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Retorno a Paris: Thomas Ostermeier e a performatização da identidade gay

Retour à Paris: Thomas Ostermeier et la performatisation de l’identité gay

RESUMO

Em seus espetáculos, o diretor alemão Thomas Ostermeier propõe uma abordagem sociológica que procura encenar as relações e as estruturas de poder de nossa contemporaneidade. Quais são os obstáculos à concretização de tais objetivos quando o foco recai sobre o entrecruzamento dos eixos de opressão de raça, classe e gênero? O presente ensaio busca investigar as contradições inerentes ao autodeclarado realismo sociológico de Ostermeier a partir da reflexão sobre os espetáculos Retour à Reims [Retorno a Reims] (2019)RETOUR à Reims. Direção: Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin. Paris: Théâtrede la Ville, 2019. e Histoire de la Violence [História da Violência] (2020)HISTOIRE de la violence. Direção de Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin.Paris: Théâtre de la Ville, 2020., baseados nas respectivas obras literárias homônimas de Didier Eribon e Édouard Louis.

Palavras-chave:
Teatro Alemão; Thomas Ostermeier; Estudos Queer; Teatro Contemporâneo

RÉSUMÉ

Dans ses performances, le metteur en scène allemand Thomas Ostermeier propose une approche sociologique qui cherche à exposer les relations et les structures de pouvoir de notre contemporanéité. Quels sont les obstacles à la réalisation de ces objectifs lorsque l’accent est mis sur l’intersection des axes d’oppression de la race, de la classe et du sexe? Le présent essai cherche à enquêter sur les contradictions inhérentes au réalisme sociologique autoproclamé d’Ostermeier à partir de la réflexion sur les spectacles Retour à Reims (2019)RETOUR à Reims. Direção: Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin. Paris: Théâtrede la Ville, 2019. et Histoire de la Violence (2020)HISTOIRE de la violence. Direção de Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin.Paris: Théâtre de la Ville, 2020., basées sur les œuvres littéraires homonymes respectives de Didier Eribon et Édouard Louis.

Mots-clés:
Théâtre allemand; Thomas Ostermeier; Études Queer; Théâtre contemporain

ABSTRACT

In his productions, the German director Thomas Ostemeier proposes a sociological approach that seeks to present our contemporary age’s social relations and power structures. What are the obstacles to achieving these goals when the focus rests on the intersection of the axes of oppression through race, class and gender? This essay investigates the contradictions inherent in Ostermeier’s self-declared sociological realism, reflecting on the plays Retour à Reims [Return to Reims] (2019)RETOUR à Reims. Direção: Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin. Paris: Théâtrede la Ville, 2019. and Histoire de la Violence [History of Violence] (2020)HISTOIRE de la violence. Direção de Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin.Paris: Théâtre de la Ville, 2020., based on the homonymous literary works by Didier Eribon and Édouard Louis, respectively.

Keywords:
German Theater; Thomas Ostermeier; Queer Studies; Contemporary Theater

Trata-se de tomar em consideração não apenas outras “identidades sexuais” (a bissexualidade, os transgêneros), mas também a maneira como os grupos étnicos, raciais, nacionais, sociais etc., conceitualizam ou vivem a sexualidade, descartando como modelo privilegiado o ponto de vista urbano das classes médias brancas.

(Eribon, 2003ERIBON, Didier. “Queer”, letras: Somos raritos, aquí estamos. In: ERIBON, Didier; LERCH, Arnaud. Dictionaire des cultures gays et lesbiennes. Paris: Larousse/VUEF, 2003.)

Introdução

Em 2004, cinquenta anos exatos após a primeira temporada do Berliner Ensemble (companhia teatral de Bertolt Brecht) em Paris, o também alemão Thomas Ostermeier é nomeado artista associado do Festival de Avignon1 1 Thomas Ostermeier (1968) já havia participado do Festival de Avignon em 1999, quando apresentou três espetáculos criados no espaço Baracke do Deutsches Theater, em Berlim: Sob o cinto (Sous la ceinture), de Richard Dresser, Comprando e Fudendo (Shopping and fucking), de Mark Ravenhill, e Um homem é um homem (Mann ist Mann), de Brecht. Em 2001, já como diretor do Schaubühne, ele retorna com uma adaptação de A Morte de Danton, de Georg Büchner. , apresentando, naquele ano, quatro espetáculos: Woyzeck, Nora (Casa de Bonecas), Concert à la carte e Disco Pigs. Tal indicação é bastante reveladora da recepção da produção de Ostermeier no país que, ao contrário do que acontecera com a absorção francesa tardia da poética brechtiana muito bem registrada nos escritos de Roland Barthes2 2 Por mais que algumas montagens de Brecht já tivessem aparecido no horizonte cultural francês desde 1937 – quando Hélène Weigel encena, em língua alemã, Os fuzis da senhora Carrar (Die Gewehre der Frau Carrar) – é somente em 1954 que ocorre a apresentação de Mãe Coragem (Mutter Courage und ihre Kinder) pelo Berliner Ensemble no Théâtre des Nations, em Paris, sendo esta montagem, para Roland Barthes (2002, p. 218), um fato decisivo no contexto teatral francês. Em Écrits sur le théâtre, encontra-se um conjunto de ensaios de Barthes onde se pode acompanhar os debates que marcaram a recepção de Brecht na França. , tem se dado em meio a um período dos mais produtivos do diretor, como bem ressalta o Prêmio Molière recebido em 2019 por sua adaptação de Noite de Reis, de William Shakespeare, na Comédie Française.

Desde então, Ostermeier estreou diversos espetáculos em Paris, com destaques para aqueles apresentados no Théâtre de la Ville, quais sejam: Morte em Veneza (Mort à Venise, 2014), Um inimigo do povo (L’ennemi du peuple, 2014), O casamento de Maria Braun (Le mariage de Maria Braun, 2015), Retorno a Reims (Retour à Reims, 2019RETOUR à Reims. Direção: Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin. Paris: Théâtrede la Ville, 2019.) e História da Violência (Histoire de la Violence, 2020HISTOIRE de la violence. Direção de Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin.Paris: Théâtre de la Ville, 2020.) – traduções do autor. É possível, a partir desse conjunto específico de obras, observar alguns traços gerais característicos de suas produções: em primeiro lugar, elas evidenciam um modo de produção contemporâneo intra e intercontinental, através do qual os espetáculos são viabilizados por meio de coproduções e correalizações entre instituições teatrais de distintos países que, por sua vez, definem o circuito de temporadas das obras (Poirson; Barbéris, 2016, p. 95POIRSON, Martial; BARBÉRIS, Isabelle. L’Économie du spectacle vivant. Paris: PUF, 2016.). Histoire de la Violence (2020)HISTOIRE de la violence. Direção de Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin.Paris: Théâtre de la Ville, 2020. é um caso em pauta. Apesar de ter estreado no Schaubühne, em Berlim, contou com a coprodução de três outras instituições: o Théâtre National Wallonie-Bruxelles e o St. Ann’s Warehouse Brooklyn dividem o posto com o Théâtre de la Ville.

Esses cinco espetáculos também sugerem a desconfiança de Ostermeier (2016, p. 41)OSTERMEIER, Thomas. Le Théâtreet la Peur. Paris: ActesSud, 2016. em relação ao abandono do texto decretado pelo teatro pósdramático alemão3 3 O teatro pós-dramático não deve ser compreendido decididamente como nãotextual. Conforme esclarece Lehmann (2013, p. 860), “[...] a palavra pósdramático descreve estéticas e estilos da prática teatral e tematiza a escrita, o drama escrito ou o texto teatral apenas de forma marginal. Há formas de teatro pós-dramático com textos dramáticos – na realidade, com todos os tipos de texto. Além disso, há uma descrição no livro de uma variedade de formas teatrais, desde a apresentação des-dramatizada de textos dramáticos até formas que não dependem de modo algum de um texto dramático pré-definido.” Alguns espetáculos considerados pós-dramáticos integram o repertório do teatro Schaubühne, tendo dois deles sido analisados por Friques (2015) sob as perspectivas respectivas da melancolia contemporânea – Never Forever, do alemão Falk Richter em parceria com a Total Brutal – e da antropotécnica – I’d rather Goya robbed me of sleep than some arsehole, do espanhol Rodrigo García. , indicando a importância que o diretor concede a este elemento cênico, mesmo que suas fontes não sejam exclusivamente dramatúrgicas. Se suas encenações de dramaturgias clássicas e contemporâneas de Henrik Ibsen, William Shakespeare, Georg Büchner, Sarah Kane, John Fosse, dentre outras, são notáveis, não são menos aquelas que partem de filmes (caso do filme O casamento de Maria Braun, de Rainer Werner Fassbinder) ou de textos literários modernos (o romance de Thomas Mann) ou recentes. Deste último recorte, destacam-se os dois últimos espetáculos coproduzidos pelo Théâtre de la Ville, quais sejam: Retorno a Reims e História da Violência – tradução do autor. É sobre estas duas encenações que este ensaio pretende se debruçar a partir de agora, mas não sem antes pavimentar o caminho sobre os relatos da injúria gay elaborados por Didier Eribon e Édouard Louis.

Relatos da injúria de Eribon a Louis

Retorno a Reims (2020) e História da Violência (2020) guardam algumas semelhanças significativas. Publicados, inicialmente, na França em 2009 (Eribon, 2009ERIBON, Didier. Retour à Reims. Paris: Fayard, 2009.) e 2016 (Louis, 2016LOUIS, Édouard. Histoire de la violence. Paris: Seuil, 2016.), respectivamente, ambos os livros apresentam traços autobiográficos de seus autores, trazendo reflexões situadas a respeito de uma estética da existência gay desdobrada sob o viés político tanto quanto o individual. De autoria de Didier Eribon, Retorno a Reims registra o trajeto realizado pelo sociólogo e jornalista francês de volta à sua terra natal logo após a morte de seu pai. Proveniente de uma família proletária, Eribon, o único de quatro irmãos que logrou uma carreira acadêmica bem sucedida, possui uma trajetória marcada tanto pela proximidade com intelectuais do quilate de Michel Foucault, Pierre Bourdieu e Claude Lévi-Strauss, como por um interesse recorrente em relação à temática homossexual. Seja por seu livro Reflexões sobre a questão gay, publicado originalmente em 1999, ou por sua organização de seminários e colóquios como Les études gay et lesbiennes, ocorrido no Centre Pompidou em 1997, Eribon é uma referência francesa incontornável no tocante aos estudos e às políticas francófonas de gênero, travando diálogos férteis com Monique Wittig, Leo Bersani, Judith Butler, Eve Sedgwick, dentre outras referências na área.4 4 Conforme nos informa Bruno Perreau (2012) em sua reconstituição do campo epistemológico dos estudos gays e lésbicos na França, Eribon possui, ao lado de Françoise Gaspard e Sam Bourcier, um papel fundamental no desenvolvimento e na visibilidade da área. Essa visibilidade não deve escamotear, contudo, a fragilidade do campo, sempre localizado nas margens universitárias. Um bom exemplo disso é a pouca atenção concedida à pensadora francesa Monique Wittig em seu país natal, o que, provavelmente, a fez migrar para os Estados Unidos.

Em muitos aspectos, Retorno a Reims (2020) pode ser considerado como o complemento exato de Reflexões sobre a questão gay. Neste último livro, Eribon oferece uma síntese de fôlego das produções discursivas em torno da temática, seja por meio de uma interlocução teórica com as intelectuais acima mencionadas, pelo panorama histórico das existências homossexuais no mundo euro-americano a partir do século XIX ou, ainda, pela leitura crítica da produção literária de Oscar Wilde, Marcel Proust e André Gide. De modo mais cirúrgico, o livro de Eribon parte da experiência do insulto (a agressão simbólica e/ou física) para revelar a tensão entre dominação e emancipação, entre os processos irmanados de assujeitamento e de subjetivação protagonizados pelos gays no mundo moderno. Como era de se esperar, a principal referência teórica aqui é Foucault, cuja importância para seu pensamento pode ser comprovada tanto pela biografia que Eribon elaborou do autor, quanto pela terceira parte de Reflexões sobre a questão gay, inteiramente dedicada ao movimento do pensamento foucaultiano no interior do qual vida e obra “[...] confundem-se, respondem-se, transformam-se reciprocamente” (Eribon, 2008, p. 297ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.).

A premissa que governa toda a obra é única: a injúria é o princípio estruturante da subjetividade homossexual. A partir dela, Eribon esforça-se por recensear conceitualmente os modos de vida forjados pelos homossexuais para se desviarem dos dispositivos de abjeção que governam o pensamento heterossexual (Wittig, 1980WITTIG, M. The straight mind. Feminist Issues, v. 1, n. 1, p. 103-111, 1980.). Em suas palavras,

A experiência da agressão física ou a percepção de sua ameaça obsedante são tão presentes na vida dos gays que são encontradas em quase todos os relatos autobiográficos e em numerosos romances cujos personagens são homens gays [...] a possibilidade de ser objeto da agressão verbal ou física permanece onipresente e, ao menos, foi, com frequência, determinante na maneira como os gays construíram sua identidade pessoal, desenvolvendo principalmente uma capacidade de perceber o perigo ou aprendendo a controlar muito estritamente os gestos e as falas [...] A personalidade que eles constroem, a identidade que moldam, não são elas determinadas pelas consequências psicológicas dessa posição social de ‘assediados’ na vida cotidiana (pela injúria, a gozação, a agressão, a hostilidade ambiente)? (Eribon, 2008, p. 30-31ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.).

Diante do onipresente horizonte da injúria, a saída encontrada por muitos homossexuais se traduz em uma espécie de migração das pequenas vilas às grandes metrópoles. Para Eribon (2008, p. 33-34)ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008., “[...] a homossexualidade tem ligação com a cidade [...] Foi a cidade que deu aos modos de vida gay a possibilidade de se desenvolverem plenamente”. Através dessa fuga psicológica e geográfica, os homossexuais redefinem suas subjetividades a partir das redes de sociabilidade cadenciadas por amizades e prazeres. Nesses contextos, eles são capazes de reinventar suas identidades gays, justapondo-as, nos espectros visível e dizível, às outras dimensões identitárias (profissional, social etc.) que lhes atravessam. Trata-se de um “[...] corte na biografia” (Eribon, 2008, p. 37ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.), por meio do qual os homossexuais rejeitam a sujeição ao pensamento heterossexual rumo às possibilidades criativas de reinvenção de si mesmos.

Mas esse corte seria absoluto? Seria possível abandonar por completo o passado familiar? O refúgio na metrópole seria definitivo, enterrando, de uma vez por todas, as experiências pretéritas da injúria? A migração não admitiria retorno? Tendo em vista estas questões, se compreende a complementaridade entre Reflexões sobre a questão gay e Retorno a Reims.

Como sugere o título do livro, Retorno a Reims (2020) configura-se como um relato autobiográfico em primeira pessoa no qual Didier Eribon registra a volta à sua cidade natal. O livro, de fato, tem início com o corte biográfico do autor: sua decisão de não mais visitar sua família, seu desinteresse total por seu local de nascimento. Porém, após a morte de seu pai vítima de Alzheimer, Eribon decide regressar, sendo este um contramovimen-to geográfico, e, sobretudo, existencial:

Como ele [seu pai] estava ausente, tornou-se possível a mim embarcar nessa jornada, ou melhor, nesse processo de retorno com o qual eu não tinha sido capaz de lidar antes. Encontrar esse “contra de mim mesmo”, como diria Genet, de onde eu tentara tanto escapar: um espaço social que eu colocara à distância, um espaço mental contra o qual eu me construí mas que, no entanto, era parte essencial do meu ser. Eu vim ver minha mãe. Foi o começo de uma reconciliação com ela. Ou, mais precisamente, com toda uma parte de mim que eu havia recusado, rejeitado, negado (Eribon, 2009, p. 12-13ERIBON, Didier. Retour à Reims. Paris: Fayard, 2009.)5 5 Tradução do autor. No original: “Dès qu’il fut absent, il me devint possible d’entreprendre ce voyage ou plutôt ce processus de retour auquel je n’avais pu me résoudre auparavant. De retrouver cette « contrée de moi-même », comme aurait dit Genet, d’où j’avais tant cherché à m’évader : un espace social que j’avais mis à distance, un espace mental contre lequel je m’étais construit, mais qui n’en constituait pas moins une part essentielle de mon être. Je vins voir ma mère. Ce fut le début d’une réconciliation avec elle. Ou, plus exactement, avec toute une part de moi-même que j’avais refusée, rejetée, reniée”. .

O trecho acima explicita certa impossibilidade de Eribon em realizar o corte biográfico de modo definitivo. Por mais que a migração à cidade grande tenha permitido o florescimento de uma nova identidade, sobrevive nesta, mesmo que de maneira sorrateira, esquecida e/ou reprimida, uma contraidentidade vinculada ao espaço social originário de sua infância. O sociólogo francês recorre à metáfora migratória em sua abordagem dos processos da subjetivação homossexual: tal aproximação é de suma importância tanto no livro quando no espetáculo, revelando um investimento não essencialista para a questão da identidade. A migração homossexual reveste-se, então, de uma dimensão diaspórica, na medida em que põe em movimento uma identidade cindida, atravessada, instável (Hall, 2013, p. 49HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.). De modo mais decisivo, o processo desontologizado de construção da identidade gay é, ele mesmo, uma vereda de desidentificação (Muñoz, 2016MUÑOZ, José Esteban. Disidentifications: Queers of Color and the Performance of Politics. Londres, Minneapolis: University of Minnesota Press, 2016.; Preciado, 2011PRECIADO, Paul B. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 1, p. 11-20, 2011.; Butler, 2017BUTLER, Judith. Problemas de genero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilizacão Brasileira, 2017.) que parte do assujeitamento rumo à subjetivação. Com isso, a cena de migração/subjetivação homossexual construída por Eribon, em suas duas obras, performatiza o conflito de forças – atrações, emergências, repressões, repulsões etc. – entre a ordem sexual e a ordem social.

Retornar é reencontrar um outro de si mesmo. O retorno a Reims registrado em um livro é o espelho invertido da fuga a Paris teorizado em outro. A complementaridade entre as duas obras não para por aí, manifestando-se também em suas dicções discursivas. Se, de um lado, Reflexões sobre a questão gay constitui-se, sobretudo, como um estudo histórico e sociológico que elege, como objetos de análise, obras literárias e biográficas sobre um fundo existencial, Retorno a Reims (2020), de outro lado, configura-se como um relato autobiográfico que não prescinde, por sua vez, de passagens teóricas sobre um conjunto de questões (sexualidade, democracia, sistema escolar, luta de classes etc.). Essas duas obras podem ser consideradas, portanto, como um díptico dialético no qual traços, dicções e posicionamentos em um livro ganham predominância no outro, atestando uma vez mais a dinâmica mútua entre vida e obra que Eribon encontra em Foucault.

“Este livro é a história da minha vida”6 6 Tradução do autor. No original: “C’est livre est l’histoire de ma vie”. - é assim que Édouard Louis (2018, p. 1), relata suas primeiras impressões após concluir, em lágrimas, a leitura de Retorno a Reims (2020). Nascido em 1992, o jovem escritor francês publicou, até o momento, três romances, todos com fortes elementos autobiográficos. Lançado em 2014, seu livro debutante, En finir avec Eddy Bellegueule (2014)O Fim de Eddy na tradução para o português – narra a infância traumática de Louis em Amiens, marcada por toda sorte de situações homofóbicas. A transfiguração literária7 7 A expressão transfiguração literária é utilizada, aqui, com base no pensamento de Antonio Candido (Candido, 2000), para quem texto e contexto possuem uma relação dialética, o que faz com que as determinações sociais sejam transformadas, no seio da obra, em um fator de construção artística. Para discussões a este respeito sob as perspectivas dos sistemas teatrais e da arte contemporânea global, veja-se, respectivamente, Friques (2016) e Friques (2018). dos anos de abjeção é também um ato real de ruptura: o fim proposto no título corresponde à mudança de nome pela qual passou o autor. Nascido Eddy Bellegueule, Louis reinventa-se a si mesmo, optando por enterrar um nome que, para ele, estaria associado à ontologia negativa que caracteriza a condição gay (Louis, 2018b, p. 7LOUIS, Édouard. Cinq questions à Édouard Louis. In: ERIBON, Didier. Retour à Reims. Paris: Champs Essais, 2018b.). Há, com isso, uma estratégia no mínimo ambígua nesse livro autobiográfico, na medida em que o nome de batismo original de seu autor faz referência a um mundo social do qual Louis migrou. A autobiografia é, portanto, o registro de uma desidentificação.

Por si só, esse corte biográfico ambivalente já evidenciaria a estreita conexão entre Louis e Eribon, não fosse o fato explícito deste best-seller lhe ser dedicado. A proximidade entre os dois autores não para por aí, visto que este foi professor e orientador de doutorado daquele. Nas duas obras seguintes, o diálogo se aprofunda: se, em História da Violência (2020) – originalmente, Histoire de la violence (2016) –, Louis parte de uma situação real em que fora vítima de estupro e de roubo por um jovem árabe durante uma noite de Natal para refletir sobre as causas e as consequências da violência social, em Qui a tué mon père (Louis, 2018aLOUIS, Édouard. Qui a tuémonpère. Paris: Seuil, 2018a.) – Quem matou meu pai, em tradução livre –, o autor repisa, como Eribon em Retorno a Reims (2020)ERIBON, Didier. Retorno a Remis. 1. ed. Belo Horizonte: Âyiné, 2020., a relação conflituosa com seu pai.

A complementaridade encontrada em Reflexões sobre a questão gay (Eribon, 2008ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.) e Retorno a Reims (2020), equivale, na obra de Louis, ao aumento da complexidade em torno da questão gay. Em outras palavras, se, nas obras primeiras de Eribon e Louis, o conflito entre as ordens sexual e social é retratado por meio da metáfora migratória, nas demais, nota-se que a questão da migração extrapola sua instrumentalização metafórica, revelan-do-se, em si mesma, como um vetor de extrema relevância em um campo de forças interseccional. Os eixos da opressão de classes e sexual são atravessados, com isso, pelos vetores da coisificação étnica e racial. Ambos os autores descortinam aquilo que Audre Lorde (2019, p. 241-245)LORDE, Audre. Idade, raça, classe e gênero: mulheres redefinindo a diferença. In: HOLANDA, Heloisa Buarque (org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. se refere como a “[...] falsa aparência de uma homogeneidade de experiência” – seja de gênero, de raça ou de sexo – que, por sua vez, acarretaria uma “[...] maneira destrutiva e fragmentada de viver”. No caso dos dois espetáculos de Ostermeier analisados a seguir, a questão é menos o reconhecimento dos diversos ingredientes que compõem uma identidade – como propõe Lorde ao se afirmar como lésbica feminista negra – do que a conscientização de que, para se suprimir a homofobia é necessário enfrentar as demais formas de opressão. Sendo assim, pode-se dizer que Retour à Reims (2019)RETOUR à Reims. Direção: Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin. Paris: Théâtrede la Ville, 2019. e Histoire de la Violence (2020)HISTOIRE de la violence. Direção de Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin.Paris: Théâtre de la Ville, 2020. encenam as contradições de um fato histórico descrito do seguinte modo por Paco Vidarte (2019, p. 163-167)VIDARTE, Paco. Ética Bixa: proclamações libertárias para uma militância LGBTQ. São Paulo: n-1 edições, 2019.:

A maioria esmagadora é de bixas e lésbicas de nossas sociedades ocidentais euronorteamericanas que lutam por seus direitos, mas por nenhum outro direito de nenhuma outra minoria oprimida. [...] Com que direito vamos exigir de um hétero que não seja homofóbico, se nós somos transfóbicas ou racistas? [...] O fato de ser gay constitui justificativa suficiente para não ter que assumir mais responsabilidades com a sociedade ou com outros tipos de injustiça que não têm nada a ver com a homofobia?

Às questões formuladas por Vidarte tendo como meta uma Solidariedade LGBTQ pautada pelo reconhecimento de um tecido de microdiscriminações, desdobram-se outras a serem investigadas daqui em diante nas duas adaptações cênicas de Thomas Ostermeier: Como a questão gay se relaciona com a questão proletária? Como os marcadores de raça e classe influenciam a questão gay? Uma minoria sempre será solidária à outra? Uma minoria reconhecerá sempre a outra? Em suma, em Ostermeier, como os recursos e mecanismos de enunciação se combinam para a encenação desta trama de opressões? Tais indagações são de suma importância caso desejemos compreender adequadamente o realismo cênico concebido por Ostermeier (2016, p. 61)OSTERMEIER, Thomas. Le Théâtreet la Peur. Paris: ActesSud, 2016., por meio do qual se expõe o campo de forças que incidem em um contexto social, desejando ser, com isso, um teatro sociológico. Esse teatro sociológico, diferentemente à fragmentação pós-dramática do realismo capitalista característica à cena alemã (Friques, 2015FRIQUES, Manoel Silvestre. Melancolia e antropotécnica na cena alemã: Falk Richter e Rodrigo García. Sala Preta, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 276-287, 2015. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v15i1p276-287.
https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867....
), revela uma preocupação constante com o reconhecimento do outro. O reconhecimento do outro seria suficiente? E quanto aos repertórios de representação desse outro (Hall, 2016, p. 140HALL, Stuart. Cultura e Representação. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016.)? Eles se modificariam ou permaneceriam intactos? A partir de agora, busquemos as respostas nos espetáculos.

Retour à Reims: a dissociação da autocrítica confessional

Em um primeiro momento, seria possível estabelecer algumas conexões entre a montagem de Ostemeier e o dispositivo cênico confessional utilizado de modo recorrente pelo performer estadunidense Spalding Gray: em um palco vazio, encontram-se apenas uma mesa com um copo d’água, um caderno, uma caneta, um microfone e uma cadeira. Essa opção cenográfica contemplaria adequadamente o viés autobiográfico do livro de Didier Eribon, permitindo que um único personagem, narrador de si mesmo, expusesse sem mediações as lembranças de tempos passados. A dissociação do aparato confessional é produzida pela adição de novos elementos a este dispositivo, em especial, a ilha de edição encontrada no fundo direito do palco, e, acima de tudo, a enorme tela de projeção que ocupa a parte central superior da cena. Na tela, o espectador acompanha os registros documentais do retorno de Didier Eribon a Reims, sendo o palco, portanto, uma espécie de sala de finalização.

Seria possível, então, considerar Retour à Reims (2019)RETOUR à Reims. Direção: Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin. Paris: Théâtrede la Ville, 2019. – em português, Retorno a Reims, tradução livre como um documentário cênico inacabado, sendo o espetáculo uma das etapas finais de seu processo de pósprodução: o diretor interpretado por Cédric Eeckhout recebe, na ilha de som do rapper Blade Mc Alimbaye, a atriz Irène Jacob, que, por sua vez, empresta sua voz para a narração da obra. Enquanto o telão exibe as imagens da viagem de Eribon à sua terra natal, com registros de reencontros familiares (em especial, com sua mãe) e de paisagens de Reims, o público assiste a Alimbaye e Eeckhout gravando a voz em off de Jacob, lendo alguns extratos do livro.

À ação principal em torno do documentário in progress, alternam-se outras situações, em especial, os diálogos entre os dois atores brancos (Eeckhout e Jacob) a respeito dos conflitos políticos contemporâneos. Por meio do espetáculo, Ostermeier estabelece uma fricção entre a obra de Eribon e as insurgências populares recentes, notadamente as manifestações dos coletes amarelos8 8 Os coletes amarelos designam um conjunto de manifestações que surgiram na França em outubro de 2018 em resposta, inicialmente, ao aumento, anunciado por Emmanuel Macron, dos impostos referentes aos combustíveis fósseis e às emissões de carbono. Com o passar das semanas, o movimento expandiu-se, ganhando novas pautas e alianças. Nestas manifestações, os membros geralmente utilizavam coletes amarelos, semelhantes àqueles utilizados por guardas de trânsito, conferindo homogeneidade às passeatas e destaque à origem trabalhadora do movimento. Entre outubro de 2018 e março de 2019, aproximadamente 300 mil franceses foram às ruas, obstruindo as vias e sendo alvo de violência policial. (gilets jaunes) que aconteciam simultaneamente à temporada francesa de Retour à Reims em 2019RETOUR à Reims. Direção: Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin. Paris: Théâtrede la Ville, 2019.. O livro autoriza tal movimento, uma vez que, nele, há um segmento inteiramente dedicado à constatação (extremamente oportuna na França e no Brasil) de Eribon de que a classe operária – que, em sua infância, estaria alinhada ideologicamente aos partidos de esquerda – expunha contemporaneamente seu apoio político aos representantes de extrema-direita. O entrelaçamento entre as dimensões pessoal e pública se nota também aqui, na medida em que o pai de Eribon personifica o proletário de esquerda enquanto seus irmãos, os operários de extrema-direita. A distância entre o autor e sua família também fornece uma justificativa desta inversão política: para Eribon, o divórcio entre a classe proletária e os intelectuais e os dirigentes de esquerda é um dos fatores principais para a desidentificação dos trabalhadores com o programa ideológico deste segmento político.9 9 A ascensão dos populismos de extrema-direita é um dos fenômenos socioculturais mais espinhosos dos tempos atuais. A cientista política Sheri Berman (Berman, 2019) oferece uma possível interpretação para esta ascendência ao observar que, no contexto europeu, a primazia da política liderada pelos partidos sociais-democratas e que dominou os trinta gloriosos anos inaugurados pelo pós-guerra cedeu passagem, a partir da década de 1980, à expansão da direita. Essa passagem se deveu, sobretudo, à adoção da pauta neoliberal pelos partidos de esquerda, tendo este deslocamento econômico despertado um sentimento de abandono por parte da base eleitoral proletária. A extrema-direita preenche então esta lacuna, ao adotar um discurso de proteção social conservador, como exemplifica o caso francês através da mudança de postura entre Jean-Marie Le Pen (que defendia um Estado Mínimo) e sua filha Marine (que defende um Estado Intervencionista chauvinista, limitando o bem-estar social apenas aos franceses e não aos imigrantes). A xenofobia torna-se um elemento sociocultural de união da base eleitoral de extrema-direita, enquanto reação às desregulamentações de mercado e aberturas comerciais. Os economistas Esther Duflo e Abhijit Banerjee (Duflo; Banerjee, 2020) se esforçam por desconstruir os mitos racistas que rondam a questão contemporânea da imigração, questionando a lógica econômica de guardanapo que a funda, segundo a qual o fluxo migratório diminuiria as oportunidades de mercado para a população nativa. Fundamentalmente, eles argumentam que este fluxo é muito menor do que fazem crer os alarmes xenófobos, visto que a maior parte da população não está disposta, mesmo em contextos adversos, a se mover para fora de seus laços de pertencimento.

Em seu documentário cênico in progress, Thomas Ostermeier endossa a sugestão de Eribon segundo a qual o divórcio entre os operários e os governos progressistas seria um dos catalisadores da ascendência contemporânea do conservadorismo de extrema-direita. Contudo, é precisamente neste ponto que o espetáculo se distancia do livro, visto que Eribon, em seu relato autobiográfico, aborda esta questão com a complexidade que lhe é inerente: a reinvenção de si mesmo em sua fuga à metrópole fez com que o sociólogo reprimisse não apenas os preconceitos comportamentais que marcam o contexto social de sua infância, mas também suas conexões com uma classe operária oprimida. O corte biográfico operado por Eribon representou também seu distanciamento das restrições e injustiças sociais de todo um grupo social, divórcio esse que o autor ensaia reparar ao reencontrar, em seu retorno, o outro de si mesmo.

Esse percurso autocrítico do livro se atenua bastante no espetáculo, uma vez que tanto a personagem da atriz quanto a do diretor discutem os movimentos contemporâneos sem, todavia, realizarem, como Eribon, um investimento autocrítico de suas posições de enunciação. Por consequência, o espetáculo de Ostermeier transforma o exercício autocrítico do sociólogo francês em um conjunto de teses compartilhado com uma plateia que, de um modo geral, tende a estar de acordo com suas opiniões a respeito de um inimigo declarado (a extrema direita) sem haver aí espaços para dúvidas ou hesitações. Em vez da autocrítica, o consenso. A complexidade do pensamento autobiográfico de Eribon parece se desfazer, com isso, de modo equivalente à separação dos recursos cênicos desse documentário in progress: ao descolamento entre as cenas de gravação do áudio e as imagens projetadas no telão, tem-se também uma separação entre a dimensão biográfica e o pensamento político. Neste momento, entra em cena Blade Mc Alimbaye.

Oriundo da Normandia, o rapper franco-senegalês Blade Mc Alimbaye (Panara, 2016PANARA, Marlène. Blade MC AliMBaye: rapper la négritude. Arts. Jeune Afrique, [S.I.], dez. 2016. Disponível em <https://www.jeuneafrique.com/mag/379501/culture/blade-mc-alimbaye-rappernegritude/>. Acessoem mar. 2020.
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) cumpre uma função acessória durante grande parte do espetáculo, representando o papel de um técnico de som que passa um bom tempo no aquário localizado no fundo direito do palco, seja realizando ajustes técnicos ou, simplesmente, observando as cenas. Quando Retour à Reims (2019)RETOUR à Reims. Direção: Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin. Paris: Théâtrede la Ville, 2019. se aproxima do final, Alimbaye assume o protagonismo da cena, ocupando o lugar antes reservado a Jacob. Sentado na cadeira, diante da mesa, ele passa, então, a narrar aos seus interlocutores a diáspora de sua família do Senegal à França, sendo esse momento coroado, no momento final do espetáculo, com um rap que o artista entoa para uma plateia entusiasmada.

A justaposição entre as produções autobiográficas de Eribon e Alimbaye é bastante sugestiva. De um lado, encontra-se um livro em que o sociólogo revê seu corte biográfico plasmado teoricamente em Reflexões sobre a questão gay (Eribon, 2008ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.), conforme evidencia este trecho de Retour à Reims:

Dois percursos, portanto. Imbricados um no outro. Duas trajetórias interdependentes de reinvenção de mim: uma em relação à ordem sexual e outra em relação à ordem social. No entanto, quando se tratou de escrever, decidi por analisar a primeira, que se refere à opressão sexual, e não a segunda, que se refere à dominação social, redobrando talvez pelo gesto da escrita teórica aquilo que havia sido uma traição existencial. [...] Essa escolha não constitui apenas uma maneira de me definir e me subjetivar no presente, mas também uma escolha do meu passado, da criança e do adolescente que eu tinha sido: uma criança gay, um adolescente gay, e não o filho de um operário. E contudo! (Eribon, 2018, p. 28-9ERIBON, Didier. Retour à Reims.1 ed [Nouvelle Édition]. Paris: Champs Essais, 2018.)10 10 Tradução do autor. No original: “Deux parcours, donc. Imbriqués l’un dans l’autre. Deux trajectoires interdépendantes de réinvention de moi-même: l’une en regard de l’ordre sexuel, l’autre en regard de l’ordre social. Pourtant, quand il s’est agi d’écrire, c’est la première que je décidai d’analyser, celle qui a trait à l’oppression sexuelle, et non la seconde, celle qui a trait à la domination sociale, redoublant peut-être par le geste de l’écriture théorique ce qu’avait été la trahison existentielle. […] Ce choix constitua non seulement une manière de me définir et de me subjectiver dans le temps présent, mais aussi un choix de mon passé, de l’enfant et de l’adolescent que j’avais été: un enfant gay, un adolescent gay, et non un fils d’ouvrier. Et pourtant! ” .

Aqui, Eribon expõe claramente seu conflito diante de dois percursos pessoais entrelaçados: a identidade homossexual e a identidade proletária. Ao se definir como trânsfuga de classe tendo em vista a afirmação de sua existência gay em uma grande metrópole, o autor, mesmo conservando certa solidariedade idealizada em relação às reivindicações minoritárias, interrompe qualquer possibilidade de socialização em seu contexto social originário. É justamente essa fuga que Eribon busca contornar em Retorno a Reims (2020)ERIBON, Didier. Retorno a Remis. 1. ed. Belo Horizonte: Âyiné, 2020., recorrendo inclusive aos pensamentos de autores negros, notadamente James Baldwin e John Edgar Wideman, para, a partir dos relatos analíticos de suas respectivas relações familiares, investigar as dissonâncias e consonâncias entre os determinismos sociais e as identidades (sexuais, raciais etc.).

De outro lado, a trajetória de Alimbaye, como um rapper franco-senegalês, abre uma nova cena das reivindicações identitárias. Diferentemente dos tratados teóricos de Eribon, Alimbaye recorre a um gênero musical intimamente relacionado aos afetos, às sociabilidades e às pautas periféricas globais, fazendo do rap o veículo por excelência de suas opiniões e conceituações (Panara, 2016PANARA, Marlène. Blade MC AliMBaye: rapper la négritude. Arts. Jeune Afrique, [S.I.], dez. 2016. Disponível em <https://www.jeuneafrique.com/mag/379501/culture/blade-mc-alimbaye-rappernegritude/>. Acessoem mar. 2020.
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). Filho de pais senegaleses, Alimbaye nasceu na França e teve uma infância marcada por episódios de racismo cotidiano. Em seu álbum de estreia, Bleu: Point Zero (Bleu, 2015BLEU: Point Zero. [Compositor e intérprete]: MC AliMBaye. França: Diaspora Rockers, 2015. (44 min.)), o artista revê seu percurso, fazendo questão de afirmar suas raízes africanas, denunciando, no mesmo compasso, as hipocrisias da sociedade francesa a respeito do tema. Como se observa na canção Utopie 98, em especial na parte final, quando a voz do ator Jean-Michel Martial descortina a permanência do racismo estrutural a partir de fatos distantes no tempo como a derrota do time de futebol francês na Copa do Mundo da África do Sul, em 2010, e a Exposição Colonial na França em 1931: “Os justos amam vitórias, quando há vitória somos todos franceses, hein! Mas os fracassos são reduzidos às origens: o subúrbio, o outro lado da auto-estrada, uma cor, uma religião, do delírio inconsciente, da ficção”.11 11 Tradução do autor. No original: “les bien-pensants aiment les victoires, quand y’a la victoire on est tous tricolores hein! Mais les chutes sont réduites à avoir des origines: la banlieue, l’autre côté du périphérique, une couleur, une religion, du délire inconscient, de la fiction.”

Mas o que se vê no palco do Théâtre de la Ville é menos a estética diaspórica de um rapper da negritude contemporânea do que Alimbaye representando a si mesmo no âmbito de um espetáculo assinado por um diretor branco alemão. Por mais que a parte do final seja dedicada à presença de Alimbaye e às evocações anedóticas de seu avô senegalês, Ali M’Baye, o próprio fato do rapper ser o personagem de si mesmo levanta um questionamento a respeito da instrumentalização de sua figura no âmbito de um universo ficcional no qual aos atores brancos é permitida a interpretação de outros papéis que não o de suas identidades raciais. Em outras palavras, enquanto é permitido, aos demais atores, um processo de desidentificação de seus percursos existenciais tendo em vista a representação de outras personagens, ao Alimbaye é vedada tal possibilidade, estando o rapper aprisionado em sua representatividade étnica, geográfica e racial.

Em um espetáculo sobre a reinvenção de si e a explicitação das mecânicas de enunciação, tal questão não é trivial. É verdade que as personagens do diretor e da atriz cumprem uma função mediadora dos movimentos de pensamento de Eribon e Alymbaye. Mas, por que não estabelecer um confronto direto entre estes dois percursos, apostando em uma imbricação fértil entre tratado sociológico e rap diaspórico, entre corte biográfico e luta contra o esquecimento? Por que o debate conceitual encenado pelo casal de atores brancos exclui Alimbaye durante boa parte do tempo? Por que cabe ao rapper apenas o papel de testemunha de si mesmo? Mesmo com toda benevolência, Retorno a Reims não estaria endossando, uma vez mais, uma dinâmica hierárquica de enunciações? O espetáculo não estaria dramatizando, mesmo que involuntariamente, as dificuldades dos encenadores euroamericanos contemporâneos em promover um debate verdadeiramente interseccional? Se Retour à Reims (2019)RETOUR à Reims. Direção: Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin. Paris: Théâtrede la Ville, 2019. não oferece respostas a estas indagações, vejamos se Histoire de la Violence (2020)HISTOIRE de la violence. Direção de Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin.Paris: Théâtre de la Ville, 2020. é capaz de fazê-lo.

Histoire de la violence: a mecânica das enunciações

Se Retour à Reims (Retour, 2019RETOUR à Reims. Direção: Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin. Paris: Théâtrede la Ville, 2019.) pode ser considerado como um documentário in progress a partir do livro homônimo de Didier Eribon, Histoire de la violence (Histoire, 2020HISTOIRE de la violence. Direção de Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin.Paris: Théâtre de la Ville, 2020.) é, tal qual o romance de Édouard Louis, uma espécie de autópsia existencial de uma noite agridoce traumática de natal. O ponto de partida do romance e do espetáculo é o encontro casual de Louis com o imigrante árabe ilegal Riadh B (batizado na ficção de Reda, um kabyle, marroquino ou argelino, informam os jornais) no dia 25 de dezembro de 2012. Nessa noite, Louis e Reda se conhecem nas ruas de Paris e, após algumas trocas de olhares, decidem ir para o apartamento do primeiro compartilhar carícias natalinas.

Após algumas transas, a relação entre os dois começa a esfriar, sobretudo, depois da suspeita de Louis, recém-saído do banho, de que Reda lhe roubara, neste ínterim, seu telefone celular. Daí, inicia-se um jogo de acusações que termina com o estupro de Louis por Reda, seguido da fuga deste último. Influenciado por dois amigos, Louis – um jovem alto de pele alva, olhos azuis e ar frágil – opta então por prestar queixa policial contra Reda, sendo tanto o livro quanto o espetáculo resultados de um processo de revisão crítica dessa narrativa, realizada por seu autor.

Em sua adaptação, Ostermeier opta por transformar explicitamente o palco em uma cena do crime. Para isso, o diretor alemão mantém a parte central do palco vazia, dispondo, em seu perímetro, de alguns elementos cenográficos que, ao sabor da autópsia cênica, são mobilizados pelos atores: uma fila de cadeiras semelhante às encontradas em uma sala de espera policial no fundo direito, um chuveiro no fundo central esquerdo, uma mesa contendo uma câmera à esquerda e, em especial, o músico instrumentista Thomas Witte com sua bateria na lateral direita (este último recurso bastante marcante da estética de Ostermeier). Cama, mesa, poltrona e cadeiras são trazidos à cena em momentos determinados e, no fundo do palco, uma tela exibe, em diversas ocasiões, os rumos da investigação. Todo este aparato cênico é mobilizado em um mosaico temporal que alterna, a todo momento, o encontro presencial entre Louis (Laurenz Laufenberg) e Reda (Renato Schuch), o relato do primeiro aos policiais (Christoph Gawenda e Alina Stiegler) e a sua irmã e seu cunhado (Gawenda e Stiegler), e, também, o exercício autocrítico do autor, em geral, realizado através de um microfone instalado na parte frontal direita do palco. As cenas de Histoire de la violence (2019) ora se sucedem, ora se sobrepõem temporalmente, como exemplificam os momentos nos quais Louis revive momentos íntimos com Reda, sendo observado e interpelado simultaneamente pelos policiais ou familiares.

A simultaneidade temporal proposta pelo dispositivo cênico de Ostermeier contempla, desse modo, duas modalidades contrastantes de autópsia: a investigação policial e a reconstituição cênico-literária. Por um lado, encena-se a investigação policial por meio da qual os fatos da noite de natal são cristalizados em um conjunto de estereótipos sociais. Sendo assim, Louis representa o papel do gay passivo e perverso que busca concretizar seus fetiches sexuais insaciáveis, enquanto Reda simboliza o típico objeto do desejo homossexual, conseguindo sobreviver em Paris como um refugiado em troca de favores sexuais. Por outro lado, o estranhamento diante deste enquadramento redutor seria, de fato, o objeto de análise da segunda autópsia inaugurada por Louis: como lidar com o fato da violência? Como localizar a origem da agressão, no encadeamento causal dos fatos ou nas determinações sociais? O que desejar ao autor de seu estupro? Seriam, vítima e algoz, produtos de uma sociedade racista e preconceituosa?

Louis responde a esta última afirmação de maneira afirmativa. Sendo assim, à expropriação narrativa que o autor testemunha a partir do momento em que seu revés sexual se transforma em um caso policial, Louis cria uma contra-investigação, ao mesmo tempo pessoal e sociológica, a fim de relativizar a responsabilidade de Reda por seus atos. Nesse sentido, Louis dá continuidade ao esforço de Eribon por mostrar que “[...] os vereditos – mulher, pobre, negra, árabe, gay, trans etc. – caem sobre nós, tornando certas experiências e vidas impossíveis” (Louis, 2018b, p. 7LOUIS, Édouard. Cinq questions à Édouard Louis. In: ERIBON, Didier. Retour à Reims. Paris: Champs Essais, 2018b.)12 12 Tradução do autor. No original: “les verdicts – femme, pauvre, noir, árabe, gay, trans, etc. – se sont abattus sur nous et nous ont rendu certaines expériences et certaines vies impossibles”. . Tal postura endossa o ativismo deste jovem fenômeno literário francês que, dentre outros posicionamentos públicos, assumiu rapidamente sua origem proletária (ao contrário do primeiro momento de fuga de Eribon) e, também, lançou um manifesto a favor dos gilets jaunes em meio ao fluxo das manifestações. A autoria do ato violento sofrido por Louis não seria, portanto, de Reda, mas de todo um contexto social pautado pela discriminação racial e pelas distribuições desiguais da riqueza e da precariedade.

A solidariedade entre os injuriados de Histoire de la violence (2020)HISTOIRE de la violence. Direção de Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin.Paris: Théâtre de la Ville, 2020. apresenta, todavia, algumas contradições. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que, no terreno dos faits divers13 13 Fait Divers é uma expressão francesa que não possui uma tradução exata em português. Em geral, ela designa uma seção do jornal onde se reúnem breves e variadas publicações que não se enquadram nas demais seções (Economia, Política etc.): escândalos, fofocas, acidentes etc. franceses, Riadh B foi preso por onze meses e reivindica, na justiça, uma confrontação entre ele e Louis, recusada por este. De modo mais decisivo, no universo ficcional mobilizado pelo espetáculo, a personagem Reda não cumpre outra função que a de um agente da violência, sem haver nenhum momento em que este compartilhe do direito à autópsia autocrítica de Louis. Sendo assim, mais até que em Retour à Reims (Retour, 2019RETOUR à Reims. Direção: Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin. Paris: Théâtrede la Ville, 2019.), que propõe uma passagem de fala de Eribon (interposta pelos atores brancos) à Alymbaie, Histoire de la violence (2020)HISTOIRE de la violence. Direção de Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin.Paris: Théâtre de la Ville, 2020. está centrada na voz e na existência do homem europeu branco e em sua relativização, solidária, mas objetificante, da alcunha árabe imigrante de seu algoz.

Com isso, é possível concordar, mesmo que parcialmente, com Thomas Ostermeier (Ostermeier, 2020OSTERMEIER, Thomas. Programa da Peça Histoire de la Violence. Paris: Théâtre de la Ville, 2020.) quando o diretor afirma que “[...] uma parte da tragédia da história é que eles são da mesma classe. Mas eles não se reconhecem”14 14 Tradução do autor. No original: “une partie de la tragédie de l’histoire est qu’ils sont de la même classe. Mais ils ne se reconnaissent pas”. . Não se trata, todavia, de uma questão unicamente de classe. Para além da questão identitária, o que conecta as comunidades árabes, negras e de dissidentes sexuais é a distribuição diferencial da precariedade induzida pela aceleração global das desigualdades. Sendo assim, “[...] a precariedade é a rubrica que une as mulheres, os queers, as pessoas transgêneras, os pobres, aqueles com habilidades diferenciadas, os apátridas, mas também as minorias raciais e religiosas: é uma condição social e econômica, mas não uma identidade” (Butler, 2019, p. 65BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia.Rio de Janeiro: Civilizacão Brasileira, 2019.). Se a dificuldade em constituir alianças entre diferentes comunidades precarizadas seria uma parte da tragédia, a outra parte seria um ato solidário que, a despeito de suas boas intenções, assenta-se ainda na reificação do outro estreitamente vinculada às dinâmicas de enunciação e ao direito de falar.

Considerações Finais

Neste ensaio, refletimos sobre as questões apresentadas por dois espetáculos concebidos recentemente por Thomas Ostermeier: Retour à Reims (2019)OSTERMEIER, Thomas; LOUIS, Édouard. Au coeur de la violence. Paris: Éditions du Seuil, 2019. e Histoire de la violence (2020)HISTOIRE de la violence. Direção de Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin.Paris: Théâtre de la Ville, 2020.. Nessas obras, baseadas em fontes literárias, o diretor alemão elege, como ponto de partida, as experiências narradas por dois autores gays franceses – Didier Eribon e Édouard Louis – cujos fluxos discursivos contemplam as malhas interseccionais de opressões que constituem o mundo contemporâneo sob a onipresença da injúria e da precariedade globais. No primeiro caso, o espetáculo reflete sobre a ascendência vertiginosa da extrema-direita estreitamente vinculada ao discurso xenofóbico, tudo isto sob a lente autobiográfica de Didier Eribon. No segundo caso, a partir de uma relação sexual fortuita entre dois jovens (um kabyle imigrado e um europeu), encena-se o movimento de pensamento de Édouard Louis em suas indagações sobre a origem da violência (essa seria resultante do ato direto de um sujeito ou das disposições sociais que o condicionam para isso?).

Contudo, não são apenas essas performatizações da identidade gay em cruzamento com outros eixos de opressão (em especial, o étnico-racial) que os dois espetáculos revelam. Sintomaticamente, Retour à Reims (2019)RETOUR à Reims. Direção: Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin. Paris: Théâtrede la Ville, 2019. e Histoire de la violence (2020)HISTOIRE de la violence. Direção de Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin.Paris: Théâtre de la Ville, 2020. encenam também os impasses e os dilemas enfrentados pelo teatro de Ostermeier em relação à performatização de nossos tecidos interseccionais de microdiscriminações. Não se pode negar a existência de certa solidariedade entre os injuriados, tendo sido este um dos elementos principais dos dois espetáculos aqui analisados, seja pela presença marcante de Alimbaye ou, ainda, pela importância narrativa de Reda. Todavia, tal solidariedade se revela, quando muito, unidirecional e pouco dialógica, já que aposta em uma distribuição desigual de protagonismos e agências em relação aos personagens europeus e aqueles não-europeus.

Ora, se a distribuição desigual da precariedade está fundada em uma assimetria de direitos de cidadania, as questões aqui analisadas não soam triviais, visto que tal assimetria resulta também das decisões políticas sobre quem pode (ou não) aparecer e falar15 15 “O que algumas vezes chamamos de um ‘direito’ de aparecer é tacitamente apoiado por esquemas regulatórios que qualificam apenas certos sujeitos como elegíveis para o exercício desse direito” (Butler, 2019, p. 57). . Por mais que existam relativizações importantes no seio discursivo das personagens principais e que as vozes diaspóricas se façam ouvir em momentos específicos dos espetáculos, ainda assim, as duas obras não parecem transformar os repertórios de representação geralmente associados aos não-europeus: um rapper senegalês cumpre seu papel diaspórico enquanto um michê kabyle denega seus desejos homossexuais em violência homofóbica. Com isso, por mais que o teatro sociológico proposto por Ostermeier cumpra sua função ao refletir, a certa distância, sobre alguns fatos sociais relevantes, ele mesmo parece, contraditoriamente, desconsiderar o seu próprio teatro enquanto fato social. Ou a distribuição desigual do direito à voz e à visibilidade não ressoaria na assimetria de posições enunciativas nestas obras que tematizam, especificamente, tais questões?

Diante do exposto, retomemos, por fim, a viabilidade do realismo cênico de Ostermeier pautado por um desejo de revelação sociológica das relações de poder que arranjam o espaço social contemporâneo. Retour à Reims (2019)RETOUR à Reims. Direção: Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin. Paris: Théâtrede la Ville, 2019. e Histoire de la Violence (2020)HISTOIRE de la violence. Direção de Thomas Ostermeier. Produção: Schaubühne Berlin.Paris: Théâtre de la Ville, 2020. conseguem, de fato, expor conceitualmente a trama de opressões que marca nossa contemporaneidade. Essa exposição esbarra contraditoriamente na própria dinâmica de suas enunciações. Se reconhecer o outro é um passo necessário, permitir que este outro migre, política e existencialmente, de objeto a sujeito de enunciação (Kilomba, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da Plantacão. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.) revela-se como uma tática ainda mais decisiva para um teatro que se deseja sociológico e que se preocupa em não apenas encenar, mas rearranjar, as condições de enunciação no seio mesmo da produção cênica. Caso contrário, a performatização gay será instrumentalizada sob o modelo privilegiado de que fala Eribon em nossa epígrafe, desviando a atenção da invisibilidade performativa de nossos muitos aliados.

Notas

  • 1
    Thomas Ostermeier (1968) já havia participado do Festival de Avignon em 1999, quando apresentou três espetáculos criados no espaço Baracke do Deutsches Theater, em Berlim: Sob o cinto (Sous la ceinture), de Richard Dresser, Comprando e Fudendo (Shopping and fucking), de Mark Ravenhill, e Um homem é um homem (Mann ist Mann), de Brecht. Em 2001, já como diretor do Schaubühne, ele retorna com uma adaptação de A Morte de Danton, de Georg Büchner.
  • 2
    Por mais que algumas montagens de Brecht já tivessem aparecido no horizonte cultural francês desde 1937 – quando Hélène Weigel encena, em língua alemã, Os fuzis da senhora Carrar (Die Gewehre der Frau Carrar) – é somente em 1954 que ocorre a apresentação de Mãe Coragem (Mutter Courage und ihre Kinder) pelo Berliner Ensemble no Théâtre des Nations, em Paris, sendo esta montagem, para Roland Barthes (2002, p. 218)BARTHES, Roland. Écrits sur le théâtre. Paris: Éditions du Seuil, 2002., um fato decisivo no contexto teatral francês. Em Écrits sur le théâtre, encontra-se um conjunto de ensaios de Barthes onde se pode acompanhar os debates que marcaram a recepção de Brecht na França.
  • 3
    O teatro pós-dramático não deve ser compreendido decididamente como nãotextual. Conforme esclarece Lehmann (2013, p. 860)LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático, doze anos depois. Rev. Bras. Estud. Presença, Porto Alegre, v. 3, n. 3, p. 859-878, 2013. DOI: https://doi.org/10.1590/2237-266039703.
    https://doi.org/10.1590/2237-266039703...
    , “[...] a palavra pósdramático descreve estéticas e estilos da prática teatral e tematiza a escrita, o drama escrito ou o texto teatral apenas de forma marginal. Há formas de teatro pós-dramático com textos dramáticos – na realidade, com todos os tipos de texto. Além disso, há uma descrição no livro de uma variedade de formas teatrais, desde a apresentação des-dramatizada de textos dramáticos até formas que não dependem de modo algum de um texto dramático pré-definido.” Alguns espetáculos considerados pós-dramáticos integram o repertório do teatro Schaubühne, tendo dois deles sido analisados por Friques (2015)FRIQUES, Manoel Silvestre. Melancolia e antropotécnica na cena alemã: Falk Richter e Rodrigo García. Sala Preta, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 276-287, 2015. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v15i1p276-287.
    https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867....
    sob as perspectivas respectivas da melancolia contemporânea – Never Forever, do alemão Falk Richter em parceria com a Total Brutal – e da antropotécnica – I’d rather Goya robbed me of sleep than some arsehole, do espanhol Rodrigo García.
  • 4
    Conforme nos informa Bruno Perreau (2012)PERREAU, Bruno. La inversión de lo universal. Una epistemología de los estudios gays y lésbicos en Francia. De Signis, Núm. 19, p. 15-24, 2012. em sua reconstituição do campo epistemológico dos estudos gays e lésbicos na França, Eribon possui, ao lado de Françoise Gaspard e Sam Bourcier, um papel fundamental no desenvolvimento e na visibilidade da área. Essa visibilidade não deve escamotear, contudo, a fragilidade do campo, sempre localizado nas margens universitárias. Um bom exemplo disso é a pouca atenção concedida à pensadora francesa Monique Wittig em seu país natal, o que, provavelmente, a fez migrar para os Estados Unidos.
  • 5
    Tradução do autor. No original: “Dès qu’il fut absent, il me devint possible d’entreprendre ce voyage ou plutôt ce processus de retour auquel je n’avais pu me résoudre auparavant. De retrouver cette « contrée de moi-même », comme aurait dit Genet, d’où j’avais tant cherché à m’évader : un espace social que j’avais mis à distance, un espace mental contre lequel je m’étais construit, mais qui n’en constituait pas moins une part essentielle de mon être. Je vins voir ma mère. Ce fut le début d’une réconciliation avec elle. Ou, plus exactement, avec toute une part de moi-même que j’avais refusée, rejetée, reniée”.
  • 6
    Tradução do autor. No original: “C’est livre est l’histoire de ma vie”.
  • 7
    A expressão transfiguração literária é utilizada, aqui, com base no pensamento de Antonio Candido (Candido, 2000CANDIDO, Antonio. Formacão da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 6. ed. Belo Horizonte, EditoraItatiaia Ltda., 2000.), para quem texto e contexto possuem uma relação dialética, o que faz com que as determinações sociais sejam transformadas, no seio da obra, em um fator de construção artística. Para discussões a este respeito sob as perspectivas dos sistemas teatrais e da arte contemporânea global, veja-se, respectivamente, Friques (2016)FRIQUES, Manoel Silvestre. Da pintura histórica à bienal histórica: autonomia, curadoria e bienalização. PÓS: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, [S. l.], v. 6, n. 12, p. 287–308, 2016. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistapos/article/view/15753. Acesso em: ago. 2021.
    https://periodicos.ufmg.br/index.php/rev...
    e Friques (2018)FRIQUES, Manoel Silvestre. Tramas dramáticas: as redes teatrais brasileiras entre o sistema moderno e o sistema de indicadores. Urdimento: Revista de Estudos em Artes Cênicas, v. 2, n. 32, p. 519-541, 2018. DOI: https://doi.org/10.5965/1414573102322018519.
    https://doi.org/10.5965/1414573102322018...
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  • 8
    Os coletes amarelos designam um conjunto de manifestações que surgiram na França em outubro de 2018 em resposta, inicialmente, ao aumento, anunciado por Emmanuel Macron, dos impostos referentes aos combustíveis fósseis e às emissões de carbono. Com o passar das semanas, o movimento expandiu-se, ganhando novas pautas e alianças. Nestas manifestações, os membros geralmente utilizavam coletes amarelos, semelhantes àqueles utilizados por guardas de trânsito, conferindo homogeneidade às passeatas e destaque à origem trabalhadora do movimento. Entre outubro de 2018 e março de 2019, aproximadamente 300 mil franceses foram às ruas, obstruindo as vias e sendo alvo de violência policial.
  • 9
    A ascensão dos populismos de extrema-direita é um dos fenômenos socioculturais mais espinhosos dos tempos atuais. A cientista política Sheri Berman (Berman, 2019BERMAN, Sheri; SNEGOVAYA, Maria. O populismo e o declínio da social-democracia. Journal of Democracy, [S.I.],ano 8,n. 2, 2019.) oferece uma possível interpretação para esta ascendência ao observar que, no contexto europeu, a primazia da política liderada pelos partidos sociais-democratas e que dominou os trinta gloriosos anos inaugurados pelo pós-guerra cedeu passagem, a partir da década de 1980, à expansão da direita. Essa passagem se deveu, sobretudo, à adoção da pauta neoliberal pelos partidos de esquerda, tendo este deslocamento econômico despertado um sentimento de abandono por parte da base eleitoral proletária. A extrema-direita preenche então esta lacuna, ao adotar um discurso de proteção social conservador, como exemplifica o caso francês através da mudança de postura entre Jean-Marie Le Pen (que defendia um Estado Mínimo) e sua filha Marine (que defende um Estado Intervencionista chauvinista, limitando o bem-estar social apenas aos franceses e não aos imigrantes). A xenofobia torna-se um elemento sociocultural de união da base eleitoral de extrema-direita, enquanto reação às desregulamentações de mercado e aberturas comerciais. Os economistas Esther Duflo e Abhijit Banerjee (Duflo; Banerjee, 2020DUFLO, Esther; BANERJEE, Abihijit. Boa economia para tempos difíceis. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.) se esforçam por desconstruir os mitos racistas que rondam a questão contemporânea da imigração, questionando a lógica econômica de guardanapo que a funda, segundo a qual o fluxo migratório diminuiria as oportunidades de mercado para a população nativa. Fundamentalmente, eles argumentam que este fluxo é muito menor do que fazem crer os alarmes xenófobos, visto que a maior parte da população não está disposta, mesmo em contextos adversos, a se mover para fora de seus laços de pertencimento.
  • 10
    Tradução do autor. No original: “Deux parcours, donc. Imbriqués l’un dans l’autre. Deux trajectoires interdépendantes de réinvention de moi-même: l’une en regard de l’ordre sexuel, l’autre en regard de l’ordre social. Pourtant, quand il s’est agi d’écrire, c’est la première que je décidai d’analyser, celle qui a trait à l’oppression sexuelle, et non la seconde, celle qui a trait à la domination sociale, redoublant peut-être par le geste de l’écriture théorique ce qu’avait été la trahison existentielle. […] Ce choix constitua non seulement une manière de me définir et de me subjectiver dans le temps présent, mais aussi un choix de mon passé, de l’enfant et de l’adolescent que j’avais été: un enfant gay, un adolescent gay, et non un fils d’ouvrier. Et pourtant! ”
  • 11
    Tradução do autor. No original: “les bien-pensants aiment les victoires, quand y’a la victoire on est tous tricolores hein! Mais les chutes sont réduites à avoir des origines: la banlieue, l’autre côté du périphérique, une couleur, une religion, du délire inconscient, de la fiction.”
  • 12
    Tradução do autor. No original: “les verdicts – femme, pauvre, noir, árabe, gay, trans, etc. – se sont abattus sur nous et nous ont rendu certaines expériences et certaines vies impossibles”.
  • 13
    Fait Divers é uma expressão francesa que não possui uma tradução exata em português. Em geral, ela designa uma seção do jornal onde se reúnem breves e variadas publicações que não se enquadram nas demais seções (Economia, Política etc.): escândalos, fofocas, acidentes etc.
  • 14
    Tradução do autor. No original: “une partie de la tragédie de l’histoire est qu’ils sont de la même classe. Mais ils ne se reconnaissent pas”.
  • 15
    “O que algumas vezes chamamos de um ‘direito’ de aparecer é tacitamente apoiado por esquemas regulatórios que qualificam apenas certos sujeitos como elegíveis para o exercício desse direito” (Butler, 2019, p. 57BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia.Rio de Janeiro: Civilizacão Brasileira, 2019.).

Referências

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  • BERMAN, Sheri; SNEGOVAYA, Maria. O populismo e o declínio da social-democracia. Journal of Democracy, [S.I.],ano 8,n. 2, 2019.
  • BLEU: Point Zero. [Compositor e intérprete]: MC AliMBaye. França: Diaspora Rockers, 2015. (44 min.)
  • BUTLER, Judith. Problemas de genero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilizacão Brasileira, 2017.
  • BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia.Rio de Janeiro: Civilizacão Brasileira, 2019.
  • CANDIDO, Antonio. Formacão da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 6. ed. Belo Horizonte, EditoraItatiaia Ltda., 2000.
  • DUFLO, Esther; BANERJEE, Abihijit. Boa economia para tempos difíceis Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
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  • ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.
  • ERIBON, Didier. Retour à Reims Paris: Fayard, 2009.
  • ERIBON, Didier. Retour à Reims1 ed [Nouvelle Édition]. Paris: Champs Essais, 2018.
  • ERIBON, Didier. Retorno a Remis 1. ed. Belo Horizonte: Âyiné, 2020.
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    » https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v15i1p276-287
  • FRIQUES, Manoel Silvestre. Da pintura histórica à bienal histórica: autonomia, curadoria e bienalização. PÓS: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, [S. l.], v. 6, n. 12, p. 287–308, 2016. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistapos/article/view/15753 Acesso em: ago. 2021.
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Editado por

Editor-responsável: Fabiana de Amorim Marcello

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Jan 2021
  • Aceito
    24 Abr 2021
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