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Performances Infantes: um convite ao desver com crianças

Performances Infantiles: une invitation à oublier avec les enfants

RESUMO

Neste artigo se objetiva problematizar performances imagéticas realizadas por crianças de 3 anos e o modo como essas produções atravessam o contexto em que foram criadas: uma escola de Educação Infantil e uma pesquisa de doutorado em desenvolvimento. Discutem-se os entrelaces e os revérberos das concepções de infância que direcionam a educação e a potência das imagens repletas de infância que criam possibilidades de fissurar os modos únicos e adultocêntricos de ser, estar, sentir, viver. Conclui-se que, guiadas por uma intenção ética, estética e política, as performances infantes das crianças criam possibilidades e anunciam a urgência de outras posturas ao habitar-se espaços da infância.

Palavras-chave:
Crianças; Produções de Imagens; Educação Infantil; Infância; Performances

RÉSUMÉ

Cet article vise à problématiser les performances d'imagerie réalisées par des enfants de 3 ans et la manière dont ces productions traversent le contexte dans lequel elles ont été créées : une école d'éducation préscolaire et une recherche doctorale en développement. Il discute de l'entrelacement et des réverbérations des conceptions de l'enfance qui orientent l'éducation et du pouvoir des images pleines d'enfance qui créent des possibilités de briser les façons uniques et centrées sur l'adulte d'être, de ressentir, de vivre. Il est conclu que, guidés par une intention éthique, esthétique et politique, les performances infantiles des enfants créent des possibilités et annoncent l'urgence d'autres postures lorsqu'il s'agit d'habiter les espaces de l'enfance.

Mots-clés:
Enfants; Productions d'Images; L'Éducation des Enfants; L'enfance; Les Performances

ABSTRACT

In this article, we aimed to problematize the image performances carried out by 3-year-old children and how these productions cross the context in which they were created: an Early Childhood Education school and a doctoral research in progress. We discuss the intertwining and reverberations of the conceptions of childhood that direct education and the potencies of the images fraught with childhood that create possibilities of cracking the singular and adult-centric ways of being, feeling, and living. It is concluded that, guided by an ethical, aesthetic and political intention, the children's performances create possibilities and announce the urgency of other postures when inhabiting childhood spaces.

Keywords:
Children; Image Productions; Early Childhood Education; Childhood; Performances

Introdução

No caminho, as crianças me enriqueceram mais do que Sócrates. Pois minha imaginação não tem estrada. E eu não gosto mesmo de estrada. Gosto de desvio e de desver (Manoel de Barros)1 1 Manoel de Barros em entrevista concedida em carta a José Castello (2012), publicada no Jornal Valor Econômico, em 16 mar. 2012. 2 2 Durante o artigo surgirão imagens como essa, oriundas da pesquisa que discutimos aqui. São imagens produzidas por crianças em suas performances em uma escola de Educação Infantil. Por vezes, elas são discutidas explicitamente. Em outras, de maneira mais implícita. Esse movimento faz parte não só da composição estética do artigo, mas também de uma postura política, que se coloca como resistência a essa nossa mania adultocêntrica de explicar, minuciosamente, tudo o que se coloca. As imagens aqui não são explicativas, mas sim convites. Algumas serão nomeadas pelas frases ditas por seus produtores no momento dos registros. Outras serão nomeadas com o título que nos atravessou quando nos encontramos com elas. Todas terão o indicativo do nome e idade de seu criador. .

Figura 1
Você não me pega! – Registro de Oliver, 3 anos. 3 3 Declaramos que a pesquisa em questão foi aprovada pelo Comitê de Ética da universidade em que está sendo desenvolvida. Pontuamos que todos os cuidados éticos foram tomados, seguindo os procedimentos e orientações acerca de pesquisas com crianças. Declaramos, ainda, ter direito de exibição das imagens e autorização para seu uso.

O caminho em que as crianças nos enriqueceram mais do que Sócrates está sendo percorrido em uma pesquisa de doutorado em desenvolvimento, que se movimenta disparada pela seguinte questão: quanto de infância cabe na Educação Infantil?. A partir dela, uma turma de 14 alunos de 3 anos de idade e suas três professoras, habitantes de uma escola de Educação Infantil do município de Campo Grande/MS, foram parceiros de pesquisa durante o ano letivo de 2021. Nessa parceria foram realizadas conversas, observações, brincadeiras e produções de imagens.

Este artigo se propõe a caminhar, especificamente, junto às produções de imagens das crianças realizadas na pesquisa. Produções que ocorreram na hora da brincadeira, geralmente a última hora de estadia das crianças na escola, momento no qual um celular era deixado junto com os brinquedos e quem quisesse poderia criar imagens (vídeos ou fotos) da escola. Então, em uma postura cartográfica (Rolnik, 2016ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, Editora da UFRGS, 2016.; Barros; Kastrup, 2015BARROS, Lauura Pozzana de; KASTRUP, Virgínia. Cartografar é acompanhar processos. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia (Org.). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015.), abrimonos para os encontros com as performatividades criadas pelas crianças, sendo atravessadas pelas potências de outros possíveis na pesquisa, na escrita, na educação. Este artigo se movimenta pelas trilhas desses possíveis.

A pergunta que nos lançou nesses encontros, anunciada no parágrafo anterior, advém das discussões acerca da concepção de infância como fase de vida a ser superada e que enxerga a criança como alguém a ser formado – um estrangeiro em nosso mundo. Essa concepção é a mais comum e a mais forte em nossa sociedade. Mas há outra concepção, em que a infância é um estado de existência – quase que uma des-idade – e que se faz como multiplicidade. Infâncias, plurais (Tebet, 2019TEBET, Gabriela Guarnieri. Desemaranhar as linhas da infância: elementos para uma cartografia. In: ABRAMOWICZ, Anete; TEBET, Gabriela Guarnieri (Org.). Infância e Pós-estruturalismo. São Carlos: Pedro & João Editores, 2019.). Olhar para a Educação Infantil, fase escolar em que estão as crianças pequenas, foi um movimento necessário para nós no sentido de problematizar as relações e os revérberos dessas infâncias (em qualquer das concepções ditas) nesse cenário e o modo como elas atuam sobre as crianças e, também, o modo como as crianças atuam sobre elas.

Nessa direção, as imagens produzidas pelas crianças nesse contexto, produções de imagens entendidas por nós, neste artigo, como performances das crianças, surgem como potência para problematizarmos e nos movimentarmos em meio aos entrelaces entre infância, Educação Infantil, pesquisa e crianças. Assim, este artigo objetiva problematizar as imagens produzidas por crianças e o modo como elas atravessam o contexto em que foram produzidas, uma escola de Educação Infantil e uma pesquisa de doutorado que caminhava por ali.

Neste artigo são apresentadas algumas discussões sobre as quatro marcas que regem a concepção de infância mais difundida na cultura Ocidental desde Platão. Posteriormente, discute-se a outra concepção, que se distancia dessas marcas, a infância como estado de existência humana. Tratamos das tecnologias utilizadas pelas crianças para produzir as imagens e, então, junto às performances imagéticas das crianças, descobrimos, inventamos, desaprendemos ao nos deparar com suas criações de existência em uma escola e em uma pesquisa na Educação Infantil. Assim como diz Manoel de Barros, as crianças criam desvios e nos fazem desver muitas coisas. E esse movimento infante é urgente que seja parte da Educação Infantil que vivenciamos em escolas!

Infância como subalternidade: as quatros marcas ainda estão por aqui

Em cada tempo houve (e ainda há) um conjunto de normas disciplinadoras que prescrevem o que é ser criança, como é o seu brincar, quais seus gostos, como pensa, o que deve saber, pensar e dizer em cada idade; e o que é ter infância. A criança e a infância são capturadas pelas ideias que produzimos sobre elas; criamos formas de aprisioná-las, parecendo que se pode antecipar tudo sobre elas, restando muito pouco para o inesperado e para os encontros (Chisté, 2015, p. 54-55CHISTÉ, Bianca Santos. Devir - criança da matemática: experiências educativas infantis imagéticas. 2015. 106 f. Tese de Doutorado (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Rio Claro, 2015.).

A captura dita por Bianca Santos Chisté (2015)CHISTÉ, Bianca Santos. Devir - criança da matemática: experiências educativas infantis imagéticas. 2015. 106 f. Tese de Doutorado (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Rio Claro, 2015. advém desde os tempos de Platão, em que a criança e a infância eram definidas a partir de quatro marcas: possibilidade, inferioridade, o outro desprezado e material da política. Marcas que viam a criança como possibilidade de ser qualquer coisa no depois, porque no agora ela não era nada. Marcas que entendiam a criança como um ser inferior hierarquicamente (assim como mulheres e pessoas mais velhas) que precisava ser guiado como uma ovelha por seu pastor, pois não detinha controle de seu corpo, de sua mente, de sua voz. Marcas que indicavam que a criança era o outro desprezado dentro da sociedade, um tipo de marginal desprovido dos saberes necessários para ser considerada de dentro do território estabelecido. Por isso, ocupava-se das coisas sem importância. Marcas que, por fim, tratavam a criança como material político, o futuro da sociedade que, ainda maleável, seria formada e moldada (Kohan, 2005KOHAN, Walter Omar. Infância. Entre Educação e filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.).

Essas marcas, mesmo com registros tão distantes, mesmo que escritas no tempo passado, parecem ainda subsidiar o conceito de infância e, consequentemente, os modos de conviver com as crianças na sociedade. Ao longo dos séculos, a marca que entende a criança como objeto político tornou-se a principal no que se refere aos pressupostos da formação de crianças, principalmente no contexto educacional, já que há sempre o discurso de que as crianças são formadas para o futuro do país, da sociedade. No entanto, há também por trás desse discurso os rastros das outras marcas. As crianças ainda são vistas como pura possibilidade de ser algo somente depois, ainda são vistas como menores, como o outro desprezado, pois “a verdade é que mantemos uma relação com a criança como se ela fosse uma menoridade, uma falta, um estado precário” (Couto, 2013, p. 55COUTO, Mia. A menina sem palavra/ histórias de Mia Couto. São Paulo: Boa Companhia, 2013.). Por isso,

[...] as crianças são objetos permanentes da biopolítica, pois não há territórios mais fugidios do que os das crianças; é preciso operar sobre eles e se opera efetivamente todo o tempo sobre eles, sobre os corpos das crianças. E, deste modo, atua-se incessantemente sobre ela para lhe atribuir formas de ser, formas de vida, um processo de escolarização (Abramowicz, 2019, p. 18ABRAMOWICZ, Anete. Educação Infantil: implementar o exercício da infância. In: ABRAMOWICZ, Anete; TEBET, Gabriela Guarnieri (Org.). Infância e Pós-estruturalismo. São Carlos: Pedro & João Editores, 2019.).

As crianças são formadas para o depois mediante o discurso de que serão o futuro da sociedade, de que serão responsáveis por melhores tempos. O tempo do agora, da infância, é visto como tempo de preparo, de espera, em que nunca, de fato, se é. Tempo em que se fala errado, escreve-se errado, comporta-se de maneira errada. Em que corpos, mentes, risadas, brincadeiras, modos de viver, ser e estar precisam ser controlados, moldados. Porque a criança tem um papel específico: ser ensinada. Ser ensinada a caber dentro de uma forma já posta. Onde tudo o que escapa é silenciado (Kohan, 2005KOHAN, Walter Omar. Infância. Entre Educação e filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.).

Esse movimento é decorrente da atuação de uma subjetividade capitalística. Subjetividade que rege nossas relações com os mundos, com os outros, com nós mesmos. E que carregamos em nossas ações, experiências, vivências, guiando nossos passos. Segundo Félix Guattari e Suely Rolnik (1986, p. 16)GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986., ela produz até “[...] aquilo que acontece quando sonhamos, quando devaneamos, quando fantasiamos, quando nos apaixonamos e assim por diante. Em todo caso, ela pretende garantir uma função hegemônica em todos esses campos”.

Subjetividade capitalística que silencia o que não é comum. Que controla até que tudo se rebaixe ao nível das massas. Que homogeniza as diferenças. Na escola, em específico, coloca a criança em carteiras enfileiradas, sentada por horas, sem poder se mexer para além do necessário. Que controla o tom das gargalhadas, até que elas deixem de ser ouvidas. Que cronometra o tempo de brincar, até que ele termine por completo.

O contrário da meninice é isso que podemos nomear como ‘uma estância sem gestos’. O adulto sabe como confinar a meninice, como derrotá-la. E talvez essa estância sem gestos seja uma das metáforas do educar. Uma das mais frequentes. Uma das menos interessantes. Uma das que mais ferem (Skliar, 2012, p. 19SKLIAR, Carlos Bernardo. As interrupções no corpo, a atenção, a ficção e a linguagem da infância. In: XAVIER, Ingrid Muller; KOHAN, Walter Omar (Org.). Filosofar: aprender e ensinar. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.).

A estância sem gestos ocupa a escola, repleta de crianças e suas infâncias. E silencia essa multiplicidade. Tem-se, então, criança, no singular, porque há uma única forma de ser criança, já imposta. Tem-se, então, infância, sem o plural, porque há uma única perspectiva, em que infância é fase de formação, de espera, em que é o tempo cronológico que guia suas ações. Fase de vida na qual o que as crianças fazem, falam, praticam não tem validade porque elas ainda são hierarquicamente inferiores, sem os saberes validados, ainda não são nada, pois serão alguém somente quando crescerem.

E, em uma escola de Educação Infantil, onde estão as crianças pequenas? De que formas essas marcas podem atuar sobre as crianças e suas infâncias? Anete Abramowicz (2019)ABRAMOWICZ, Anete. Educação Infantil: implementar o exercício da infância. In: ABRAMOWICZ, Anete; TEBET, Gabriela Guarnieri (Org.). Infância e Pós-estruturalismo. São Carlos: Pedro & João Editores, 2019. aponta um processo de escolarização e de silenciamento cada vez mais forte na Educação Infantil resultante, justamente, da imposição dessa perspectiva de infância que vê a criança como projeto político do Estado, um ser a ser moldado.

A partir disso, lançamo-nos em um movimento infantil: o perguntarse (Kohan; Carvalho, 2021KOHAN, Walter Omar; CARVALHO, Magda Costa. Atreverse a uma escritura infantil: niñas y niños para filosofia o la infância como abrigo y refugio. In: HERNÁNDEZ, Irazema Ramírez (Coord.). Tópicos de filosofia y educación para el siglo XXI. México: Clacso. 2021.). Questionamo-nos então sobre o que podem as performances de crianças que ocupam uma escola de Educação Infantil. O quanto elas reverberam nas subjetividades capitalísticas, o quanto elas podem fazê-las desmoronar? Elas podem subverter essas marcas que ainda guiam as concepções de infância e de criança?

Olhamos para a potência dessas criações infantes guiadas por outros modos de entender a infância e nossas relações com as crianças, para o que elas produzem e de que forma elas atravessam a educação.

Infâncias: a potência de ascender a um estado de existência

Então era preciso desver o mundo para sair daquele lugar imensamente e sem lado.

A gente queria encontrar imagens de aves abençoadas pela inocência.

O que a gente aprendia naquele lugar era só ignorâncias para a gente bem entender a voz das águas e dos caracóis.

A gente gostava das palavras quando elas perturbavam o sentido normal das ideias (Barros, 2010, p. 450BARROS, Manoel de. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.).

Perturbar o sentido normal das ideias tem relação, para nós, com uma outra perspectiva de infância, que não tem a ver com fase de vida, mas com estado de existência. Uma perspectiva que não vê a marginalidade como inferioridade, mas sim como um outro possível. Ali, na fronteira, cria-se a potência de outros modos de ser, estar, viver. Essa outra infância se guia pelo tempo das intensidades, aíon, onde não há passado, presente, futuro, mas sim travessia. Infância que qualquer um pode alcançar, podendo tornar-se aquele

[...] que não fala tudo, não sabe tudo e nem pensa tudo, mas que pensa de novo e faz pensar de novo. É aquele que, na impossibilidade de se expressar, cria significados, recupera ideias, vasculha funcionamentos, e narra o que foi experienciado. Caminhar em direção à infância significa, portanto, reencontrar nossa própria condição infantil (Flores, 2017, p. 184FLORES, Cláudia Regina. In-fante e profanação do dispositivo da aprendizagem matemática. Perspectivas da Educação Matemática, Campo Grande, v. 10, n. 22, p. 171-188, 2017.).

E então, crianças (no plural)! Porque elas ocupam os diferentes espaços das mais diferentes formas, criando, inventando, performando, escapando do jeito único de ser criança.

E então, infâncias (no plural)! Porque há diversas, ressoando nos corredores da escola, nas gargalhadas, nas brincadeiras, nos corpos, nas palavras, nas escritas, nas imagens... infâncias das crianças e de quem mais se permitir alcançá-las.

Figura 2
Deixa eu mostrar o desenho de mim e do dinossauro! – Davi, 3 anos.

É preciso ressaltar que não há o abandono da outra perspectiva, da infância como idade, mas uma ampliação de sentidos. A infância se distancia de ser, unicamente, uma fase a ser atravessada o quanto antes. Deixa de ser a falta de algo, a fase habitada por aqueles que precisam ser moldados. Com a ampliação de sentido, a infância se torna também descontinuidade, o possível, não o que deve ser, mas o que pode ser. Assim, a ausência da fala é constante porque sempre estamos aprendendo a falar (qualquer que seja essa fala). Não há como ser inteiramente adulto, porque nunca sabemos definitivamente a linguagem (Agamben, 2005AGAMBEN, Giorgio. Infância e História: destruição da experiência e origem da história; Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.).

Ser infante é, então, não saber falar tudo, não saber pensar tudo, não ser tudo. É aquele que não está totalmente formado, que não se rebaixou às massas, fazendo, dizendo, vivendo como todos os outros. Sonhando como todos os outros. Ser infante é fazer parte das minorias, porque as minorias não se agrupam, não seguem um modelo. São potência, sempre em processo (Kohan, 2005KOHAN, Walter Omar. Infância. Entre Educação e filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.).

Na intenção de dar vazão a diferentes infâncias e de registrá-las de alguma forma, a produção de imagens surgiu como potência para esse movimento. Não imagens para serem analisadas, esmiuçadas, entendidas. Mas imagens que são convites. Para desnudarmos nosso olhar, desaprender, desconhecer, desver. Para pensarmos e nos movimentarmos com as crianças, com as infâncias, com as sensações. Para olhar de novo e de novo e de novo e de novo e sempre encontrar algo a ser descoberto. Imagens feitas com um celular que, assim como diz Barros (2010)BARROS, Manoel de. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010., não serve para funcionar, mas para milagrar formigas, musgos, flores.

Elas, as crianças e as imagens, me apresentam possibilidades outras de sentidos e não sentidos do corpo, libertam o corpo de ter apenas uma função, um uso, um sentido, de ser apenas um organismo encampado pela biologia. As crianças salvam o corpo da pobreza de ser apenas corpo. Parece que as crianças não aceitam que a porta possa ser aberta somente com as mãos, que as coisas possam ser seguradas somente com a mão, que olhos sirvam apenas para olhar as horas, sirva apenas para olhar a tarefa no quadro, que vê a uva, que com os pés seja possível apenas caminhar (Chisté, 2015, p. 69CHISTÉ, Bianca Santos. Devir - criança da matemática: experiências educativas infantis imagéticas. 2015. 106 f. Tese de Doutorado (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Rio Claro, 2015.).

Crianças e imagens questionam e fissuram a cientificidade imposta por uma sociedade que parece já saber tudo, já conhecer tudo. Isso ressoa até no conceito de tecnologia estabelecido. Tecnologias definidas como “[...] conjunto de conhecimentos e princípios científicos que se aplicam ao planejamento, à construção e à utilização de equipamento em um determinado tipo de atividade” (Kenski, 2007, p. 24KENSKI, Vani Moreira. Educação e tecnologias: o novo ritmo da informação. Campinas: Papirus, 2007.). Nesse sentido, a autora aponta ainda que essas tecnologias não se apresentam, necessariamente, na forma física de equipamentos (como canetas, celulares, computadores), já que a linguagem, por exemplo, é também uma tecnologia.

Assim, entendemos que as tecnologias se apresentam também como movimentos que permitem ao ser humano pensar, planejar e criar processos, planejamentos, produtos. Há milhões de anos, tecnologias foram ossos utilizados pelos primatas para caçar e sobreviver, assim como a linguagem foi a tecnologia daqueles que tinham a intenção de difundir saberes, conhecimentos, tradições, seguida da escrita, que, ao registrar essas informações, tirou da memória a responsabilidade de repassar conhecimentos. Atualmente, as tecnologias são diversas e se constituem de diferentes formas, agora também no mundo digital. Vani Kenski (2007)KENSKI, Vani Moreira. Educação e tecnologias: o novo ritmo da informação. Campinas: Papirus, 2007. ressalta ainda que as habilidades em lidar com essas tecnologias são chamadas de técnicas.

Há aqui um ponto que nos propomos a questionar, pensando a partir dessa outra perspectiva de infância, que se apresenta como subversão aos modos únicos e dicotômicos: a cientificidade necessária para que um conjunto de princípios ou conhecimentos seja considerada tecnologia. Aqui, vemos um rastro da produção de subjetividades capitalísticas que impõe saberes e fazeres e que reduz o que é produzido na vida. Essa redução se dá porque o que é científico já é entendido como verdade, já tem pressupostos validados, já é tomado como certo. Já é sabido. E, assim, tudo se reduz ao que já está posto.

A redução unifica aquilo que é diverso ou múltiplo, quer àquilo que é elementar, quer àquilo que é quantificável. Assim, o pensamento redutor atribui a ‘verdadeira’ realidade não às totalidades, mas aos elementos; não às qualidades, mas às medidas; não aos seres e aos entes, mas aos enunciados formalizáveis e matematizáveis (Morin, 2019, p. 27MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Araripe de Sampaio Doria. 19. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019.).

Há cientificidade nos registros produzidos pelas crianças e suas infâncias? Há cientificidade nas performances das crianças com um celular nas mãos, produzindo imagens? Parece-nos que pensar nessa direção implica em questionar a cientificidade que já está posta, que reduz e, consequentemente, desconsidera o que é produzido por aqueles que não fazem parte da sociedade de forma a terem uma voz validada. E o que é produzido na infância, que é considerada fase dos sem voz? Intencionamos então, a partir disso, fissurar nossas verdades já postas.

Figura 3
Olhar pelas brechas – Registro de Théo, 3 anos.

Essa fissura, o possível criado pelas crianças e suas infâncias, implica em pensar tecnologias como práticas de experimentar orientadas por técnicas de invenção, que nos permitam construir, sentir e pensar nossos mundos. Nesse movimento, para além dos discursos impostos e das máscaras que, por vezes, estabelecem modos de uso, de produção, de viver, tecnologias se tornam tecnologias do sensível, em que a criação de conhecimentos se torna criação de existências. As técnicas se tornam os modos como tornamos possível o sentir, os afetos que nos chegam. É um desdobramento do ser, uma torção inventiva para produzir mundos possíveis. A técnica, nessa perspectiva, é a micropolítica4 4 A macropolítica é entendida aqui como o Estado, os territórios onde impera o binarismo, a dicotomia. As linhas duras que direcionam, controlam. A micropolítica é o espaço das multiplicidades, das minorias, dos marginais, onde imperam as singularidades. As linhas flexíveis e insubordinadas (Kohan, 2005). em atos (Fonseca; Costa; Kirst, 2008FONSECA, Tania Maria Galli; COSTA, Luis Arthur; KIRST, Priscila. Ritornelos para o pesquisar no contexto das tecnologias virtuais do sensível. Informática na educação: teoria & prática, v. 11, n. 1, 2008., Mendonça et al., 2010MENDONÇA, André Noronha Furtado et al. Fotografia panorâmica e sua relação homem-técnica. Informática na educação: teoria & prática, v. 13, n. 2, 2010.).

Potencializa-se, então, a produção de subjetividades (outras, que resistem às subjetividades capitalísticas) que se fazem, incessantemente, dos encontros com o outro, no vibrátil, nas dobras da pele que se estende e se dobra ao ser tocada pela força do que vê, que se faz também com tecnologias. Nos encontros entre humanos, máquinas, conhecimentos, experimentamos e inventamos mundos, criamos territórios existenciais. Com isso, é possível desacostumar os modos já fixados de olhar, sentir, viver (Mansano et al., 2009MANSANO, Sonia Regina Vargas et al. Sujeito, subjetividade e modos de subjetivação na contemporaneidade. Revista de Psicologia da UNESP, v. 8, n. 2, 2009.).

No encontro com as performances digitais das crianças nos abrimos para um movimento de desconhecer, tateando de acordo com as forças que guiam o vibrátil. Com as dobras que se fazem é possível registrar, no engendramento de pele, máquinas e afetos, rastros, experiências, construindo concepções ontológicas de mundo. Com as tecnologias do sensível “[...] todo um mundo se individua junto à individuação do espanto sem fôlego em uma boca entreaberta defrontando-se com o intempestivo, ou junto de um estranhamento sem franzir de cenho que não mede outrem pelo mesmo de si” (Fonseca; Costa; Kirst, 2008, p. 39FONSECA, Tania Maria Galli; COSTA, Luis Arthur; KIRST, Priscila. Ritornelos para o pesquisar no contexto das tecnologias virtuais do sensível. Informática na educação: teoria & prática, v. 11, n. 1, 2008.).

Essas produções possibilitam registros de modos singulares de existências, potencializando uma escuta dessas diferenças. Escutar essas diferenças, silenciar nossos entendimentos repletos de razão. Ouvir (de qualquer que seja o modo) as crianças e suas infâncias, pois “uma infância sem voz é, quiçá, a maior de todas as desgraças” (Skliar, 2018, p. 260SKILIAR, Carlos Bernardo. Infâncias da linguagem, infâncias da infância, memórias de infâncias: depois é tarde demais. Childhood & Philosophy, v. 14, n. 30, p. 245-260, 2018.). Assim, tecnologias neste trabalho são entendidas como conjuntos de conhecimentos e princípios, mas também como modos de agir, sentir, pensar e tatear o mundo, a partir de encontros, fissurando modos estabelecidos e inaugurando novas formas de subjetivação.

Performances imagéticas de crianças: um convite à criação de novos modos de existência

A infância – o que ela realmente foi? O que foi ela, a infância? Não se pode indagar sobre ela senão com essa atônita pergunta – o que foi ela? Aquele arder, aquele espantar-se, aquele contínuo não-poder-fazer-de-outro-modo, aquele doce, profundo, irradiante sentir-as-lágrimas-aflorarem? O que foi isso? (Rilke, 2007, p. 123RILKE, Rainer Maria. Cartas do poeta sobre a vida. São Paulo: Martins Fontes, 2007.).

Como dito, as discussões trazidas neste texto são provenientes de uma pesquisa de doutorado em desenvolvimento que se colocou a caminhar problematizando quanto de infância cabe na Educação Infantil. Diante disso, durante o ano de 2021, uma turma com 14 crianças de 3 anos de idade e suas três professoras foi acompanhada em uma escola de Educação Infantil do município de Campo Grande/MS. Durante nossa estadia lá, realizamos observações, conversas, brincamos, experienciamos... Uma outra ação, a que focamos especificamente neste artigo, foi a produção de imagens. Produção feita por uma das pesquisadoras, pelas professoras da turma e pelas crianças. Neste artigo, operamos com as produções das crianças.

As produções ocorriam na hora da brincadeira, geralmente a última hora de estadia das crianças na escola. Um celular era deixado junto com os brinquedos e quem quisesse poderia criar imagens (vídeos ou fotos) da escola. Nós, pesquisadoras, víamos rastros das performances enquanto elas eram realizadas. Isto porque, em alguns momentos, as crianças sumiam de nossas vistas correndo para todos os lados e não era possível ver as performances por completo, talvez só imaginá-las. Mas depois, assim como quem lê este texto, deparamo-nos com as criações dos alunos nos registros que ficaram no celular. Imagens, vídeos, sons5 5 Para a preservação da imagem das crianças, seguindo os procedimentos éticos da pesquisa, neste artigo optamos por apresentar somente fotos retiradas dos vídeos feitos por elas. de uma outra Educação Infantil, de outras Educações Infantis, produzidas pelos olhos, pelas falas, pelos corpos das crianças. Imagens-convite para suspendermos o que já sabemos. Desacostumar os olhos, o corpo, a mente, a fala, a vida, a educação.

Guiadas por suas infâncias, intempestivas, marginais, que livram o mundo de sua caduquice (Kohan, 2005KOHAN, Walter Omar. Infância. Entre Educação e filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.), as crianças, por meio de uma tecnologia digital – que chamamos aqui de uma tecnologia digital do sensível – , subverteram os significados já postos. Consideramos que as produções dessas imagens são performances imagéticas das crianças, pois partimos do pressuposto de que performances podem ser entendidas

[...] como uma manifestação artística em que o corpo é utilizado como um instrumento de comunicação e arte que se apropria de objetos, situações e lugares – quase sempre naturalizados e socialmente aceitos – para dar-lhes outros usos e significações e propor mudanças nas formas de percepção do que está estabelecido (Gonçalves, 2004, p. 88GONÇALVES, Fernando. Performance: um fenômeno de arte-corpocomunicação. Logos, v. 11, n. 1, p. 76-95, 2004).

Nesse sentido, inferimos que as imagens produzidas pelas crianças são uma forma de manifestação artística. Feita com corpo, voz, mente, apropriando-se de um lugar naturalizado, que já aparenta ser tão conhecido por nós: uma escola. Utilizando-se de um celular que ali, inundado por infância, torna-se uma tecnologia para produção de outras subjetividades que subvertem os saberes já naturalizados oriundos da subjetividade capitalística. Subjetividade que já nos ensinou como se produz uma imagem, o que é a Educação Infantil e, mais violentamente ainda, que entende as crianças como sem voz, como aquele que ainda não sabe e não pode falar (um falar para além da voz, mas que permeia toda a experiência de vida). Uma subjetividade capitalística que se estabeleceu a partir das quatro marcas de Platão que ainda estão por aqui.

A potência dessas performances sem uma finalidade imposta, que foram feitas sem hora marcada para começar ou terminar, sem uma temática específica está justamente neste processo: no espanto, na gargalhada, na descoberta, na vertigem, na fissura. Está em abrir brechas por entre as linhas que circunscrevem a vida, a infância, a educação. Performar na fronteira, deslocando-se de um lugar onde, costumeiramente, o controle é sinônimo de sucesso, de aprendizagem. Performar na fronteira e, ali, criar outros modos, outras formas. Escapar do silenciamento das marcas. Fazer com a que a ausência da fala seja por gaguejo, por encantamento. Não ter palavras para descrever algo, mas poder dizer isso de outro modo... com um gesto, uma brincadeira, uma gargalhada, uma imagem. Performar na fronteira e alcançar esse estado de existência. Um performar-convite que é processo. Um performar-convite-infante que atravessa a escola, a pesquisa, os pesquisadores, a educação, a escrita, a vida.

Qual a potência dessa performance infante que é convite na educação? Educação, em um contexto geral porque, por mais que essas produções tenham sido realizadas em um espaço da Educação Infantil, entendemos que elas reverberam para muito além dessa etapa da educação básica. A partir desse questionamento, encontramo-nos, novamente, com essas performances. Deixamos que elas nos atravessassem.

Esse atravessamento nos levou a perceber que as crianças, com seus desvios, trazem-nos pistas de modos para habitarmos os espaços com elas. Ao performarem, as crianças parecem cartografar para além do espaço da escola, mas também as vidas que estão por ali. Ao performarem, fazem isso com uma intenção. Uma intenção que não é produzida no sentido de uma finalidade, mas sim a partir de uma concepção ontológica que produz um rigor ético, estético e político.

Figura 4
Como é que eu vou fazer letrinhas e musiquinhas parada? – Registro feito por Flor, 3 anos.

Ético porque diz da escuta e da afirmação das diferenças. Diferenças que se fazem em nós e nos outros. Estético porque não parte de uma forma ou campo já dado, mas sim da criação que se faz com as marcas encarnadas no corpo, no pensamento. Rigor político porque diz da atitude de luta com as formas que, incessantemente, tentam silenciar marcas, os outros possíveis (Rolnik, 1993ROLNIK, Suely. Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. Cadernos de subjetividade, v. 1, n. 2, p. 241-251, 1993.). O rigor ético, estético e político arranca dos dispositivos as possibilidades de uso que nos capturam (Ferraço; Carvalho, 2015FERRAÇO, Carlos Eduardo; CARVALHO, Janete Magalhães. Pensando as dimensões éticas, estéticas e políticas da produção e do uso de imagens nas pesquisas em educação. Revista Teias, v. 16, n. 42, p. 24-36, 2015.). As performances das crianças operam com essa intenção.

Figura 5
Olha eu e você! Eu tô filmando o Gabriel – Registro feito por Gabriel, 3 anos.

Imagens repletas de ética porque são produzidas nas diferenças, operando com elas, criando com elas, afirmando-as. Fazendo que, com que essas diferenças, também nos atravessem. Assim como a gravação de Gabriel, aluno com baixa visão que nos filmou (ele e uma das pesquisadoras) por completo ao registrar o entrelace de nossas mãos. Uma ética que nos ensina que às vezes nossos olhos estão tão acostumados com o mundo que é necessário ver as coisas, na Educação Infantil e também na vida, com outros sentidos. Desver, com qualquer sentido.

Figura 6
Eu tô escondido! Cadê eu? – Registro feito por Théo, 3 anos.

Figura 7
Essa casa é de tijolos. Mas eu derrubo ela se eu assoprar – Registro feito por Davi, 3 anos.

Imagens estéticas porque não são feitas a partir das verdades e dos saberes já dados. Mas sim a partir da invenção de outros saberes, que surgem das marcas, dos encontros, dos afetos. Imagens que nos mostram lugares para nos escondermos na brincadeira do esconde-esconde (ou em qualquer outra situação) que jamais imaginaríamos usar. E que, talvez, nunca nem tínhamos reparado que existiam por ali. Imagens que mostram outras casas que nem percebemos naquele espaço e que podem ser derrubadas com um assopro cheio de infância, por mais forte que seja seu material – de plástico, de tijolos, de barro, de verdades. E será que aqui estamos falando só da casa mostrada por Davi?

Figura 8
Por que a gente fez um barco se não tem água pro barco nadar? – Registro feito por Flor, 3 anos.

Figura 9
Din don, din don! Pode entrar pra brincar! – Registro feito por Oliver, 3 anos.

Imagens políticas porque se estabelecem como resistência às formas que silenciam e controlam. Que dizem o que é, o que deve ser, como deve ser. Que questionam o porquê de dobraduras que fazem um barco que não pode nadar porque só encontra o concreto do chão. E que mostram que, para além de controlar, silenciar e ensinar e ensinar e ensinar, precisamos tocar a companhia e ouvir o que Oliver tem a dizer gargalhando: podemos entrar para brincar!

Olhar, sentir, encontrar as performances das crianças nos possibilita também seguir os rastros dessa intenção ética, estética e política que é possibilidade de “subversão do que aparece como verdade natural e aprisiona a produção da diferença” (Regis; Fonseca, 2012, p. 280REGIS, Vitor Martins; FONSECA, Tania Mara Galli. Cartografia: estratégias de produção do conhecimento. Fractal: Revista de Psicologia, v. 24, p. 271-286, 2012.).

Encontramos, nas performances das crianças, convites. Convites para repensarmos os modos como temos habitado os espaços com ela, nossas posturas, nossos movimentos. Não há, nesses convites, uma imposição ou um silenciamento do que está sendo feito agora. Na verdade, o que se têm são possíveis. Ao invés de analisar as imagens das crianças, olhar para elas com outros sentidos, desver o já conhecido, desviar do caminho já sabido, produzir também com elas. Abrir-se para a infância. O convite maior talvez seja este: ao invés de olhar a infância a partir das marcas que a colocam na subalternidade, distanciar-se desse movimento que insiste em controlar as infâncias que encontramos. Permitir-se uma pesquisa, uma escrita, uma vida que operem com as infâncias que a atravessam. E, quem sabe, performar também.

E, então, compor, descobrir, encontrar com elas outras Educações Infantis, outras educações, outras pesquisas, outras escritas... Outros modos de estar com as crianças. Que escapam do aprisionamento no qual a infância muitas vezes é colocada, que subvertem as verdades naturalizadas, que tiram a forma do relógio que cronometra tudo, que criam outros modos de existir: abertos, mutantes, deformativos. Modos infantes que possibilitam a criação de conhecimento porque essa criação é, na verdade, criação de existências.

Figura 10
Essa árvore é de corações, tá vendo? – Registro de Bela, 3 anos.

Por uma Educação Infantil, uma pesquisa, uma vida, um pouco mais...crianças!

Figura 11
Fotografar a infância nos olhos do menino – Registro feito por Oliver, 3 anos.

Difícil fotografar o silêncio.

Entretanto tentei. Eu conto:

Madrugada a minha aldeia estava morta.

Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.

Eu estava saindo de uma festa.

Eram quase quatro da manhã.

Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.

Preparei minha máquina.

O silêncio era um carregador?

Estava carregando o bêbado.

Fotografei esse carregador.

Tive outras visões naquela madrugada.

Preparei minha máquina de novo.

Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.

Fotografei o perfume.

Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.

Fotografei a existência dela.

Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.

Fotografei o perdão.

Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.

Fotografei o sobre.

Foi difícil fotografar o sobre (Barros, 2010, p. 379-380BARROS, Manoel de. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.).

A poesia de Manoel de Barros, um menino brincante com as palavras, sinaliza a potência das performances das crianças produzidas, aqui neste texto, em uma escola de Educação Infantil, mas que é potência em qualquer espaço que se permita ser atravessado por infâncias. Performances que, talvez, distanciem-se do pressuposto de ter um nome, uma finalidade, de serem uma performance de ou sobre algo. São performances livres, feitas com uma tecnologia digital do sensível que, nas mãos repletas de infância, não registram o que era esperado por muitos, mas permitem que um menino fotografe a infância em seu olhar.

Um olhar que nos atravessa, que nos movimenta a parar e reparar nas diferenças, assumindo, então, uma postura ética, estética e política ao habitarmos uma escola e uma pesquisa com crianças. Essa postura cartográfica, aberta, caótica, compõe-se, aqui, com registros que subvertem a subjetividade capitalística, os modos dominantes e sinalizam uma urgência: a de outras Educações Infantis, outras educações, outros modos de pesquisar, de viver, que se afirmem nas diferenças, que se abram para novos possíveis, que sejam resistência ao silenciamento. Que, para além de se atentarem às verdades já postas, atentem-se também às infâncias que estão ali, preenchendo os corredores, as salas de aula, as pesquisas, a vida.

As imagens das crianças, em performances livres dentro da escola, livres das técnicas repletas de cientificidade, do ângulo ou foco perfeito, produzem movimentos, mesmo paradas. Dizem coisas, mesmo sem som. Fotografam risadas, brincadeiras, imaginação. Criam também imagens de quem as vê.

A criança possui a capacidade imaginativa aguçada e, por isso, promove o advento do imprevisível. E é bem verdade que o imprevisível traz certo desconforto, desacomoda-nos de nossas verdades encerradas. O caráter inaugural da infância coloca-nos frente ao outro, que pensa diferente, que fala diferente, que com suas perguntas intermináveis nos rouba de nossas próprias certezas, permite-nos experienciar a alteridade, a mobilização de nossas concepções estáticas (Rosa, 2018, p. 57ROSA, Glenda Matias de Oliveira. No descomeço era o verbo: Manoel de Barros e a roda de conversa na educação infantil. Curitiba: Appris, 2018.).

Esse incômodo com o qual não queremos lidar faz com que, por vezes, atuemos sobre o imprevisível de forma a controlá-lo, colocando-o dentro de uma única forma de Educação Infantil, de criança, de infância, de se fazer pesquisa com crianças. Em uma sociedade, em um mundo, em uma vida que se fazem ainda presos à única forma, ainda pensando em criança – no singular –, porque há somente uma forma, que ainda se embasa nas marcas de Platão. Há, com as performances das crianças junto a uma tecnologia digital do sensível, outros possíveis.

Um dos possíveis com o qual esbarramos, criado com as imagens da infância, aponta que, ao invés de ensinar tudo, controlar tudo, silenciar tudo, até que se repita a mesmice, possamos nos colocar a desaprender. As performances das crianças com suas infâncias podem nos ensinar (sim, as crianças ensinarem a nós, adultos) a desaprendermos sobre nossas concepções de uma única Educação Infantil, de um único modo de produzir imagens, de um único modo de performar, de um único modo de pesquisa, de um único modo de...tantas outras coisas. Assim, quem sabe, ao habitarmos espaços com crianças, possamos operar guiados por uma postura ética, estética e política, ensinada pelas crianças, que nos possibilite nos abrirmos para as multiplicidades de infâncias e de vidas. Um movimento urgente de desver, de criar desvios nos caminhos já traçados, dos quais sempre sabemos o fim.

As performances das crianças nos conduzem a repensar não só em posturas metodológicas, mas também epistemológicas em nossos movimentos com as crianças. Não é só sobre o que se faz no campo de pesquisa, mas como se opera na pesquisa como um todo – os encontros que se tem nesse processo e para além dele, o modo como deixamos que a infância nos atravesse. A performatividade das crianças, aqui, opera como um possível para que a gente se pergunte ao invés de afirmar, desconheça o que achamos já ter visto, desaprenda o que já achamos saber. Essas manifestações artísticas, para além de fissurar o naturalizado, também movimentam quem por elas é atravessado. Performances infantes que não se apropriam e dão outros usos apenas para lugares, objetos, mas possibilitam isso também em modos de ser, estar, sentir, viver. Esse possível indica a urgência de nos abrirmos para encontros e modos outros que sejam potência para criar pesquisas, escritas, Educações Infantis e vidas um pouco mais crianças6 6 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 e com o apoio da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul -UFMS/MEC - Brasil. .

Notas

  • 1
    Manoel de Barros em entrevista concedida em carta a José Castello (2012)CASTELLO, José. O presente de um poeta. Valor Econômico, Rio de Janeiro, 16 mar. 2012. Disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/coluna/o-presentede-um-poeta.ghtml. Acesso em 25 mar. 2022
    https://valor.globo.com/eu-e/coluna/o-pr...
    , publicada no Jornal Valor Econômico, em 16 mar. 2012.
  • 2
    Durante o artigo surgirão imagens como essa, oriundas da pesquisa que discutimos aqui. São imagens produzidas por crianças em suas performances em uma escola de Educação Infantil. Por vezes, elas são discutidas explicitamente. Em outras, de maneira mais implícita. Esse movimento faz parte não só da composição estética do artigo, mas também de uma postura política, que se coloca como resistência a essa nossa mania adultocêntrica de explicar, minuciosamente, tudo o que se coloca. As imagens aqui não são explicativas, mas sim convites. Algumas serão nomeadas pelas frases ditas por seus produtores no momento dos registros. Outras serão nomeadas com o título que nos atravessou quando nos encontramos com elas. Todas terão o indicativo do nome e idade de seu criador.
  • 3
    Declaramos que a pesquisa em questão foi aprovada pelo Comitê de Ética da universidade em que está sendo desenvolvida. Pontuamos que todos os cuidados éticos foram tomados, seguindo os procedimentos e orientações acerca de pesquisas com crianças. Declaramos, ainda, ter direito de exibição das imagens e autorização para seu uso.
  • 4
    A macropolítica é entendida aqui como o Estado, os territórios onde impera o binarismo, a dicotomia. As linhas duras que direcionam, controlam. A micropolítica é o espaço das multiplicidades, das minorias, dos marginais, onde imperam as singularidades. As linhas flexíveis e insubordinadas (Kohan, 2005KOHAN, Walter Omar. Infância. Entre Educação e filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.).
  • 5
    Para a preservação da imagem das crianças, seguindo os procedimentos éticos da pesquisa, neste artigo optamos por apresentar somente fotos retiradas dos vídeos feitos por elas.
  • 6
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 e com o apoio da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul -UFMS/MEC - Brasil.

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Editado por

Editoras responsáveis: Taís Ferreira; Melissa Ferreira; Fabiana de Amorim Marcello

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2022
  • Aceito
    30 Ago 2022
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