiche riguardano lo scheletro da cui ogni ambiente di apprendimento dovrebbe prendere le mosse […] un laboratorio scientifico, apnea necessaria in cui far dimorare i bambini”. ”. Entretanto, após esses três anos, e como ela mesma havia prometido, Chiara Guidi, movida pelo medo de que essa experiência não fosse mais uma experiência, mas um curso, uma lição a ser aprendida de cor, decidiu não repetir a Escola Experimental de Teatro Infantil. “Como fazem os nômades em seu caminho” (Guidi; Amara, 2019, p. 58GUIDI, Chiara; AMARA, Lucia. Teatro Infantile. L’arte scenica davanti agli occhi di un bambino. Besançon: Luca Sossella Editore, 2019.), por errância ou itinerância, era necessário encontrar outro lugar para recomeçar de forma diferente, e sempre em movimento, esse tipo de experiências. Por essa razão, Chiara Guidi conclui seu diário de observações do seguinte modo:

Escrevi tudo em um caderno, um diário que ainda hoje testemunha como, embora as histórias e as formas mudem a cada vez, os pressupostos permanecem os mesmos. Basicamente, tudo o que faço é repetir a mesma coisa uma e outra vez, a mesma coisa e ainda assim tão diferente, porque o ponto de observação muda. Cada verbo ‘entrar, pular, tropeçar, cair, morrer, nascer, brigar, esconder, quebrar, abandonar, sequestrar, ...’ e, a cada vez, um incipit, um reinício contínuo. Penso que compartilhar um espaço com as crianças nos coloca em um estado de movimento perpétuo. Tudo se repete com a mesma força e necessidade, como se fosse a primeira vez, da mesma forma que as palavras se renovam na barriga grávida de cada frase (Guidi; Amara, 2019, p. 59-60GUIDI, Chiara; AMARA, Lucia. Teatro Infantile. L’arte scenica davanti agli occhi di un bambino. Besançon: Luca Sossella Editore, 2019.)17 17 Em italiano: “Di quanto accadde segnai tutto in un quaderno, un diario che ancor oggi testimonia come, sebbene i racconti e le forme ogni volta cambino, tuttavia i presupposti restano gli stessi. In fondo, non faccio altro che ripetere sempre la stessa cosa, uguale eppure cosi diversa poiche cambia il punto di osservazione. Ogni verbo ‘entrare, saltare, inciampare, candere, morire, nascere, litigare, nascondere, rompere, abbandonaren rapire... ‘ e, ogni volta, un incipit, un continuo ricominciare. Penso che condividere con i bambini uno spazio ci ponga in una condizione di moto perpetuo. Tutto si ripete con la stessa forza e necessita, come se fosse la prima volta, allo stesso modo delle parole che si rinnovano nel ventre gravido di ogni frase”. .

Consequentemente, os projetos que se seguiram a essas experiências, incluindo o Festival Puerilia e o ‘método errante’, foram, sem dúvida, influenciados por elas e guiados pela busca de Chiara Guidi (2011)GUIDI, Chiara. Puerilia. Livret de l’édition. Cesena, 2011. de “[...] subverter a retórica que faz da criança o homem de amanhã, se baseia na condição infantil como o lugar e o tempo de uma primeira apreensão do mundo [, e] entender o que significa ser criança e como poder ser uma criança18 18 Em italiano: “Puerilia è una rassegna che rovescia la retorica che vede i bambini come gli uomini di domani, ma attinge alla condizione infantile come luogo e tempo per una presa del mondo iniziale. Vogliamo tentare di capire cosa vuol dire essere bambini ed anche come potere essere bambini”. ”.

III) A criança mestre de jogo do Festival Puerilia

Em 2011, Chiara Guidi criou o Festival Puerilia, que se realiza, ao longo de vários dias de puericultura teatral na cidade de Cesena e no Teatro Comandini, durante cerca de um mês, em colaboração com a revista de teatro para crianças do Teatro Bonci. Na continuidade de seus projetos anteriores, ela desenvolve experiências em que as crianças são ao mesmo tempo espectadoras, participantes, atuantes, “atores de atos e palavras19 19 Chiara Guidi qualifica as crianças desse modo desde a edição de 2011 (Guidi, 2011). ”, e mestres de jogos das criações dramáticas propostas e dos limites do palco. Para estes, também qualificados como “Diálogos20 20 As crianças são convidadas a compartilhar com todos a história que viveram como participantes-protagonistas, assim como a que testemunharam como espectadoras-‘historiadoras’, nas palavras de Chiara Guidi. Estas permitem “um constante vaivém entre a abordagem interior, sensível, pragmática e empírica realizada [no palco e no teatro] e a aquisição de referenciais teóricos, históricos e estéticos, assim como um método de análise da representação”, qualidades essenciais para o “aprendiz de espectador”, segundo Yannic Mancel (2002, p. 185), assessor artístico e literário e professor de História e Dramaturgia do Teatro. ” por Chiara Guidi, são convidados, após as apresentações, artistas, professores, filósofos, críticos e historiadores de arte. No programa para a edição de 2013, ela afirma que:

Os adultos que assistem o espetáculo não devem interferir ou antecipar as respostas das crianças porque, no teatro, são elas os mestres; são elas que devemos escutar. Durante as representações, elas nos abrem para um conhecimento que suspende a razão para manifestar, com os sentidos e a imaginação, a força original das palavras e das emoções (Guidi, 2013GUIDI, Chiara. Puerilia. Livret de l’édition. Cesena, 2013.).

As crianças também são o foco principal das conferências públicas; dos laboratórios para atores, cada um com duração de uma semana; dos seminários de treinamento para professores organizados durante o festival e da filmografia e bibliografia propostas. O festival reúne crianças, pais, pesquisadores, profissionais do cuidado infantil, atores, professores e educadores em torno da questão da infância. Juntos, eles questionam a “[...] educação artística e cultural [que] queremos para as crianças e as competências [que] queremos que elas adquiram” (Lauret, 2014, p. 92LAURET, Jean-Marc. L’art fait-il grandir l’enfant ? Essai sur l’évaluation de l’éducation artistique et culturelle. Toulouse: Éditions de l’Attribut, 2014.) e praticam o ‘olhar tátil’ da criança, retomando os termos de Chiara Guidi (2014)GUIDI, Chiara. Puerilia. Livret de l’édition. Cesena, 2014.:

[Trata-se de responder] conceitualmente à função inventiva e pragmática do conhecimento praticado pelas crianças, recusando a exploração de estereótipos do imaginário infantil para adotar, com toda a seriedade necessária, o processo primitivo de seu olhar táctil.

Em resposta a essa problemática, de 2011 a 2013 o Festival Puerilia se desenvolve segundo quatro eixos, definidos, por Chiara Guidi, como verbos de ação. O primeiro é ‘fazer’, pois crianças e adultos se envolvem em uma prática ativa e profunda (escola do jovem espectador21 21 Em francês: École du jeune spectateur. Esse termo é usado para designar o “processo educativo pelo qual os estudantes aprendem a se tornar espectadores ativos e interessados e a apreender o teatro como uma prática artística viva além da mera experiência de análise literária de textos, possibilitando a aquisição, no compartilhamento de uma cultura comum, de julgamento estético e pensamento crítico” (Charte nationale de l’école du spectateur, ANRAT: http://www.anrat.net/). , prática do olhar, prática do corpo e da voz, prática da imaginação, prática dramatúrgica etc.). O segundo se concentra no ato de ‘experimentar’, pois as colaborações realizadas (com atores, artistas plásticos, músicos, dançarinos etc.) permitem desenvolver uma pesquisa sobre as características de uma criação voltada para o público infantil, as ferramentas oferecidas antes e depois da apresentação para que o jovem espectador apreenda os espetáculos, suas especificidades pedagógicas, assim como, de modo mais geral, a relação entre arte e criança. As hipóteses formuladas durante esse questionamento podem então ser exploradas e testadas no palco. ‘Refletir’, especialmente sobre as orientações pedagógicas e suas alternativas, é o terceiro eixo do festival. De fato, pesquisas e práticas anteriores, como as da pedagoga britânica Lucy R. Latter (1906)LATTER, Lucy R. School gardening for little children. London: Swan, Sonnenschein & Co., 1906., as do pedopsiquiatra, pedagogo e poeta francês Fernand Deligny (1980)DELIGNY, Fernand. Les enfants et le silence. Paris: Éditions Galilée, 1980., ou ainda as do filósofo Maurice Merleau-Ponty (2000), foram estudadas para criar uma dinâmica nos métodos de transmissão e educação. Finalmente, longe do pensamento de Christiane Page (1997, p. 121)PAGE, Christiane. Éduquer par le jeu dramatique. Paris: ESF, 1997., que considera que “ [...] o jogo dramático não é nem uma matéria a mais, nem uma ferramenta de ensino, mas uma possibilidade de finalizar o aprendizado que a escola tem o dever de proporcionar”, trata-se, primeiramente, de “envolver” as crianças e os professores de Cesena, e, em seguida, todas as pessoas que trabalham em contato com as crianças, convidando-as a questionar a necessidade de conceber a criação teatral dentro de um projeto pedagógico, ou até mesmo de sociedade, e de incentivar a diversidade cultural, estética e territorial para o público infantil.

A partir desses quatro eixos, três movimentos, ou seja, três seções, constituem a forma que o festival assume, incluindo as suspensões de sua execução. Essas três seções são formalizadas por escrito, em 2013, por Chiara Guidi, no ‘método errante’ (descrito e analisado posteriormente neste artigo), desenvolvidas e aplicadas no ano seguinte. O primeiro movimento se concentra no encontro com os professores ou acompanhantes das crianças e Chiara Guidi em torno das formas de teatro. O desafio dessa relação triangular não corresponde a um processo didático ou pedagógico ‘clássico22 22 Também não se trata de uma “parceria” que se encaixaria no quadro dos projetos EAC (Educação Artística e Cultural) da França, porque embora os três pilares que a compõem – ou seja, conhecimento, práticas e encontros – coincidam, a experimentação nem sempre faz parte do projeto da escola ou instituição, o projeto parceiro não tem necessariamente envergadura e a aquisição de conhecimento pode ser não-racional (Cf. Rouillon, 2013, p. 4). ’, já que, para Chiara Guidi, não se trata de explicar nem de argumentar com base em exemplos, imagens, filmes ou escutas, mas de questionar juntos as possibilidades inerentes à arte, repensar coletivamente uma nova maneira de descobrir e revelar o que suspeitamos já saber, aceitar viver em comunidade uma experiência que não acrescente conhecimento nem dê respostas, mas que, ao contrário, faça duvidar do que parecia certo, das perguntas que já tinham soluções.

Além disso, ao final de cada apresentação, os espectadores adultos e crianças são convidados a reinventar o que acabaram de ver e ouvir, confiando uns nos outros e em si mesmos, em seu potencial imaginativo e inspiração dramatúrgica. Desse processo emerge uma narrativa que agora se concentra nos “[...] detalhes e relações que envolvem as coisas, preservando a força potencial que a experiência contém, para que os múltiplos níveis de realidade, que todas as formas costumam conter, possam ser manifestados” (Guidi, 2014GUIDI, Chiara. Puerilia. Livret de l’édition. Cesena, 2014.).

O segundo movimento se concentra nos atores que experimentam o ‘método errante’ em um laboratório, em torno de uma forma dramática, narrativa e figurativa, construída principalmente a partir de ações miméticas e questionando os dois lados da representação teatral: ação e recepção. São criados, por exemplo, Lo sguardo di Arlecchino23 23 Lo sguardo di Arlecchino (as costas de Arlequim) é “uma história que leva em consideração o lado oculto das coisas, e nos ensina a não ficar satisfeitos com um único ponto de vista para conhecer o mundo”. Lo sguardo di Arlecchino também podem falar e dizer o que está acontecendo do seu lado que o Arlequim não consegue ver. As costas também têm uma maneira particular de conhecer o mundo. Cf. Programa do Festival Puerilia 2014. , La terra dei lombrichi. Una tragedia per bambini da Alcesti di Euripide24 24 Nesse espetáculo também é mostrada a vida oculta desse povo trabalhador, que luta longe da vista. Embaixo da terra, sob o que parece ser um prado tranquilo e abandonado, a pululante vida das minhocas se agita. É preciso cavar e ir fundo para descobrir seus segredos”. Cf. programa do Festival Puerilia 2014. , ambas baseadas no ‘método errante’, levando em conta o lado oculto das coisas (por trás e debaixo da terra). Na apresentação, o ator se submete ao olhar da criança, ele o estimula, assim como faz com a ficção, refina sua atuação e presença, enquanto assegura a abertura das formas teatrais, “isto é, elas precisam de crianças para se compor e se realizar” (Guidi, 2014GUIDI, Chiara. Puerilia. Livret de l’édition. Cesena, 2014.).

O terceiro movimento é um convite e um chamado. Chiara Guidi chama as crianças a ocupar o teatro, enquanto o espetáculo as convida a fazê-lo existir através de sua participação ativa, sua atuação e sua relação com os atores. As presenças da criança chamam os artistas a se questionarem de novo quanto à “[...] passagem alquímica do conhecido para o desconhecido, a relação entre arte e realidade, por trás e por baixo da terra, redescobrindo de uma nova maneira o que já sabem” (Guidi, 2014GUIDI, Chiara. Puerilia. Livret de l’édition. Cesena, 2014.). Em última análise, trata-se de

[...] entrar literalmente no espaço cênico para determinar a evolução da história com suas decisões ou suas intervenções. Eles são convidados a usar sua capacidade inata de mudar o curso dos acontecimentos, de transformar uma história, de criar. A forma as conduz nas pistas de algo, ela desperta sua imaginação restaurando um mundo animado, põe em movimento a ação e o pensamento a partir do que veem, impele-os a liberar uma força irracional jogando com emoção, ritmo e composição (Guidi, 2014GUIDI, Chiara. Puerilia. Livret de l’édition. Cesena, 2014.).

Esses objetivos participam da elaboração do ‘método errante’ e, com o Festival Puerilia, alimentam-se mutuamente, já que o ‘método errante’ se desenvolve e se esclarece durante o festival, através dessa experiência prática, que permite confirmar ou invalidar o método em sua elaboração, aplicação e recepção e criticá-lo da forma mais subjetiva possível. De fato, como aponta Chiara Guidi, o ‘método errante’, embora seja originalmente fruto de uma intuição pessoal, deve agora ser pensado coletivamente, constantemente questionado, e “[...] requer um diálogo para evoluir, para ser colocado em crise em uma constante redefinição, e em sua relação com os vários interlocutores, para encontrar seu próprio significado” (Guidi, 2014GUIDI, Chiara. Puerilia. Livret de l’édition. Cesena, 2014.).

IV) O ‘método errante’: a criança errante ou a errância da infância

A análise dos processos e criações anteriores nos permite apresentar o ‘método errante’ de Chiara Guidi como uma prática de pesquisa e experiência itinerante que tende a abalar os preceitos e hábitos de escuta e olhar passivos da criança-espectadora, garantindo a libertação de sua imaginação, através de um projeto dramático de ‘teatro infantil’, que convida a criança a se engajar em uma relação autêntica com a arte, sendo estimulada e solicitada a participar ativamente. Com o ‘método errante’, a criança é ouvida, seu olhar é incentivado, sua atuação é evidenciada, sua errância é voluntária, pois “[...] as artes são assumidas como ferramentas pedagógicas transversais e universais que reforçam o poder profanador do jogo cênico, que não visa o conhecimento, mas propõe espaços de concepção a serem vividos25 25 Em italiano: “La fiducia riposta nelle arti come strumenti educativi trasversali e universali esalta, quindi, la forza profanatrice del gioco che non punta alla conoscenza, ma crea le condizioni di un’esperienza da vivere”. ” (Sapienza, 2017SAPIENZA, Annamaria. Vedere il suono. Il metodo errante di Chiara Guidi tra infanzia e voce. Acting Archives Review, n. 13, 2017.).

A errância é, portanto, uma prática que, por um lado, tem apenas o objetivo de se desdobrar, e, por outro, manifesta uma ação dupla, que se experimenta na desorientação, nos desvios e, portanto, no erro. Derivado do latim iterare, depois do francês antigo esrer, o termo ‘errância’ (errance) assume o sentido de viagem e caminho, e o particípio passado implica repetição e duração ao longo do tempo. A etimologia original do termo ‘errar’ (errer) é, no entanto, uma ambiguidade homônima, uma vez que ‘errar’ também abrange o significado de ‘perder-se, fazer o caminho errado, enganar-se’. Esses dois significados se sobrepõem gradualmente até chegar tanto em ‘errância’, o sentido de ‘ação de errar’, podendo ser compreendida tanto como uma ‘situação de deslocamento constante sem objetivo’, quanto na ação de ‘ir aqui e ali, de modo aventureiro, sem objetivo’, ‘de andar, viajar sem parar’, ‘de andar sem rumo, ao acaso’ ou como ‘de vacilar, rodear’ e ‘enganar-se, fazer o caminho errado’.

O ‘método errante’ confirma essas primeiras observações etimológicas e lexicais, já que, segundo Chiara Guidi, a ideia de errância leva à contemplação da tentativa de jogo e de encenação e da imprevisibilidade, que sujeita qualquer pessoa ao risco de erro e à necessidade de se comprometer. De fato, ela revela as poéticas da caminhada aleatória e do acidente criativo em crianças e adultos, forçando-os a voltar e a representar sua infância. A errância encontra na criança e na infância um terreno propício para o seu desenvolvimento, porque nelas, por elas, com elas, pode-se experimentar livremente a coleta, a tomada de iniciativa, o acidente, o erro, o recomeço, a criação, a destruição, a espera e a viagem. Criança e infância possuem as forças motrizes fundamentais de todas as formas teatrais, ou seja, aquelas necessárias para a decomposição, readaptação e invenção pela errância. Como aponta Chiara Guidi (2017): “Acredito que o teatro está muito próximo da brincadeira da infância, se o teatro for proposto como um ato de confronto com uma imagem que leva a gerar outras, a parar, a suspender o conhecimento crítico26 26 Em italiano: “Credo che il teatro sia molto vicino al gioco dell’infanzia se viene proposto come quel mettersi di fronte a un’immagine che porta a generarne altre, fermandosi, sospendendo la conoscenza critica”. ”. O ‘método errante’ é inspirado na criança errante e, ao mesmo tempo, é a criança que cria esse método porque “[...] a criança vê além do que a história lhe dirá, e a arte não a educa, mas desloca sua capacidade de conhecer o mundo transformando-o” (Guidi, 2017). Chiara Guidi se liberta da tendência infeliz – no entanto, generalizada – de apresentar às crianças apenas formas artísticas suavizadas, diluídas, pasteurizadas e, portanto, consensuais e que não são realmente feitas para elas e não lhes convêm. Com o ‘método errante’ não se trata mais de “conduzir a criança em direção à arte” (Ardouin, 1997, p. 10ARDOUIN, Isabelle. L'éducation artistique à l’école. Paris: ESF éditeur, 1997.), como sugere Isabelle Ardouin, em L’éducation artistique à l'école, mas de permitir que ele ou ela escolha sua arte.

Além disso, por ser uma busca duradoura, empreendida através de longas andanças, sem outro objetivo que não seja a viagem em si no território da infância e através dos olhos da criança, o ‘método errante’ torna possível fazer da criança tanto seu modelo quanto sua imago, a origem e a finalidade. Chiara Guidi afirma:

A arte pode mudar o aprendizado e tornar-se uma forma de conhecimento sem objetivo, sem utilidade. E esta é uma afirmação difícil de ser aceita por um professor ou um pedagogo. Mas a arte é válida independentemente de todas as instruções de uso. Devemos reivindicar sua independência, sua autonomia, justamente quando ela é mais necessária à sociedade, à pedagogia, à política27 27 Em italiano: “L’arte può modificare l’apprendimento e diventare una forma di conoscenza senza scopo, senza utilità. E questo è un discorso difficile da far accettare a un insegante o a un pedagogista. Ma l’arte è valida indipendentemente da tutte le istruzioni per l’uso. Bisogna rivendicarne l’indipendenza, l’autonomia, proprio nel momento in cui è più necessaria per la società, per la pedagogia, per la politica”. (Guidi apud Marino, 2014GUIDI, Chiara. Puerilia. Livret de l’édition. Cesena, 2014.).

Ao opor a “resistência aos sistemas relacionais e comunicativos do contemporâneo [...] em nome de uma exploração dos status da criação teatral28 28 Em italiano: “di resistenza nei confronti dei sistemi relazionali e comunicativi del contemporaneo, [...] in nome di una spregiudicata esplorazione degli statuti della creazione teatrale”. ” (Sapienza, 2017SAPIENZA, Annamaria. Vedere il suono. Il metodo errante di Chiara Guidi tra infanzia e voce. Acting Archives Review, n. 13, 2017.), o ‘método errante’ subverte a dinâmica didática mais tradicional para ir do que se sabe para o que não se sabe, do que se conhece para o que não se conhece. Além disso, o ‘método errante’ pode ser adaptado ao contexto e à relação com a criança e com a infância da pessoa que o aplica (na escola por professores, por exemplo). Para os atores, esse método – cujo nome se assemelha a um oxímoro, pois reúne os termos, quase antagônicos, ‘método’ e ‘errante’ – propõe-se como condução de jogo, impondo uma exatidão para sustentar o olhar da criança e torná-lo seu.

Trata-se também de questionar as resistências da criança, manifestadas, por exemplo, por sua não-absorção ou escuta, sua indisciplina, sua capacidade de colocar em crise o ritmo, o texto e a representação como um todo. Isso se deve às especificidades da criança, tais como a ausência de falsidade e a espontaneidade, que a tornam o meio quintessencial para o ‘método errante’, brincando com ele e o desafiando.

Qualquer criação que obedeça ao ‘método errante’ é, portanto, pensada de modo antecipado: espaços, dispositivos, atmosfera, ambiente sonoro e luminoso, disposição dos adereços e objetos cênicos, atuação etc., de modo que todos esses elementos “criem as condições fundamentais para o desenvolvimento da imaginação29 29 Em italiano: “le condizioni di un’esperienza da vivere […] della realtà e dell’immaginazione”. ” (Sapienza, 2017SAPIENZA, Annamaria. Vedere il suono. Il metodo errante di Chiara Guidi tra infanzia e voce. Acting Archives Review, n. 13, 2017.). Para reuni-los, o ‘teatro infantil’ deve não só respeitar a forma teatral aberta, confiando nas poéticas do espaço, do tempo e da ação, anteriormente explicitadas, mas também procurar a voz da infância. Isso é possível pela abertura do olhar, ‘molecularização da voz’, como qualifica Annamaria Sapienza, e pela libertação da figura animal, usando animais em cena.

O uso de animais nos espetáculos de Chiara Guidi pode ser entendido como sua presença física no palco (como é o caso, por exemplo, em Le favole di Esopo (1992), que traz à cena mais de trezentos animais), ou como um elemento comparativo no qual a animalidade conduz o jogo cênico. Quer o animal seja real ou imaginário e sua intervenção, velada ou explícita, ele chama a atenção de todos assim que entra em cena. A presença animal, assim como a da criança, carrega outra realidade, fora do tempo e do espaço teatral, criando uma relação renovada com a cena e com a maneira como ela é vista. Segundo Chiara Guidi, é “típico da infância, algo de uma relação que nunca mais se repetirá”, e prossegue:

Isso é verdade a tal ponto que as crianças aprendem a se expressar imitando os sons dos animais, e é uma figura típica na relação entre adultos e crianças, com todos seus laços morais e sociais. Há a educação em socialidade, na relação com os animais, há deslumbramento, admiração e imitação por esta incrível diversidade e há também horror, há a evocação de uma voz ‘outra’30 30 Em italiano: “Questo è tipico appannaggio dell’età infantile, qualcosa di una relazione che non apparirà mai più. Ed è vero, tanto che i bambini imparano a parlare imitando i versi degli animali, e che una figura tipica del rapporto tra adulto e bambini, con tutte le sue connessioni morali, sociali. C’è educazione alla socialità, nel rapporto con gli animali, c’è lo stupore, l’ammirazione e l’imitazione per questa incredibile diversità e c’è anche l’orrore, c’è l’evocazione di una voce ‘altra’”. (Guidi; Amara, 2019, p. 132GUIDI, Chiara; AMARA, Lucia. Teatro Infantile. L’arte scenica davanti agli occhi di un bambino. Besançon: Luca Sossella Editore, 2019.).

A isso se soma um trabalho de voz peculiar, realizado desde os anos 1980 por Chiara Guidi, para encontrar a “fonética originária”, explorando as “infinitas possibilidades do instrumento vocal do ator31 31 Em italiano: “infinite possibilità dello strumento vocale dell’attore”. ” (Sapienza, 2017SAPIENZA, Annamaria. Vedere il suono. Il metodo errante di Chiara Guidi tra infanzia e voce. Acting Archives Review, n. 13, 2017.).

O horizonte que emerge move os atores para uma nova sensibilidade à escuta, ou, para o reconhecimento de sua própria voz como uma ressonância interior, emocional, uma refração da leitura do texto em seu próprio corpo, traçando a fibrilação acústica, o elemento físico e orgânico da palavra privada de seu significado lógico. […] A palavra é decomposta como a engrenagem de um brinquedo, em busca de sua potência original, ou seja, a força geradora que precede a junção lógica entre lema e significado32 32 Em italiano: “L’orizzonte che si delinea muove gli attori verso una nuova sensibilità all’ascolto, ovvero, al riconoscimento della propria voce come risonanza interiore, emotiva, rifrazione della lettura del testo nel proprio corpo entro il quale rintracciare la fibrillazione acustica, l’elemento fisico e organico della parola privata del suo significato logico. […] La parola è scomposta come l’ingranaggio di un giocattolo, alla ricerca della sua potenza originaria, ovvero, della forza generatrice che precede la giuntura logica tra lemma e significato”. (Sapienza, 2017SAPIENZA, Annamaria. Vedere il suono. Il metodo errante di Chiara Guidi tra infanzia e voce. Acting Archives Review, n. 13, 2017.).

Chiara Guidi considera a implementação do ‘método errante’ como um ritual que consiste no reconhecimento dos poderes da linguagem da Arte, da multiplicidade de suas formas e de sua abertura aos sentidos, respondendo a três ritos por ela definidos da seguinte forma:

Depois de Pouvoir analogique de la beauté e Pouvoir analphabétique de l’imagination, o Pouvoir anachronique de l’âme entra em um espaço que é ao mesmo tempo profundamente íntimo e em constante escuta, a própria alma que nos ancora a nós mesmos e nos conecta com o mundo. No fio da alma, Chiara Guidi se dirige ao modo da escola, voltando-se para o passado, para os mestres pitagóricos que se dirigiam a seus discípulos escondidos por uma cortina para dissimular seus corpos e encontrar um outro, ‘imaginado’ pelos ouvintes pelas ressonâncias da alma (Guidi, 2014GUIDI, Chiara. Puerilia. Livret de l’édition. Cesena, 2014.).

Em suma, trata-se de cultivar a imaginação em um espaço-tempo da experiência a ser vivida em uma ‘solidão privilegiada e compartilhada33 33 Esses termos são utilizados na nota de apresentação da Socìetas Raffaello Sanzio em seu site: www.societas.es. ’, preservando as condições necessárias para sua implementação (poder do jogo, abertura do olhar, poéticas do espaço, tempo e ação, voz da infância) por meio de um sistema educativo e pedagógico alternativo, transversal e universal, favorável à errância, ao descarrilhamento, à imprevisibilidade e à suspensão.

Do processo criativo ao palco, da poiesis à praxis, a criança aparece como uma das principais protagonistas da pesquisa dramatúrgica de Chiara Guidi, participando ativamente de seus processos criativos e desempenhando um papel de liderança em suas apresentações teatrais. Seja como espectador, ator ou tema de experimentação, a criança é tanto a origem quanto o contexto, o modelo e o imago de seu teatro de laboratório. A criança errante e a errância da infância são as forças motrizes de seus espetáculos infantis, de sua Escola Experimental de Teatro Infantil, de seu Festival Puerilia e de seu ‘método errante’.

Todo o trabalho experimental de Chiara Guidi, realizado no âmbito do Festival Puerilia no Teatro Comandini, visa, portanto, mudar a forma como olhamos para a infância e para a relação adulto/criança. Dessa experiência de escuta e olhar para a criança, a infância e sua errância, nasce a prática singular e inovadora de Chiara Guidi, que garante o envolvimento da criança em um desdobramento do imaginário, através de um método de convivência pela arte. Comparável a um sistema educativo e pedagógico alternativo, transversal e universal, até mesmo utópico (Ieven, 2017IEVEN, Emilie. L’errance, un mouvement à potentiel utopique. Carnets, revue électronique d'études françaises, Série II, n. 10, 2017.), esse método, baseado na errância, permite à criança estar em ação em sua relação com o corpo e a voz, com o Outro e com o mundo e com a contemporaneidade.

Notas

  • 1
    As práticas e criações da Socìetas Raffaello Sanzio podem ser qualificadas como ‘experienciais’, pois se baseiam na experimentação de métodos, conhecimentos e formações, concebidos pela coleta de experiências de vida e de jogo da companhia, seus membros, públicos, fábrica de imaginários e laboratório dramatúrgico.
  • 2
    Influenciado pelo trabalho de Chiara Guidi, Romeo Castellucci se interessa pelo que a criança encarna em cena quando ela não se apresenta como criança e a impulsiona, desse modo, na cena de alguns de seus espetáculos: Genesi, from the museum of sleep (1999), Il combattimento (2000), A.#02 (2002), Br.#04 (2003), Inferno (2008), Purgatorio (2008), Sul concetto di volto nel figlio di Dio (2011), Il Primo Omicidio (2019), Requiem (2019) e, recentemente, Bros (2021) entre outros. O palco de teatro se torna o lugar da performatividade experiencial e experimental da criança, mas de uma perspectiva diferente da de Chiara Guidi.
  • 3
  • 4
    Em italiano: “La componente sonora è ricercata in ogni elemento della rappre-sentazione, dal testo agli oggetti, alla ricerca di una forza di base invisibile e pervasiva che sostiene la forma più autentica dell’esperienza teatrale [e] di una fisicità acustica capace di diventare forma, figura nello spazio”.
  • 5
    Em italiano: “Imparare a stare di fronte allo sguardo del bambino, sostenendolo e facendolo nostro a nostra volta. Questo sguardo non è mai ingenuo e al contempo va anche costruito dall’adulto che guida il bambino. Il meccanismo è un’alchimia di relazione e reciprocità continua, di flussi e trasformazioni scambievoli che vanno in due sensi”.
  • 6
    Em italiano: “I desideri del bambino e li manipola anche subdolamente facendo appello a ciò che è ‘adatto al bambino’, o ‘su misura del bambino’”.
  • 7
    Em italiano: “Il Teatro infantile – dice Chiara Guidi – ha bisogno di quell’analfabetismo proprio dell’infanzia, di quella tensione innata al gioco, capace di mettere in prova un altro mondo, di vedere la presenza che sta dietro le immagini e di restituire alla parola il suo suono” (Guidi, 2018GUIDI, Chiara. Communication. In: CONFERENCE IL TEATRO INFANTILE, 2018, Théâtre Rasi, Ravenna. Communication [...]. Ravenna, 2018.).
  • 8
    Em italiano: “Infanzia non intesa come un’età della vita, ma come un sentire e provare la parola sul limite stesso del linguaggio, sulla soglia del non-dire, là dove la parola degli umani si mescola e si salda con quella degli animali, […] là dove è prossima al peso reale delle cose e all’intimità con un corpo”.
  • 9
    Em italiano: “un’infanzia universale, un’infanzia intesa come entità irriducibile”.
  • 10
    Em italiano: “Non per essere consolati da loro o per goderne. Ma per entrare e toccare attraverso i bambini la fiaba, il raconta mitico, il teatro (o meglio una sorta di pre-teatro) e la genesi di un atto di creazione. Volevo che l'arte del gioco all'interno del confine fiabesco mettesse in atto un'esperienza d'arte” (Guidi apud Amara, 2014GUIDI, Chiara. Puerilia. Livret de l’édition. Cesena, 2014.).
  • 11
    Em italiano: “Il ‘metodo infantile’ di Chiara non aspira a sostituirsi a una pedagogia, né tanto meno a inserirsi nel solco di un pensiero pedagogico, o di una tradizione. La sua peculiarità è quella di nascere e generarsi da una prassi artistica ‘adulta’, di cui serba intonso il suo carattere, senza in alcun modo ‘ridurlo’ in scala o ‘riadattarlo’ per piccoli”.
  • 12
    Em italiano: “della stranezza i limiti to imposto” (Guidi; Amara, 2019, p. 19GUIDI, Chiara; AMARA, Lucia. Teatro Infantile. L’arte scenica davanti agli occhi di un bambino. Besançon: Luca Sossella Editore, 2019.).
  • 13
    Esse espaço é assim chamado porque os jogos muitas vezes envolvem lutar contra um dragão, capturar um monstro, libertar um personagem das garras de outro, lutar contra um inseto gigante etc.
  • 14
    Em italiano: “La distanza sia un principio determinante del gesto pedagogico, o di chi guida ‘ad arte’ i bambini”.
  • 15
    Em italiano: “Gli eventi costruiti con i bambini alla Scuola Sperimentale mirano, dunque, a recuperare una dimensione ludica ancestrale, toccare l’assolutezza del racconto attraverso la teatralità primordiale dell’infanzia, entrare nei territori dell’immaginario che precedono il teatro, in uno stato non formalizzato ma autentico capace di cogliere e trasformare in rappresentazione la visione prodotta dalla creatività puerile”.
  • 16
    Em italiano: “una pragmatica dello stato infante stabilendo forme che possono definirsi archetipiche, poiche riguardano lo scheletro da cui ogni ambiente di apprendimento dovrebbe prendere le mosse […] un laboratorio scientifico, apnea necessaria in cui far dimorare i bambini”.
  • 17
    Em italiano: “Di quanto accadde segnai tutto in un quaderno, un diario che ancor oggi testimonia come, sebbene i racconti e le forme ogni volta cambino, tuttavia i presupposti restano gli stessi. In fondo, non faccio altro che ripetere sempre la stessa cosa, uguale eppure cosi diversa poiche cambia il punto di osservazione. Ogni verbo ‘entrare, saltare, inciampare, candere, morire, nascere, litigare, nascondere, rompere, abbandonaren rapire... ‘ e, ogni volta, un incipit, un continuo ricominciare. Penso che condividere con i bambini uno spazio ci ponga in una condizione di moto perpetuo. Tutto si ripete con la stessa forza e necessita, come se fosse la prima volta, allo stesso modo delle parole che si rinnovano nel ventre gravido di ogni frase”.
  • 18
    Em italiano: “Puerilia è una rassegna che rovescia la retorica che vede i bambini come gli uomini di domani, ma attinge alla condizione infantile come luogo e tempo per una presa del mondo iniziale. Vogliamo tentare di capire cosa vuol dire essere bambini ed anche come potere essere bambini”.
  • 19
    Chiara Guidi qualifica as crianças desse modo desde a edição de 2011 (Guidi, 2011GUIDI, Chiara. Puerilia. Livret de l’édition. Cesena, 2011.).
  • 20
    As crianças são convidadas a compartilhar com todos a história que viveram como participantes-protagonistas, assim como a que testemunharam como espectadoras-‘historiadoras’, nas palavras de Chiara Guidi. Estas permitem “um constante vaivém entre a abordagem interior, sensível, pragmática e empírica realizada [no palco e no teatro] e a aquisição de referenciais teóricos, históricos e estéticos, assim como um método de análise da representação”, qualidades essenciais para o “aprendiz de espectador”, segundo Yannic Mancel (2002, p. 185)MANCEL, Yannic. L’Apprenti spectateur. Le Théâtre et l’école, Histoire et perspectives d’une relation passionnée. Arles: Actes Sud Papier, 2002., assessor artístico e literário e professor de História e Dramaturgia do Teatro.
  • 21
    Em francês: École du jeune spectateur. Esse termo é usado para designar o “processo educativo pelo qual os estudantes aprendem a se tornar espectadores ativos e interessados e a apreender o teatro como uma prática artística viva além da mera experiência de análise literária de textos, possibilitando a aquisição, no compartilhamento de uma cultura comum, de julgamento estético e pensamento crítico” (Charte nationale de l’école du spectateur, ANRAT: http://www.anrat.net/).
  • 22
    Também não se trata de uma “parceria” que se encaixaria no quadro dos projetos EAC (Educação Artística e Cultural) da França, porque embora os três pilares que a compõem – ou seja, conhecimento, práticas e encontros – coincidam, a experimentação nem sempre faz parte do projeto da escola ou instituição, o projeto parceiro não tem necessariamente envergadura e a aquisição de conhecimento pode ser não-racional (Cf. Rouillon, 2013, p. 4ROUILLON, Vincent. Rythmes scolaires et éducation artistique et culturelle. FNCC - La Lettre d’Échanges, Saint-Étienne, n. 105, 2013.).
  • 23
    Lo sguardo di Arlecchino (as costas de Arlequim) é “uma história que leva em consideração o lado oculto das coisas, e nos ensina a não ficar satisfeitos com um único ponto de vista para conhecer o mundo”. Lo sguardo di Arlecchino também podem falar e dizer o que está acontecendo do seu lado que o Arlequim não consegue ver. As costas também têm uma maneira particular de conhecer o mundo. Cf. Programa do Festival Puerilia 2014.
  • 24
    Nesse espetáculo também é mostrada a vida oculta desse povo trabalhador, que luta longe da vista. Embaixo da terra, sob o que parece ser um prado tranquilo e abandonado, a pululante vida das minhocas se agita. É preciso cavar e ir fundo para descobrir seus segredos”. Cf. programa do Festival Puerilia 2014.
  • 25
    Em italiano: “La fiducia riposta nelle arti come strumenti educativi trasversali e universali esalta, quindi, la forza profanatrice del gioco che non punta alla conoscenza, ma crea le condizioni di un’esperienza da vivere”.
  • 26
    Em italiano: “Credo che il teatro sia molto vicino al gioco dell’infanzia se viene proposto come quel mettersi di fronte a un’immagine che porta a generarne altre, fermandosi, sospendendo la conoscenza critica”.
  • 27
    Em italiano: “L’arte può modificare l’apprendimento e diventare una forma di conoscenza senza scopo, senza utilità. E questo è un discorso difficile da far accettare a un insegante o a un pedagogista. Ma l’arte è valida indipendentemente da tutte le istruzioni per l’uso. Bisogna rivendicarne l’indipendenza, l’autonomia, proprio nel momento in cui è più necessaria per la società, per la pedagogia, per la politica”.
  • 28
    Em italiano: “di resistenza nei confronti dei sistemi relazionali e comunicativi del contemporaneo, [...] in nome di una spregiudicata esplorazione degli statuti della creazione teatrale”.
  • 29
    Em italiano: “le condizioni di un’esperienza da vivere […] della realtà e dell’immaginazione”.
  • 30
    Em italiano: “Questo è tipico appannaggio dell’età infantile, qualcosa di una relazione che non apparirà mai più. Ed è vero, tanto che i bambini imparano a parlare imitando i versi degli animali, e che una figura tipica del rapporto tra adulto e bambini, con tutte le sue connessioni morali, sociali. C’è educazione alla socialità, nel rapporto con gli animali, c’è lo stupore, l’ammirazione e l’imitazione per questa incredibile diversità e c’è anche l’orrore, c’è l’evocazione di una voce ‘altra’”.
  • 31
    Em italiano: “infinite possibilità dello strumento vocale dell’attore”.
  • 32
    Em italiano: “L’orizzonte che si delinea muove gli attori verso una nuova sensibilità all’ascolto, ovvero, al riconoscimento della propria voce come risonanza interiore, emotiva, rifrazione della lettura del testo nel proprio corpo entro il quale rintracciare la fibrillazione acustica, l’elemento fisico e organico della parola privata del suo significato logico. […] La parola è scomposta come l’ingranaggio di un giocattolo, alla ricerca della sua potenza originaria, ovvero, della forza generatrice che precede la giuntura logica tra lemma e significato”.
  • 33
    Esses termos são utilizados na nota de apresentação da Socìetas Raffaello Sanzio em seu site: www.societas.es.
  • Este texto inédito, traduzido por Rafaella Uhiara, também está publicado em francês neste número do periódico.

Referências

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  • AMARA, Lucia. Il teatro infantile di Chiara Guidi. Entretien mené par Giorgiomaria Cornelio. Il Tascabile, revue électronique, 2021.
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  • DELIGNY, Fernand. Les enfants et le silence Paris: Éditions Galilée, 1980.
  • GUIDI, Chiara. Buchettino Document de communication du spectacle. Paris: Festival d'Automne, 2001.
  • GUIDI, Chiara. Puerilia Livret de l’édition. Cesena, 2011.
  • GUIDI, Chiara. Puerilia Livret de l’édition. Cesena, 2013.
  • GUIDI, Chiara. Puerilia Livret de l’édition. Cesena, 2014.
  • GUIDI, Chiara. Buchettino Note de présentation du spectacle. Cesena, 2016.
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  • GUIDI, Chiara; AMARA, Lucia. Teatro Infantile L’arte scenica davanti agli occhi di un bambino. Besançon: Luca Sossella Editore, 2019.
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  • LAURET, Jean-Marc. L’art fait-il grandir l’enfant ? Essai sur l’évaluation de l’éducation artistique et culturelle. Toulouse: Éditions de l’Attribut, 2014.
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Editado por

Editoras responsáveis: Taís Ferreira; Melissa Ferreira; Anna Mirabella

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2022
  • Aceito
    03 Set 2022
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