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Do Asfalto ao Mato: a pesquisa da Cia. Livre na criação de uma cena épica e perspectivista

RESUMO

Este artigo examina a cena da Cia. Livre, que problematiza a constituição da identidade brasileira, relacionando o indivíduo no contexto urbano e o pensamento ameríndio. Desde o espetáculo Vem Vai, o caminho dos mortos (2007), identifica-se um trânsito entre o mato e o asfalto, instituído nas traduções cênicas da antropofagia, segundo Andrade (1928)ANDRADE, Oswald de. Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha. Revista de Antropofagia, v. 1, n. 1, 1928. Available at: <http://tropicalia.com.br/en/leituras-complementares/manifesto-antropofago>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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, Campos (1992)CAMPOS, Haroldo de. Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. In: CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 1992. P. 231-255. e Nunes (1979)NUNES, Benedito. Oswald Canibal. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979., e da cosmologia amazônica, a partir das teorias do perspectivismo, em especial, Descola (1992)DESCOLA, Philippe. Societies of nature and the nature of society. In: KUPER, Adam (org.). Conceptualizing society. Londres: Routledge, 1992. P. 107-126., Carneiro da Cunha (1998)CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Pontos de vista sobre a floresta amazônica: xamanismo e tradução. Mana, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 7-22, abr. 1998. Available at: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131998000100001&lng=en&nrm=isso>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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, Kopenawa e Albert (2015)KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. e Viveiros de Castro (1996VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 115-144, 1996. Available at: <https://www.scielo.br/pdf/mana/v2n2/v2n2a05.pdf>. Accessed on: 03 jul. 2020.
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; 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem (e outros ensaios de antropologia). São Paulo: Cosac Naify, 2002.; 2015)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para um antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu Livros; N-1 Edições, 2015.. Conclui-se destacando a estratégia decolonial da companhia no recurso à antropologia, para imaginar outras humanidades.

Palavras-chave:
Cena Contemporânea; Teatro Brasileiro; Processos de Epicização; Perspectivismo Ameríndio; Antropologia Contemporânea

ABSTRACT

This article examines Cia. Livre’s scene, which questions the constitution of Brazilian identity, relating the individual in the urban context and Amerindian thought. Since the performance Vem Vai, o caminho dos mortos (2007), transit between the forest and the asphalt has been identified, instituted in the scenic translations of anthropophagy, according to Andrade (1928)ANDRADE, Oswald de. Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha. Revista de Antropofagia, v. 1, n. 1, 1928. Available at: <http://tropicalia.com.br/en/leituras-complementares/manifesto-antropofago>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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, Campos (1992)CAMPOS, Haroldo de. Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. In: CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 1992. P. 231-255., and Nunes (1979)NUNES, Benedito. Oswald Canibal. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979., and Amazonian cosmology, based on theories of perspectivism, especially Descola (1992)DESCOLA, Philippe. Societies of nature and the nature of society. In: KUPER, Adam (org.). Conceptualizing society. Londres: Routledge, 1992. P. 107-126., Carneiro da Cunha (1998)CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Pontos de vista sobre a floresta amazônica: xamanismo e tradução. Mana, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 7-22, abr. 1998. Available at: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131998000100001&lng=en&nrm=isso>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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, Kopenawa and Albert (2015)KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., and Viveiros de Castro (1996VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 115-144, 1996. Available at: <https://www.scielo.br/pdf/mana/v2n2/v2n2a05.pdf>. Accessed on: 03 jul. 2020.
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; 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem (e outros ensaios de antropologia). São Paulo: Cosac Naify, 2002.; 2015)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para um antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu Livros; N-1 Edições, 2015.. It concludes by highlighting the company’s decolonial strategy in the use of anthropology in order to imagine other humanities.

Keywords:
Contemporary Scene; Brazilian Theater; Epicization Processes; Amerindian Perspectivism; Contemporary Anthropology

RÉSUMÉ

Cet article examine la scène de Cia. Livre, qui problématise la constitution de l'identité brésilienne, mettant en relation l'individu dans le contexte urbain et la pensée amérindienne. Depuis le spectacle Vem Vai, le chemin des morts (2007), un transit entre la forêt et l'asphalte a été établi, institué dans la traduction scénique de l'anthropophagie, selon Andrade (1928)ANDRADE, Oswald de. Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha. Revista de Antropofagia, v. 1, n. 1, 1928. Available at: <http://tropicalia.com.br/en/leituras-complementares/manifesto-antropofago>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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, Campos (1992)CAMPOS, Haroldo de. Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. In: CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 1992. P. 231-255. et Nunes (1979)NUNES, Benedito. Oswald Canibal. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979., et la cosmologie amazonienne, basée sur les théories du perspectivisme, en particulier Descola (1992)DESCOLA, Philippe. Societies of nature and the nature of society. In: KUPER, Adam (org.). Conceptualizing society. Londres: Routledge, 1992. P. 107-126., Carneiro da Cunha (1998)CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Pontos de vista sobre a floresta amazônica: xamanismo e tradução. Mana, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 7-22, abr. 1998. Available at: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131998000100001&lng=en&nrm=isso>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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, Kopenawa e Albert (2015)KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. et Viveiros de Castro (1996VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 115-144, 1996. Available at: <https://www.scielo.br/pdf/mana/v2n2/v2n2a05.pdf>. Accessed on: 03 jul. 2020.
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; 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem (e outros ensaios de antropologia). São Paulo: Cosac Naify, 2002.; 2015)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para um antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu Livros; N-1 Edições, 2015.. Il conclut en mettant en évidence la stratégie décoloniale de la compagnie dans l'utilisation de l'anthropologie, pour imaginer d'autres humanités.

Mots-clés:
Scène Contemporaine; Théâtre Brésilien; Processus d’Épicisation; Perspectivisme Amérindien; Anthropologie Contemporaine

A discussão aqui apresentada aborda os processos artísticos da Cia. Livre, coletivo paulistano do qual a autora faz parte, destacando o trajeto criativo inaugurado em Vem Vai, o caminho dos mortos (2007) e desdobrado nas criações cênicas Cia. Livre Canta Kaná Kawã (2014) e Xapirí Xapiripê, lá onde a gente dançava sobre espelhos (2014). Outras consequências poderiam ser destacadas em Morte e dependência na Terra do Pau Brasil (2019), e no recente Os Um e os Outros (2019), obras que serão citadas aqui, mas comentadas em próximas análises.

Desde Vem Vai, o caminho dos mortos, a Cia. Livre observa a questão da alteridade, permeada pelos pressupostos de diferença e igualdade, um dilema já esboçado em seus trabalhos anteriores, mas que adquire novos contornos com o enfoque na antropologia contemporânea brasileira que a Cia. paulistana incorpora em suas montagens. A partir de 2007, os enigmas da diferença emergem do contato com comunidades não urbanas, que ressaltam aspectos do espaço habitado pelo grupo, ao confrontá-lo pela distância e proximidade entre sujeitos e culturas. Como a abordagem deste coletivo teatral, que atravessa territórios etnográficos tradicionais, efetuando uma observação cruzada, entre a aldeia e o fluxo instável da metrópole, contrasta com o ponto de vista hegemônico em torno do sujeito iluminista? De que modo a cena teatral, enriquecida pela perspectiva das culturas nativas, em especial, no que se refere à polifonia da pessoa humana e ao pensamento canibal, coloca-se diante dos axiomas fundadores do fenômeno teatral no Ocidente? Essas experimentações atenderiam a uma orientação decolonial, no processo de gerar formas teatrais que imaginam outras humanidades?

Atuando de maneira continuada desde 1999 na cidade de São Paulo (SP), a Cia. Livre é um coletivo de artistas dirigido pela encenadora Cibele Forjaz, reconhecido como representante do movimento de teatro de grupo da cidade de São Paulo e extensamente premiado por seus espetáculos e pesquisas em artes cênicas. Em 2014, recebeu do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), a insígnia de patrimônio com significado cultural imaterial para a cidade1 1 Secretaria Municipal da Cultura da Cidade de São Paulo. Conpresp registra 22 teatros independentes como patrimônio imaterial. Disponível em: <https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/noticias/?p=16276>. Acesso em: 03 jun. 2019. , demarcando sua importância também para a comunidade, nos aspectos artístico, político e social. Em suas últimas criações teatrais, especialmente a partir de 2006, quando foi iniciado o processo que resultou em Vem Vai, o Caminho dos Mortos (2007)2 2 Vem vai o caminho dos mortos relê os mitos ameríndios, numa espécie de travessia por 5 espaços, correspondentes a cinco movimentos (estações): A Morte simbólica; O Canibalismo guerreiro; O Canibalismo funerário; Vem Vai, O Caminho-morte e O Canibalismo celeste. A cada espaço corresponde também uma parte do corpo humano, como se o público devorasse essas partes, à maneira de um canibalismo ritual, a cada releitura de um mito. A criação de Vem vai, realizada em processo colaborativo com os atores, atrizes e equipe, teve a assinatura de Newton Moreno na dramaturgia, Cibele Forjaz na direção e a orientação teórica nos estudos de antropologia de Pedro Cesarino. Mais sobre o trabalho, em Small (2008). , o grupo tem problematizado a constituição conflituosa da identidade brasileira, por meio do diálogo entre o indivíduo urbano, seu contexto e contradições, e o pensamento ameríndio, definido segundo a antropologia contemporânea brasileira.

Esse viés pode ser resumido como a exploração do trânsito entre o mato e o asfalto, descrição que o grupo passou a adotar empiricamente, desde 2007, para resumir seus projetos. Diante do conjunto das propostas da Cia, a síntese conceitual intuída desde aquele momento mostrou-se acertada: o mato e o asfalto podem ser compreendidos como espaços sistêmicos (território geográfico, lugar de relações de poder em curso e advindas de processos históricos, e estruturas sociais e econômicas)3 3 Para o geógrafo brasileiro Milton Santos, as variáveis desse sistema seriam a forma espacial, função (ou atividade, em fixos superior e inferior), estrutura (relações sociais), processo (temporalidade histórica) e totalidade (modos de produção relacionados à estrutura), aspectos desse sistema geográfico-espacial. Em seus termos: “O espaço reproduz a totalidade através das transformações determinadas pela sociedade, modos de produção, distribuição da população, entre outras necessidades, desempenham funções evolutivas na formação econômica e social, influencia na sua construção e também é influenciado nas demais estruturas de modo que torna um componente fundamental da totalidade social e de seus movimentos” (Santos, 1979, p. 10). Para o autor, portanto, o espaço é criado por meio da utilização do território pelo povo. e inter-relacionados; verdadeiros campos de força que Vem Vai, o caminho dos mortos apresentou, e que tiveram continuidade em Raptada Pelo Raio (2009), adaptação de Pedro Cesarino em parceria com a Cia. Livre, para o mito indígena Kaná Kawã, do povo Marubo da Amazônia ocidental, e em Raptada Pelo Raio 2.0 (2011) e Cia. Livre Canta Kaná Kawã (2014), duas releituras da montagem de 2009.

Xapirí Xapiripê, Lá Onde Dançávamos sobre espelhos (2014), espetáculo coreográfico criado em parceria com a Cia. 8 Nova Dança sobre o xamanismo Yanomami, intensificou a experiência da corporeidade no espaço entre, traduzido como o lugar de passagem, de morte, ou de troca de pele. Ainda que não sejam enfocados neste artigo, vale ressaltar a problematização desse trânsito em Morte e dependência na Terra do Pau Brasil (2019), teatro documental em site-specific, realizado no Museu da Cidade de São Paulo (Museu do Ipiranga), sobre os ameríndios e a emergência de narrativas históricas não oficias; que preparou a livre-adaptação de Os Horácios e Os Curiácios, de Brecht, nomeada Os Um e os Outros (2019), onde está questionada a harmonia entre os dois territórios, com a acentuação dos conflitos de poder em torno do direito dos povos originários à terra. Esses espetáculos exemplificam não apenas o estabelecimento do recorte temático sobre o ameríndio, mas a resultante da pesquisa do grupo relativa à busca por uma linguagem cênica epicizante, em relação ao material das cosmologias ameríndias.

Sobre a tendência epicizante, essa se baseia numa apropriação singular da Cia. Livre do teatro épico brechtiano a partir de sua tradução brasileira. As bases dessa investigação residem na releitura do encenador e teórico alemão pelo teatro de grupo brasileiro a partir dos anos 1960, mais especificamente, nos exemplos do Teatro de Arena4 4 Fundado em 1953, em São Paulo, o Arena afirmou-se como grupo experimental e de orientação esquerdizante, em busca de um teatro sobre o Brasil e sobre o povo brasileiro. Esta foi a seara que a montagem de Eles não usam black-tie (1958) consagrou, ao lado dos Seminários de Dramaturgia. O Teatro de Arena encerra suas atividades em 1972, em tempos de grande repressão política, após o Golpe Civil-Militar de 1964, mas mantém-se como referência para um teatro preocupado com a realidade nacional; sendo berço de artistas (Augusto Boal, Zé Renato, Fernando Peixoto, Dina Sfat, Dulce Muniz, Paulo José, Myrian Muniz e Vianinha, entre outros) e práticas cênicas importantes. e do Teatro Oficina5 5 O Teatro Oficina Uzyna-Uzona foi criado em 1958, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (em São Paulo), pelo encenador José Celso Martinez Corrêa, ao lado de outros artistas, entre eles, Renato Borghi, Carlos Queiroz Telles, Amir Haddad, Moracy do Val e Jairo Arco e Flexa. De início, suas montagens exploram o veio aberto pelo teatro de Arena para, a partir de O rei da vela (peça de Oswald de Andrade estreada pelo grupo em 1967), consolidar sua visão do contexto nacional, praticando uma fusão singular da atuação stanislavskiana com os pressupostos políticos e sociais de Brecht, a tradição do teatro musicado brasileiro e a atitude contracultural, no viés tropicalista. Irá extrair de Artaud as propostas de uma corporalidade libertária e agressiva, assim como do teatro ritual, em estreia conexão com a plateia; que se desdobrou em mais de uma dezena de espetáculos, até hoje. Ver em Patriota (2003). , influenciais na produção cênica do coletivo. São operadores dessa mistura o emprego da narrativa e da música, promovendo o rompimento do fluxo dramático; a constituição de uma dramaturgia colaborativa descontínua em termos do gênero; a relação direta com o(a) espectador(a); o deslizamento entre personagens individualizados e intervenções corais; e a mutação de pontos de vista determinando flutuações nos modos de enunciação dos atores e atrizes. Por fim, cabe destacar a preocupação em criar um teatro que interfira no campo social, discutindo hierarquias e desigualdades.

Tais explorações poéticas, como se quer analisar aqui, ganham outra dimensão, se examinadas pela lente das constâncias e inconstâncias entre antropologia e artes cênicas, entrelaçamento que na Cia. Livre merece a nomeação de cena perspectivista. As sucessivas aproximações da Cia. Livre à interação entre a criação teatral e a cultura e realidade dos povos originários do Brasil foram constituindo as dimensões dessa cena. Primeiro, foi necessário desnaturalizar acepções sobre o espaço dos próprios artistas da Cia. Livre, qual seja, o asfalto, ou os limites físicos da metrópole e sua gente (onde os artistas do grupo se incluem), além de seu mundo imaginário singular - saberes, símbolos e estereótipos da experiência citadina, diretamente vivida, observada e reapresentada na cena pelos componentes do coletivo teatral. Segundo Agier (2011)AGIER, Michel. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. Tradução de Graças Índias Cordeiro. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011., ainda que seja difícil definir a grande cidade e suas consequentes formas de sociabilidade, é possível conhecê-la com base em seus moradores, seus movimentos específicos, seus lugares de interação e seus modelos de representação. Há que se considerar ainda a situação latino-americana contemporânea, ao mesmo tempo colada aos modelos europeus e avessa a eles.

O contato com o mato, por sua vez, concentrou uma outra matéria de observação, análise e interpretação (Agier, 2011AGIER, Michel. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. Tradução de Graças Índias Cordeiro. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011.). Esse contexto, que não pode ser chamado de regional, visto que atravessa regiões diferentes do país, diferencia-se substancialmente dos processos urbanos, configurando um manancial que desafia e tensiona as fronteiras do chamado mundo global. Assim, o olhar do grupo precisou ser orientado a um universo pouco conhecido mesmo para os brasileiros, que é o espaço da floresta, suas sociedades, seus habitantes (humanos e não humanos - animais, plantas e encantados) e as formas de pensar e agir que praticam.

Efetuou-se, enfim, uma observação cruzada, entre a aldeia e o fluxo instável da metrópole, enriquecida pela perspectiva das culturas nativas. Esse deslocamento da Cia. Livre entre o asfalto e o mato, que atravessa os territórios etnográficos tradicionais (ainda que rebata os campos da antropologia e da etnologia), veio provocar mudanças no fazer teatral do grupo. A partir do desafio de compreender as populações não urbanas e, por fim, as comunidades que Descola denominou por animistas - em que o autor conclui ser “[...] arbitrário dizer que as categorias da prática social [tenham] uma antecedência lógica sobre as que regiam as relações com os não humanos” (Campos; Daher, 2013CAMPOS, Raquel; DAHER, Andrea. A antropologia da natureza de Philippe Descola. Topoi, Rio de Janeiro, v. 14, n. 27, p. 495-517, dez. 2013. Available at: <http://www.scielo.br/pdf/topoi/v14n27/1518-3319-topoi-14-27-00495.pdf>. Accessed on: 03 jul. 2020.
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, p. 498) -, entraram em quadro questões em torno da separação entre natureza e cultura e da ontologia do humano (em suas práticas sociais). Pode-se dizer que os destaques dos processos criativos da Cia. Livre para a polifonia da pessoa humana e o pensamento canibal, num prisma que contrasta com a abordagem hegemônica do sujeito iluminista, fomentou a revisão de proposições fundadoras do fenômeno teatral, segundo a cultura teatral em que o grupo se formou, entre eles, os princípios de drama, ficção, mimese e representação.

Mais próxima da produção teatral dos anos 1980 do que das formas teatrais preocupadas com a contestação e o engajamento político anteriores, a Cia. Livre reconhecia-se como herdeira das investigações do Teatro Oficina, que conjugavam a pauta marxista, a revolução de costumes, as influências dos mestres reformadores do teatro moderno e a procura por uma linguagem cênica nacional, inspirada no teatro de revista e na comédia. Foi apenas na construção de Arena Conta Danton (2004), espetáculo encenado na sede do Teatro de Arena, na Rua Dr. Teodoro Baima, que o grupo se voltou para o exame mais aprofundado de Brecht, encontrando em sua práxis suporte para reler A morte de Danton, de Georg Büchner. Os temas da Revolução Francesa e das consequências históricas da luta do proletariado, organizados na forma em farrapos proposta por Büchner, em associação à necessidade de reconhecer-se como sujeito histórico, levou a Cia. Livre ao encontro com a geração do Arena, observando criticamente suas inquietações estéticas e políticas. Cibele Forjaz (2005, p. 188-190)FORJAZ, Cibele. Arena conta Danton. Sala Preta, São Paulo, n. 5, p. 187-196, 2005. Available at: <http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57277/60259>. Accessed on: 27 ago. 2020.
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explica:

Dar voz ao grito do jovem revolucionário desencantado em pleno Teatro de Arena me pareceu um desafio coerente. [...] A inspiração foi o Sistema Coringa desenvolvido por Augusto Boal e pelo grupo Teatro de Arena em espetáculos como ‘Arena Conta Zumbi’ e ‘Arena Conta Tiradentes’. Cabe aqui notar que [...] a partir do conceito do Sistema Coringa, inventamos a nossa própria maneira de contar essa história aqui e agora, incorporando ao nosso trabalho, de uma forma empírica, as várias influências que o compõem.

Embora com o emprego de materiais diversos, foi a partir dos interesses derivados do processo de ocupação do Teatro de Arena e do texto de Georg Büchner que o grupo se encaminhou na direção dos assuntos e modos de fazer que estruturaram a pesquisa seguinte, intitulada Mitos de Morte e Renascimento no Brasil, que confluiu na criação de Vem Vai e Raptada Pelo Raio. De certo modo, as preocupações de Büchner sobre o ímpeto revolucionário, a responsabilidade histórica e o terrorismo de estado ressoam na nova proposta, em que a passagem entre vida e morte é a transformação definitiva. A exposição em fragmentos, que caracteriza a obra do dramaturgo alemão, com cenas que soam quase independentes, já incitavam a uma forma dramática menos coesa; característica que foi reforçada em Vem Vai, escrita por meio de um processo em colaboração em que se ouvem diferentes vozes, atualizando os mitos em razão do tempo presente da sociedade brasileira. No lugar do diálogo, ganha destaque a figura do narrador, provocando a plateia a refletir sobre as cenas e conduzindo as elipses temporais e espaciais; formato que será radicalizado nas três versões que a Cia. realizou do mito Kaná Kawã, as peças Raptada Pelo Raio, Raptada Pelo Raio 2.0 e Cia. Livre Canta Kawã.

Além disso, é possível divisar em Vem Vai, assim como aconteceu em Arena conta Danton, o retorno de certas contradições experimentadas pelo extinto grupo Teatro de Arena, no intento de trazer para a cena o povo brasileiro, face ao reconhecimento da complexidade em definir esse caráter coletivo, sem apagar as diferenças que o compõe e as disputas que forjaram essa identidade. Em adição, certas conquistas formais da montagem de 2004, inspiradas fortemente na teatralidade do Arena, mostraram-se caminhos férteis para enfrentar o desafio de dar matéria cênica às cosmologias amazônicas. Entre elas, a Cia. Livre abraçou o formato de teatro-jogo, de convenção explícita (baseado, por exemplo, na montagem ao vivo das personagens pelos atores e atrizes de suas); a atuação não psicológica; a formação coral (com personagens interpretadas por diferentes atores e atrizes) e a convivência franca entre texto e música, inflexionando uma cena não ilusionista.

Porém, não seria exagerado afirmar que a resultante da escolha em Vem Vai pelo universo ameríndio deve ser explicada mais em termos de rompimentos, do que de continuidades. Antes disso, a Cia. Livre já operava o emprego da narrativa e do canto (promovendo a quebra do fluxo dramático); a constituição de uma cena impura quanto aos gêneros dramáticos; a relação direta com o(a) espectador(a); o deslizamento entre personagens individualizadas e intervenções corais e o modo de criação colaborativo (fruto de contínuas refações). Entretanto, a sugestão de uma perspectiva relacional para categorias tradicionais foi uma guinada profunda, provocada pelos mitos ameríndios e pelo pensamento dos povos da floresta. Portanto, no centro da transformação da cena da Cia. Livre, que vimos concretizar-se em 2007, não localizamos apenas relações inusitadas entre os elementos da encenação, mas uma mudança mais central.

Como meio para a linguagem, a cena ocidental pressupõe um sujeito unitário, descrito pelos contornos do enquadramento (no enunciado geral sobre o drama) e da unidade psíquica (em termos da personagem ficcional), em correspondência ao contrato ficcional entre cena e público, que rege o fenômeno teatral. Para o ator e para a atriz, este contrato é um jogo, segundo Schechner (2002)SCHECHNER, Richard. Part II: acting as incorporation. In: ZARRILLI, Phillip (ed.). Acting (re) considered: a theoretical and practical guide. Oxon; New York: Routledge, 2002. p. 334-343., que desliza entre a consciência do não ser e o desafio de parecer-se, causando a admiração dos espectadores frente à maestria na percepção da habilidade de ser-não-sendo dos e das intérpretes. Na prática cênica, isso tem determinado um cultivo ao subjetivismo, assim como a valorização do vitalismo (ou seja, do impulso vital que rege a presença das criaturas postas em cena). Essa valorização, cabe lembrar, não corresponde historicamente a uma ênfase na experiência da subjetividade em termos mais integrados, mas reproduz certos impasses presentes na bipartição ocidental entre corpo e mente, assim como na visão instrumentalizada da corporeidade (Ludorf; Vilaça, 2010LUDORF, Sílvia Maria Agatti; VILAÇA, Murilo Mariano. O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 26, n. 2, p. 419-420, fev. 2010. Available at: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2010000200021&lng=en&nrm=isso>. Accessed on: 28 out. 2020.
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). O espaço-tempo do teatro ocidental hegemônico, por sua vez, é um recorte que salta do tempo-espaço ordinário, ainda que o espelhe, inserindo-se no território da cultura e da arte.

O contato com os mitos de morte e renascimento dos povos ameríndios indicou que esse sujeito da cena deveria ser desnaturalizado e, por que não, destronado. A leitura dos mitos ameríndios, ainda no processo de ensaios, foi acompanhada pelo antropólogo, tradutor e escritor Pedro de Niemeyer Cesarino, que também apresentou à Cia. Livre estudos sobre a cosmovisão amazônica denominados por perspectivismo ameríndio, nas teorias formuladas por Eduardo Viveiros de Castro (1996VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 115-144, 1996. Available at: <https://www.scielo.br/pdf/mana/v2n2/v2n2a05.pdf>. Accessed on: 03 jul. 2020.
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; 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem (e outros ensaios de antropologia). São Paulo: Cosac Naify, 2002.; 2015)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para um antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu Livros; N-1 Edições, 2015., Philippe Descola (1992)DESCOLA, Philippe. Societies of nature and the nature of society. In: KUPER, Adam (org.). Conceptualizing society. Londres: Routledge, 1992. P. 107-126., Manuela Carneiro da Cunha (1998CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Pontos de vista sobre a floresta amazônica: xamanismo e tradução. Mana, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 7-22, abr. 1998. Available at: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131998000100001&lng=en&nrm=isso>. Accessed on: 05 jan. 2020.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
; 2019)CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. A contribuição da pesquisa sobre povos indígenas. Campos, Curitiba, v. 20, n. 2, p. 26-36, jul. dez. 2019. Available at: <https://revistas.ufpr.br/campos/article/view/71858/pdf>. Accessed on: 05 jan. 2020.
https://revistas.ufpr.br/campos/article/...
e Tânia Stolze Lima (1996)LIMA, Tânia Stolze. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 21-47, 1996. Available at: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131996000200002&lng=pt&tlng=pt>. Accessed on: 05 jan. 2020.
https://www.scielo.br/scielo.php?script=...
, entre outros pesquisadores. A experimentação dessa visão específica sobre o sujeito na cena teatral, portanto, dependeu de prospecções em áreas não restritas às artes do espetáculo, em especial, a antropologia brasileira contemporânea, a partir de estudos etnográficos amazônicos, sobre os Juruna (ou Yudjá), os Yanomami e os Araweté6 6 Importante mencionar que estes são apenas três grupos étnicos, entre os duzentos e cinquenta e seis povos indígenas ainda remanescentes no Brasil (Povos... 2019), distribuídos em terras indígenas demarcadas e não demarcadas, com cerca de cento e cinquenta línguas diferentes, somando 324.834 indivíduos habitantes de cidades e 572.083 residentes em áreas rurais (Povos..., 2019). .

Mesmo que sejam povos diversos entre si e, além disso, diferentes hoje do que foram as populações habitantes destas terras antes da chegada dos colonizadores portugueses, eles possuem entre si laços histórico-culturais (discursos e práticas simbólicas) e sociopolíticos. Também, compartilham da mesma realidade de resistência e luta por seus direitos originários, diante de um acelerado processo de extermínio (crescente desde o século XVI). Nesse processo, os remanescentes dos povos originários no Brasil enfrentam ainda um apagamento histórico, que se associa a uma série de violências de caráter físico e simbólico, permeadas por equívocos de tradução e incompreensão de suas realidades.

Esse é o exemplo dos Araweté (povo tupi-guarani, habitando na região do Pará), estudado por Viveiros de Castro, que estão em contato com os não indígenas desde a década de 1970, quando receberam essa denominação de um funcionário da Fundação Nacional do Índio (Funai) que conheceu o grupo nas primeiras expedições de atração. O nome lhes foi designado, ainda que eles se autodenominem bïdé (que quer dizer nós, os seres humanos); termo que se refere, entretanto, não apenas a essa comunidade (os Araweté, em oposição aos não Araweté), mas também aos indígenas de outras etnias (em oposição aos não indígenas), ou mesmo a todos os humanos (em oposição a outras coletividades não humanas, animais e encantados).

A autodenominação de fundamento relacional e móvel é indício marcante dessa maneira de pensar específica e distinta da noção ocidental europeia, que o conceito de perspectivismo contribui para elucidar. Grosso modo, o perspectivismo trata-se de uma “[...] concepção indígena segundo a qual o mundo é povoado de outros sujeitos, agentes ou pessoas, além dos seres humanos, e que veem a realidade diferentemente dos seres humanos” (Sztutman, 2008SZTUTMAN, Renato (org.). Eduardo Viveiros de Castro: série encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2008., p. 32). Todos esses sujeitos são entes dotados de um ponto de vista, ou de uma perspectiva própria, o que determina a coexistência de diversas concepções, igualmente reais. Esse princípio indica que todos os entes se veem e são vistos como iguais, variando apenas a roupagem, ou o envelope que lhes dá o contorno.

Essa distinção foi uma das primeiras a provocar discussões acaloradas no grupo, motivando a realização de workshops de devoração, em que as conceituações estudadas em coletivo eram trabalhadas em pequenas cenas, propostas individualmente ou em duplas e trios, pelos atores e atrizes. O espaço da Casa Livre, sede do grupo, foi ocupado por propostas em que um ator ou uma atriz transformavam-se em vários, munindo-se de máscaras, bonecos, espelhos, projeções e toda sorte de elementos que desafiassem a unidade do corpo e desdobrassem a figura. As portas da sala e as colunas de sustentação do espaço viraram divisórias, organizando as cenas em quadros paralelos (Figura 1), fazendo conviver diferentes planos em um só, separados pelos recursos físicos do espaço de ensaio. Na criação da cenografia, alguns desses recursos foram replicados, de tão fundamentais que se tornaram.

Figura 1
Planos paralelos e a ação da narradora. Raquel Anastásia, Lúcia Romano, José Eduardo Domingues, Henrique Guimarães, Eda Nagayama e Edgar Castro, em Vem Vai, o Caminho dos Mortos, registro de apresentação, SESC Paulista, 2007.

Foto de Roberto Setton.


Ainda segundo o perspectivismo, se todos são gente, mas vemos alguns como onça, ou paca, ou humano, é porque a posição de quem vê determina as definições sobre o outro e as interações com ele. Como as relações são regidas pela predação e pelas relações de parentesco, essas interações variam entre ser presa, ser predador, ou ser congênere (ou seja, nem presa, nem predador, mas parente, passível de contatos mais intensos e trocas de afinidade/casamento). Assim, um humano vê uma onça como predador e uma paca como presa; por sua vez, a onça vê o humano como presa (portanto, como uma paca) e, se atacado, será ele a paca e o humano onça; a paca vê o humano como onça e se vê como humano. O estatuto dos viventes é, portanto, relacional, e não baseado numa essência (humana ou animal), constituída a partir de uma substância contínua (a humanidade ou a animalidade), ou de atributos específicos (a racionalidade e a habilidade da linguagem, no caso humano, por exemplo, em contraposição à irracionalidade animal). Há uma humanidade de fundo e, portanto, todos os entes possuem uma soberania humana.

Mais uma vez, as cenas criadas provocavam a noção de personagem focal e o corolário da personagem encerrada, distinta em termos da sua unidade psicológica. Máscaras, objetos animados, adereços e a expressividade do corpo buscavam explicitar a passagem entre os estatutos do humano e do não humano, enquanto que o narrador foi conduzido a ocupar lugar privilegiado, por ser capaz de representar esquematicamente a todas as personagens, sem nunca precisar ser “[...] integralmente cada” uma (Rosenfeld, 1982ROSENFELD, Anatol. O mito e o herói no moderno teatro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1982., p. 13). Todos os recursos estilísticos foram evocados, retomando o princípio de montagem comum a Brecht e outros teatralistas; cabendo ao narrador preservar algum sentido de unidade.

Viveiros de Castro irá definir que as forma de conviver e negociar entre os seres na sociedade amazônica é o devir-outro (Viveiros de Castro, 2011VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O medo dos outros. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 54, n. 2, p. 885-917, 2011. Available at: <http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/39650/43146>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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); ou seja, que há nessas sociedades uma necessidade do diferente, do OUTRO, para a perpetuação do EU, uma vez que o EU inexiste como um atributo isolado e a priori. Essa necessidade, ainda que inexorável, não é apaziguadora, mas arriscada, pois este OUTRO não é sempre um congênere, e mesmo quando parecer sê-lo, pode revelar um aspecto encoberto e portar-se como um predador. Todos os entes, dessa maneira, partilham de um ser canibal, variando quem será a comida e quem irá devorar, a cada interação. Segundo Viveiros de Castro (2011, p. 894)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O medo dos outros. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 54, n. 2, p. 885-917, 2011. Available at: <http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/39650/43146>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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Tal incerteza não incide apenas sobre os ‘objetos’ da percepção, e não é um problema de julgamento atributivo; menos ainda é um problema de ‘classificação’. A incerteza inclui o sujeito, entenda-se, inclui a condição de sujeito do actante humano que se expõe ao contato com a alteridade radical dessas gentes outras, que - como toda gente - reivindicam para si um ponto de vista soberano. Aproximamo-nos aqui de uma das origens do medo metafísico indígena.

Essa precariedade da condição humana (visto existir no mundo o que Viveiros denomina por uma imanência humana, ou uma humanidade de fundo), sempre prestes a tornar-se outra coisa, atinge também a nós, humanos. Se podemos a qualquer ponto nos tornarmos comida, o mundo vira palco da imanência do inimigo, destituindo nossa presença da centralidade que justificaria o etnocentrismo ocidental. Em seu lugar, vigora um cosmocentrismo ímpar, em que atuam não uma multiplicidade de culturas (uma de cada ente, segundo seu ponto de vista) e uma só natureza/mundo, mas uma só cultura, em que o ponto de vista é que é múltiplo. Natureza e cultura, por assim dizer, deixam de ser estatutos díspares, para se tornarem uma só coisa, tecida pela dinâmica da mutabilidade.

As relações de canibalismo (e o perigo constante) estendem-se também para as interações entre humanos e espíritos; sejam eles deuses ou mortos. Desse modo, o encontro com um ente de aparência humana pode ser também o encontro com um animal ou com um espírito - não há garantias possíveis, visto que tudo é aparência - como diz Viveiros de Castro (2011, p. 896)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O medo dos outros. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 54, n. 2, p. 885-917, 2011. Available at: <http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/39650/43146>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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, “[...] aparição [...]”, ou uma perspectiva que engana. Ainda assim, as coisas não podem ser duas ao mesmo tempo - há uma separação ontológica que limita, por exemplo, que sejamos humanos e animais, ou vivos e mortos. Quando acontece uma junção de estados, isso é perigoso e pode gerar adoecimento e até a morte. Alguns comportamentos, por esse motivo, não podem ser sustentados, a não ser que já se tenha passado para o outro lado: por exemplo, comer carne crua, sangrando, coloca o humano no limite de tornar-se jaguar. Também como duas espécies diferentes não podem ser gente-humana ao mesmo tempo, todo cuidado é pouco, em especial nas interações entre pessoas (uma das gentes pode, subitamente, esquecer disso e deixar de sê-lo...). Algumas mitologias (como as dos Ye’kuana, da Venezuela) distinguem os entes a partir dos olhos que possuem, que enxergam diversamente - daí nunca sabermos ao certo o que o OUTRO vê.

A metamorfose como condição de existência irá colocar para escanteio também a definição de identidade ocidental, constituídas pelo termo EU (indivisível, regido por uma psiquê de contornos contínuos e uno) em lugar protagônico, do qual deriva o não EU (o OUTRO EU, de classe inferior que o EU MESMO), num modelo de relação que se dá pela semelhança. Para o pensamento ameríndio, o modelo de relação é processado a partir da alteridade, ou seja, somente quando se percebe a não alteridade, é que se procede a identidade; conforme resume Viveiros de Castro (apud A Filosofia... 2005A FILOSOFIA Canibal. [Entrevista com Eduardo Viveiros de Castro]. Folha de S. Paulo, São Paulo, 21 ago. 2005. Available at: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2108200509.htm>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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, documento eletrônico):

Se o nosso modelo da relação é a semelhança, ao ponto de que a diferença é apenas uma falta de semelhança - a identidade é primeira -, a verdadeira relação para nós, então, é a relação do sujeito consigo mesmo. Meu irmão já é um ‘eu-mesmo’ de segunda classe, um ‘outro eu’. Dali para frente, estendem-se relações de terceira classe, ou de quarta, e assim vai, até se chegar às trevas exteriores da inimizade e da não relacionalidade. Inversamente, no mundo indígena, a identidade é que é uma ausência de diferença, e não a diferença uma ausência de identidade. A primeira relação é a relação de diferença. Se para nós o cunhado é um irmão de segunda classe (‘brother-in-law’, ‘beau-frère’), no mundo indígena o irmão é que seria um cunhado domesticado, um cunhado de quem se esvaziou a diferença. A fraternidade é o fim da relacionalidade, não sua origem.

Esses princípios também atingiram a comunicação estética do grupo, destituindo o entendimento de conflito aristotélico, concebido a partir do acirramento das circunstâncias em torno da situação dramática, diante do choque de vontades entre as personagens e do inesperado dos acontecimentos. Não apenas em Vem Vai, como também nas versões seguidas da Cia. Livre para o mito Kaná Kawã, as personagens enfrentam a posicionalidade como um elemento a mais a nortear o desdobramento das situações, tão ou mais importante do que a disputa entre as funções protagonista-antagonista, que costuma movimentar a trama no modelo dramático tradicional. Soma-se a isso o perigo que determinadas interações podem significar, e que não são decorrentes de um traço psíquico ou motivação da personagem, como na cena aristotélica, mas da própria regra relacional que o pensamento ameríndio sugere (como exemplifica a experiência de formação de uma identidade múltipla entre os guerreiros, vencido e vencedor, após a morte e devoração ritual do primeiro), em configuração experimentada em Vem Vai (Figura 2). Em ambos os casos, a cena sustenta-se no jogo entre os atores e atrizes, estratégia que reduz a eloquência do EU, transferindo a fonte da ação para o OUTRO (ou, para a interação).

Figura 2
Acoplamento para criação da figura do guerreiro, após o canibalismo. Cris Amêndola e Edgar Castro, em Vem Vai, o Caminho dos Mortos, registro de apresentação, SESC Paulista 2007. Foto de Roberto Setton.

Tanto a presença do sujeito ameríndio como personagem teatral, quanto a absorção do seu modo de pensar como chave para a compreensão e emprego das narrativas e outros materiais de origem não ocidental nos processos criativos do grupo ampliaram as possibilidades do real, rompendo com uma realidade única e estável, determinante para o sentido ocidental de representação. Se a coexistência de diferentes planos de entendimento sobre os encontros e situações de interação dificulta que um único real seja fixado (ao passo que os demais seriam projeções ou imaginações irreais), todas as aparências passam a ser, por conseguinte, enganosas.

Soma-se a essa multiplicidade de planos do real o que Viveiros denomina polifonia da pessoa humana: cada ente não possui apenas um eu, mas uma variedade de eus coexistentes, reunidos sob uma mesma pele. Enquanto no ocidente (como na visão de Descartes) uma pessoa é uma resultante da união entre corpo e alma, numa “[...] continuidade material e uma descontinuidade do interior dos seres” (Nobre, 2016NOBRE, Felipe Nunes. Ontologia ameríndia e as relações entre xamãs e animais nas terras baixas da América do Sul. Tessituras, Pelotas, v. 4, n. 1, p. 280-305, jan./jun. 2016. Available at: <https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/tessituras/article/view/8982>. Accessed on: 27 ago. 2020.
https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/ind...
, p. 285), na ontologia ameríndia a pessoa é múltipla, sem que sua alma principal (ou verdadeira) possa controlar as demais. Para os Kaxinawá, por exemplo, há duas almas (uma tradução aproximada para o termo yuxin), a alma verdadeira (do corpo) e a alma do olho. O povo Marubo, por sua vez, possui mais de quatro homúnculos dentro de um indivíduo, mas nenhum desses duplos seria redutível a uma só alma. Segundo Werlang (2006, p. 172)WERLANG, Guilherme. De corpo e alma. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 49, n. 1, 2006. Available at: <http://www.scielo.br/pdf/ra/v49n1/v49n1a06.pdf>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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Segundo os Marubo, para cada yora - uma autodenominação sem especificidade étnica -, existe uma série de ‘almas’ autoconstitutivas. Para cada ‘corpo’, existem várias almas que, em sua integração, definem o conceito de humanidade implícito em yora. Para cada yora humano, existe a ‘alma do lado esquerdo’ - mechmirí vaká, que é um potencial yochi~ -, um ‘duplo-animal’ e agente causador de doenças, e existe, é claro, a ‘alma do lado direito’ - mekiri vaká, um potencial ‘espírito’ ou yové.

Para garantir a integridade física de uma pessoa, entretanto, esses diversos eus devem permanecer reunidos, sendo que apenas os xamãs podem administrar a saída de um de seus yuxin em viagens temporárias, sem padecer de imediato. O xamã, em virtude de ser um mediador entre mundos, pode viver a polifonia humana como um recurso para suas atividades de cura, sendo o xamanismo uma prática religiosa que se estabelece por meio desse trânsito das pessoas do xamã em diferentes mundos. Essas viagens de um de seus eus podem ser propiciadas, na situação ritual, pela ingestão ou não de substâncias (em geral, o tabaco, ou o cauim). Também podem ser empregados músicas, cantos, instrumentos e movimentos para facilitar o trânsito/transe. O xamã pode ainda receber outros corpos, seja de entes animais, humanos ou cósmicos, construindo redes de relações através desses passeios e dos cantos que entoa. Ainda que uma pessoa comum não possa ir e vir entre mundos, toda a humanidade vive numa liminaridade constante, numa transmutabilidade que a aproxima dessa perspectiva exclusiva do xamã. Nos termos de Werlang (2006, p. 176)WERLANG, Guilherme. De corpo e alma. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 49, n. 1, 2006. Available at: <http://www.scielo.br/pdf/ra/v49n1/v49n1a06.pdf>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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, “De fato, não apenas os xamãs - mas todos aqueles que participam ativamente dos festivais - adotam perspectivas corporais diferentes, isto é, eles transformam seus corpos atuando sobre eles e fazendo-os atuar, incorporando antes disposições afetivas que almas diferentes”.

A experimentação da função xamânica pelo grupo esbarrava na postura adotada para a investigação dos atores e atrizes, que não incluía o emprego de substâncias, nem a imitação do transe. Então, se as transformações encorpadas pelo xamã ou pelos partícipes dos festivais, comentadas por Werlang (2006)WERLANG, Guilherme. De corpo e alma. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 49, n. 1, 2006. Available at: <http://www.scielo.br/pdf/ra/v49n1/v49n1a06.pdf>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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, não podiam ser vivenciadas em cena por uma atriz e um ator não indígena e não iniciado, a narrativa, de certa maneira, permitiu evocar os passeios temporais e espaciais que o xamã que canta o mito presentifica. Assim, ao invés de explicitarem um movimento psicológico interior por meio do texto, ou mesmo de emitirem bem, para os atores e atrizes cumpria anexar certas qualidades ao ato de dizer, entre elas, a de despertar o poder mágico das palavras, produzindo realidades. Ao mesmo tempo, foi preciso abrir mão do compromisso com a autoralidade individual (comum no campo das artes ocidentais), visto que o xamã é muito mais um rádio, que escuta o canto dos outros e os repete, do que de um autor ou protagonista dos cantos que profere. Ao longo das tentativas, conferimos que não havia sempre uma pedagogia específica nos cantos dos pajés; pois que, muitas vezes, eles nem podem ser compreendidos pelas pessoas que escutam, a não ser por outros pajés. Nesse caso, o trabalho com os textos-canto aceitou que sua apreensão se daria na porosidade de “[...] seus elementos internos vagos [...]”, como quer Quilici (2015, p. 122)QUILICI, Cassiano Sydow. O ator-performer e as poéticas da transformação de si. São Paulo: Annablume, 2015..

Empreender um uso xamânico do texto, que se define por dizer sem evocar o processo de substituição do qual depende a palavra representada (Okamoto; Antunes, 2013OKAMOTO, Eduardo; ANTUNES, Antônio Salvador Beatriz. Perspectivas do dois: atuação cênica no espetáculo Recusa, da Cia teatro Balagan. Sala Preta, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 139-153, jun. 2013. Available at: <https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57537>. Accessed on: 27 ago. 2020.
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), foi um desafio constante para a Cia. Livre, a fim de dar carne às narrativas e suas imagens. Ao invés de representar uma ausência, essa palavra busca criar coisas e mundos no aqui/agora; o que motivou a investigação do poder evocatório que as palavras aportam, amparando-se nas explorações da forma dos mitos, em suas repetições, sonoridades, onomatopéias e ritmos. O trato do texto, dessa maneira, extrapolou os limites da fala dramática realista, incorporando elementos da lírica e da enunciação épica (que permite fusões e separações entre narrador e narrado). Essa duplicação da voz entre narrador/narração, materializou-se não apenas na figura do xamã, que em Vem Vai era uma das personagens, mas espraiou-se pelas diferentes peças, conduzindo a possibilidade de transformação constante do ator/atriz-narrador(a) na pele de diversas personagens humanas (em Vem Vai, o indígena, o boyzinho rico de Brasília, a mãe do jovem morto etc.), não humanas (em Raptada Pelo Raio e em Kaná Kawã, os pássaros do caminho, o Povo-Raio etc.) e supra-humanas (em Xapiri Xapiripê, os espíritos que dançam).

Nesse caminho, mais do que a continuidade das figuras, os atores e atrizes da Cia. Livre procuravam um alto grau de mutabilidade, de “metamorfoseamento” (Okamoto; Antunes, 2013OKAMOTO, Eduardo; ANTUNES, Antônio Salvador Beatriz. Perspectivas do dois: atuação cênica no espetáculo Recusa, da Cia teatro Balagan. Sala Preta, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 139-153, jun. 2013. Available at: <https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57537>. Accessed on: 27 ago. 2020.
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, p. 147). Essa mudança constante de invólucro de que trata o perspectivismo remete a algo próximo de um jogo performativo, em que a figura se desenha intensamente, sem a acumulação extensiva permitida pela causalidade do drama. Segundo Jean-Frederic Chevalier (apud Elizéon-Hubert, 2016ELIZÉON-HUBERT, Isabelle. Apresentar em vez de representar: uma alternativa para a questão da encarnação no palco? Revista Cena, Porto Alegre, n. 20, p. 1-6, 2016. Available at: <https://seer.ufrgs.br/cena/article/viewFile/63311/38985>. Accessed on: 27 ago. 2020.
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, p. 113-114):

[...] para romper com a representação, quebrar a narrativa, impedir a ilustração, soltar a figura: ficar com o fato. Isto sugere um ato de apresentar que libera as presenças sob as representações e dirige-se para a descoberta da disparidade e da singularidade, rompendo com a representação do ‘mesmo’ e do esperado.

No jogo constituído pelos elementos da cena e pela interpretação, a preponderância da ação foi sendo eclipsada pelo estado de reação e pela permeabilidade ao instável. As estratégias adotadas pela Cia. Livre foram se diversificando ao longo dos anos, a partir da lida com as fontes não ocidentais ameríndias: anunciar-se diretamente ao público, escancarando o jogo mimético (quando, por exemplo, atores e atrizes se chamam pelo primeiro nome; ou quando vestem seus figurinos diante do público; ou quando se autodenominam de povo das Paulistas, em alusão à avenida Paulista, endereço onde a peça estava sendo apresentada); imitar grotescamente os estereótipos correntes sobre a personagem, expondo o senso comum e a opinião social que incidem sobre ela (quando, por exemplo, atores e atrizes colocam em suas faces pedaços de fita crepe e fazem barulho, anunciando-se como falsos indígenas: o grotesco da falsa representação denuncia a precariedade dos recursos de representação e a impossibilidade de imitação); e explorar a coexistência de duas qualidades de estado, ou mesmo de duas figuras diversas atuadas ao mesmo tempo pelo ator e pela atriz, demonstrando que a mutabilidade é a regra, e não a constância de uma entidade una (quando, por exemplo o ator e a atriz atravessam um objeto do espaço e, com uma parte do corpo para cada lado do objeto, comporta-se como onça com as pernas, e como pessoa, com a cabeça e a voz). Na versão cênica para as noções de instabilidade e paralelismo ameríndias, os acoplamentos corporais e máscaras (faciais e corporais) permitiram sugerir a multiplicação da unidade corporal e o deslizamento de seus contornos (Figura 3 e Figura 4).

Figura 3
Recursos para a multiplicação da figura: duplos do Homem-Raio. Paulo Azevedo, em Raptada pelo Raio, registro de apresentação, Casa Livre, 2009.

Foto de Cacá Bernardes.


Figura 4
Interação entre duplos, com uso da máscara. Edgar Castro e Lúcia Romano, em Raptada pelo Raio 2.0, registro de apresentação, Casa Livre, 2010.

Foto de Cacá Bernardes.


Outro recurso de que a Cia. Livre lançou mão foi construir personagens-duplos, que impedem a completude do processo de individuação da personagem tradicional e, em consequência, a sua identificação com a plateia. Quando dois atores, caracterizados de modo idêntico, realizam ações espelhados em lugares diferentes do palco, é ativada a ideia de duplo que, nas culturas Paiter Suruí, Bororo, Krahô, Marubo e Guarani, apresenta-se quando um ente é definido a partir de seu concorrente. Nos termos de Jon Christopher Crocker (apud Carneiro da Cunha, 2009CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009., p. 58), o duplo mostra que “[...] tanto a identidade social quanto a identidade física emergem através de processos especulares que a constroem, processos que fazem com que um Bororo nunca seja tanto si mesmo do que quando é ‘representado’ por um totalmente outro”.

Porém, foi na parceria com a Cia. 8 Nova Dança (grupo coordenado pela coreógrafa Lu Favoreto), no espetáculo Xapiri Xapiripê, lá onde a gente dançava sobre espelhos (2014), que a Cia. Livre experienciou modos de abordagem que ampliaram a adoção da chave performática para solucionar cenicamente o trato com a escatologia ameríndia. Xapiri Xapiripê evocava as imagens-espírito dos Xapiri, entidades elementais etéreas que se comunicam com os xamãs Yanomami nos rituais de yãkõana (substância alteradora da consciência), explorando num espetáculo híbrido entre teatro e dança contemporânea, essas presenças e seu dinamismo. O recurso ao performático era ativado por meio do foco na ação corporal e na experiência encarnada no momento mesmo da cena, em detrimento da palavra dialogada e das interações de cunho psicológico. O encontro “[...] com o público não mediado pela ficção [...]” (Quilici, 2015QUILICI, Cassiano Sydow. O ator-performer e as poéticas da transformação de si. São Paulo: Annablume, 2015., p. 103) passou a indicar outra finalidade para o espetáculo, que seria, em instância ideal, a transformação de ambos, performers e espectadores (Figura 5).

Figura 5
Devoração e transformação dos corpos. Lúcia Romano e Raoni Garcia, em Xapiri Xapiripê, lá onde a gente dançava sobre espelhos, registro de apresentação, SESC Pinheiros, 2014.

Foto de Adriano Milan.


O atrito entre vocabulários, que na direção de Lu Favoreto e Cibele Forjaz foram constituídos por meio do improviso e da experimentação da estrutura óssea e dos sistemas corpóreos (com mobilidade e exploração espacial características da dança contemporânea), em colisão com a visualidade e recursos gestuais e narrativos do teatro físico visual (também exigente em termos de disponibilidade física e de energia), gerava um cansaço extremo, acumulado no tempo estendido de duas horas de espetáculo. O esforço e a intensidade mudavam o corpo e a qualidade da presença, permitindo sobrepujar as barreiras do sentido, tão coladas às textualidades (dos textos, que completavam coreografias, assim como do próprio movimento dançado). Os canais de percepção ativados favoreciam o acesso às visões material e subjetiva do transe ritual, em sua densidade sensorial, sem necessitar da imitação.

Em continuidade aos interesses de investigação dos espetáculos anteriores, Xapiri Xapiripê também abordou a desestabilizacão da condição de sujeito do humano diante do contato com a alteridade radical das cosmologias ameríndias. No confronto com a multiplicidade de gentes, a perda do ponto de vista soberano do sujeito centrado foi tematizada especialmente nos momentos em que o desfazer da face motivava a construção coreográfica7 7 O tema foi retomado em 2020 por Lu Favoreto e Cibele Forjaz, no experimento Desfazer da fuça, desfazer da face. Disponível em: <https://www.facebook.com/ciaoitonovadanca/videos/268166624428677/>. Acesso em: 18 jun. 2020. . A máscara facial, fundamental para o teatro dramático, relacionado à identidade e à expressão do caráter e das emoções, precisava ser destruída para que um outro ente tivesse nascimento. A face desfeita, reagindo à manifestação obrigatória da subjetividade pelo rosto, onde se inscrevem os signos da frequência e do reconhecimento psicológico e social (Deleuze, 1996DELEUZE, Gilles. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia: volume 3. Tradução de Aurélio Guerra Neto et alii. São Paulo: Ed. 34, 1996.), tornou-se um caminho para o apagamento da persona, permitindo sua dissolução em devir-animal e devir-espírito (Figura 6 e Figura 7).

Figura 6
Desfazer da face. Lu Favoreto, em Xapiri Xapiripê, lá onde a gente dançava sobre espelhos, registro de apresentação, SESC Pinheiros, 2014.

Foto de Adriano Milan.


Figura 7
Povo pássaro, sem face humana. Lúcia Romano, em Xapiri Xapiripê, lá onde a gente dançava sobre espelhos, registro de apresentação, SESC Pinheiros, 2014.

Foto de Adriano Milan.


Os integrantes do grupo Teatro Balagan, outro coletivo paulistano envolvido com as fontes ameríndias8 8 As duas companhias paulistanas encaminharam-se para o perspectivismo ameríndio por vias e motivos diversos. A Cia. Livre dedicava-se ao tema da identidade nacional, num projeto de investigação cênica sobre as ideias de brasilidade e miscigenação embasadas no mito das três raças (o branco, o negro e o indígena). O tema somou-se ao interesse da Cia. Livre pelo teatro épico, de derivação brechtiana, e as formas de teatro ritual. A Cia. Balagan (dirigida por Maria Thais Lima Santos), por sua vez, vinha de investigações sobre a forma narrativa e as relações entre o humano e o inumano, que deram ensejo aos espetáculos Recusa (2011) e nos processos de estudo de Os Gigantes da Montanha, de Pirandello, e de montagem de Cabras - Cabeças que voam, cabeças que rolam (2016). , relatam que a ida de membros do grupo para uma vivência junto aos Paiter-Suruí, no Pará, conduziu-os a uma valorização interessante de outra ideia de experiência, espelhada nas dinâmicas entre caça e caçador e na devoração como um modo de existir e contracenar (Thais, 2016THAIS, Maria. Espreitar e encenar: recusa, um caminho do desconhecido para o desconhecido. In: SMALL, Daniele Avila; OLIVEIRA, Dinah de (org.). 3º Encontro Questão de Crítica. 1. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016. P. 66-81. Disponível: <http://www3.eca.usp.br/sites/default/files/form/biblioteca/acervo/producao-academica/002776034.pdf>. Accessed on: 05 jan. 2020.
http://www3.eca.usp.br/sites/default/fil...
). Assim como na Balagan, para a Cia Livre o pensamento canibal tornou-se mais uma estratégia para se fazer o corpo e experienciar a alteridade (Figura 6). A atuação - entendida pela Balagan como uma caçada e pela Cia Livre como uma espécie de jogo de mutabilidade e de duplicação (Figura 8) - abandonou estratégias cênicas tradicionalmente relacionadas à representação, também encontrando respaldo na valorização de um sentido de performatividade fundado na programática dos teatros do real, na recusa ao ilusionismo. Nos termos de Okamoto e Antunes (2013, p. 144-145)OKAMOTO, Eduardo; ANTUNES, Antônio Salvador Beatriz. Perspectivas do dois: atuação cênica no espetáculo Recusa, da Cia teatro Balagan. Sala Preta, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 139-153, jun. 2013. Available at: <https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57537>. Accessed on: 27 ago. 2020.
https://www.revistas.usp.br/salapreta/ar...
, atores do espetáculo Recusa (2011), as determinações da direção sobre a não atuação indicaram:

1) fundar a linguagem atoral na experiência plena das coisas; 2) permanecer ‘em relação’, especialmente com as forças da natureza (ou mais amplamente falando, das coisas todas: matérias, seres, devires); 3) encontrar um uso da palavra que, mais que representar a realidade (colocando-se, portanto, como um equivalente a ela, no ‘lugar de’), evoque as suas forças, as suas agências; 4) encontrar ações que, mais que sintetizar e definir circunstâncias, situações e conflitos (como se vê notadamente numa tradição do teatro dramático), apenas indicie-os, apontado mundos, instigando a imaginação do espectador e, portanto, incluindo a sua própria perspectiva no jogo.

Figura 8
Multiplicação das figuras, com o emprego de bonecos, máscara corporal e projeção. Lúcia Romano e Edgar Castro, em Cia. Livre Canta Kaná Kawã, registro de apresentação, Casa Livre, 2014.

Foto de Cacá Bernardes.


Em Recusa, o butô foi a técnica empregada para a disponibilização do corpo em sua materialidade e, ao mesmo tempo, para apresentá-lo em síntese com os elementos da natureza (pertinente ao questionamento do etnocentrismo ocidental pelo cosmocentrismo ameríndio) (Okamoto; Antunes, 2013OKAMOTO, Eduardo; ANTUNES, Antônio Salvador Beatriz. Perspectivas do dois: atuação cênica no espetáculo Recusa, da Cia teatro Balagan. Sala Preta, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 139-153, jun. 2013. Available at: <https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57537>. Accessed on: 27 ago. 2020.
https://www.revistas.usp.br/salapreta/ar...
). Em Xapirí Xapiripê, a construção coral e a exploração das possibilidades do movimento dançado, a partir da fundamentação do Método da Coordenação Motora, de Piret e Béziers (1992)PIRET, Suzanne; BÉZIERS, Marie-Madeleine. A Coordenação Motora: aspecto mecânico da organização psicomotora do homem. São Paulo: Summus, 1992., provocou o mergulho no corpo psicofísico, num estado perceptivo desperto e alargado, convidando à dissolução de uma individualidade mais estável, em favor das mutações constantes entre humano-animal-vegetal-encantado. A vivência, relatada pelos integrantes da Balagan, foi também realizada pela Cia. Livre, em visita de campo junto aos Guarani M’Bya, relação de convivência que já vinha sendo nutrida anteriormente. Entretanto, mesmo o campo não propôs a retirada de exemplos ou a síntese imediata de elementos para a composição de partituras ou qualquer outro tipo de estrutura fixa, mas apenas a permanência em estado de convivência e percepção. Foi depois, em sala de ensaio e no próprio espetáculo, que o corpo foi vetorizado para gerar os atravessamentos e torná-los tangíveis.

Pedro Cesarino define a transformação dos mitos em material cênico como um processo de tradução que, para a Cia. Livre, tem envolvido uma atitude de devoração antropofágica. Nesse aspecto, no entanto, o teatro e a antropologia afastam-se e complementam-se, preservando seus diferentes métodos e finalidades. Enquanto a preocupação dos atores, atrizes e demais integrantes da Cia. Livre em seus espetáculos têm sido a de conhecer as fontes originais para degluti-las e, assim, constituir outras maneira de expressar o mundo e a si mesmos; a preocupação de Cesarino junto ao coletivo foi a de problematizar as “equivocidades” (Cesarino, 2018CESARINO, Pedro de Niemeyer. Virtualidade e equivocidade do ser nos xamanismos ameríndios. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 69, p. 267-288, abr. 2018. Available at: <https://www.scielo.br/pdf/rieb/n69/2316-901X-rieb-69-00267.pdf>. Accessed on: 05 jan. 2020.
https://www.scielo.br/pdf/rieb/n69/2316-...
, p. 276), tradutórias inerentes ao projeto. Como define Viveiros de Castro (2004)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation. Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, San Antonio, v. 2, n. 1, p. 1-20, 2004. Available at: <https://www.unil.ch/stslab/files/live/sites/stslab/files/Actu/Perspectival%20Anthropology%20and%20the%20Method%20of%20Controlled%20Equivocati.pdf>. Accessed on: 03 jul. 2020.
https://www.unil.ch/stslab/files/live/si...
, no artigo Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation, a diversidade de línguas e culturas, sustentando quadros conceituais muito diversos, impede que haja uma tradução satisfatória dos discursos. Contudo, pode-se estabelecer relações entre eles, expondo os recursos de invenção que sua própria língua e tradição oferecem (assim como fez Walter Benjamin, ao denominar a tradução como prática de estranhamento) e sem preocupações totalizantes, de dar conta do acontecimento como um todo.

Ciente disso, a Cia. Livre sustém o entendimento da antropofagia na qualidade de estratégia de aproximação e estranhamento, estágios necessários para a geração de um terceiro nível, a partir da contaminação com outras referências e a transformação dessa mistura em algo mais. Na compreensão do coletivo, a construção de paralelos poéticos com a cosmovisão ameríndia alia-se à práxis epicizante de Brecht, indo ao encontro da posição do grupo sobre o sentido revolucionário da cena, em contato com o meio social. A epicização, além disso, garante o espaço de intersecção entre a linguagem e a cultura, ao passo que preserva o lugar do outro, sem solapá-lo. Cibele Forjaz (apud Small, 2008SMALL, Daniele Avila. VemVai - O caminho dos Mortos: conversa com a Cia. Livre. In: Questão de Crítica, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, mar. 2008. Available at: <http://www.questaodecritica.com.br/2008/03/conversa-com-a-cia-livre/>. Accessed on: 27 ago. 2020.
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) resume:

Porque era importante pra gente essa idéia de ‘a Cia. conta’, que já vinha do Danton. Porque é muito delicado você falar sobre um tema desses. O que você vai dizer? Você vai falar ‘por’? Não dá, né? Ou eu vou dizer o que eu entendi ‘de’? Então o máximo, como artistas, que a gente pode dizer é: comemos esse material. E o que a gente tá trazendo aqui é um material nosso, no qual a gente recria aquilo que a gente entendeu daquilo. A vida que a gente tá mudando é a nossa. A gente não pode falar por ninguém.

O partido da epicização, aprofundado na montagem Vem vai e nos espetáculos seguintes, foi, portanto, fundamental para o esclarecimento dos pontos de vista dos artistas, explicitamente enunciados na cena, e a atenção ao lugar de fala (Ribeiro, 2017RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? São Paulo: Letramento, 2017.) dos povos originários. A cultura ameríndia, dessa forma, não entrou nas relações de usura da contemporaneidade, sendo respeitada como uma visão de mundo não ocidental e consagrada em seu valor singular, sem a cooptação da voz ocidentalizada do grupo. Ao mesmo tempo, o épico serviu para dar maior visibilidade ao pensamento ameríndio, explicitando ainda a razão de sua invisibilidade, qual seja, a pauta de dominação das formas culturais e sociais europeias hegemônicas. O épico ajudou a apresentar essa disputa de discursos; assim como a falar do outro, sem falar pelo outro. Cesare (2008)CESARE, Dinah. Morte e vida das hipóteses. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia. Questão de Crítica, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, mar. 2008. Available at: <http://www.questaodecritica.com.br/2008/03/morte-e-vida-das-hipoteses-subsistencia-conhecimento-antropofagia/>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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comenta os processo do grupo em Vem Vai:

A encenação canibaliza, pelo princípio ficcionalizante, nossos modos convencionais de lidar com as diferenças culturais. A narrativa performatizada da morte tensiona a relação do indivíduo com seus duplos para além de nossa perspectiva habitual e quebra o nosso olhar sobre a cultura indígena (Cesare, 2008CESARE, Dinah. Morte e vida das hipóteses. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia. Questão de Crítica, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, mar. 2008. Available at: <http://www.questaodecritica.com.br/2008/03/morte-e-vida-das-hipoteses-subsistencia-conhecimento-antropofagia/>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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, documento eletrônico).

A crítica de Cesare (2008)CESARE, Dinah. Morte e vida das hipóteses. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia. Questão de Crítica, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, mar. 2008. Available at: <http://www.questaodecritica.com.br/2008/03/morte-e-vida-das-hipoteses-subsistencia-conhecimento-antropofagia/>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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reconhece o quanto a experiência anterior da Cia. Livre na ocupação no Teatro de Arena levou seus integrantes a relacionarem o tratamento do tema da formação nacional, que era de seu interesse, às experiências do Arena com o nacional-popular e às experimentações posteriores do coletivo dirigido por Cibele Forjaz em torno das narrativas dos povos das florestas. Cesare (2008)CESARE, Dinah. Morte e vida das hipóteses. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia. Questão de Crítica, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, mar. 2008. Available at: <http://www.questaodecritica.com.br/2008/03/morte-e-vida-das-hipoteses-subsistencia-conhecimento-antropofagia/>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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lembra que a remontagem dos clássicos foi percurso útil para o Arena situar-se no aqui-agora de sua realidade; enquanto a Cia. Livre radicalizou esse objetivo, indo na direção do que está para além do cânone ocidental - fontes orais, pertencentes às epistemologias não ocidentais. A eficácia na interpretação crítica da realidade do grupo, desse modo, abarcou também a destituição da narrativa hegemônica, que confere à realidade nacional e ao problema do real uma versão determinada. O desmascaramento efetuado, então, pôde encampar versões excluídas, que reclamam uma realidade mais múltipla, pluriversal, ao sugerir uma visão relacional para categorias tradicionais de pessoa, natureza, cultura e sobrenatureza a partir dos conceitos de perspectiva (ou ponto de vista) e antropofagia.

Quando a Cia. Livre enuncia subjetividades e modos de entendimento categorizadas como dissidentes, mas que são de fato rivais, também opera “[...] deslocamentos epistêmicos e estéticos” que levam à “[...] emergência de obras decoloniais9 9 Ballestrin (2013) adianta também que a reflexão decolonial não abriga a especificidade da colonização portuguesa, pois tem foco central na América hispânica. Ainda assim, cita os brasileiros Darcy Ribeiro, Milton Santos e Gustavo Lins Ribeiro como expoentes desse pensamento no Brasil. , ou seja, de obras que colocam em questão a modernidade em sua versão monológica e monotópica” (Bisiaux, 2018BISIAUX, Lîlâ. Deslocamento Epistêmico e Estético do Teatro Decolonial. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 8, n. 4, p. 644-664, out./dez. 2018. Available at: <http://www.scielo.br/pdf/rbep/2018nahead/pt_2237-2660-rbep-2237-266078793.pdf>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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, p. 645). A opção decolonial encontra na cosmovisão ameríndia categorias de pensamento que não relegam a racionalidade e a habilidade da linguagem apenas ao caso humano, articulando uma soberania humana extensiva a todos os entes. Desmancha-se o que Mignolo (2017, p. 10)MIGNOLO, Walter D. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Tradução de Marco Oliveira. Revista Brasileira de Estudos Sociais, São Paulo, v. 32, n. 94, p. 1-18, 2017. Available at: <https://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v32n94/0102-6909-rbcsoc-3294022017.pdf>. Accessed on: 05 out. 2020.
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nomeia por “[...] nós histórico-estruturais [...]”, tidos como universais, mas que são forjados na “[...] diferença colonial e imperial” (Mignolo, 2017MIGNOLO, Walter D. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Tradução de Marco Oliveira. Revista Brasileira de Estudos Sociais, São Paulo, v. 32, n. 94, p. 1-18, 2017. Available at: <https://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v32n94/0102-6909-rbcsoc-3294022017.pdf>. Accessed on: 05 out. 2020.
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, p. 10). O teatro dominante tem colaborado para propagar a ideia de natureza como algo fora dos seres humanos, e cabe a ele também descolonizar esse conhecimento.

Cabe destacar ainda que, ao lado dos espetáculos, a companhia desenvolve outras atividades, que exploram em ações públicas diversas, aspectos relevantes para a perspectiva decolonial que apresenta. Por meio desse conjunto de atividades, a Cia. Livre vem exercitando transformações na linguagem teatral e no estatuto do sujeito ocidental evocado pelo teatro, cujo fundamento apresenta-se no palco em entendimentos específicos sobre o drama, a personagem dramática e a representação atoral. Contrapõe-se, assim, aos termos normativos da colonialidade do ser, típica da retórica moderna, e provoca aberturas na direção de outras formas de viver.

  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • 1
    Secretaria Municipal da Cultura da Cidade de São Paulo. Conpresp registra 22 teatros independentes como patrimônio imaterial. Disponível em: <https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/noticias/?p=16276>. Acesso em: 03 jun. 2019.
  • 2
    Vem vai o caminho dos mortos relê os mitos ameríndios, numa espécie de travessia por 5 espaços, correspondentes a cinco movimentos (estações): A Morte simbólica; O Canibalismo guerreiro; O Canibalismo funerário; Vem Vai, O Caminho-morte e O Canibalismo celeste. A cada espaço corresponde também uma parte do corpo humano, como se o público devorasse essas partes, à maneira de um canibalismo ritual, a cada releitura de um mito. A criação de Vem vai, realizada em processo colaborativo com os atores, atrizes e equipe, teve a assinatura de Newton Moreno na dramaturgia, Cibele Forjaz na direção e a orientação teórica nos estudos de antropologia de Pedro Cesarino. Mais sobre o trabalho, em Small (2008)SMALL, Daniele Avila. VemVai - O caminho dos Mortos: conversa com a Cia. Livre. In: Questão de Crítica, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, mar. 2008. Available at: <http://www.questaodecritica.com.br/2008/03/conversa-com-a-cia-livre/>. Accessed on: 27 ago. 2020.
    http://www.questaodecritica.com.br/2008/...
    .
  • 3
    Para o geógrafo brasileiro Milton Santos, as variáveis desse sistema seriam a forma espacial, função (ou atividade, em fixos superior e inferior), estrutura (relações sociais), processo (temporalidade histórica) e totalidade (modos de produção relacionados à estrutura), aspectos desse sistema geográfico-espacial. Em seus termos: “O espaço reproduz a totalidade através das transformações determinadas pela sociedade, modos de produção, distribuição da população, entre outras necessidades, desempenham funções evolutivas na formação econômica e social, influencia na sua construção e também é influenciado nas demais estruturas de modo que torna um componente fundamental da totalidade social e de seus movimentos” (Santos, 1979SANTOS, Milton. Espaço e sociedade. Petrópolis: Vozes, 1979., p. 10). Para o autor, portanto, o espaço é criado por meio da utilização do território pelo povo.
  • 4
    Fundado em 1953, em São Paulo, o Arena afirmou-se como grupo experimental e de orientação esquerdizante, em busca de um teatro sobre o Brasil e sobre o povo brasileiro. Esta foi a seara que a montagem de Eles não usam black-tie (1958) consagrou, ao lado dos Seminários de Dramaturgia. O Teatro de Arena encerra suas atividades em 1972, em tempos de grande repressão política, após o Golpe Civil-Militar de 1964, mas mantém-se como referência para um teatro preocupado com a realidade nacional; sendo berço de artistas (Augusto Boal, Zé Renato, Fernando Peixoto, Dina Sfat, Dulce Muniz, Paulo José, Myrian Muniz e Vianinha, entre outros) e práticas cênicas importantes.
  • 5
    O Teatro Oficina Uzyna-Uzona foi criado em 1958, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (em São Paulo), pelo encenador José Celso Martinez Corrêa, ao lado de outros artistas, entre eles, Renato Borghi, Carlos Queiroz Telles, Amir Haddad, Moracy do Val e Jairo Arco e Flexa. De início, suas montagens exploram o veio aberto pelo teatro de Arena para, a partir de O rei da vela (peça de Oswald de Andrade estreada pelo grupo em 1967), consolidar sua visão do contexto nacional, praticando uma fusão singular da atuação stanislavskiana com os pressupostos políticos e sociais de Brecht, a tradição do teatro musicado brasileiro e a atitude contracultural, no viés tropicalista. Irá extrair de Artaud as propostas de uma corporalidade libertária e agressiva, assim como do teatro ritual, em estreia conexão com a plateia; que se desdobrou em mais de uma dezena de espetáculos, até hoje. Ver em Patriota (2003)PATRIOTA, Rosangela. A cena tropicalista no Teatro Oficina de São Paulo. Revista História, São Paulo, v. 22, n. 1, p. 135-163, 2003. Available at: <http://www.scielo.br/pdf/his/v22n1/v22n1a06.pdf>. Accessed on: 27 ago. 2020.
    http://www.scielo.br/pdf/his/v22n1/v22n1...
    .
  • 6
    Importante mencionar que estes são apenas três grupos étnicos, entre os duzentos e cinquenta e seis povos indígenas ainda remanescentes no Brasil (Povos... 2019POVOS INDÍGENAS DO BRASIL. Quantos são?. [site]. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2019. Available at: <https://pib.socioambiental.org/pt/Quantos_s%C3%A3o%3F>. Accessed on: 28 out. 2020.
    https://pib.socioambiental.org/pt/Quanto...
    ), distribuídos em terras indígenas demarcadas e não demarcadas, com cerca de cento e cinquenta línguas diferentes, somando 324.834 indivíduos habitantes de cidades e 572.083 residentes em áreas rurais (Povos..., 2019POVOS INDÍGENAS DO BRASIL. Quantos são?. [site]. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2019. Available at: <https://pib.socioambiental.org/pt/Quantos_s%C3%A3o%3F>. Accessed on: 28 out. 2020.
    https://pib.socioambiental.org/pt/Quanto...
    ).
  • 7
    O tema foi retomado em 2020 por Lu Favoreto e Cibele Forjaz, no experimento Desfazer da fuça, desfazer da face. Disponível em: <https://www.facebook.com/ciaoitonovadanca/videos/268166624428677/>. Acesso em: 18 jun. 2020.
  • 8
    As duas companhias paulistanas encaminharam-se para o perspectivismo ameríndio por vias e motivos diversos. A Cia. Livre dedicava-se ao tema da identidade nacional, num projeto de investigação cênica sobre as ideias de brasilidade e miscigenação embasadas no mito das três raças (o branco, o negro e o indígena). O tema somou-se ao interesse da Cia. Livre pelo teatro épico, de derivação brechtiana, e as formas de teatro ritual. A Cia. Balagan (dirigida por Maria Thais Lima Santos), por sua vez, vinha de investigações sobre a forma narrativa e as relações entre o humano e o inumano, que deram ensejo aos espetáculos Recusa (2011) e nos processos de estudo de Os Gigantes da Montanha, de Pirandello, e de montagem de Cabras - Cabeças que voam, cabeças que rolam (2016).
  • 9
    Ballestrin (2013)BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 11, p. 89-117, 2013. Available at: <https://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0103-33522013000200004&script=sci_abstract&tlng=pt>. Accessed on: 05 jan. 2020.
    https://www.scielo.br/scielo.php?pid=s01...
    adianta também que a reflexão decolonial não abriga a especificidade da colonização portuguesa, pois tem foco central na América hispânica. Ainda assim, cita os brasileiros Darcy Ribeiro, Milton Santos e Gustavo Lins Ribeiro como expoentes desse pensamento no Brasil.

References

  • A FILOSOFIA Canibal. [Entrevista com Eduardo Viveiros de Castro]. Folha de S. Paulo, São Paulo, 21 ago. 2005. Available at: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2108200509.htm>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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  • BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 11, p. 89-117, 2013. Available at: <https://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0103-33522013000200004&script=sci_abstract&tlng=pt>. Accessed on: 05 jan. 2020.
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Editado por

Editor responsável: Gilberto Icle

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    19 Mar 2020
  • Aceito
    30 Out 2020
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