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Objeto Dócil e Objeto Propositor: um estudo sobre as qualidades do objeto e suas possibilidades no processo criativo em Artes Cênicas

Objet Docile et Objet de Proposition: une étude sur les qualités de l’objet et ses possibilités dans le processus de création en Arts du Spectacle

RESUMO

O artigo elabora, identifica e enuncia duas qualidades para pensar os objetos utilizados em processos de criação em Artes Cênicas, nos quais se investigam relações corpo-objeto. Apresentam-se os objetos como dóceis ou propositores e explicitamse suas respectivas características. A metodologia recorreu à análise e seleção de obras contemporâneas, nas quais são verificáveis princípios relativos às características físicas dos materiais, bem como as abordagens efetuadas pelo corpo quando colocado em relação com o objeto. Este texto inspira-se na noção foucaultiana de deslocamento no sentido de considerar outras formas de pensar o objeto para além do chamado teatro de objetos ou do entendimento do objeto como acessório cênico. Conclui-se que o reconhecimento das qualidades enunciadas pode colaborar nas escolhas relativas aos usos do objeto nos processos de criação, incluindo a produção de objetos específicos para as Artes Cênicas.

Palavras-chave:
Michel Foucault; Objeto; Processo Criativo; Teatro de Animação; Artes Cênicas

RÉSUMÉ

Cet article élabore, identifie et énonce deux qualités pour penser les objets utilisés dans les processus de création en arts scéniques dans lesquels les relations corps-objet sont étudiées. Les objets sont présentés comme dociles ou proposants et leurs caractéristiques respectives sont expliquées. La méthodologie a utilisé l’analyse et la sélection d’œuvres contemporaines dans lesquelles les principes relatifs aux caractéristiques physiques des matériaux ainsi que les approches effectuées par le corps lorsqu’il est mis en relation avec l’objet sont vérifiables. Ce texte s’inspire de la notion foucaldienne de déplacement au sens d’envisager d’autres manières de penser l’objet au-delà du théâtre dit d’objets ou de l’appréhension de l’objet comme accessoire scénique. Il est conclu que la reconnaissance des qualités mentionnées peut collaborer aux choix liés aux utilisations de l’objet dans les processus de création, y compris la production d’objets spécifiques pour les arts de la scène.

Mots-clés:
Michel Foucault; Objet; Processus Créatif; Arts de la Marionnette; Arts Performants

ABSTRACT

This article develops, identifies and presents two qualities to think about the objects used in creation processes in Performing Arts, in which we investigate body-object relations. We present the objects as docile or proposing and discuss their respective characteristics. Our methodology involved the selection and analysis of contemporary works in which we could examine principles relating to the physical characteristics of materials as well as the approaches adopted by the body in its relation to the object. This article is inspired by the Foucauldian notion of displacement applied to the consideration of other ways of thinking about the object beyond the so-called theater of objects or the understanding of the object as a scenic prop. In conclusion, we argue that recognizing these qualities of the object can contribute to expand the uses of the object in creation processes, including the production of specific objects for the Performing Arts.

Keywords:
Michel Foucault; Object; Creative Process; Animation Theater; Performing Arts

O texto a seguir tem como objetivo (e desafio) enunciar duas possibilidades para o objeto, apresentando-o como dócil e propositor. Uma classificação dessa natureza requer um olhar que considere não somente a utilidade, a forma e a função do objeto, mas que proponha um exercício de sensibilidade para perceber o que é criado na relação corpo-objeto e suas possibilidades nas Artes Cênicas.

Partimos da premissa desse olhar sensível para os objetos e do entendimento de que seus usos em cena se configuram em um tema presente nas obras contemporâneas. Tal constatação aponta para um campo que evidencia ampliação e que demanda pesquisa. Portanto, a classificação de objeto apresentada aqui (dócil e propositor) trata-se da resposta elaborada por nós, autores do texto, a questões enfrentadas em nossos trabalhos com cenografia, objetos de cena e teatro de formas animadas nos últimos vinte anos1 1 Ambos os autores são professores na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Departamento de Artes Cênicas do Centro de Artes e Letras/UFSM, além de lecionarem os componentes curriculares de Teatro de Formas animadas I e II, Técnicas de montagem I e II e colaborarem em trabalhos profissionais de cenografia e criação de objetos de cena, como por exemplo o espetáculo Amazônia – Um olhar sobre a floresta, com direção de Camila Bauer e produção do Projeto Gompa. Élcio Rossini possui experiência de mais de 20 anos como cenografista, criador de objetos de cena e professor do campo das visualidades da cena. Rossana Della Costa desde 2012 trabalha com teatro de formas animadas no campo educacional e com formação de professores. .

Tais questões podem ser listadas da seguinte forma: como serve o objeto escolhido na produção das imagens e narrativas desejadas; como lidar com as características formais e constitutivas do objeto; quando é o corpo que se adequa ao objeto e quando é o objeto que se adequa ao corpo; o que ocorre quando o material que constitui o objeto escapa ao controle no encontro com os movimentos do corpo; quando um objeto se torna limitante para o próprio processo de criação; quando o objeto se configura em um expansor das possibilidades criativas; quando o uso de objetos inesperados mobiliza os rumos do processo criativo, dando-lhe outro destino do que o imaginado originalmente; e como lidar com o eterno desafio da escolha do material de modo que contemple a eficácia e o orçamento simultaneamente.

Dentre todas essas questões, destacou-se o questionamento pelas possibilidades das formas de abordar corporalmente o objeto considerando o aspecto relacional e as características formais do material que o compõe. A partir dessa questão, o objetivo deste texto é identificar as qualidades do objeto que mobilizam e norteiam formas de abordagem corporal em processos criativos cênicos. Entendemos que as características do objeto em si não se configuram uma novidade. Porém, a forma de pensar um objeto, como dócil ou propositor, implica em dispor e agrupar essas características - a princípio conhecidas – e olhá-las de outro modo; o que resulta na possibilidade de pensar as escolhas realizadas durante o processo criativo, bem como a orientação da criação de objetos cênicos inéditos. Dessa forma, entendemos que estamos olhando para manifestações que se aproximam da performance e que se colocam pertinentes, mas também além do teatro de formas animadas ou do teatro de objetos propriamente dito. Até o momento não temos conhecimento de proposta semelhante.

Para tanto, o procedimento metodológico realizado recorreu à seleção de obras contemporâneas, a partir das quais foi possível depreender um grupo de características para o objeto que auxiliasse a desenhar as qualidades do que entendemos como dócil e como propositor. O critério de seleção dessas obras ocorreu da seguinte maneira: primeiro, considerou-se somente o recorte das obras com as quais tivemos contato nos trabalhos que realizamos e nas pesquisas que desenvolvemos na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); segundo, considerou-se, dentre essas obras, a questão subjetiva relativa ao seu impacto em nosso próprio repertório estético (como a obra nos mobilizava, o que nos levava a pensar ou a reconsiderar e como nos provocava a pensar diferente as relações entre corpo e objeto); terceiro, permanecemos com as primeiras obras que nos impactaram e acabamos descartando outras que se apresentaram depois com características semelhantes; e, quarto, incluímos a obra Infláveis, de Élcio Rossini, que aborda a produção de um objeto cênico realizada em período anterior à formalização deste estudo, por considerarmos consonante com o objetivo pretendido. Dessa maneira observamos um processo de identificação de características específicas nas obras selecionadas e um experimento próprio de criação de um objeto. A partir desses critérios, concluímos o repertório para este artigo em nove obras que configuram o corpus analisado.

Ainda com relação à seleção das obras, a dificuldade que encontramos em circunscrever as categorias criadas ocorreu por não ser possível encerrar uma obra em uma categoria fixa – ou dócil ou propositora. Isso porque tal classificação possui o fim específico de estudo da presença e uso do objeto nas artes da cena, e não é um sistema excludente. Em alguns casos, observamos associações complexas dessas duas categorias no mesmo objeto, fato que enriquece as possibilidades deste estudo.

Ao tomar a ideia de abordagem corporal do objeto como princípio, entendemos que se estabelece um campo relacional, tanto físico quanto mobilizador de pensamentos. Dessa forma, entendemos a relação com o objeto como um campo aberto, isto é, que cabe, a cada processo de criação, inventar a sua própria poética. Isso porque

[...] há uma maneira de apreender as coisas, independentemente do objeto: você tem que encontrar um caminho, uma relação com o objeto, seja ele qual for. [...] a implementação da relação com o objeto se faz quase sempre da mesma maneira: é uma forma de questionar o objeto, sua forma, seu potencial de movimento. [...] Trabalhar com o objeto é um princípio de trabalho. [...] É uma forma de construir uma relação particular com a realidade (Schoëvaërt-Brossault; Lelièvre, 2011, p. 02SCHOËVAËRT-BROSSAULT, Damien; LELIÈVRE, Micheline. La forme n’existe pas en dehors du vivant. Agôn, Estrasburgo, n. 4, p. 01-12, 2011. DOI: https://doi.org/10.4000/agon.2003. Disponível em: http://journals.openedition.org/agon/2003. Acesso em: 17 jul. 2021.
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)2 2 No original em francês: “Il y a d’abord une manière d’appréhender les choses, peu importe l’objet: il faut trouver un chemin, une relation à l’objet quel qu’il soit. Je dirais que la mise en œuvre du rapport à l’objet se fait presque toujours de la même manière: c’est une façon de questionner l’objet, sa forme, son potentiel de mouvement.[...] Travailler avec l’objet relève d’un principe de travail. [...] C’est une manière de construire un rapport particulier au réel” (Schoëvaërt-Brossault; Lelièvre, 2011, p. 02). .

Ao tomar tal consideração sobre abordagem do objeto, o caminho escolhido neste texto foi no sentido de promover o deslocamento da qualificação, ou seja, qualificar não o sujeito, mas o objeto no processo de criação. É certo que não se pode falar em objeto sem considerar a relação com o ser vivo (Schoëvaërt-Brossault; Lelièvre, 2011SCHOËVAËRT-BROSSAULT, Damien; LELIÈVRE, Micheline. La forme n’existe pas en dehors du vivant. Agôn, Estrasburgo, n. 4, p. 01-12, 2011. DOI: https://doi.org/10.4000/agon.2003. Disponível em: http://journals.openedition.org/agon/2003. Acesso em: 17 jul. 2021.
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). Portanto, esse caminho só faz sentido no campo relacional. É sob esse aspecto que entendemos ser profícuo o uso da noção de deslocamento a partir da ótica foucaultiana. Tal noção inspira esse exercício de pensamento sobre objetos, uma vez que, ao deslocá-los de sua utilidade ou função original, é possível abrir espaço para a criação de outros modos de criação e de relação com eles.

A noção de deslocamento é cara ao pensamento foucaultiano por mobilizar seus três eixos de análise: poder, saber e subjetivação. Na sua arqueologia, o procedimento de suspender as grandes unidades históricas, para então buscar ver de outro modo – que não linear ou evolutivo – as construções dos pensamentos, indica que “[...] sempre houve deslocamentos” (Castro, 2014CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2014., p. 74) na obra foucaultiana. Com efeito, a leitura dos textos de Foucault nos instiga a estarmos atentos às coisas do mundo, a não tomar como verdade indubitável as coisas dadas, mas a observar as suas formações, a “[...] desembaraçar-se do próprio pensamento; [para] iniciar, então uma conversão, uma olhada em outra direção para pensar novamente” (Noguera-Ramírez, 2011NOGUERA-RAMIREZ, Carlos Ernesto. Pedagogia e governamentabilidade ou da modernidade como uma sociedade educativa. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011., p. 78). Os objetos, nesse caso, são as coisas do mundo. E exercitar outras formas de relação com eles em um procedimento poiético pode mobilizar outros modos de ser e estar no mundo. Trata-se de uma operação que torna possível o desembaraçar-se do que está dado e ir além do senso comum, o que no campo artístico é uma necessidade.

O movimento de deslocar era realizado pelo próprio Foucault, na busca por desembaraçar-se dos próprios pensamentos para poder ingressar em outros caminhos, pensar de outros modos, ver de outros modos. Se, para Foucault, a teoria consistia numa prática, esse movimento era realizado exatamente sobre e em seu pensamento. O autor explicitou que

[...] o trabalho teórico não consiste em estabelecer e fixar um conjunto de posições sobre as quais eu manteria e de cuja ligação entre essas diferentes posições, na suposta ligação coerente eu formaria um sistema. Meu problema, ou a única possibilidade teórica que sinto, seria a de deixar somente o desenho o mais inteligível possível, o traço do movimento pelo qual eu não estou mais no lugar onde estava agora há pouco. Daí, se vocês quiserem, essa perpétua necessidade de realçar, de algum modo, o ponto de passagem que cada deslocamento arrisca modificar, senão o conjunto, pelo menos a maneira pela qual se lê ou pela qual se apreende o que pode ter de inteligível. Essa necessidade, portanto, não aparece jamais como um plano de um edifício permanente; não é preciso lhe reclamar e impor as mesmas exigências como se tratasse de um plano; trata-se, ainda uma vez, de traçar um deslocamento, ou seja, de traçar não edifícios teóricos, mas deslocamentos pelos quais as posições teóricas não cessam de se transformar [...] Então, uma nova curva, um novo traço e, uma vez mais, um retorno sobre ela mesma, sobre o mesmo tema (Foucault, 2010FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos. Curso no Collége de France, 1979-1980 (excertos). Tradução, transcrição e apresentação de Nildo Avelino. São Paulo: Centro de Cultura Social; Rio de Janeiro: Achiamé, 2010., p. 58-59).

Dessa forma, não há aqui pretensão em formar um sistema ou fixar um conjunto de categorias para o objeto nas Artes Cênicas. Tais qualidades são dispostas desse modo com o único propósito de nos debruçarmos sobre os objetos e suas possibilidades. Interessa-nos, portanto, descobrir outros caminhos, questionando o objeto através da abordagem corporal.

Ainda, a escolha por pensar os objetos a partir da noção foucaultiana de deslocamento encontra ecos em apontamentos de três especialistas do Teatro de Animação e que estão em consonância com o objetivo pretendido neste artigo.

A primeira é Aurélia Ivan, artista romena residente na França, que, ao ser questionada ao que se devia a sua paixão pelo objeto, respondeu que: “Os objetos obrigam o sujeito a se posicionar” (Enjalbert, 2014ENJALBERT, Cédric. Les objets obligent le sujet à se positionner - Entretien avec Aurélia Ivan. In: DUFRÊNE, Thierry; HUTHWOHL, Joël (Org.). La marionnette: objet d’histoire, œuvre d’art, objet de civilisation. Lavérune: L’Entretemps, 2014. P. 183-199., p. 188)3 3 No original em francês: “L' objet obligent le sujet à se positionner” (Enjalbert, 2014, p. 188). . Para ela, o posicionamento possui diferentes níveis. Um deles pode ser o posicionamento imediato do corpo como unidade orgânica com relação ao objeto. No entanto, nesse movimento no tempo e espaço estão imbricadas questões de posicionamento político, filosófico e mesmo psicológico. Para a artista que se inspira em Sartre e em Nietzsche, cada ação é, ou deveria ser, uma escolha que possui a responsabilidade como um aspecto inexorável. Então, quando um artista se posiciona em relação a um objeto, ele poderia também despertar “esta obrigação no espectador, [...] este sentimento de liberdade, mas também de responsabilidade” (Enjalbert, 2014ENJALBERT, Cédric. Les objets obligent le sujet à se positionner - Entretien avec Aurélia Ivan. In: DUFRÊNE, Thierry; HUTHWOHL, Joël (Org.). La marionnette: objet d’histoire, œuvre d’art, objet de civilisation. Lavérune: L’Entretemps, 2014. P. 183-199., p. 188). Dessa maneira, é possível pensar que a artista intenciona uma ação para si, a qual espera reverberar nos demais. Nesse sentido, entendemos que se posicionar é também promover deslocamentos.

A segunda é Claudia Orenstein, professora na área de Teatro e Performance na City University of New York (CUNY) e que comenta sobre o aumento das manifestações das artes da marionete, tanto no início do século XX quanto na segunda metade do mesmo século. Para a pesquisadora, quando a humanidade se vê em momentos de crise, é a dimensão dos objetos que permite questionar “[...] paradigmas de longa data sobre seres humanos e nossa relação com o mundo inanimado, oferecendo meios concretos para brincar com novas formas de realização da humanidade” (Orenstein, 2017ORENSTEIN, Claudia. Our puppets, our selves: puppetry’s changing paradigms. Mime Journal, Claremont, v. 26, p. 91-110, 2017. Disponível em: http://scholarship.claremont.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1050&context=mimejournal. Acesso em: 17 ago. 2021.
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, p. 92). Em diálogo com essa ideia, a terceira especialista, Sandra Vargas, artista do grupo brasileiro Sobrevento, aponta que esse movimento significa que estaríamos buscando o humano dentro de nós (Terceiro Teatro Brasil, 2021TERCEIRO TEATRO BRASIL. Sobrevento - demonstração de trabalho. Canal YouTube: Terceiro Teatro Brasil. 29 out. 2021. 1 vídeo (2h10min40s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JuLy1Pr3coY. Acesso em: 24 out. 2021.
https://www.youtube.com/watch?v=JuLy1Pr3...
). É nesse sentido que entendemos a importância do pensar sobre os objetos a partir da perspectiva do deslocamento, redesenhando e refazendo o humano e a própria ideia do que vem a ser humano.

Isso posto, o leitor encontrará a seguir as considerações sobre o objeto e a existência de abordagens distintas, que impossibilitam sustentar uma única concepção sobre o chamado de Teatro de Objetos. Posteriormente, serão apresentadas as qualidades delineadas como objeto dócil e objeto propositor e suas perspectivas, no esforço de explicitar os procedimentos de abordagem do objeto em cada uma delas.

O objeto para além de uma ideia única de teatro de objetos

Apresentamos agora uma linha não necessariamente evolutiva, mas de transformações do teatro do objeto desde sua emergência na segunda metade do século XX, em especial a partir da década de 1970, com manifestações italianas (Teatro delle Briciole, Alessandro Libertini, Assondelli e Stecchettoni) e francesas (Vélo Théâtre, Théâtre de Cuisine), até uma acepção mais ampla do objeto, condizente com as expressões contemporâneas (Jurkowski, 2008JURKOWSKI, Henryk. Métamorphoses, La marionnette au XXe siècle. Charleville-Mézières: L’Entretemps, 2008.).

Iniciamos pela questão: o que é teatro de objetos? É possível verificar algumas tentativas de circundar seu conceito, que permanecem em uma linha intermediária, ou seja, nem teatro de atores, nem teatro de marionetes. Pode ser considerado como

[...] uma vertente do Teatro de Animação que se vale de objetos prontos, no lugar de bonecos, deslocando-os da sua função e conferindo-lhes novos significados, sem transformar, porém, a sua natureza, explorando uma dramaturgia que se vale de figuras de linguagem, em detrimento da importância da manipulação propriamente dita. Dentro deste conceito, portanto, tentar fazer um boneco, forçando a ilusão de um movimento humano a partir da junção de diferentes objetos, ou colocando dois olhos em um objeto, não constituiria um Teatro de Objetos, mas um Teatro de Bonecos feitos de objetos (Vargas, 2010VARGAS, Sandra. O Teatro de Objetos: história, idéias e reflexões. Móin-Móin - Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas, Florianópolis, v. 1, n. 07, p. 027-043, 2010. DOI: 10.5965/2595034701072010027. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/moin/article/view/1059652595034701072010027. Acesso em: 17 jul. 2021.
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, p. 33).

Tal vertente demanda, de acordo com Didier Plassard (2011)PLASSARD, Didier. Entre l'homme et la choose. Agôn, Estrasburgo, n. 4, p. 01-11, 2011. DOI: https://doi.org/10.4000/agon.1936. Disponível em: http://journals.openedition.org/agon/1936. Acesso em: 18 jul. 2021.
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, um acordo prévio sobre o que é objeto. Para o pesquisador, não seria uma efígie preparada previamente para um espetáculo, mas sim “[...] objetos comuns, na maioria das vezes não transformados, utensílios usados na vida cotidiana, brinquedos ou todo tipo de coisa que sofre um desvio de uso” (Plassard, 2011PLASSARD, Didier. Entre l'homme et la choose. Agôn, Estrasburgo, n. 4, p. 01-11, 2011. DOI: https://doi.org/10.4000/agon.1936. Disponível em: http://journals.openedition.org/agon/1936. Acesso em: 18 jul. 2021.
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, p. 02)4 4 No original em francês: “[...] d’objets ordinaires, le plus souvent non transformés, d’ustensiles dont on se sert dans la vie quotidienne, de jouets ou de toutes sortes de choses qui subissent un détournement d’usage” (Plassard, 2011, p. 02). .

A partir dessas definições percebe-se dois movimentos: um que faz com que o objeto se transforme em uma personagem ao mesmo tempo que promove um deslocamento, ou seja, retira do objeto a sua essência utilitária cotidiana para abri-lo para o espaço cênico. Nesse sentido, “[...] não é a marionete que se aproxima do objeto, mas sempre o objeto que se torna marionete” (Plassard, 2011PLASSARD, Didier. Entre l'homme et la choose. Agôn, Estrasburgo, n. 4, p. 01-11, 2011. DOI: https://doi.org/10.4000/agon.1936. Disponível em: http://journals.openedition.org/agon/1936. Acesso em: 18 jul. 2021.
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, p. 03)5 5 No original em francês: “[...] ce n’est pas la marionnette qui se rapproche de l’objet, mais toujours l’objet qui devient marionnette” (Plassard, 2011, p. 03). . Mas há também uma vertente que considera que “[...] o teatro de objetos é uma das formas mais radicais do teatro de marionetes” (Cara; Cara, 2011CARA, Anna; CARA, Robert. 100 mots pour comprendre les arts de la marionette. Reims: Scérén CRDP Champagne-Ardenne, 2011., p. 72)6 6 No original em francês: “[...] le théâtre d´objet(s) est une des formes les plus radicales du théâtre de marionnettes” (Cara; Cara, 2011, p.72). . Tal radicalidade deve-se ao entendimento segundo o qual o objeto afasta-se da marionete e assume-se tal como é, ao trazer em primeiro plano as suas propriedades constitutivas (material, tamanho, mobilidade, etc.).

Em qualquer um desses entendimentos, a responsabilidade recai sobre o trabalho do ator. Christian Carrignon e Kathy Deville, fundadores do Théâtre de Cuisine, dizem que o teatro de objetos não é entendido como uma técnica, em si, mas sim “[...] como resultado da relação que existe entre os olhos, as mãos, as coisas e a energia pessoal que se coloca nelas” (Jurkowski, 2008JURKOWSKI, Henryk. Métamorphoses, La marionnette au XXe siècle. Charleville-Mézières: L’Entretemps, 2008., p. 188)7 7 No original em francês: “[...] comme étant le résultat de la relation qui existe entre les yeux, les mains, les choses et l´energie personnelle qu´on y met” (Jurkowski, 2008, p. 188). . A demanda para o ator nesse trabalho é de um engajamento corporal extremo, que envolve uma atenção concentrada para atrair o olhar do espectador para objetos que, a princípio, não possuiriam apelo estético. É o trabalho do ator que reposiciona o objeto, e que induz o observador a vê-lo de maneira diferente da habitual. “No Teatro de Objetos, o ator cumpre um papel às vezes mais importante do que o próprio objeto. O ator deve acreditar no objeto, tal qual uma criança acredita nele, quando o toma e o anima” (Vargas, 2010VARGAS, Sandra. O Teatro de Objetos: história, idéias e reflexões. Móin-Móin - Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas, Florianópolis, v. 1, n. 07, p. 027-043, 2010. DOI: 10.5965/2595034701072010027. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/moin/article/view/1059652595034701072010027. Acesso em: 17 jul. 2021.
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, p. 35).

A aproximação com o universo infantil é recorrente nessa manifestação. No entanto, é possível destacar que há procedimentos possíveis para o adulto. Alguns desses procedimentos podem ser observados quando Vargas (2010)VARGAS, Sandra. O Teatro de Objetos: história, idéias e reflexões. Móin-Móin - Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas, Florianópolis, v. 1, n. 07, p. 027-043, 2010. DOI: 10.5965/2595034701072010027. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/moin/article/view/1059652595034701072010027. Acesso em: 17 jul. 2021.
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explicita que a escolha de um objeto para caracterizar uma personagem ou uma ideia deve trabalhar com a possibilidade da associação metafórica. Tal ideia é exemplificada com um lenço de seda que poderia retratar uma mulher bonita. Então a busca de um objeto específico para um propósito específico poderia ser pensada a partir das seguintes categorias:

[...] pela forma e a cor, uma ameixa poderia ser um coração; pelo movimento, um furador de papel poderia ser um sapo; pela função, um martelo poderia ser um personagem rude e violento; pela semântica, um pregador de roupas poderia ser um pregador religioso (Vargas, 2010VARGAS, Sandra. O Teatro de Objetos: história, idéias e reflexões. Móin-Móin - Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas, Florianópolis, v. 1, n. 07, p. 027-043, 2010. DOI: 10.5965/2595034701072010027. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/moin/article/view/1059652595034701072010027. Acesso em: 17 jul. 2021.
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, p. 34).

Além dessas categorias, Vargas (2010)VARGAS, Sandra. O Teatro de Objetos: história, idéias e reflexões. Móin-Móin - Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas, Florianópolis, v. 1, n. 07, p. 027-043, 2010. DOI: 10.5965/2595034701072010027. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/moin/article/view/1059652595034701072010027. Acesso em: 17 jul. 2021.
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ainda explicita algumas formas de aproximação com o objeto a serem consideradas: o jogo do ator e sua capacidade de trabalhar o foco de atenção para o objeto; a escolha prévia de uma família de objetos (como artefatos de cozinha, ferramentas, objetos femininos ou masculinos); a qualidade da manipulação com relação ao ritmo e ao movimento no sentido de fazer a escuta do objeto para que ele não seja totalmente descaracterizado, mas que sobre ele possa ser sobreposta uma segunda ideia.

Sublinhamos que Vargas (2010)VARGAS, Sandra. O Teatro de Objetos: história, idéias e reflexões. Móin-Móin - Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas, Florianópolis, v. 1, n. 07, p. 027-043, 2010. DOI: 10.5965/2595034701072010027. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/moin/article/view/1059652595034701072010027. Acesso em: 17 jul. 2021.
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, ao apresentar as táticas de relação com o objeto, citadas no parágrafo anterior, fala da expressão de um personagem ou de uma ideia. Ao tomar a ideia como possibilidade, decididamente já nos afastamos do âmbito da caracterização somente de personagem. No entanto, as abordagens apresentadas possuem como base ainda a metáfora, a associação e a criação de um sistema de signos. Corroborando isso, Christian Carrignon também se refere ao teatro de objetos como um teatro de signos estruturado em uma linguagem poética (Cara; Cara, 2011CARA, Anna; CARA, Robert. 100 mots pour comprendre les arts de la marionette. Reims: Scérén CRDP Champagne-Ardenne, 2011.). Plassard acrescenta que a possibilidade de metamorfose do objeto ocorre a partir da linguagem (Plassard, 2011PLASSARD, Didier. Entre l'homme et la choose. Agôn, Estrasburgo, n. 4, p. 01-11, 2011. DOI: https://doi.org/10.4000/agon.1936. Disponível em: http://journals.openedition.org/agon/1936. Acesso em: 18 jul. 2021.
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). Anuncia-se a relação direta do objeto com a linguagem. Pensar o objeto sob esse prisma abriria um outro campo de pensamento sobre o objeto, envolvendo semiologia, acerca do qual não pretendemos dar conta aqui. Seguimos com o objetivo de verificar a expansão dos entendimentos sobre o objeto, seus usos e características.

As questões abordadas anteriormente nos dizem que sim, a metáfora é uma das condições de reelaboração do objeto para a cena. A metáfora é gerada quando o sentido de algo é transformado. No entanto, Mattéoli (2007)MATTÉOLI, Jean-Luc. L’objet pauvre dans le théâtre contemporain. Images Re-vues, n. 4, p. 01-26, 2007. Disponível em: http://journals.openedition.org/imagesrevues/125. DOI: https://doi.org/10.4000/imagesrevues.125. Acesso em: 17 jul. 2021.
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explicita uma provocação, também expressa por Vargas (2010)VARGAS, Sandra. O Teatro de Objetos: história, idéias e reflexões. Móin-Móin - Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas, Florianópolis, v. 1, n. 07, p. 027-043, 2010. DOI: 10.5965/2595034701072010027. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/moin/article/view/1059652595034701072010027. Acesso em: 17 jul. 2021.
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, que apresenta o fim da metáfora no trabalho com objetos.

Tendo isso em mente, observamos duas manifestações que fazem mais do que apenas afastar o objeto da personagem ou de propor a criação de uma sequência de movimentos com o objeto. Apresentaremos essas duas manifestações a seguir, como exemplo do redimensionamento que o uso do objeto vem apresentando na contemporaneidade.

A primeira dessas manifestações é o trabalho do grupo paulista Sobrevento, do qual, entre o seu qualificado e variado repertório de espetáculos, destacamos Noite (2018), criado a partir de objetos e histórias, recolhidas pela vizinhança da sede do grupo, relacionadas à história de algum objeto da casa. O objeto é um dispositivo para a memória. A dramaturgia do espetáculo foi criada com base nas histórias do objeto, não necessariamente das propriedades materiais do objeto em si.

A segunda manifestação é sobre os objetos documentais ou póscatástrofe, termos criados pela artista e professora mexicana Shaday Larios (2019)LARIOS, Shaday. Teatro de objetos documentales Laboratorio de creación teórico- práctico. Circuito de la memoria Material. Buenos Aires: Universidad Nacional De Las Artes, 2019.. O trabalho que citaremos a seguir foi orientado por Miguel Vellinho (professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e diretor da Companhia Pequod) e escrito por Vanessa dos Santos Dias (2021)DIAS, Vanessa dos Santos. Teatro de Objetos Documentais e Objetos pós catástrofe: a construção dramatúrgica do filme Os Invisíveis. Móin-Móin - Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas, Florianópolis, v. 2, n. 25, p. 121-138, 2021. DOI: 10.5965/2595034702252021121. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/moin/article/view/20963. Acesso em: 17 jul. 2021.
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. Brevemente, o objeto pós-catástrofe poderia ser relacionado com alguns dos objetos de Tadeusz Kantor correlatos à guerra8 8 A partir de 1944, Tadeusz Kantor passou a usar objetos reais – que não foram confeccionados apenas para servir a uma função de representação dentro da encenação. Kantor retirava seus objetos da vida cotidiana, sua escolha recaía sobre aqueles objetos pobres, prontos para serem descartados ou já abandonados. Objetos que perderam a vivacidade do novo, desgastados pelo tempo e pelo uso, afetados pela posse e impregnados de memórias, destituídos de sua função vital e protetora. A forma particular de Kantor utilizar os objetos em suas encenações gerou um importante legado para nossa visão poética sobre a presença e as possibilidades das suas existências em cena. Certamente as proposições de Kantor, em relação aos objetos, são fruto de seu trânsito entre as artes visuais e o teatro. A importância que os objetos adquiriram em sua obra não pode ser dissociada de sua formação na Academia Belas Artes da Cracóvia (1934-1939) e sua experiência como pintor, cenógrafo, encenador e seu conhecimento a respeito da arte moderna. . São os objetos que restam e são encontrados depois de um acontecimento grave e que carregam em si a memória desse acontecimento. A partir desses objetos é possível realizar obras nas quais a manipulação não é necessariamente a única forma de relação. Tampouco o uso do objeto em si. Nesse caso, a presença do objeto, tal como ele se encontra, danificado ou não, carrega em si a potência de catalisação de processos de criação em diversas linguagens e suportes artísticos.

A partir desses exemplos, e da provocação de Mattéoli (2007)MATTÉOLI, Jean-Luc. L’objet pauvre dans le théâtre contemporain. Images Re-vues, n. 4, p. 01-26, 2007. Disponível em: http://journals.openedition.org/imagesrevues/125. DOI: https://doi.org/10.4000/imagesrevues.125. Acesso em: 17 jul. 2021.
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sobre o fim da metáfora relacionada ao objeto, avaliamos que foi possível apresentar um deslocamento que resulta na ampliação do campo de entendimento do objeto para além de uma concepção única de teatro de objetos sendo utilizados como marionetes. Observamos uma diversidade de movimentos e tentativas, para os usos do objeto na cena contemporânea, que expandem as possibilidades em diversas direções, promovendo deslocamentos. Procuramos identificar o ponto de passagem que cada deslocamento arrisca realçar, conforme nos aponta Foucault (2010)FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos. Curso no Collége de France, 1979-1980 (excertos). Tradução, transcrição e apresentação de Nildo Avelino. São Paulo: Centro de Cultura Social; Rio de Janeiro: Achiamé, 2010.. Destarte, entendemos que esse ponto de passagem é sempre o espaço de relação entre corpo e objeto, e que manter o movimento de posicionar e reposicionar o corpo e o objeto é o trabalho infindável de ser e estar no mundo.

No trajeto criado até o momento já é possível verificar algumas pistas que nos auxiliam a forjar a ideia de objetos dóceis e propositores que apresentaremos a seguir. Uma dessas pistas é realizar o procedimento de afastar o objeto da metáfora e observar o que acontece quando deixado para ser o que é, com todas as suas características, de forma a demandar a construção de caminhos para instaurar a relação corpo-objeto. A metáfora, nesse caso, não é o ponto de partida, mas pode acontecer como decorrência da relação do corpo com as qualidades do objeto. Nessa acepção, não se trata de um objeto passível de manipulação, mas que exige que se lide com as suas caraterísticas.

No contínuo dessa linha, partimos para explorar as particularidades dos objetos dóceis e propositores. Serão apresentadas de forma separada para fins de compreensão e estudo; mas sublinhamos o fato de que são abordagens que podem ser imbricadas, sobrepostas e concomitantes. Isso porque o mesmo objeto pode, simultaneamente, tanto ser dócil quanto propositor. Dessa forma, ao falarmos de objeto dócil, estará incluso o propositor e vice-versa.

O objeto dócil

Não existe objeto dócil. Nenhum objeto é dócil por natureza. Foi entre embates e discussões que decidimos manter esse termo. Foram aventadas as expressões: maleável, conduzível, flexível, manipulável, adaptável, mas nenhuma delas parece resolver a acepção pretendida. Ainda não consideramos essa nomenclatura uma questão resolvida. Assim sendo, o objeto em si não é dócil nem propositor. Essa nomeação ocorre sempre em decorrência da ação desenvolvida na relação corpo-objeto, que foi apontado como o ponto de passagem dos deslocamentos observados.

Para apresentar o que vem a ser um objeto com essa qualidade é necessário, primeiro, explicar o que é entendido como dócil. Segundo, colocar em pauta as características vistas como pertencentes a objetos dóceis a partir de alguns exemplos e obras.

Uma vez que optamos pela inspiração foucaultiana, é necessário fazermos uma distinção sobre o uso do termo dócil. Tal termo é aplicado por Foucault relacionado aos corpos, nos quais os processos de docilização são engenharias de subjetivação relativos à dinâmica que se estabelece em um determinado tempo e um determinado espaço. Escolas, hospitais e manicômios seriam exemplos dados pelo autor para dar a ver as operações engendradas para tornar os corpos úteis. Nesse processo de subjetivação, o corpo tanto é “[...] mais obediente quanto é mais útil” (Foucault, 1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento e prisão. (1975). Petrópolis: Vozes, 1987., p. 119). Então, os mecanismos que regulam o corpo efetuam “[...] o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade” (Foucault, 1999FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. (1966). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999., p. 118). Para um corpo tornar-se dócil, é necessário que ele seja cindido, assujeitado, tornando-se passível de ser moldável, treinável e obediente (Foucault, 1999FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. (1966). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.).

Portanto, quando trazemos a noção de dócil, não pretendemos dar conta da complexidade da proposta foucaultiana para o assunto. Nossa operação é bem mais singela. Entendemos, consonante Foucault, que a condição de ser dócil não é caracterizada somente por ser aquele que cede, mas aquele que está atravessado por linhas de força que criam um determinado tipo de tensão.

Propomos algumas sugestões de procedimentos com os objetos que se aproximam ou se distanciam da ideia de docilidade foucaultiana, mas sempre mantendo a referência da noção de deslocamento. Um primeiro princípio possível de ser desenhado trata da docilidade relacionada à ideia de utilidade. Por exemplo, uma roupa pode ser considerada como um objeto dócil. Uma camisa, uma calça, um casaco, as vestimentas em si são projetadas para servir anatomicamente determinada parte do corpo – e isso é o que já está dado sobre esse material. Mas as roupas podem ser transformadas em objetos propositores? Sim. Depende da abordagem feita ao material. Retirar o objeto da dimensão da utilidade, olhar o material de outra forma e propor algo distinto é um procedimento para descobrir outras possibilidades para as peças de roupa. Isto é, a dimensão da utilidade vai continuar existindo, mas a ação com relação ao material vai abrir outros campos de existência para o objeto. Observamos essa questão na obra Self Unfinished (1998), de Xavier Le Roy, que utiliza vestimentas, mas retira delas a sua utilidade e obtém como consequência um reposicionamento do corpo (Imagem 1). Assim, o objeto roupa tanto pode ser dócil quanto propositor.

Imagem 1
Xavier Le Roy: frame do vídeo Self Unfinished (1998).

Outro princípio a ser pensado, nessa ideia de objeto dócil que estamos construindo, relaciona-se à metáfora. Quando é atribuído a um objeto um sentido diferente do seu uso ou concepção original, podemos estar constituindo uma metáfora. Assim, uma cadeira poderá ser transformada em um escudo ou uma coroa. Talvez esse seja o princípio que parece mais se aproximar da acepção de teatro de objetos que transforma as coisas em personagens. Por exemplo, o objeto bacia pode ser considerado dócil se tomarmos a sua utilidade previamente estabelecida. Pode ainda ser transformada metaforicamente em um personagem. Há muitos exemplos desse tipo de abordagem, mas traremos como exemplo a montagem da obra Avarento, de Moliére, pelo grupo espanhol Tábola Rassa. A metáfora criada foi profícua na montagem, em que o tesouro da personagem com característica avarenta era a água que era conferida com um conta-gotas: cada gota era contada como se fosse uma moeda. Dessa forma, as características das personagens apresentadas como torneiras variavam de acordo com o seu tipo. Por exemplo, a mocinha da história era uma torneira com acabamentos delicados e da cor dourada. Já o Avarento, na Imagem 2, era uma torneira mais rústica.

Imagem 2
Tábola Rassa: El Avaro.

O campo metafórico que transforma um objeto em personagem necessita de uma ação de manipulação. Dito de outro modo, para produzir metáfora sobre alguma coisa é necessário manipulá-la. Assim, a ideia de manipulação relacionada à metáfora mobiliza a noção de ânima, tão cara ao teatro de animação. Dar ânima a um objeto significa animá-lo, como princípio já traduzido por Kleist (2013, p. 19)KLEIST, Heinrich von. Sobre o Teatro de Marionetes. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. como “[...] o caminho da alma do bailarino” que promove uma transferência do seu centro de gravidade ao centro da marionete. Trata-se de um teatro que anima o inanimado, isto é, que tem como fundamento dar vida, ânima, ao boneco, simulacro do humano (Beltrame, 2002BELTRAME, Valmor. A animação do inanimado na dramaturgia de Maiakóvski. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 2, n. 2, jan./jul. 2002. ISSN 1982-4017. Disponível em: https://portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Linguagem_Discurso/article/view/220/235. Acesso em: 28 jul. 2021.
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, p. 01).

Este procedimento, de transformar um objeto em personagem, seria um procedimento com um objeto dócil. E seria dócil no sentido de que, ao ver o objeto marionete, há uma ideia anterior já existente sobre o como a abordagem com esse objeto ocorreria. Se o objeto é uma personagem, há uma sequência de movimentos que podem ser previstos na sua manipulação. Então, o objeto marionete ou um objeto que é transformado em personagem se entrega a essa sequência docilmente. É imprescindível dizer que, ao colocar-se esse procedimento como dócil, não está sendo realizado um julgamento de valor, ou uma análise sobre o que é mais fácil ou difícil tecnicamente. Mais uma vez: a questão está na ação do ator. O que estamos propondo é tão somente uma forma de pensar a abordagem com relação ao objeto.

Seguimos com outro exemplo: a máscara. Tomemos três tipos de máscaras: as máscaras da Commedia dell'arte, a máscara da esquete Masks, do grupo Mummenschanz, e a máscara da performance Transfiguration, de Olivier de Sagazan. Com toda a dificuldade do trabalho corporal exigida para portar a máscara do Arlecchino na Commedia dell'arte, entendemos essa máscara como dócil pelo fato de que se trata de um objeto que o ator porta e acopla-se ao seu corpo, o qual, por sua vez, preparou-se previamente para recebê-la. A transformação do corpo se dá ao portar a máscara. A técnica e a sofisticação necessária para o trabalho que é portar uma máscara dessas não estão em questionamento. O que estamos enfocando é a forma de abordar o objeto. Nesse caso, essa máscara já tem caminhos traçados até ela, alguns são extremamente ritualísticos. Dessa forma, o objeto máscara pode se encontrar em um campo capturado, já apreendido no que tange à abordagem do ator e também em relação ao seu material: fixo e controlável, geralmente feito de madeira.

Então temos as máscaras do Mummenschanz e de Sagazan. Em um primeiro olhar, a diferença parece sutil entre essas duas últimas. A primeira (Imagem 3) é feita com um material similar a uma massa de modelar que vai sendo esculpida e modificada pelo ator ao longo da esquete. A segunda (Imagem 4), feita com argila e alguns gravetos, que pesa, cai, obstrui a respiração, enfim, um material que não é passível de ser controlado.

Imagem 3
Mummenschanz: frame do vídeo Masks (1976).

Imagem 4
Olivier de Sagazan: Transfiguration (1998).

É perceptível, em termos formais, a diferença de resistência do material e de qualidade nos movimentos gerados pela máscara de massa moldável e daquela que está configurada a partir de uma obstrução e de um material que está fora do controle do ator. Na linha de pensamento que construímos, a máscara do Mummenschanz teria a característica de ser dócil, enquanto que a máscara de Sagazan teria qualidade propositora.

Para cumprir com a apresentação da qualidade do objeto dócil, é possível listar os pontos abordados até o momento: permanecer no espectro da utilidade; estar circunscrito a um território conhecido de movimentos préelaborados para ele e, portanto, já esperados; apresentar movimentos passíveis de controle através da manipulação; e ser constituído de um material controlável pelo ator.

Se pensarmos a relação docilidade-utilidade, de controle sobre o material, vemos a aproximação a algumas noções foucaultianas. Mas, mesmo no campo dos objetos dóceis, as relações são mais complexas e consideramos nesse sentido o potencial de transformação de uma coisa em outra como uma potencialidade no âmbito de processos criativos que optam por esse tipo de caminho.

O objeto propositor

Depois de explicitada a qualidade do objeto dócil, voltaremos nosso foco para desenhar as características do objeto propositor. Essa abordagem não se ocupa em manipular ou animar o objeto. E, ainda que pareça contraditório, também não se ocupa de criar uma metáfora. Por certo que será criada uma imagem em movimento, mas a preocupação primeira não está na criação de um campo metafórico, de modo que, se ele ocorre, é por uma consequência da relação do corpo do ator com as propriedades controláveis e incontroláveis do objeto. Ou seja, são os objetos que obrigam a criar outros caminhos para chegar até eles, pois, devido à sua natureza formal e material, não podem ser convertidos ao mesmo campo relacional corpo-objeto que é estabelecido na docilidade. Objetos dessa natureza não se entregam facilmente para a manipulação e não são totalmente controláveis. Há sempre algo que escapa da intencionalidade previamente estipulada. Sua funcionalidade é produto de uma lógica própria, inventada e que convida, ou melhor, exige o estabelecimento de uma investigação corporal. Chamamos isso de escuta do objeto, porque estes impõem suas próprias regras.

Os objetos denominados propositores podem ser pensados a partir de duas dimensões: os objetos prontos e os confeccionados.

A primeira dimensão, como objetos prontos, industrializados, que são retirados de sua função original para a produção de uma pesquisa de cunho artístico. A escuta corporal, que considera as qualidades e características do objeto, tais como forma, peso e material, nesse caso constitui-se em ação fundamental de aproximação ao objeto. Nesse prisma, temos o exemplo da obra de Susanne Linke: Im Bade Wannen (1980).

A segunda dimensão, como objeto criado e produzido com a intenção e finalidade de ser o cerne que articula sentidos discursivos e sensoriais para a performance. No momento que há um entendimento anterior de que um objeto pode ser pensado e confeccionado para não se entregar prontamente à intencionalidade pré-determinada, então não estamos mais no âmbito primeiro do teatro de objetos, mas pensando o objeto em todos os aspectos. Essa é a diferença. Trata-se então de um objeto pensado para resistir e propor que o corpo, que deseje entrar em relação com ele, estabeleça modalidades de escuta com sua lógica construtiva e material. Então o procedimento será escutar o objeto para que seja possível abordá-lo. O objeto propositor deve desafiar e não ilustrar. Esse é o caso dos Parangolés, de Hélio Oiticica, dos Infláveis, de Élcio Rossini, e da obra Transferência, de Michel Groisman.

Entendemos que a qualidade propositora do objeto oferece um campo radical de experimentos, uma vez que não há referências de caminhos traçados. O processo de descoberta do caminho de relação com o objeto implica, necessariamente, em uma forma impensada de se posicionar. E isso não é pouca coisa.

Comecemos com o exemplo da primeira dimensão de objetos propositores, chamada de objetos prontos ou pré-existentes: a obra Im Bade Wannen (1980), de Susanne Linke. A artista não faz a banheira parecer uma personagem, mas lida com a banheira a partir das propriedades de seu material constitutivo. Artistas como Suzanne Linke estabelecem um tipo de jogo simbiótico com o objeto por meio de um processo de aproximação, reconhecimento e exploração do objeto escolhido. Im Bade Wannen (Imagem 5) é um exemplo de uma metodologia que não se restringe a emprestar vida ao objeto inerte, tampouco é uma tarefa de o ressignificar pelo uso. O próprio objeto da banheira apresenta uma restrição a essa abordagem – é possível manipular quase tudo, mas, para uma pessoa manipular uma banheira, há que se lidar com os elementos restritivos do tamanho, da forma e do peso. Antes, deve-se estabelecer um processo de percepção com esses elementos constituintes do objeto.

Imagem 5
Susanne Linke: Im Bade Wannen (1980). Fotos: Rhidha Zouari, Fotomontage: Heidemarie Franz.

Susanne Linke dança com a banheira. Ela não dança com o que a banheira representa, mas sim com seu volume e tamanho, com a possibilidade de a banheira conter seu corpo e de seu corpo buscar deslocá-la pelo espaço. Dessa forma, o objeto pré-existente oferece desafios em razão de sua própria constituição material.

Seguiremos com a segunda dimensão de objetos propositores, que são os intencionalmente criados para serem propositores. Um primeiro exemplo dessa dimensão são os Parangolés, de Hélio Oiticica. Conforme vimos anteriormente, a roupa é dócil, mas pode ser abordada como propositora. Agora, não é possível ao parangolé ser dócil. Esse objeto funciona a partir de um princípio que exige a fusão do corpo e do objeto em movimento. Para tanto, Oiticica (1986)OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. coloca a dança como elemento estrutural do parangolé. Ainda, solicita a participação do espectador de modo que vista o objeto, carregue, corra ou dance, porque tal atitude e ação passam a integrar a obra de modo indissociável. Nos Parangolés encontramos o ato de vestir a obra, o que, segundo Oiticica, cria uma modificação corporal no espectador a partir de uma aproximação entre corpo e objeto.

O vestir já em si se constitui uma totalidade vivencial da obra, pois ao desdobrá-la tendo como núcleo central seu próprio corpo, o espectador como que já vivencia a transmutação espacial que aí se dá: percebe ele, na sua condição de núcleo estrutural da obra, o desdobramento vivência desse espaço intercorporal. Há como que uma violação do seu estar como indivíduo no mundo, diferenciado e ao mesmo tempo coletivo, para o de participar como centro motor, núcleo, mas não só motor como principalmente simbólico, dentro da estrutura-obra. É esta obra a verdadeira metamorfose que aí se verifica na interrelação espectador-obra (ou participador-obra) (Oiticica, 1986OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986., p. 71).

Ocorre um tipo de simbiose entre corpo e objeto, para a qual o espectador é convocado a participar. O ato de implicar o espectador na obra nos incita relacioná-lo com a questão da liberdade/responsabilidade, tal qual nos apontou Aurélia Ivan, citada no início deste artigo. Dentro do parangolé, o corpo de um participante está abrigado e é impelido ao movimento. Da pele desse corpo, brota o suor que escorre e molha a matéria de que é feito o parangolé para impregná-lo de odores, de pulsações, de vida transmutada em celebração e em cores no espaço. Entendemos, assim, o parangolé como propositor por ser um objeto que só existe em relação com um corpo e em movimento.

O segundo exemplo, de objeto construído com o intuito de ser propositor, são os Infláveis, de Élcio Rossini. A série Infláveis é constituída de objetos feitos com tecidos finos e leves, sua lógica construtiva os torna recipientes que podem reter e conter o ar por meio do movimento do corpo. Para enchê-los, o corpo precisa se movimentar pelo espaço. Conduzido pelo corpo humano, o objeto engole o ar, que, contido no invólucro de tecido, faz surgir formas breves e macias dispostas à mutação.

Para compreender o processo de entrada do ar nos objetos de tecido era necessário enchê-los de ar através de uma caminhada ou apenas com o movimento dos braços. Depois de inflar o objeto puxava o volume contra o corpo, o ar movia-se nos limites impostos pela forma de tecido. Aos poucos o objeto esvaziava. Outras maneiras de enchê-lo foram testadas como variar a intensidade do movimento (suave ou forte). Ou então, encher o objeto de ar e entrar dentro dele para ver como a estrutura interna funcionava, como o ar distribuía-se e como escapava do interior do objeto. E outra vez encher, esvaziar, encher e empurrar o volume, encher e entrar, observar, planejar novos recortes, cortar, costurar. Observar o movimento do ar entrando no objeto e como as linhas da modelagem responsáveis por sua estrutura conduziam o ar. Procurava novas maneiras de encher e de entrar no objeto. Ao entrar no objeto, era possível ficar lá até todo o ar sair e o objeto tecido ir murchando sobre o corpo (Rossini, 2005ROSSINI, Elcio. Objetos para ação. 2005. 120 f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005., p. 34).

Não há passividade ou entrega absoluta do objeto. O ar que entra obedece às leis da física e também escapa pelos poros do tecido, gerando diferentes movimentos (Imagem 6). Não é um material que se presta a ser manipulado ou controlado.

Imagem 6
Elcio Rossini: Inflável, pesquisa de movimentos (2005).

Sobre esse processo, é interessante observar que a pesquisa dos caminhos para se chegar ao objeto aciona verbos de ação: “[...] encher, esvaziar, encher e empurrar o volume, encher e entrar, observar, planejar novos recortes, cortar, costurar” (Rossini, 2005ROSSINI, Elcio. Objetos para ação. 2005. 120 f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005., p. 34). Ainda, para cada verbo, são acrescidas gradações como suave ou intenso, rápido ou lento. Os verbos de ação são gerados em função do desafio criado pelo objeto.

Por fim, chegamos ao terceiro exemplo de objetos propositores construídos: a obra Transferência, do artista brasileiro Michel Groisman. O artista cria uma estrutura associada ao seu corpo, uma espécie de prótese com velas presas próximas das articulações do seu corpo e tubos que saem da boca do artista indo até o pavio das velas. Por meio desse elemento, associado ao corpo, o performer transfere e mantém uma única chama acesa dessa espécie de exoesqueleto, ao qual seu corpo está fisicamente unido. Esse corpoarmadura ultrapassa a ideia de objeto, assemelha-se mais a um dispositivo que o artista utiliza para produzir uma partitura de movimentos que obedece a um rigoroso princípio lógico, cujo objetivo é a transferência da chama. Tal procedimento impõe uma lógica corporal única, em que a interdependência entre o objeto e o corpo do artista são irrevogáveis.

Imagem 7
Michel Groisman: Transferência (2011).

Pelos exemplos trazidos, observamos que, diferentemente do objeto dócil, não é possível elaborar uma lista de características dos objetos propositores, pois cada objeto apresenta um desafio único. A escuta do objeto pelo artista pode ser considerada o ponto-chave nessa abordagem.

Para continuar os deslocamentos sobre o objeto

Este texto buscou apresentar para o objeto as qualidades de ser dócil e de ser propositor como abordagens possíveis em processos criativos em Artes Cênicas. Essa classificação foi elaborada a partir de questionamentos oriundos de nossos trabalhos com objetos, e percebemos que cada uma dessas qualidades implica em processos de criação específicos. Nesse sentido, é importante ter presente que a escolha do objeto é uma coisa e, a escolha de como se aproximar do objeto, é outra.

Procuramos expor que existem gradações e características específicas do objeto dócil, como a relação utilidade-docilidade, a permanência em territórios previamente conhecidos, a manutenção do controlável e manipulável. Da mesma forma, existem características que configuram o objeto propositor, podendo ser ele pré-existente ou confeccionado para fins específicos do trabalho ao qual estará relacionado. Independentemente dessas duas dimensões, a característica básica do objeto propositor é o fato de ser um objeto que, por si, sua constituição material ou relacional, é desafiador. Nessa abordagem, é necessário que o ator-performer descubra uma lógica própria para lidar com cada um deles.

A partir da noção foucaultiana de deslocamento, entendemos que o ponto de passagem que está sempre sendo realçado é a relação corpo-objeto e as implicações que aí estão imbricadas para atualizarmos a busca pelo humano, como nos sugeriu Vargas (Terceiro Teatro Brasil, 2021TERCEIRO TEATRO BRASIL. Sobrevento - demonstração de trabalho. Canal YouTube: Terceiro Teatro Brasil. 29 out. 2021. 1 vídeo (2h10min40s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JuLy1Pr3coY. Acesso em: 24 out. 2021.
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). Nesse sentido, o objeto dócil e o objeto propositor demandam tipos distintos de jogo em função das características de suas qualidades. Na medida em que é possível reconhecer essas qualidades, é possível fazer escolhas mais apropriadas para a intenção de cada criação. Ainda, entendemos que essa classificação auxilia na escolha por criar um objeto que tende a apresentar desafios ainda impensados.

Com essa proposta, entendemos que as formas de abordar o objeto, estruturadas nas categorias de dócil e propositor, oportunizam o vislumbre de possibilidades para o processo criativo, bem como contribuem para a ampliação dos usos do objeto nas manifestações cênicas. Isso, porque apresentamos procedimentos que podem auxiliar o desembaraçar-se das ideias préestabelecidas e a concepção de outros modos de pensar e criar objetos. Nisso está contida a possibilidade de reverberação desse exercício ao espectador, assim como, ao lidar com desafios propostos pelos objetos, podemos abrir espaço para defrontar o desafio de verificar o humano em nós no tempo em que vivemos.

Notas

  • 1
    Ambos os autores são professores na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Departamento de Artes Cênicas do Centro de Artes e Letras/UFSM, além de lecionarem os componentes curriculares de Teatro de Formas animadas I e II, Técnicas de montagem I e II e colaborarem em trabalhos profissionais de cenografia e criação de objetos de cena, como por exemplo o espetáculo Amazônia – Um olhar sobre a floresta, com direção de Camila Bauer e produção do Projeto Gompa. Élcio Rossini possui experiência de mais de 20 anos como cenografista, criador de objetos de cena e professor do campo das visualidades da cena. Rossana Della Costa desde 2012 trabalha com teatro de formas animadas no campo educacional e com formação de professores.
  • 2
    No original em francês: “Il y a d’abord une manière d’appréhender les choses, peu importe l’objet: il faut trouver un chemin, une relation à l’objet quel qu’il soit. Je dirais que la mise en œuvre du rapport à l’objet se fait presque toujours de la même manière: c’est une façon de questionner l’objet, sa forme, son potentiel de mouvement.[...] Travailler avec l’objet relève d’un principe de travail. [...] C’est une manière de construire un rapport particulier au réel” (Schoëvaërt-Brossault; Lelièvre, 2011SCHOËVAËRT-BROSSAULT, Damien; LELIÈVRE, Micheline. La forme n’existe pas en dehors du vivant. Agôn, Estrasburgo, n. 4, p. 01-12, 2011. DOI: https://doi.org/10.4000/agon.2003. Disponível em: http://journals.openedition.org/agon/2003. Acesso em: 17 jul. 2021.
    https://doi.org/10.4000/agon.2003...
    , p. 02).
  • 3
    No original em francês: “L' objet obligent le sujet à se positionner” (Enjalbert, 2014ENJALBERT, Cédric. Les objets obligent le sujet à se positionner - Entretien avec Aurélia Ivan. In: DUFRÊNE, Thierry; HUTHWOHL, Joël (Org.). La marionnette: objet d’histoire, œuvre d’art, objet de civilisation. Lavérune: L’Entretemps, 2014. P. 183-199., p. 188).
  • 4
    No original em francês: “[...] d’objets ordinaires, le plus souvent non transformés, d’ustensiles dont on se sert dans la vie quotidienne, de jouets ou de toutes sortes de choses qui subissent un détournement d’usage” (Plassard, 2011PLASSARD, Didier. Entre l'homme et la choose. Agôn, Estrasburgo, n. 4, p. 01-11, 2011. DOI: https://doi.org/10.4000/agon.1936. Disponível em: http://journals.openedition.org/agon/1936. Acesso em: 18 jul. 2021.
    https://doi.org/10.4000/agon.1936...
    , p. 02).
  • 5
    No original em francês: “[...] ce n’est pas la marionnette qui se rapproche de l’objet, mais toujours l’objet qui devient marionnette” (Plassard, 2011PLASSARD, Didier. Entre l'homme et la choose. Agôn, Estrasburgo, n. 4, p. 01-11, 2011. DOI: https://doi.org/10.4000/agon.1936. Disponível em: http://journals.openedition.org/agon/1936. Acesso em: 18 jul. 2021.
    https://doi.org/10.4000/agon.1936...
    , p. 03).
  • 6
    No original em francês: “[...] le théâtre d´objet(s) est une des formes les plus radicales du théâtre de marionnettes” (Cara; Cara, 2011CARA, Anna; CARA, Robert. 100 mots pour comprendre les arts de la marionette. Reims: Scérén CRDP Champagne-Ardenne, 2011., p.72).
  • 7
    No original em francês: “[...] comme étant le résultat de la relation qui existe entre les yeux, les mains, les choses et l´energie personnelle qu´on y met” (Jurkowski, 2008JURKOWSKI, Henryk. Métamorphoses, La marionnette au XXe siècle. Charleville-Mézières: L’Entretemps, 2008., p. 188).
  • 8
    A partir de 1944, Tadeusz Kantor passou a usar objetos reais – que não foram confeccionados apenas para servir a uma função de representação dentro da encenação. Kantor retirava seus objetos da vida cotidiana, sua escolha recaía sobre aqueles objetos pobres, prontos para serem descartados ou já abandonados. Objetos que perderam a vivacidade do novo, desgastados pelo tempo e pelo uso, afetados pela posse e impregnados de memórias, destituídos de sua função vital e protetora. A forma particular de Kantor utilizar os objetos em suas encenações gerou um importante legado para nossa visão poética sobre a presença e as possibilidades das suas existências em cena. Certamente as proposições de Kantor, em relação aos objetos, são fruto de seu trânsito entre as artes visuais e o teatro. A importância que os objetos adquiriram em sua obra não pode ser dissociada de sua formação na Academia Belas Artes da Cracóvia (1934-1939) e sua experiência como pintor, cenógrafo, encenador e seu conhecimento a respeito da arte moderna.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Referências

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Editado por

Editor responsável: Gilberto Icle

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    18 Fev 2022
  • Aceito
    04 Abr 2022
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