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Os Entrelaçamentos do Teatro in Situ, da Ação Cultural à Ação Artística: um olhar sobre o projeto Montjoie! Saint-Denis!

The Interweaving of Theatre in Situ, from Cultural Action to Artistic Action: a look back at the project Montjoie! Saint-Denis!

Resumo:

O artigo questiona os conceitos de ação cultural e ação artística com base no projeto Montjoie! Saint-Denis!, realizado em Seine-Saint-Denis (França) pelos artistas-pesquisadores da associação artística HOC MOMENTO, entre 2017 e 2019. A partir de Olivier Neveux, procura-se mostrar como a ação cultural realizada em um território, visando uma criação in situ, está ligada à ação artística e desenvolve-se a serviço da obra e não em seu detrimento. Com isso, tenta-se desfazer alguns clichês e revelar as tendências contraditórias das políticas culturais francesas.

Palavras-chave:
Teatro in Situ; Ação Cultural; Criação Coletiva e Colaborativa; Pesquisa de Criação; HOC MOMENTO

Abstract:

The article questions the notions of cultural action and artistic action based on the Montjoie! Saint-Denis! project, carried out in Seine-Saint-Denis (France) by the researchers from HOC MOMENTO, between 2017 and 2019. From Olivier Neveux, this article describes the way in which cultural action is carried out in a territory, with a view to a creation in situ, is one with artistic action and is carried out in the service of the work rather than to its detriment. In doing so, certain stereotypes are turned around and the contradictory trends in French cultural policies are brought to light.

Keywords:
Theatre in Situ; Cultural Action; Collective and Collaborative Creation; Search for Creation; HOC MOMENTO

Résumé:

L’article questionne les notions d’action culturelle et d’action artistique en prenant appui sur le projet Montjoie! Saint-Denis!, mené en Seine-Saint-Denis (France) par les artistes chercheurs d’HOC MOMENTO, entre 2017 et 2019. À partir d’Olivier Neveux, cet article expose la manière dont l’action culturelle menée sur un territoire, en vue de la réalisation d’une création in situ, fait corps avec l’action artistique et se réalise au service de l’œuvre plutôt qu’à son détriment. Ce faisant, certains clichés sont retournés et les tendances contradictoires des politiques culturelles françaises sont mises au jour.

Mots-clés:
Théâtre in Situ; Action Culturelle; Création Collective et Collaborative; Recherche Création; HOC MOMENTO

Ao aproveitar a oportunidade de analisar uma prática de pesquisa de criação realizada em Saint-Denis desde 2017, proponho revisitar uma experiência que combina intrinsecamente a ação cultural e a ação artística e, com isso, revela certas contradições ideológicas e institucionais das políticas culturais francesas. O projeto Montjoie! Saint-Denis!1 1 HOC MOMENTO é uma associação regida pela Lei 1901, codirigida por Louise Roux e Frederico Nepomuceno (e reforçada de maneira recorrente por diversos artistas), criada em 2017 e especializada em teatro in situ. Montjoie! Saint-Denis! é um projeto de pesquisa de criação apoiado pela Maison des Sciences de l’Homme Paris Nord de 2017 a 2019 (Teatro in situ e patrimônio, a dramaturgia urbana colocada à prova, do Rio de Janeiro a Argel), pela prefeitura de Saint-Denis, pelo projeto Contrat de Ville (projeto político da cidade para o bairro de la Plaine) e associado à Universidade Paris 8. Direção: Louise Roux, Frederico Nepomuceno; cenografia: Frederico Nepomuceno, Carolina E. Santo, Pascaline Robinot; dramaturgia: Louise Roux, Geoffrey Daret, Rafik Fetmouche; figurinos: Cheyenne Actis-Grosso, Pauline Beuzebboc, Loubna Qaffou; criação de vídeos: Javier Lazo Barco, Moe Nishimura, Freila Ramos; administração: Emilie Audebert, Soline Morterol; atuação: Jackson Badandishi, Lison Bellanger, Camille Bernaudat, Thibault Brasseur, Sarah Brunet, Denzel Calle Gonzales, Hélène Canuet, Adrien Cortun, Geoffrey Daret, Pauline Delamare, Julie Demol, Elodie Faid, Julie Flusin, Rafik Fetmouche, Clara Gelot, Serge Guirchoun, Anne-Claire Ignace, Josemar Junior, Vincent Labie, Karina Lemarois, Mano Llegal, Nubia Lyn Enel, Swaggart Nganga, Augustin Mouret, Morgane Pommier, Evangélia Pruvot, Loubna Qaffou, Mathilde Ryo, Henri Sourdais, além de estudantes de graduação do departamento de Teatro da Universidade Paris 8 e dos aprendizes circenses da Academia Fratellini, para a Semana das Artes. , proposto por HOC MOMENTO após seus experimentos na estação Barra do Piraí (Roux; Nepomuceno, 2018ROUX, Louise; NEPOMUCENO, Frederico. Création partagée dans une ville laboratoire. Registres, Paris, Sorbonne Nouvelle, n. 5, p. 137-150, 2018.), tem como principal objetivo uma residência de vários anos no Espace Imaginaire, um terreno baldio de 5000 m2 cuja ocupação foi instigada pela prefeitura de Saint-Denis por meio de uma chamada para projetos, cujo edital foi ganho pela associação Mains d’Œuvres em 2016. Lugar ecológico, cultural e cidadão, o Espace Imaginaire é atualmente ocupado por cerca de 40 gestores - associações, artistas e vizinhos.

Nesse contexto, HOC MOMENTO comprometeu-se em: criar um espetáculo in situ integrando moradores, estudantes e artistas; trabalhar no desenvolvimento de uma rede local; realizar uma reflexão sobre a criação in situ a partir do desenvolvimento de novas formas estéticas inscritas no território e; promover a interação de espaços acadêmicos e artísticos, envolvendo estudantes e pesquisadores no projeto de criação. Em dois anos, várias residências foram realizadas na Universidade Paris 8 e no Espace Imaginaire, dando origem a 13 apresentações públicas. Oitenta pessoas passaram pelo projeto como participantes e cerca de 800 espectadores assistiram ao espetáculo.

Como essa experiência ainda está sendo realizada, vou me concentrar nos dois anos de residência que já ocorreram, sob o prisma das noções de ação cultural e ação artística. De fato, claramente, o projeto Montjoie! Saint-Denis! reúne um número significativo de ingredientes relacionados à ação cultural que, cozidos na mesma panela e assimilados, dão origem a uma ação artística - ou a uma obra, mas este termo será questionado. A premissa dos artistas-pesquisadores de HOC MOMENTO é de não separar as duas noções, o que revela certas incoerências nas políticas públicas na França. Mesmo que esses eixos permitam uma abertura teórica à descrição da experiência, ela permanecerá necessariamente subjetiva e incompleta, tanto em razão do meu envolvimento no projeto quanto de sua atualidade. Mas, da mesma forma como a pesquisa de criação encontra-se através do fazer, esta teorização assumirá o fato de encontrar-se através da escrita, tendo como única pretensão a de trazer seu grão de areia à construção.

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Montjoie! Saint-Denis!22 de junho de 2019. Camille Bernaudat (Catarina de Médici), Geoffrey Daret (Rei Dagoberto I), Vincent Labie e Swaggart Nganga (os operários)

A prática desenvolvida por HOC MOMENTO inscreve-se em um regime específico de identificação e pensamento artístico baseado na noção de arte site specific, que pode ser definida como uma criação inspirada no contexto e/ou no lugar em que ela está inserida. O encontro dos fundadores da associação ocorreu em 2011, durante uma oficina ministrada pelo diretor de teatro brasileiro Antônio Araújo sobre os conceitos de site specific e de processo colaborativo (Fernandes, 2016FERNANDES, Sylvia (Dir.). Antônio Araújo et le Teatro da Vertigem. Aix-Marseille: PUF, 2016.). Várias questões surgiram, as quais as residências in situ tentam responder: como a prática teatral pode afetar o contexto e como o contexto pode transformar a criação? Como um processo criativo compartilhado pode gerar uma dinâmica de reabilitação de um espaço público? Como o processo coletivo e unificador, uma vez concluído, pode ser prolongado pelo grupo, reapropriado pelos moradores? Mas, por outro lado, que tipo de estética é revelada por essa inscrição do teatro na cidade, em lugares específicos? As restrições na criação (dramaturgia textual coletiva baseada na História dos lugares, encenação baseada na dramaturgia espacial) produzem um impacto sobre a forma de escrever, de atuar? E, finalmente, como viabilizar experiências de longa duração, não reproduzíveis, baseadas no processo mais do que na obra?

Três residências foram realizadas no Espace Imaginaire, entre abril de 2018 e junho de 2019, representando um total de oito meses de ocupação do local por um grupo de cerca de vinte pessoas, presentes pelo menos nos fins de semana, e frequentemente também nos dias úteis. O projeto articula-se em torno da noção de ocupação poética. Trata-se de estar em um espaço para fazer: desenhar uma cenografia, construir elementos do cenário, ouvir o que é dito para escrever, estar lá para encontrar os transeuntes e cruzar os saberes, ensaiar, cantar, apropriar-se do espaço, atuar.

O bairro da Montjoie, no qual o Espace Imaginaire está localizado, faz parte da cidade de Saint-Denis e, mais especificamente, de La Plaine-Saint-Denis, que fica na fronteira norte de Paris e que atualmente passa por transformações profundas. Paisagem repleta de guindastes e edifícios modernos, fábricas antigas e bairros da classe trabalhadora, com uma aura de imagens negativas ligadas em particular às violentas revoltas de 2005, essa zona é uma peça-chave de importantes ambições urbanísticas. Mesmo seu passado é fascinante e ambivalente. Por um lado, descobrimos a história recente, composta de fábricas, gasômetros, espaços de armazenamento e construção da SNCF [a companhia ferroviária nacional francesa], favelas e destruição. Por outro lado, a história antiga, de reis, peregrinações, mitos e poder. Finalmente, a história presente e futura, da cidade criativa2 2 “A Rede de Cidades Criativas da UNESCO foi criada em 2004 para promover a cooperação mútua com e entre cidades que reconhecem a criatividade como um fator estratégico para o desenvolvimento urbano sustentável. As 246 cidades que formam esta rede atualmente trabalham juntas por um objetivo comum: colocar a criatividade e as indústrias culturais no centro de seus planos de desenvolvimento em nível local e cooperar de forma ativa em nível internacional” (https://fr.unesco.org/creative-cities/). Nota do tradutor: na versão em francês “Le Réseau des villes créatives de l'UNESCO (RVCU) a été créé en 2004 pour promouvoir la coopération avec et entre les villes ayant identifié la créativité comme un facteur stratégique du développement urbain durable. Les 246 villes qui forment actuellement ce réseau travaillent ensemble vers un objectif commun: placer la créativité et les industries culturelles au cœur de leur plan de développement au niveau local et coopérer activement au niveau international”. , com a revalorização do bairro, que acolhe instituições de prestígio (como o Campus Condorcet, um centro de pesquisa de última geração) e novos símbolos da época atual (o Stade de France, as Olimpíadas, os estúdios de televisão etc.).

Para entender esse bairro, usamos vários métodos: a deriva situacionista, a pesquisa dramatúrgica (Lombard-Jourdan, 1989LOMBARD-JOURDAN, Anne. Montjoie et Saint-Denis! Le centre de la Gaule aux origines de Paris et de Saint-Denis. Paris: Presses du CNRS, 1989.; 1994LOMBARD-JOURDAN, Anne. La Plaine Saint-Denis, deux mille ans d’histoire. Paris: CNRS Éditions, 1994.), as entrevistas com os habitantes e a participação em uma reunião de consulta cidadã. A prática da deriva urbana, testada com Antônio Araújo em 2011 e teorizada na década de 1950 por Guy Debord, nos permitia apreender o território de forma sensível, favorecendo o acaso, a perambulação, a intuição e a interpretação dos sinais. Além das residências, realizamos derivas-peregrinações entre a Basílica de Saint-Denis (túmulo dos reis da França) e o bairro da Montjoie, coletando textos, desenhos, objetos e impressões que guiaram a criação. A Plaine Saint-Denis parece-nos muito separada do núcleo histórico e vivo do centro da cidade, uma espécie de território desconectado, pouco habitado, construído sem conexão com o passado. No entanto, o nome do bairro, Montjoie, chamou nossa atenção. A palavra, polissêmica, é por si só um poema. Montjoie é uma pilha de pedras colocadas ao longo de um caminho; uma montjoie também é uma cruz levantada à beira da estrada entre Paris e Saint-Denis, marcando a peregrinação à Basílica na Idade Média e no Renascimento; o grito de guerra Montjoie! Saint-Denis! é conhecido por ter sido usado durante as Cruzadas e, até hoje, por monarquistas.

Alguns meses depois, em setembro de 2017, a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, anunciou a vitória de Paris para as Olimpíadas de 2024. O envolvimento de Saint-Denis no acolhimento dos atletas e torcedores e a proximidade do Stade de France nos levam a realizar entrevistas com os moradores locais sobre a vinda dos Jogos Olímpicos e a participar de um comitê de consulta aos cidadãos, organizado por representantes políticos e pelo Comitê Organizador das Olimpíadas. O encontro cidadão, mais próximo de uma reunião de comunicação do que de consulta (tempo de palavra limitado, presença de um pequeno grupo de habitantes, decisões já tomadas, questionando a eficácia da consulta), assim como as entrevistas, revelam percepções opostas sobre a vinda dos Jogos Olímpicos para Saint-Denis. Apesar da encenação promissora de projetos urbanos possibilitados pelo evento, os habitantes de Saint-Denis entrevistados continuam desconfiados, com medo de que a operação não os beneficie, mesmo que estejam cientes da oportunidade que tal investimento representa para o território3 3 Vinte entrevistas foram realizadas por estudantes de graduação do Departamento de teatro da Universidade Paris 8, com moradores de Saint-Denis. Sobre este assunto, ver também o comitê de vigilância JO 2024 Saint-Denis. Disponível em: <http://vigilancejo93.com>. .

Ao invés de nos concentrarmos apenas nas Olimpíadas ou no passado mitológico de Saint-Denis, decidimos reuni-los, para questionar o presente. Algumas perguntas surgem para a dramaturgia: quem são os santos e os mártires de hoje? Para onde vamos em peregrinação? Quais são as ferramentas de representação do poder? Existe uma relação invisível entre o simbolismo da Basílica de Saint-Denis, símbolo da monarquia francesa, e as Olimpíadas, que Paris receberá em 2024 e utiliza como justificativa para os projetos de desenvolvimento da Grande Paris? Como essas mitologias coletivas são construídas em torno do território? E como a ficção se entrelaça com a realidade para estabelecer o poder?

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Montjoie! Saint-Denis! 22 de junho de 2019. Adrien Cortun (Denis Fertangué)

O processo de criação teatral realizado pela associação HOC MOMENTO baseia-se na criação coletiva, na colaboração e na diversidade. Os participantes formam o que chamamos de comunidades efêmeras4 4 A comunidade efêmera é nomeada assim em referência, por um lado, à noção de comunidade artística apresentada por Marie-Christine Autant-Mathieu (Autant-Mathieu, 2013) e, por outro lado, à noção de coletivo efêmero proposta por Sophie Poirot-Delpech (Poirot-Delpech, 2016). O grupo de participantes é uma comunidade, pois divide valores e um local de residência do qual toma conta durante o período de ensaios. Ele reúne-se com base no voluntariado, em nome de um objetivo artístico comum. Ele não é um coletivo, pois a maioria das decisões é tomada pelo(s) diretor(es) do projeto e, também, porque essa comunidade não possui vocação a prolongar-se no tempo: ela é renovada a cada ano, não sendo tampouco equivalente a uma trupe. Ela é efêmera. Sobre essa inscrição dos grupos teatrais na efemeridade, ao contrário das comunidades dos séculos XIX-XX, ver a noção de utopia pragmática (Roux, 2016). Nota do tradutor: na versão em francês “communautés éphémères”. (Roux, 2016ROUX, Louise. L’utopie pragmatique des collectifs théâtraux des années 2000. Des collectifs éphémères. Revue Socio-anthropologie , Paris, Publications de la Sorbonne, n. 33, p. 47-59, juin 2016.), compostas por artistas profissionais, estudantes e amadores, todos trabalhando voluntariamente. O grupo participa dos diferentes eixos da criação - escrita através de improvisações, criação musical, interpretação, cenografia, figurino. Além disso, o trabalho busca estabelecer constantemente um sistema colaborativo dentro da comunidade efêmera, dando responsabilidades aos participantes com experiência em determinadas áreas (sobre as diferenças entre coletivo e colaborativo, ver Borja (2014BORJA, Marcus. Du collectif au collaboratif: parcours de l’écriture scénique plurielle entre France et Brésil. In: DOYON, Raphaëlle; FREIXE, Guy (Dir.). Les collectifs dans les arts vivants depuis 1980. Marseille: L’Entretemps, 2014. , p. 179)). Assim, surgem subgrupos estruturados em torno dos diferentes campos da criação. Durante os dois anos de trabalho neste projeto, a comunidade efêmera reconfigurou-se quatro vezes. Em cada residência, um novo grupo foi formado em torno de um núcleo estável. Iniciado no contexto institucional da graduação em teatro da Universidade Paris 8, à medida que avançava, o projeto recebeu moradores de Saint-Denis, estudantes estagiários, amadores e artistas5 5 A primeira residência (de janeiro a março de 2018) fazia parte do programa da graduação em teatro da Universidade Paris 8. Os diretores da associação HOC MOMENTO organizaram dois cursos conjuntos para o segundo e o terceiro anos da graduação, durante um semestre, sobre a criação. Sessenta estudantes, reunidos para o projeto, participaram na primeira versão, apresentada durante a Semana das Artes, em março de 2018. Essa apresentação foi avaliada e fez parte do percurso universitário clássico. A segunda residência (de abril a junho de 2018), no Espace Imaginaire, reunia um núcleo fixo de estudantes dos cursos (cerca de quinze), três estudantes estagiários (os estudantes do terceiro ano da graduação devem efetuar um estágio para validar sua formação) e alguns moradores ou artistas voluntários (seis). A terceira residência (de setembro a outubro de 2018) reunia mais ou menos o mesmo grupo, com alguns estudantes e moradores a menos (ao todo, o grupo contava com 12 participantes, dos quais, 2 moradores) e um artista brasileiro que havia trabalhado com a HOC MOMENTO no Brasil. Para a quarta residência (de abril a junho de 2019), o grupo ganhou nova configuração, pois alguns estudantes mudaram de ênfase de curso ou não quiseram mais continuar no projeto. O grupo contava com 8 estudantes de Paris 8 (dos quais, 2 haviam participado em todas as residências, outros apenas na primeira), 1 morador (que acompanhou toda a trajetória de Montjoie! Saint-Denis!), 2 estudantes do curso de Ciências políticas [Sciences-po] de Paris, 8 artistas voluntários (dos quais, 1 havia seguido o projeto inteiro). Juntaram-se a nós, no contexto de seus estágios de graduação na Paris 8, uma figurinista e uma administradora. Para os estudantes envolvidos, apenas a primeira sessão foi avaliada. As outras foram, às vezes, validadas como estágios, mas frequentemente realizadas com base em voluntariado. As três residências, realizadas no Espace Imaginaire, foram feitas no contexto de uma ação associativa e de pesquisa (com apoio da Maison des Sciences de l’Homme), sem vínculo com a universidade. . É possível observar a que ponto os saberes dos participantes orientam a criação, sempre renovada. Uma cena inventada a partir de um conhecimento específico (cuspir fogo, comunicar em linguagem de sinais, tocar um instrumento musical) não pode ser repetida na próxima residência se a pessoa que detinha o conhecimento não estiver mais lá. Embora retome uma estrutura comum, cada versão do espetáculo, apresentada no fim de uma residência, é singular. A combinação da heterogeneidade dos grupos e do trabalho de campo forma a matéria-prima da criação teatral e é através da abundância dessas diferenças que o processo de criação toma forma, deixando a todos um espaço de expressão.

Em torno desse núcleo gravita um conjunto de participantes e colaboradores pontuais que ajudam a construir a criação com suas contribuições particulares. Em primeiro lugar estão os habitantes, cogestores do Espace Imaginaire que compartilham seus saberes: construções (de cantina móvel, porta cenográfica, carroça puxada por bicicleta etc.), coordenação do momento festivo (fazer uma fogueira para um momento de convivialidade após a representação, preparação de pizzas, churrasco), participação na cenografia. Esta última, evolutiva e monumental, construída de forma quase permanente no local habitado por todos, possibilita um investimento pontual, concreto e gratificante para aqueles que não desejam ou não podem se envolver na comunidade efêmera. Essa forma de engajamento foi desenvolvida para a criação de lanternas utilizadas na quarta versão do espetáculo: oficinas foram montadas com a associação Les Poussières e envolveram moradores, grupos de crianças e jovens adolescentes. O processo envolve, de maneira concreta, associações da região que colaboram para a dramaturgia (associação Mémoire vivante de la Plaine), para a cenografia (Déchets d’art; Les Poussières), para a comunicação e divulgação das chamadas à participação (Maison de quartier; Pont commun), ou para a preparação de refeições durante as apresentações (Marmite du Sénégal). Assim, por meio dos encontros com os atores associativos, com os artistas e com as forças presentes no território, a criação é tecida, alimentando-se pelo contexto e por suas restrições.

O próprio local da residência e das representações é híbrido: o Espace Imaginaire acolhe oficinas de reparação de bicicletas e de construção, uma colmeia, uma estufa, um quiosque solidário, um salão de cabeleireiro, um forno de pão etc. Essa dimensão influencia a criação e o que ela produz. A ação realizada requer uma definição de cultura que vá além do campo artístico. É nesse sentido que ela encontra a noção de ação cultural, relacionada, na França, à construção da identidade e que, desde a implementação da lei NOTRe sobre Direitos culturais, reúne oficialmente as artes, o esporte, o turismo etc., com vista ao desenvolvimento de públicos (que, em princípio, não frequentam espaços culturais) e ao desenvolvimento do território (com prioridade às zonas desfavorecidas, nas chamadas políticas urbanas no ambiente urbano e Cultura-agricultura no ambiente rural)6 6 Adotados desde 2015 pela lei NOTRe, os direitos culturais, que visam possibilitar a todos a liberdade de viver sua identidade cultural, são concebidos como “o conjunto das referências culturais através das quais uma pessoa, individual ou coletivamente, identifica-se, constitui-se, comunica e pretende ser reconhecida em sua dignidade”, segundo a declaração de Friburgo sobre os direitos culturais de 2007. Segundo o artigo 28A da lei NOTRe: “A responsabilidade em matéria cultural é exercida de forma conjunta pelas coletividades territoriais [cidades e regiões] e pelo Estado, respeitando os direitos culturais enunciados na Convenção sobre a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais, de 20 de outubro de 2005”. Nota do tradutor: na versão em francês “politiques de la ville”, “Culture-agriculture”, “l’ensemble des références culturelles par lesquelles une personne, seule ou en commun, se définit, se constitue, communique et entend être reconnue dans sa dignité” e “La responsabilité en matière culturelle est exercée conjointement par les collectivités territoriales et l’État dans le respect des droits culturels énoncés par la Convention sur la protection et la promotion de la diversité des expressions culturelles du 20 octobre 2005”. . O espetáculo foi programado duas vezes como parte do Croisière sur la Plaine, um evento de um dia organizado por Mélanie Gaillard, presidente do Espace Imaginaire, e que se propõe a percorrer o bairro compartilhando uma refeição, oficinas de teatro, desfiles, espetáculos apresentados em diferentes lugares, espaços culturais ou ruas do bairro. Assim, Montjoie! Saint-Denis! se insere em um processo mais amplo de ativação do espaço público. Incluído no espaço de cena, o Espace Imaginaire torna-se o protagonista da obra teatral como encenação urbana. Para os moradores, os transeuntes casuais e os trabalhadores, o tecido urbano é percebido como criativo, lúdico e evolutivo. As vivências artísticas propostas por HOC MOMENTO buscam ultrapassar o instante do espetáculo e fazer com que a cidade seja tomada por uma nova vida.

Trata-se de restabelecer uma memória comum e perpetuar o interesse que os jovens, os moradores, os estudantes e os artistas, demonstram pelo seu bairro, convidando-os a participar em sua história. Através da vivência do Espace Imaginaire construída em comum, eles inventam sua própria maneira de ocupar o espaço e constroem juntos sua memória coletiva. Assim, a longo prazo, trata-se de trabalhar uma integração humana do bairro.

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Montjoie! Saint-Denis! 22 de junho de 2019. Geoffrey Daret (Dagoberto), Rafik Fetmouche (Luís XIV), Camille Bernaudat (Catarina de Médici) e Evangelia Pruvot (Maria Antonieta)

Essa abordagem, mesmo que ela inclua certos ingredientes da ação cultural, não basta por si mesma. Evidentemente, tentamos influenciar o contexto, mas também deixamos essas práticas mudarem nossa maneira de criar a nossa estética. O objetivo dessas residências é claro: fazer um teatro ambicioso, que não abandona nenhuma de suas exigências artísticas em razão da ação cultural. Esse detalhe é importante, dada a proliferação de ações culturais na França desde a modificação da Lei NOTRe em 2015 e, ainda mais, desde o plano La culture près de chez vous [Cultura perto de sua casa] adotado no início de 20187 7 Este plano, segundo a ministra Françoise Nyssen, coloca em prática os direitos culturais, favorecendo a ampliação da ação cultural nos territórios e buscando aproximar a economia social e solidária. Ele possui uma dotação de 6,5 milhões de euros, e prevê um aumento do crédito até 2022. . De maneira geral, observa-se uma clara mudança na política cultural francesa, desde os anos 2000. A partir dos anos 1980, no período em que Jack Lang foi ministro da Cultura, o teatro subvencionado com verba pública tinha por missões financiar a pesquisa, a criação e a inovação, assim como compensar a margem de erro inerente ao teatro de pesquisa, entendendo que a criação artística era uma exceção na economia global. Na era do neoliberalismo, a utilidade do teatro que tem o reconhecimento de Emmanuel Macron pode ser resumida, segundo Olivier Neveux, em três aspectos. Primeiro, o entretenimento, regido pelas leis do mercado e eventualmente apoiado pelo Estado, que busca um retorno de seu investimento através de contrapartidas precisas. Em segundo lugar, a produção de valores, em grande parte financiada por subsídios públicos e focada em grandes nomes, que, como as grandes marcas permitem “inventar uma nova gramática da influência internacional; da qual a cultura faz parte” (Macron apud Neveux, 2019, p. 61)8 8 Nota do tradutor: na versão em francês “d’inventer une nouvelle grammaire de l’influence internationale; et la culture en fait partie”. . Em terceiro lugar, o teatro cria laços, promove o estar junto e permite “dar moral (é bom para o moral e moraliza), [...] [como a] antecâmara simpática de uma educação nacional descreditada” (Neveux, 2019, p. 61)9 9 Nota do tradutor: na versão em francês “faire la morale (donner le moral et moraliser), […] [telle l’]antichambre sympathique d’une éducation nationale déconsidérée”. . No ensaio Contre le théâtre politique, o pesquisador aponta a contradição ideológica de uma classe política que está gradualmente desmantelando os serviços públicos, ao mesmo tempo que valoriza a ação cultural, que serve de curativo ilusório para as zonas desfavorecidas10 10 Aliás, é interessante observar que certas chamadas para projetos da Direção Regional de Assuntos Culturais [Direction Régionale des Affaires Culturelles - DRAC] são dirigidos a bairros ou zonas prioritárias, como se a cultura pudesse remediar a falta de recursos destinados à educação pública, à polícia ou à habitação... Neveux enfatiza a filiação dessa política com o Partido Trabalhista britânico, e cita Claire Bishop ao descrever os anos 1990, quando “[...] o interesse pela cultura se justificava com a ideia de que ela criava a aparência de inclusão social, mesmo que, paralelamente, o governo continuasse a enfraquecer as instituições que garantiam sua missão - a educação e a saúde. Daí a contradição da arte participativa, que responde às expectativas dos artistas em razão de sua independência em relação ao mercado, ao mesmo tempo que exerce uma função Potemkin para os governos que os financiam” (Neveux, 2019, p. 62). Nota do tradutor: na versão em francês “[...] l’intérêt pour la culture se justifiait de l’idée qu’elle créait l’apparence de l’inclusion sociale, même si le gouvernement continuait en même temps à éroder les institutions qui en assurent la mission - l’éducation et la santé. D’où la contradiction propre à l’art participatif, qui répond aux attentes des artistes en raison de son indépendance à l’égard du marché tout en exerçant une fonction Potemkine pour les gouvernements qui les financent”. . A consequência dessa política cultural seria o desaparecimento do teatro de arte e pesquisa e a generalização do teatro instrumental.

O artista de teatro deve de certa forma expiar a sua arte, potencialmente complexa, egocêntrica e onerosa demais, bem como fornecer provas da sua contribuição ao estar juntos. Ele vai atenuar, ou tentará atenuar, os erros políticos; ele vai suavizar as divisões sociais. Que os criadores, mais do que as obras, promovam a criação de vínculos. Que eles se identifiquem um pouco mais com assistentes sociais - que os políticos se esforçam para tornar precários e escassos. A história aqui é irônica. Ela se repete como uma piada de mau gosto. Pois os assistentes sociais foram, entre outras coisas, muito desprezados e desconsiderados pelas comunidades da arte e da cultura (Neveux, 2019NEVEUX, Olivier. Contre le Théâtre Politique. Paris: La Fabrique éditions, 2019., p. 47-48)11 11 Nota do tradutor: na versão em francês “L’artiste de théâtre doit en quelque sorte expier son art, potentiellement trop complexe, égocentrique et dispendieux, ainsi qu’apporter la preuve de sa contribution au vivre-ensemble. Il palliera, ou tentera de pallier, les échecs politiques; il adoucira les fractures sociales. Que les créateurs, plutôt que les œuvres, créent du lien. Qu’ils s’identifient un peu plus aux travailleurs sociaux - que les politiques s’échinent à précariser et à rarifier. L’histoire ici est ironique. Elle se rejoue telle une farce cruelle. Car les travailleurs sociaux ont été, entre autres, largement méprisés et déconsidérés par le milieu de l’art et de la culture”. .

E, claro, não podemos ignorar o interesse das autoridades públicas em financiar de maneira precária espaços autogeridos como o Espace Imaginaire ou projetos como Montjoie! Saint-Denis!, que promovem o estar juntos, a integração social e a visibilidade do bairro a baixos custos e através de voluntariado. Também é interessante notar que Montjoie! Saint-Denis! não se encaixa nos contextos definidos pela Direção Regional de Assuntos Culturais (DRAC - Direction Régionale des Affaires Culturelles) para receber financiamentos, como o Apoio ao projeto [Aide au projet] (antigo Apoio à criação [Aide à la Création]) sujeito a condições precisas, como a venda prévia do espetáculo e contribuições de coprodutores (ou seja, teatros com financiamentos públicos). Assim, para os programas de apoio, a criação de um espetáculo é intrinsecamente dependente da turnê. Um trabalho que não é vendido também perde a possibilidade de ser produzido. O trabalho de criação realizado com amadores entra automaticamente no contexto da ação territorial e tem sua produção (figurinos, cenografia, remuneração dos profissionais) muito pouco financiada12 12 Para qualificar-se para uma Aide à la Création, um espetáculo deve receber o apoio de instituições teatrais comprometidas a produzir e fazer a difusão do espetáculo. No mínimo dez datas de apresentação devem ser previstas no momento do pedido de subvenção. Disponível em: <https://mesdemarches.cul ture.gouv.fr/loc_fr/mcc/requests/LIEUX_SOUTI_independants_03/>. Assim, os projetos de ação cultural são subvencionados, em grande parte, pelas políticas das cidades, das coletividades ou, no âmbito nacional (as DRAC), pelo plano Cultura e laços sociais [Culture et lien social] e pelas residências artísticas, culturais e territoriais em ambiente escolar. Esses financiamentos são focados na remuneração de oficinas e não incluem a produção de espetáculos. Na definição das DRAC, os elementos Criação e Ação territorial são estritamente separados, subentendendo claramente uma distinção fundamental entre a ação cultural e o teatro de arte (a noção de ação artística nunca tendo sido utilizada na França). Aliás, trata-se de uma apresentação de conclusão [restitution, em francês] e não de um espetáculo no fim de um projeto de ação cultural, enfatizando a ausência de qualquer ambição artística, nesse tipo de subvenção. . É claro que existem encomendas, chamadas para projetos, contratos públicos para projetos urbanos - relativamente distantes das necessidades, dos ritmos e das dúvidas de um processo de criação. A articulação entre a arte e a cidade ocorre com cada vez mais frequência - especialmente em cidades criativas13 13 Nota do tradutor: na versão em francês “villes créatives”. -, mas correndo o risco de produzir um marketing territorial (Boltanski; Esquerre, 2017BOLTANSKI, Luc; ESQUERRE, Arnaud. Enrichissement, une critique de la marchandise. Paris: Gallimard, 2017. (Coll. Essais).) e uma cultura de eventos, com vistas à promoção de uma região, mais do que à promoção artística ou cultural. Para os artistas envolvidos nas formas de criação in situ, esse tipo de inserção sempre é uma oportunidade possível. Mas desistir dessas formas também é comum. Por isso, é indispensável nomear o que pertence à ação artística, ou mesmo à obra “[...] a grande ausente, a ignorada, relegada ao velho modernismo, ao último milênio” (Neveux, 2019NEVEUX, Olivier. Contre le Théâtre Politique. Paris: La Fabrique éditions, 2019., p. 62)14 14 Nota do tradutor: na versão em francês “[...] la grande absente, l’ignorée, reléguée au vieux modernisme, au millénaire dernier”. , para poder redefini-la, retirá-la dessa oposição opressiva entre sua definição como objeto universal, eterno - e, portanto, rentável - e como ato efêmero, não reproduzível - e, portanto, não rentável.

O trabalho em questão - o espetáculo Montjoie! Saint-Denis! - foi construído - e continua se construindo - em várias etapas, em razão de restrição de tempo. Sem que isso tenha sido antecipado, a experiência nos permitiu descobrir uma maneira de aprofundar a pesquisa, mesmo abrindo a criação para o público. Quatro versões do espetáculo foram apresentadas, três das quais no Espace Imaginaire. A primeira ocorreu na Universidade Paris 8, em relação a dois cursos de bacharelado no Departamento de Teatro. Os 60 alunos envolvidos realizaram uma apresentação de conclusão sobre o mito de Saint-Denis e das Olimpíadas, durante a Semana das Artes da Universidade Paris 8. Parte desse grupo, transferido para o Espace Imaginaire, trabalhou na primeira versão do espetáculo em junho de 2018. Uma segunda versão foi apresentada em outubro do mesmo ano e uma terceira versão, que consideramos bem-acabada - mas sempre com melhoras possíveis - em junho de 2019. Esse calendário irregular, na descontinuidade das residências e na reconfiguração dos grupos, permitiu a realização de um trabalho de qualidade. Assim, o trabalho foi criado por diferentes comunidades efêmeras, que poderiam ser reunidas sob o termo de um coletivo transfigurado - já que o grupo não era o mesmo, de uma residência para outra - e transfigurante - pois, como mencionado anteriormente, ele influencia e remodela o trabalho.

O espaço onde ocorreu a criação também é transfigurado e transfigurante. A cada nova residência, o Espace Imaginaire evolui. Novas construções mudam o espaço de jogo, objetos desaparecem, outros aparecem, e o espaço compartilhado, em constante transformação, nos obriga a reinventar a cenografia e a encenação, que é itinerante. Portanto, o espetáculo não é nem exatamente o mesmo, nem completamente outro, como a mulher sonhada por Verlaine15 15 Nota do tradutor: referência ao poema “Meu sonho familiar” de Paul Verlaine. ... Mas, da mesma forma que no poema, sua imagem se torna mais clara na mente dos artistas e, assim, ela toma forma.

A forma imposta pelo in situ, nesse espaço de 5.000 m2, é certamente o que mais nos desperta interesse. Que estilo de escrita teatral se adapta a ele? Que estilo de atuação? Que cenografia? Aqui, escolhas e restrições se entrelaçam. Para ocupar tal espaço, é preciso um grande grupo de atores, figurinos e acessórios grandes, cenas que levem em conta o céu aberto e a presença de guindastes que se destacam nele. A encenação deve prever vários tablados no meio do espaço, para que os atores fiquem mais altos, mesmo que, às vezes, eles atuem há vários metros uns dos outros. Isso, para transformar o espaço e romper a frontalidade - não se trata de teatro na rua, no sentido de recriar um palco no espaço público, mas da busca de formas cênicas inovadoras, que se adaptem ao espaço que estamos ocupando.

A decisão de focar a dramaturgia no mito de Saint-Denis é tanto uma escolha artística quanto uma escolha imposta. As cenas que marcam essa lenda são quase todas as cenas públicas: pregação, prisão, julgamento, decapitação, milagre, martírio... Elas permitem uma atuação forte, grande e ampla, sem parecer forçada. As situações propostas aos atores podem ocorrer em espaços de grandes dimensões. O espetáculo mescla realidade e ficção sem se preocupar com o realismo. O personagem principal, Denis Fertangué, presidente do Comitê Olímpico Internacional, coordena as transformações do território de Saint-Denis para as Olimpíadas de 2024. Para acelerar o projeto, ele dirige obras noturnas nas proximidades da Basílica de Saint-Denis, o que causa um efeito indesejável: os reis da França, despertados pelas picaretas, saem de seus túmulos para salvar seu mausoléu. Eles o obrigam a cancelar as Olimpíadas. Em um discurso midiático para grande público, Denis Fertangué muda de campo: ele abandona seu papel de político, anula as Jogos Olímpicos e anuncia, no lugar deles, 31 dias de banquete para decidir juntos o futuro do mundo. O povo se alegra, assim como os reis que, milagrosamente, reaparecem para apoiar Denis. Mas a manobra não acaba aí. Pressionando o líder a escolher o cardápio do banquete, os reis provocam os seguidores até a discórdia, antes de propor um delicioso leitão no espeto. O leitão seria Denis. Começa uma grande festa de carnaval organizada pelos reis: palhaços, um carro alegórico, música... A confusão reina. O tempo passa de maneira retroativa. A manipulação funcionou. Denis reaparece, engaiolado pelos carrascos, enquanto seus seguidores, negando seu líder, o acusam de ter roubado o dinheiro das Olimpíadas... Os reis julgam Denis por ter tentado abolir a ordem do mundo. Ele é decapitado, mas sua cabeça não cai, da mesma forma como teria ocorrido em Montmartre com o primeiro bispo de Paris, Saint-Denis16 16 O mito de Saint-Denis, Patrono dos reis da França, é bastante conhecido. Julgado e decapitado em Montmartre, o Santo retomou sua cabeça cortada e caminhou até Saint-Denis. Sua lenda foi reforçada na época que a Basílica de Saint-Denis, mausoléu dos reis da França, foi construída. . O ator se levanta e anda, com a cabeça na mão, e repete a história do mito. Assim, o círculo se fecha.

A encenação e dramaturgia são imersivas. Todas as cenas do espetáculo envolvem o público, cuja presença completa a encenação: em um momento, os espectadores fazem parte de uma visão dos reis da França (que pensam ver neles uma peregrinação e, depois, um exército romano); em outro, eles são a plateia do discurso midiático; ou um grupo de seguidores do novo profeta; em seguida, espectadores que acompanham o carnaval de rua, o julgamento e a execução em praça pública. O público, de pé ou sentado, livre para se deslocar, completa a cenografia circular. De fato, tudo acontece em uma arena - como a dos combates de gladiadores, das feiras, dos julgamentos e da praça pública. Inicialmente colocando-se de forma espontânea na borda do círculo, mais tarde, os espectadores são convidados a entrar nele. Mesmo sem participação direta, o público constrói ficção e dá à apresentação uma atmosfera de feira medieval (fantasiosa). Ele é integrado ao círculo à medida que a manipulação do poder se torna mais forte. Durante a segunda parte do espetáculo, os vinte atores estão em cena e atuam por todos os lados, enquanto o mártir, cercado por espectadores, encontra-se no centro.

Aliás, alguns espectadores tornaram-se especialistas no espetáculo. Alguns deles, vizinhos ou cogestores do Espace Imaginaire, assistiram ao espetáculo a cada nova versão. As crianças do bairro conhecem as falas e canções de cor e sobem nos tablados dos atores para anunciar as próximas cenas - agora, vamos cortar a cabeça dele!. Nesse sentido, desempenham um papel importante as apresentações gratuitas e a liberdade de ação permitida aos espectadores, que não estão sentados em um lugar fixo, mas livres para sair quando quiserem e assistir ao espetáculo do - ou dos - lugar(es) que escolherem. Dependendo do ponto de vista e de sua interpretação do espaço, o público encontra-se em diversas partes da arena e o espetáculo muda, tanto para ele quanto para o ator que deve integrá-lo em seu jogo e modificar, ao vivo, a encenação. Às vezes, a mudança é apenas na direção da fala ou em um deslocamento, outras vezes, ela é muito mais importante. Como exemplo, eu narraria uma apresentação específica na qual a participação dos espectadores foi inesperada, e incrivelmente poética. Quando, após a cena da decapitação, o intérprete de Denis Fertangué se levantou e se afastou, dando as costas a seus algozes, um grupo de crianças da plateia se aproximou, pegou sua mão e o acompanhou até o fim do espetáculo. Com isso, a imagem inicial, prevista para essa cena, foi completamente alterada. O martírio foi, de certa forma, reabilitado graças à inteligência sensível das crianças, aliviando com a sua ternura a injustiça dessa execução. Nós nunca teríamos previsto algo assim.

Dessa forma, na imersão proposta pela encenação, tomamos cuidado para não controlar o lugar e o olhar, tendo consciência que

[...] a emancipação do espectador é a possibilidade de um olhar do espectador que não seja aquele que foi programado [...] Emancipação também é saber que não colocamos nossa cabeça na cabeça dos outros, que não devemos antecipar o efeito. Eu disse o que eu tinha a dizer, e as pessoas fizeram o que quiseram com isso (Rancière, 2009RANCIÈRE, Jacques. Et tant pis pour les gens fatigués: Entretiens. Paris: Éditions Amsterdam, 2009. P. 593-604., p. 593, 603 e 604)17 17 Nota do tradutor: na versão em francês “[...] l’émancipation du spectateur, c’est la possibilité d’un regard du spectateur qui ne soit pas celui qui a été programmé […] L’émancipation, c’est aussi de savoir que l’on ne met pas sa tête dans la tête des autres, qu’on n’a pas à anticiper l’effet. J’ai dit ce que j’avais à dire et les gens en ont fait ce qu’ils en ont voulu”. .

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Montjoie! Saint-Denis! 22 de junho de 2019. Pauline Delamare (o clown Citius) e Karina Le Marois (o clown Altius)

O método criativo, como fica claro, baseia-se nas restrições. Restrição temática relacionada à zona de trabalho, restrição formal relacionada ao local de residência, restrição financeira, de tempo etc. Esse método também é semelhante ao da adivinhação, das crianças, que “acertam por acaso e recomeçam por método”, descrito por Rancière em O Mestre Ignorante (Rancière, 1987RANCIÈRE, Jacques. Le maître ignorant. Paris: Fayard, 1987. )18 18 Referência da edição brasileira: RANCIÈRE, Jacques. O Mestre ignorante - Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lilian do Valle. Col. Educação: Experiência e Sentido. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2002. . Como no caso dos escritores do grupo literário OULIPO, que se definem como “ratos que constroem, eles mesmos, o labirinto do qual se propõem a sair” (OULIPO, 1973OULIPO. La Littérature Potentielle. Paris: Gallimard , 1973.)19 19 Nota do tradutor: na versão em francês “rats qui construisent eux-mêmes le labyrinthe dont ils se proposent eux-mêmes de sortir”. , a restrição transforma-se em uma oportunidade de inventar novas formas estéticas.

A forma que surge de nosso labirinto de impossíveis não se destina a esclarecer os espectadores ou a conscientizá-los. A dramaturgia é lacunar, as cenas se sobrepõem umas às outras, algumas imagens poéticas não têm um sentido a ser decifrado - mesmo para nós - e alguns personagens falam em versos alexandrinos ou utilizam um vocabulário em francês antigo. O espetáculo vai além de nós. As questões da criação in situ são tão vastas, enquanto nossos meios e nossos conhecimentos do assunto são tão pequenos, que não conseguimos controlar tudo. E isso é bom. O espetáculo critica a encenação do poder através das Olimpíadas e da ideologia que este evento carrega, fazendo uma comparação hipotética com o Império Romano (e seu famoso panem et circenses) e com o estabelecimento de figuras míticas para dominar as multidões. A cada cena, essa crítica torna-se cada vez mais louca e onírica. Ao invés de buscar a identificação ou a explicação, o espetáculo busca a poesia e a estranheza exagerada do clown, o lirismo - supostamente obsoleto - da inspiração, a beleza do sonho. Mesmo que, durante a execução, a atenção seja colocada no bairro e nos habitantes, o discurso ou a forma não têm nenhum tipo de orientação em razão da zona ou do público supostamente esperados.

Assim, pode-se dizer que utilizamos elementos da ação cultural, em termos de fabricação e de produção da obra, cuja realização tem interesse apenas na arte teatral. E como as restrições associadas a essa ação cultural nos parecem ativadoras para a arte teatral, nós as perpetuamos. Trabalhar fora de si mesmo - da caixa preta do teatro, dos limites financeiros do profissionalismo, e de suas ideologias subjacentes - é uma escolha que nos libera e que, ao fazê-lo, alimenta artisticamente a criação. A ação cultural torna-se então ação artística?

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Montjoie! Saint-Denis! 22 de junho de 2019. Todos os atores cantando Céphallocomptine, segurando lanternas construídas pela associação Les Poussières com crianças do centro de lazer e com estudantes do ensino médio. Cena de abertura do espetáculo

Uma crítica possível é que, aqui, a ação cultural foi desvirtuada de seu propósito e usada por artistas para criar obras que, de outra forma, eles não teriam como produzir. A ação cultural e a ação artística visam a emancipação, e não a invenção de formas estéticas. Seu êxito não deveria ser medido pela participação dos habitantes? Pela ausência de hierarquia e liderança dentro do grupo? Pelo desenvolvimento da autonomia dos participantes? Se estes são os critérios de validação que prevalecem, o resultado do projeto será, em suma, bastante negativo. Poucos moradores do bairro participaram do processo como atores. As comunidades efêmeras foram compostas principalmente por estudantes ou amadores que já tinham uma prática teatral. Alguns participantes desenvolveram certa autonomia na criação, outros aguardavam as instruções, muitas vezes vindas dos diretores, para agir. Um tal processo é emancipatório? Eu escuto em minha própria mente essa autocrítica e decido colocar a questão de outra forma. Será que esse processo nos ensinou alguma coisa que outro processo não teria permitido? Um ator, que nunca tinha feito isso antes, escreveu a letra de uma canção que se tornou o hino do espetáculo, uma atriz aprendeu a lançar sua voz e a desenvolver sua presença para atuar nesse espaço imenso, outro ator transmitiu seus conhecimentos de violão flamenco, outro teve muito êxito ao traduzir o discurso midiático de Denis Fertangué em lingala, sua língua nativa, que não dominava bem, graças à ajuda de outro participante bilíngue... Esse processo certamente abriu novas possibilidades - a possibilidade de gerar uma obra teatral, uma representação do mundo “fora das regras do verdadeiro e do falso”, ou seja, uma experiência do “fictício” (Neveux, 2019NEVEUX, Olivier. Contre le Théâtre Politique. Paris: La Fabrique éditions, 2019., p. 248)20 20 Nota do tradutor: na versão em francês “soustrait[e] aux règles du vrai et du faux” e “fictif”. - através do envolvimento voluntário de indivíduos em uma ação artística convergente. Ele criou esta “coisa comum, situada entre as duas inteligências, [que] é a caução [do poder da] igualdade” (Rancière, 1987RANCIÈRE, Jacques. Le maître ignorant. Paris: Fayard, 1987. , p. 56)21 21 Referência da edição brasileira: RANCIÈRE, Jacques. O Mestre ignorante - Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lilian do Valle. Col. Educação: Experiência e Sentido. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2002. . E é isso que importa.

Referências

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  • ROUX, Louise. L’utopie pragmatique des collectifs théâtraux des années 2000. Des collectifs éphémères. Revue Socio-anthropologie , Paris, Publications de la Sorbonne, n. 33, p. 47-59, juin 2016.
  • ROUX, Louise; NEPOMUCENO, Frederico. Création partagée dans une ville laboratoire. Registres, Paris, Sorbonne Nouvelle, n. 5, p. 137-150, 2018.
  • 1
    HOC MOMENTO é uma associação regida pela Lei 1901, codirigida por Louise Roux e Frederico Nepomuceno (e reforçada de maneira recorrente por diversos artistas), criada em 2017 e especializada em teatro in situ. Montjoie! Saint-Denis! é um projeto de pesquisa de criação apoiado pela Maison des Sciences de l’Homme Paris Nord de 2017 a 2019 (Teatro in situ e patrimônio, a dramaturgia urbana colocada à prova, do Rio de Janeiro a Argel), pela prefeitura de Saint-Denis, pelo projeto Contrat de Ville (projeto político da cidade para o bairro de la Plaine) e associado à Universidade Paris 8. Direção: Louise Roux, Frederico Nepomuceno; cenografia: Frederico Nepomuceno, Carolina E. Santo, Pascaline Robinot; dramaturgia: Louise Roux, Geoffrey Daret, Rafik Fetmouche; figurinos: Cheyenne Actis-Grosso, Pauline Beuzebboc, Loubna Qaffou; criação de vídeos: Javier Lazo Barco, Moe Nishimura, Freila Ramos; administração: Emilie Audebert, Soline Morterol; atuação: Jackson Badandishi, Lison Bellanger, Camille Bernaudat, Thibault Brasseur, Sarah Brunet, Denzel Calle Gonzales, Hélène Canuet, Adrien Cortun, Geoffrey Daret, Pauline Delamare, Julie Demol, Elodie Faid, Julie Flusin, Rafik Fetmouche, Clara Gelot, Serge Guirchoun, Anne-Claire Ignace, Josemar Junior, Vincent Labie, Karina Lemarois, Mano Llegal, Nubia Lyn Enel, Swaggart Nganga, Augustin Mouret, Morgane Pommier, Evangélia Pruvot, Loubna Qaffou, Mathilde Ryo, Henri Sourdais, além de estudantes de graduação do departamento de Teatro da Universidade Paris 8 e dos aprendizes circenses da Academia Fratellini, para a Semana das Artes.
  • 2
    “A Rede de Cidades Criativas da UNESCO foi criada em 2004 para promover a cooperação mútua com e entre cidades que reconhecem a criatividade como um fator estratégico para o desenvolvimento urbano sustentável. As 246 cidades que formam esta rede atualmente trabalham juntas por um objetivo comum: colocar a criatividade e as indústrias culturais no centro de seus planos de desenvolvimento em nível local e cooperar de forma ativa em nível internacional” (https://fr.unesco.org/creative-cities/). Nota do tradutor: na versão em francês “Le Réseau des villes créatives de l'UNESCO (RVCU) a été créé en 2004 pour promouvoir la coopération avec et entre les villes ayant identifié la créativité comme un facteur stratégique du développement urbain durable. Les 246 villes qui forment actuellement ce réseau travaillent ensemble vers un objectif commun: placer la créativité et les industries culturelles au cœur de leur plan de développement au niveau local et coopérer activement au niveau international”.
  • 3
    Vinte entrevistas foram realizadas por estudantes de graduação do Departamento de teatro da Universidade Paris 8, com moradores de Saint-Denis. Sobre este assunto, ver também o comitê de vigilância JO 2024 Saint-Denis. Disponível em: <http://vigilancejo93.com>.
  • 4
    A comunidade efêmera é nomeada assim em referência, por um lado, à noção de comunidade artística apresentada por Marie-Christine Autant-Mathieu (Autant-Mathieu, 2013AUTANT-MATHIEU, Marie-Christine (Dir.). Créer, ensemble, Points de vue sur les communautés artistiques (fin du XIXe-XXe siècles). Montpelliers: L’Entretemps, 2013.) e, por outro lado, à noção de coletivo efêmero proposta por Sophie Poirot-Delpech (Poirot-Delpech, 2016POIROT-DELPECH, Sophie (Dir.). Des collectifs éphémères. Revue Socio-anthropologie, Paris, Publications de la Sorbonne, n. 33, juin 2016.). O grupo de participantes é uma comunidade, pois divide valores e um local de residência do qual toma conta durante o período de ensaios. Ele reúne-se com base no voluntariado, em nome de um objetivo artístico comum. Ele não é um coletivo, pois a maioria das decisões é tomada pelo(s) diretor(es) do projeto e, também, porque essa comunidade não possui vocação a prolongar-se no tempo: ela é renovada a cada ano, não sendo tampouco equivalente a uma trupe. Ela é efêmera. Sobre essa inscrição dos grupos teatrais na efemeridade, ao contrário das comunidades dos séculos XIX-XX, ver a noção de utopia pragmática (Roux, 2016). Nota do tradutor: na versão em francês “communautés éphémères”.
  • 5
    A primeira residência (de janeiro a março de 2018) fazia parte do programa da graduação em teatro da Universidade Paris 8. Os diretores da associação HOC MOMENTO organizaram dois cursos conjuntos para o segundo e o terceiro anos da graduação, durante um semestre, sobre a criação. Sessenta estudantes, reunidos para o projeto, participaram na primeira versão, apresentada durante a Semana das Artes, em março de 2018. Essa apresentação foi avaliada e fez parte do percurso universitário clássico. A segunda residência (de abril a junho de 2018), no Espace Imaginaire, reunia um núcleo fixo de estudantes dos cursos (cerca de quinze), três estudantes estagiários (os estudantes do terceiro ano da graduação devem efetuar um estágio para validar sua formação) e alguns moradores ou artistas voluntários (seis). A terceira residência (de setembro a outubro de 2018) reunia mais ou menos o mesmo grupo, com alguns estudantes e moradores a menos (ao todo, o grupo contava com 12 participantes, dos quais, 2 moradores) e um artista brasileiro que havia trabalhado com a HOC MOMENTO no Brasil. Para a quarta residência (de abril a junho de 2019), o grupo ganhou nova configuração, pois alguns estudantes mudaram de ênfase de curso ou não quiseram mais continuar no projeto. O grupo contava com 8 estudantes de Paris 8 (dos quais, 2 haviam participado em todas as residências, outros apenas na primeira), 1 morador (que acompanhou toda a trajetória de Montjoie! Saint-Denis!), 2 estudantes do curso de Ciências políticas [Sciences-po] de Paris, 8 artistas voluntários (dos quais, 1 havia seguido o projeto inteiro). Juntaram-se a nós, no contexto de seus estágios de graduação na Paris 8, uma figurinista e uma administradora. Para os estudantes envolvidos, apenas a primeira sessão foi avaliada. As outras foram, às vezes, validadas como estágios, mas frequentemente realizadas com base em voluntariado. As três residências, realizadas no Espace Imaginaire, foram feitas no contexto de uma ação associativa e de pesquisa (com apoio da Maison des Sciences de l’Homme), sem vínculo com a universidade.
  • 6
    Adotados desde 2015 pela lei NOTRe, os direitos culturais, que visam possibilitar a todos a liberdade de viver sua identidade cultural, são concebidos como “o conjunto das referências culturais através das quais uma pessoa, individual ou coletivamente, identifica-se, constitui-se, comunica e pretende ser reconhecida em sua dignidade”, segundo a declaração de Friburgo sobre os direitos culturais de 2007. Segundo o artigo 28A da lei NOTRe: “A responsabilidade em matéria cultural é exercida de forma conjunta pelas coletividades territoriais [cidades e regiões] e pelo Estado, respeitando os direitos culturais enunciados na Convenção sobre a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais, de 20 de outubro de 2005”. Nota do tradutor: na versão em francês “politiques de la ville”, “Culture-agriculture”, “l’ensemble des références culturelles par lesquelles une personne, seule ou en commun, se définit, se constitue, communique et entend être reconnue dans sa dignité” e “La responsabilité en matière culturelle est exercée conjointement par les collectivités territoriales et l’État dans le respect des droits culturels énoncés par la Convention sur la protection et la promotion de la diversité des expressions culturelles du 20 octobre 2005”.
  • 7
    Este plano, segundo a ministra Françoise Nyssen, coloca em prática os direitos culturais, favorecendo a ampliação da ação cultural nos territórios e buscando aproximar a economia social e solidária. Ele possui uma dotação de 6,5 milhões de euros, e prevê um aumento do crédito até 2022.
  • 8
    Nota do tradutor: na versão em francês “d’inventer une nouvelle grammaire de l’influence internationale; et la culture en fait partie”.
  • 9
    Nota do tradutor: na versão em francês “faire la morale (donner le moral et moraliser), […] [telle l’]antichambre sympathique d’une éducation nationale déconsidérée”.
  • 10
    Aliás, é interessante observar que certas chamadas para projetos da Direção Regional de Assuntos Culturais [Direction Régionale des Affaires Culturelles - DRAC] são dirigidos a bairros ou zonas prioritárias, como se a cultura pudesse remediar a falta de recursos destinados à educação pública, à polícia ou à habitação... Neveux enfatiza a filiação dessa política com o Partido Trabalhista britânico, e cita Claire Bishop ao descrever os anos 1990, quando “[...] o interesse pela cultura se justificava com a ideia de que ela criava a aparência de inclusão social, mesmo que, paralelamente, o governo continuasse a enfraquecer as instituições que garantiam sua missão - a educação e a saúde. Daí a contradição da arte participativa, que responde às expectativas dos artistas em razão de sua independência em relação ao mercado, ao mesmo tempo que exerce uma função Potemkin para os governos que os financiam” (Neveux, 2019, p. 62). Nota do tradutor: na versão em francês “[...] l’intérêt pour la culture se justifiait de l’idée qu’elle créait l’apparence de l’inclusion sociale, même si le gouvernement continuait en même temps à éroder les institutions qui en assurent la mission - l’éducation et la santé. D’où la contradiction propre à l’art participatif, qui répond aux attentes des artistes en raison de son indépendance à l’égard du marché tout en exerçant une fonction Potemkine pour les gouvernements qui les financent”.
  • 11
    Nota do tradutor: na versão em francês “L’artiste de théâtre doit en quelque sorte expier son art, potentiellement trop complexe, égocentrique et dispendieux, ainsi qu’apporter la preuve de sa contribution au vivre-ensemble. Il palliera, ou tentera de pallier, les échecs politiques; il adoucira les fractures sociales. Que les créateurs, plutôt que les œuvres, créent du lien. Qu’ils s’identifient un peu plus aux travailleurs sociaux - que les politiques s’échinent à précariser et à rarifier. L’histoire ici est ironique. Elle se rejoue telle une farce cruelle. Car les travailleurs sociaux ont été, entre autres, largement méprisés et déconsidérés par le milieu de l’art et de la culture”.
  • 12
    Para qualificar-se para uma Aide à la Création, um espetáculo deve receber o apoio de instituições teatrais comprometidas a produzir e fazer a difusão do espetáculo. No mínimo dez datas de apresentação devem ser previstas no momento do pedido de subvenção. Disponível em: <https://mesdemarches.cul ture.gouv.fr/loc_fr/mcc/requests/LIEUX_SOUTI_independants_03/>. Assim, os projetos de ação cultural são subvencionados, em grande parte, pelas políticas das cidades, das coletividades ou, no âmbito nacional (as DRAC), pelo plano Cultura e laços sociais [Culture et lien social] e pelas residências artísticas, culturais e territoriais em ambiente escolar. Esses financiamentos são focados na remuneração de oficinas e não incluem a produção de espetáculos. Na definição das DRAC, os elementos Criação e Ação territorial são estritamente separados, subentendendo claramente uma distinção fundamental entre a ação cultural e o teatro de arte (a noção de ação artística nunca tendo sido utilizada na França). Aliás, trata-se de uma apresentação de conclusão [restitution, em francês] e não de um espetáculo no fim de um projeto de ação cultural, enfatizando a ausência de qualquer ambição artística, nesse tipo de subvenção.
  • 13
    Nota do tradutor: na versão em francês “villes créatives”.
  • 14
    Nota do tradutor: na versão em francês “[...] la grande absente, l’ignorée, reléguée au vieux modernisme, au millénaire dernier”.
  • 15
    Nota do tradutor: referência ao poema “Meu sonho familiar” de Paul Verlaine.
  • 16
    O mito de Saint-Denis, Patrono dos reis da França, é bastante conhecido. Julgado e decapitado em Montmartre, o Santo retomou sua cabeça cortada e caminhou até Saint-Denis. Sua lenda foi reforçada na época que a Basílica de Saint-Denis, mausoléu dos reis da França, foi construída.
  • 17
    Nota do tradutor: na versão em francês “[...] l’émancipation du spectateur, c’est la possibilité d’un regard du spectateur qui ne soit pas celui qui a été programmé […] L’émancipation, c’est aussi de savoir que l’on ne met pas sa tête dans la tête des autres, qu’on n’a pas à anticiper l’effet. J’ai dit ce que j’avais à dire et les gens en ont fait ce qu’ils en ont voulu”.
  • 18
    Referência da edição brasileira: RANCIÈRE, Jacques. O Mestre ignorante - Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lilian do Valle. Col. Educação: Experiência e Sentido. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2002.
  • 19
    Nota do tradutor: na versão em francês “rats qui construisent eux-mêmes le labyrinthe dont ils se proposent eux-mêmes de sortir”.
  • 20
    Nota do tradutor: na versão em francês “soustrait[e] aux règles du vrai et du faux” e “fictif”.
  • 21
    Referência da edição brasileira: RANCIÈRE, Jacques. O Mestre ignorante - Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lilian do Valle. Col. Educação: Experiência e Sentido. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2002.
  • Este texto inédito, traduzido por André Mubarack, também se encontra publicado em francês neste número do periódico.
  • Editoras-responsáveis: Verônica Veloso, Maria Lúcia Pupo e Anna Mirabella

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    23 Jul 2019
  • Aceito
    13 Dez 2019
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