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Por uma Escuta da Arte: ensaio sobre poéticas possíveis na pesquisa

RESUMO

Neste ensaio, discute-se a possibilidade metodológica de realizar pesquisas, tendo como referência processos criativos em artes. A pergunta é: como valorizar a experimentação, as anotações do trabalho em curso, o registro dos lampejos de vida, sem perder o rigor do debate teórico, nem o olhar atento sobre urgências, éticas e políticas do presente? Com o apoio em Foucault, Hadot, Benjamin, entre outros, percorrem-se tópicos da obra do cineasta Kiarostami, de Clarice Lispector, do escritor Italo Calvino e da coreógrafa Pina Bausch. Com esses e outros exemplos, inclusive com o relato do percurso de uma pesquisa, propõem-se modos de raciocinar poeticamente, com a apropriação sem medo daquilo que ensinam diferentes artes.

Palavras-chave:
Arte; Pesquisa; Processos Criativos; Poéticas; Metodologia

ABSTRACT

This essay discusses methodological possibilities for conducting research using creative artistic processes as references. I ask: how can experimentation be valued, as well as notes of works in progress, and registers of flashes from life, without losing the rigor of theoretical discussions or an attentive look at urgent ethical and political needs of the present? Supported by Foucault, Hadot, Benjamin and others, I discuss topics from the work of Kiarostami, Clarice Lispector, Italo Calvino, and Pina Bausch. With these and other examples, including comments on a study in progress, I propose ways of reasoning poetically by fearlessly appropriating lessons from the arts.

Keywords:
Art; Research; Creative Processes; Poetics; Methodology

RÉSUMÉ

Dans cet essai, je discute des possibilités méthodologiques pour réaliser des recherches, en utilisant les processus créatifs dans les arts comme référence. Comment valoriser l’expérimentation, les notes sur les travaux en cours, les éclats de vie, sans perdre la rigueur du débat théorique, ni le regard attentif sur les urgences éthiques et politiques du présent? Avec le soutien de Foucault, Hadot, Benjamin, je discute des sujets du travail de Kiarostami, Clarice Lispector, Italo Calvino et Pina Bausch. Avec ces exemples et d’autres, y compris le compte rendu d’une recherche en cours, je propose des moyens de raisonner poétiquement pour s’approprier sans peur de ce que les différents arts enseignent..

Mots-clés:
Art; Recherche; Processus Créatif; Poétique; Méthodologie.

Como ficar entre a ciência e a arte, entre o vivido e o pensado? Como valorizar as experiências relacionadas ao tema, aos dados e aos sujeitos de nossos estudos, para além das chamadas categorias de análise, as quais muitas vezes nos aprisionam em supostas totalidades, repetindo o que previamente já sabíamos? Por que nós e nossos estudantes, diante da página em branco, tantas vezes nos sentimos temerosos de errar, de sujar a página, inseguros talvez por não cumprir normas acadêmicas e editoriais - quando exatamente esse seria o momento de não desistir, de aceitar a livre exposição de si mesmo, sem que seja necessário concluir um pensamento total?

Proponho, neste ensaio, que fazer uma pesquisa poderia corresponder a uma aventura intelectual que se deixa encharcar de enigmas, de momentos não sistemáticos nem sistematizadores - embora fique lá, em suspenso, a necessidade de certo vínculo do instituinte com o instituído, como nos diz Marilena Chauí, escrevendo sobre Merleau-Ponty (Chauí, 2002CHAUÍ, Marilena. Obra de Arte e Filosofia. In: CHAUÍ, Marilena. Experiência do Pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2002. P. 151-195.). Proponho deixar-nos invadir por quase desatinos, em acontecimentos para os quais ainda não encontramos palavras. Ou seja, pesquisar em meio a ignorâncias - como escreve Carlos Skliar (2011, p. 121)SKLIAR, Carlos. Lo Dicho, lo Escrito, lo Ignorado: ensayos mínimos, entre educación, filosofia y literatura. Buenos Aires: Miño Y Dávila, 2011. sobre o ato de ensaiar. Afinal, isso não seria desejável, inclusive, e paradoxalmente, em termos metodológicos, a um estudioso de educação, de artes, de ciências humanas? Trabalhar como se fôssemos artesãos, operando benjaminianamente com fragmentos e retalhos - não seria esse um bom jeito de escrever e investigar temas urgentes de nosso tempo?

A ideia das coisas se-fazendo, das operações com esboços, certamente é algo que diz respeito aos diferentes processos de criação artística. Não é novidade a dedicação de estudiosos, das áreas da literatura, das artes visuais, do teatro, da música, do cinema, a este meio do caminho ou caminho do meio - mostrando-nos como estaria justamente aí, nas coisas não dadas em seu ponto final, o próprio encanto da criação.

Um livro que reúne inúmeras referências sobre tal tema é, sem dúvida, Gestos inacabados: processo de criação artística, de Cecilia Almeida Salles (2011)SALLES, Cecilia Almeida. Gesto Inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Intermeios, 2011. - que tem como base teórica os chamados estudos de crítica genética. A autora traz depoimentos de filósofos, artistas visuais, cineastas, escritores, dramaturgos e diretores de teatro. Recorrente no livro é a ideia da intensidade encontrada na obra em movimento, como se pudéssemos examinar, distraidamente, mas com rigor, a metamorfose de uma pintura de Miró, um desenho de Paul Klee, um poema de Rilke, uma elaboração filosófica de Bachelard, um roteiro de Fellini.

Outra referência importante são os estudos da Investigação Baseada nas Artes (IBA), movimento que existe desde os anos 1970-1980, centrada particularmente na figura do norte-americano Elliot Eisner. Mais recentemente, o pesquisador espanhol Fernando Hernández vem difundindo e discutindo os limites e críticas dessa proposta, que, a partir de Eisner, reivindica uma abertura das práticas e das pesquisas em educação, de modo a enfatizar, nelas, um tipo de criação que seja mais aberta ao sensorial, à multiplicidade e à incompletude dos processos; uma prática escolar e acadêmica mais generosa, mais afeita ao surpreendente e às incertezas (Hernández, 2008HERNÁNDEZ, Fernando. La Investigación Basada en las Artes: propuestas para repensar la investigación en educación. Educatio Siglo XXI, Barcelona, n. 26, p. 85-118, 2008. ; Eisner, 2008EISNER, Elliot. O que pode a Educação Aprender das Artes sobre a Prática da Educação? Currículo sem Fronteiras, Minho, v. 8, n. 2, p. 5-17, jul./dez. 2008.).

Tenho pensado naquilo que poderíamos chamar de poética dos diários ou de encantamento dos manuscritos - no sentido de buscar, nas pesquisas que fazemos, não exatamente a linearidade das perguntas e respostas, ou das causas e efeitos, muito menos as aplicações de conceitos a fatos, mas antes os frágeis nexos entre marcas e vestígios de uma aventura intelectual. Como falar de vida, de coisas da vida, em nossas pesquisas - como refere o cineasta Wim Wenders?1 1 Em depoimento ao cineasta Gustavo Spolidoro, no filme De volta ao quarto 666 (2008). . Como valorizar a experimentação, o registro das coisas mínimas, a beleza dos diários e das anotações, dos copiões do filme ainda não acabado, dos esboços de uma escrita filosófica ou literária, das caixas de coleções aparentemente sem destino? Como trabalhar com uma espécie de poética dos rascunhos, com a intensidade das infinitas aproximações a certo tema ou ao objeto de nosso interesse?

No cotidiano de ler e avaliar artigos, projetos, teses e dissertações, na área de educação, em especial, raras são as ocasiões em que somos surpreendidos por um relato que produza no leitor a empatia, a vibração, a inquietação - enfim, raros são os casos de pesquisas que se mostram como vitalidade, como carne viva, espinhos em nossa carne2 2 Imagem usada por Marilena Chauí no conhecido texto Janela da alma, espelho do mundo, referindo-se à pintura de Van Gogh e aos escritos de Merleau-Ponty sobre o visível e o invisível (Chauí, 1999). . Estou falando em pesquisa como ensaio. Tudo se passa como se, na academia, continuássemos a separar o vivido e o pensado, a teoria e a prática. Pergunto: e se disséssemos, com Skliar, que o vivido (ou melhor, o experienciado) é o que mais importa? E se concordássemos com ele, e defendêssemos que a narração e a conversação precisariam ser recuperadas, para além das práticas vigentes em nosso tempo, em que não nos envergonhamos de falar (cansativamente) de nós mesmos, presos a uma mesmice narcísica, nas redes sociais? E se nossas investigações levassem em conta o genuíno ato de conversar - que Skliar sublinha como gesto pouco encontrado em práticas acadêmicas e escolares, justamente porque insistimos em falar as mesmas coisas e, o que é mais grave, em nos acostumarmos a ouvir apenas a nós próprios? (Skliar, 2011SKLIAR, Carlos. Lo Dicho, lo Escrito, lo Ignorado: ensayos mínimos, entre educación, filosofia y literatura. Buenos Aires: Miño Y Dávila, 2011., p. 64-68).

A meu ver - segundo Foucault nos sugere3 3 Em conversa com Dreyfuss e Rabinow (Foucault, 2014). -, talvez este seja um dos perigos a enfrentar hoje, no meio acadêmico: o perigo do mesmo, do clichê, do vazio de uma escrita que rigorosamente nada diz, pois se faz automática e por vezes totalitária, sem respiro, desencarnada, polarizada. Escuto com cuidado a provocação de Foucault, feita em vários textos seus, ao insistir no gesto de problematizar (em oposição ao frequente ato de polemizar) e aproximo esse gesto da ideia da educação (e da pesquisa) como conversa. Foucault (2010c)FOUCAULT, Michel. Polêmica, Política e Problematizações. In: FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade, Política: ditos e escritos V. Rio de Janeiro: Forense, 2010c. P. 225-233., em entrevista a Rabinow, dada no ano de sua morte, faz referência a posicionamentos quase religiosos assumidos por nós, ao defendermos nossos pontos de vista - como se estivéssemos sempre diante de um adversário, e como se cada um dos lados determinasse pontos de dogma intangíveis na transgressão moral do outro. Os que pensam diferente de nós, em princípio, são apontados como aqueles que erram, manifestam apegos e fraquezas, e por isso se tornam merecedores de exclusão. Sabemos o quanto muitas das polêmicas se caracterizam por elidir o interlocutor: denuncia-se o delito e lança-se o outro na mais completa condenação. Há igualmente o modo político de polemizar, a partir do qual buscamos alianças, de tal forma que acabamos por nos ocupar prioritariamente em definir nosso inimigo, contra ele reunindo forças, capazes de submetê-lo ou até mesmo de radicalmente fazê-lo desaparecer.

Dito de outro modo: quando nos restringimos à polemização, abandonamos a conversa. Pior do que isso: matamos a intensidade possível das relações, das trocas, do próprio pensamento. Impedimos que as coisas avancem, como criação e diferença; apegamo-nos ao que já temos sido; ou nos ocupamos ferozmente em denunciar todo o tipo de males escondidos, por trás das evidências, aquilo que “[...] habita secretamente em tudo o que existe” (Foucault, 2014FOUCAULT, Michel. Sobre a Genealogia da Ética: um resumo do trabalho em curso. In: FOUCAULT, Michel. Genealogia da Ética, Subjetividade e Sexualidade: ditos e escritos IX. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. P. 214-237., p. 217). Longe de sugerir uma resposta passiva ao que nos sucede, a ideia de pressentir os perigos, problematizar e reproblematizar tudo o que parece tão sólido e cristalizado, em uma palavra - conversar -, tem a ver com uma proposta de valorizar os comos, os processos vibrantes de elaborações, aquilo que ocorre no entre. E isso diz respeito a uma atitude que se faz na contramão do insano desejo de completude, de obra acabada e de destruição da alteridade.

Trazer a riqueza de diferenciados processos criativos, em variadas formas de arte (em especial o cinema, o teatro, a literatura e as artes visuais), para o interior de nossas pesquisas, parece-me uma forma extremamente rica de dinamizar os modos como temos desenhado e conduzido nossos projetos de investigação. Penso aqui, a título de exemplificação, naqueles registros de Kiarostami, Clarice Lispector, Cézanne, Stanislavski, Foucault - nos quais encontramos cintilações de seus respectivos processos de criação. Em que medida esses registros nos auxiliam a produzir espaços de respiro em nossos estudos?

Mais do que respiro, trata-se de um caminho que, talvez, possa nos ajudar nas orientações de projetos (de professores e de estudantes), no sentido de problematizar a dificuldade de articular discussão teórica e dados empíricos; de discutir a prática tão comum da separação de questões supostamente nobres (acadêmicas) daquelas que teriam a ver com a vida comum. Além disso, as experiências processuais de artistas podem, a meu ver, colocar em dúvida a facilidade inconsistente e apressada com que lemos e interpretamos imagens e depoimentos, apoiados quase que exclusivamente na ideia de linguagem como representação.

Há que movimentarmos o pensamento, diante de uma série de problemas como estes: os impasses e limitações da operação de escrita do texto científico, quase sempre divorciado de vitalidade e beleza estética; a frequente oposição entre arte e pensamento, nos relatórios de pesquisa; a falta de clareza quanto às possibilidades de fazer do próprio relato um texto autoral e genuíno; a hierarquização rígida de dados, no sentido da eliminação ou do próprio esquecimento no que tange às ocorrências mínimas da pesquisa, seus desvios inesperados e, aparentemente, menos dignos de consideração; o abandono ou a negação dos fragmentos cotidianos do estudo, bem como das oscilações e novas configurações do próprio objeto e da ação do pesquisador, ao longo da viagem investigativa.

Recorro aqui a Nadja Hermann (2016)HERMANN, Nadja. Pesquisa Educacional e Filosofia da Educação: busca de permeabilidade. In: REUNIÃO CIENTÍFICA REGIONAL DA ANPED, 11., 2016, Curitiba. Anais... Curitiba: 2016. P. 1-13. Disponível em: <http://www.anpedsul2016.ufpr.br/portal/wp-content/uploads/2015/11/Eixo-12-Filosofia-da-Educação.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2020.
http://www.anpedsul2016.ufpr.br/portal/w...
, que sintetiza algumas das questões principais de que nos ocupamos aqui: afinal, como buscar uma permeabilidade entre o ato da pesquisa na educação e a elaboração de um pensamento teórico e filosófico? Como temos nos ocupado do que Nadja chama de uma cultura filosófica formativa, sem perder de vista um tratamento cuidadoso dos dados, aberto à imaginação, à sensibilidade e a uma genuína responsabilização ética? O universo empírico do qual nos ocupamos não mereceria um olhar mais demorado e sensível, e também refletido, evitando-se a fragilidade teórica?

Quando nos entregamos aos comoventes filmes de Kiarostami e, igualmente, à narração que ele faz dos caminhos de cada uma de suas criações, encontramos ali, condensada, a ideia de imagens como sensações - como potências de produção de novas sensações, na medida em que essas afetam o pensamento e provocam que esse mesmo emerja, mas sempre outro. É isso o que nos interessa aqui, quando pensamos no ofício do pesquisador. Reivindicamos a proposição de que as artes não são domínio exclusivo de alguns peritos da literatura, da poesia, do teatro, da pintura, da escultura ou do cinema. Reivindicamos que a vida de qualquer indivíduo pode fazer-se uma obra de arte (Foucault, 2014FOUCAULT, Michel. Sobre a Genealogia da Ética: um resumo do trabalho em curso. In: FOUCAULT, Michel. Genealogia da Ética, Subjetividade e Sexualidade: ditos e escritos IX. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. P. 214-237., p. 222). Imaginamos que nossas pesquisas possam fazer-se parceiras de modos de pensar de um filósofo como Benjamin; e que nos aventuremos a aprender com os processos criativos de artistas como Paul Klee, Paulinho da Viola, Eduardo Coutinho e tantos outros.

Parêntese: uma doutoranda e a construção de seu objeto de estudo

O que aqui escrevo sobre o ato de pesquisar, com os poros abertos ao que aprendemos dos processos criativos em arte, remete-me ao meio do caminho de uma aluna que orientei recentemente. Surpreendida por uma mudança em sua vida profissional, justo na turbulência da elaboração de sua proposta de investigação, Elena4 4 Nome fictício. se viu literalmente em pânico diante da página em branco - no caso, a tela vazia, preenchida e deletada inúmeras vezes. Chamada a assumir a vice-direção de uma escola pública, Elena via desfilar diante de si uma interminável sequência de cotidianas tragédias, envolvendo crianças e especialmente jovens de periferia urbana.

A cada sessão de orientação, Elena aparecia com um novo autor, um novo tema, uma nova angústia. Acumulava leituras de filosofia, indagando, por exemplo, sobre os diferentes tempos e seus mistérios (Chrónos, Kairós, Aión), e logo migrava para estudos específicos de teoria pedagógica (que escola, afinal, atenderia ao mesmo tempo à sua condição de espaço democrático e à tarefa genuína de uma responsável apresentação do mundo?). As leituras de Bergson e Maschelein, entre tantos bons pensadores, sucediam-se, excelentes. Mas qual o foco? - perguntava-lhe eu.

Na condição de orientadora, acabei por assumir que era preciso viver a intensidade daquele tempo de espera, tal como lemos nas cartas de Rilke ao jovem Kappus: definitivamente, eu não estava ali para fazer revelações a Elena. O vislumbre da criação pertencia a ela. Apenas a ela. E talvez isso só pudesse ser percebido na coragem de sua solidão. Sentia que era preciso provocá-la a acolher o que vibrava à sua volta, nos corredores da escola, na sala da Direção, nos gestos das colegas professoras, nos olhares dos estudantes, na angústia dos pais que a procuravam, esperançosos por uma palavra. Eu mesma experimentava a expectativa e o sofrimento daquela gestação, dela e minha. A espera de algo ainda sem nome.

Convidei Elena a rever filmes de Kiarostami, alguns deles com cenas de escola. Onde fica a casa do meu amigo? (1987)ONDE fica a casa do meu amigo?. Direção de Abbas Kiarostami. Teerã: Abbas Kiarostami Productions, 1987. (83 min.). foi um deles. Também Dez (2002)DEZ. Direção de Abbas Kiarostami. Teerã: Abbas Kiarostami Productions, 2002. (89 min.).. E alguns curtas como Duas soluções para um problema (1975)DUAS soluções para um problema. Direção de Abbas Kiarostami. Teerã: Abbas Kiarostami Productions, 1975. (5 min.). e O pão e o beco (1970)O PÃO e o Beco. Direção de Abbas Kiarostami. Teerã: Abbas Kiarostami Productions, 1970. (10 min.).. Cada detalhe das cenas imaginadas pelo cineasta iraniano iam nos aproximando de um jeito de trabalhar muito particular e generoso. Juntas, íamos tecendo um modo de pensar que fortalecia uma espécie de ética da escuta. Escuta do outro e escuta de nós mesmos. Fortalecíamos, em nós, olhares mais sensíveis, buscando captar a singeleza dos gestos, como aqueles do menino Ahmad, na saga de encontrar a casa do amigo. Brincar ou estudar; obedecer à mãe ou ajudar Nématzadé? A mais radical simplicidade cotidiana nos era, ali, oferecida de um jeito a provocar empatia e intensidade de afetos.

Alguns encontros depois, minha orientanda irrompeu na sala com seu notebook, abriu arquivos e me mostrou um diário: Comecei a anotar cenas, Rosa. Eram cenas de escola. Cenas de vida e morte. Cenas de perdas e medos. Cenas que aconteciam num espaço específico, mas que certamente o transcendiam. O drama não era o de um aluno que poderia ser admoestado por não ter feito o dever de casa no caderno. Mas, naquela escola, naquela cidade, com aquelas pessoas de periferia, havia outras histórias, comuns num país como o nosso, e tão profundamente desigual como o Irã. A jovem com síndrome de pânico, a menina abusada sexualmente, o garoto refém de traficantes, o aluno filho de pai violento. E não apenas isso. Também as crianças que pediam à profe um pouco mais de tempo com elas, como se as horas em sala de aula não contassem: para elas, definitivamente, faltava algo a mais.

Decidimos, então, que Elena continuaria registrando histórias de escola. Cenas na vida de uma vice-diretora. Cenas de uma professora de escola pública. Mais do que isso: espectadora de Fellini, de Kiarostami, de Agnès Varda, leitora de Clarice Lispector, eis que Elena mergulhou no ofício da escrita literária. Transformou seus registros diários em verdadeiros contos. A palavra ficcionada, sem deixar de ser realidade, passou a ser seu foco, seu objeto de atenção. Aos poucos, e sempre acompanhada da leitura de diários de artistas, inúmeros registros de processos criativos, Elena voltou a Bergson, a Foucault e a sua Hermenêutica do sujeito, a Maschelein e suas elaborações sobre educação e democracia. Buscou ensaios de Benjamin. Devorou Jeanne Marie Gagnebin e os conceitos de narrativa, de memória e esquecimento.

Arrisco dizer que Elena viveu uma espécie de revelação, uma feliz revelação. Roubo aqui a expressão que Fellini usou em suas memórias, para falar do mestre Rosselini. Com esse, Fellini diz que teve uma feliz revelação: a de que “[...] se podia fazer cinema com a mesma liberdade, a mesma leveza com a qual se desenha e se escreve, era possível realizar um filme se divertindo e sofrendo dia após dia, hora após hora, sem muita angústia com relação ao resultado final” (Fellini, 2011FELLINI, Federico. Fazer um Filme. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011., p. 80). Elena não temeu andar sobre a corda bamba das condições mais adversas, seja de um cotidiano escolar, seja da premência de elaborar uma tese. Entregou-se a uma ativa espera. E experimentou a tese como uma aventura que merecia e merece ser vivida e contada.

Assombrar-se com o Cotidiano: viver o espírito-criança

Os meandros da pesquisa da doutoranda Elena me permitem exemplificar, espero, o que estou tratando aqui como escuta da arte na pesquisa. Acompanhar processos de criação de um cineasta, de uma escritora, de um dramaturgo, de uma coreógrafa - todos esses relatos parecem-me promissores e imensamente profícuos na elaboração de nossas pesquisas. Talvez o que mais nos provoque neles seja o fato de que se trata de estados de devir, de acontecimentos se-fazendo.

Sabe qual é meu sonho? - confidenciou certa vez Foucault em entrevista ao Nouvel Observateur: “Criar uma editora de pesquisa. Vivo perdidamente atrás dessas possibilidades de mostrar o trabalho em seu movimento, em sua forma problemática. Um lugar onde a pesquisa poderia se apresentar em seu caráter hipotético e provisório” (Foucault apud Eribon, 1990ERIBON, Didier. Michel Foucault - 1926-1984. São Paulo: Companhia das Letras, 1990., p. 274, grifos nossos). Talvez poucos pensadores tenham sido tão radicalmente coerentes consigo mesmos, no sentido de enlaçar teoria e prática, vida e pensamento, como Michel Foucault. Tudo o que ele pesquisou e escreveu teve essa marca, pela qual ele afirma e reafirma sem cessar a ideia de que pensar é pensar diverso do que já se sabe. E não é nisso, exatamente, que reside a beleza da filosofia e da própria vida? O trabalho em movimento; aquele instante em que não se sabe, mas em que não se deixa de indagar; aquele momento-travessia, em que se suspeita de algo, buscam-se argumentos e dados e, ao mesmo tempo, desenham-se os rabiscos de possibilidades de pensamento. Se for necessário voltar atrás, que se volte, que se invente outra vez o próprio caminho.

Suponho que está aí toda a beleza da criação - filosófica, literária, artística. Não seria disso que trata a célebre passagem de Assim falou Zaratustra, de Nietzsche, sobre as três transmutações? Mas então já não tínhamos carregado tudo, sofrido toda a fome por amor à verdade? Já não tínhamos enfrentado o dragão e, na solidão do deserto, afirmáramos Eu quero? Que mais poderá o espírito? Despojado, ele dirá o sagrado sim à vida e não temerá viver o jogo, arriscará começar de novo, sempre que preciso, transmutado em espírito-criança (cfe. Nietzsche, 1996NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. In: NIETZSCHE, Friedrich. Obras completas. São Paulo: Nova Cultural, 1996. P. 209-249., p. 213-214).

Quando escrevo vida aqui remeto ao que Pierre Hadot escreve sobre Nietzsche e Goethe: para ambos, dizer sim à vida não pode prescindir da atividade artística; essa aderência vital (arte e vida), como ensinavam os filósofos antigos, fazia parte de uma experiência de ascese, absolutamente necessária e urgente para a transformação do nosso olhar, no jogo estético a enfrentar, diante das dores e das situações aterradoras da vida (Hadot, 2010HADOT, Pierre. No te Olvides de Vivir: Goethe y la tradición de los ejercicios espirituales. Madrid: Siruela, 2010.). Tal qual uma criança, há que nos assombrarmos com o que nos sucede, nas coisas mínimas do cotidiano e, simultaneamente, com aquilo que irrompe num poema, numa música, num diálogo dramático, na composição de uma imagem, numa sequência cinematográfica. A doutoranda Elena apropriou-se disso e pôde enfrentar o fantasma de sua página em branco. Na companhia de pensadores e de artistas, ela se pôs no lugar de crianças e jovens, protagonistas de histórias que passaram a ser dela também, professora e pesquisadora. Modestamente, também escritora.

Muito já se escreveu sobre pensadores que, como Foucault e Nietzsche, professaram as epifanias da criação de si mesmo, para além do grande e pesado sistema de pensamento. Mas pode-se dizer que Walter Benjamin seria, entre todos, a inspiração maior, quando se trata do elogio à incompletude de obra e pensamento - no sentido daquilo que tal abertura propicia como convite ao outro, ao leitor, ao aprendiz - para que também ele se aventure na possibilidade de criação, justamente por um tipo de construção que, generosamente, oferece-se em lacunas e movimento. E não só por esse caráter móvel de uma escrita feita em mosaico, em tão múltiplas variações; interessa-nos aqui o quanto Benjamin faz filosofia com arte, por meio da arte, em diálogo denso e inextricável com poetas, romancistas, músicos, mas principalmente em diálogo com os próprios sonhos, memórias e angústias. Todas essas fontes fizeram-se matéria-prima de seus ensaios e de sua filosofia - em que, se pudéssemos sintetizar, elegeu o belo como objeto da experiência; as coisas insuficientes como dignas de se chamarem acontecimento, reivindicando que nossas existências possam atingir, pelo trabalho do pensamento, um prazer semelhante ao que muitos criadores alcançam, pela arte (Benjamin, 2000BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um Lírico no Auge do Capitalismo: obras escolhidas III. Rio de Janeiro: Brasiliense, 2000.).

A ensaísta Beatriz Sarlo nos ajuda a aproximar Benjamin e Foucault, quando escreve sobre Passagens, que ela prefere chamar de A oficina de Walter Benjamin. Ler as notas do filósofo alemão é ser convocado a uma espécie de arqueologia, em que, longe de reconstituir uma totalidade perdida, “[...] trabalhamos sobre as ruínas de um edifício jamais construído” (Sarlo, 2013SARLO, Beatriz. Sete Ensaios sobre Walter Benjamin e um Lampejo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2013., p. 33). Para quem se dedica a pesquisar em artes e ciências humanas, o sumário dos cadernos de recortes de Benjamin se configura como verdadeira herança teórica e metodológica - pois vemos ali um trânsito livre entre fatos, dados, objetos materiais e simbólicos, lembranças, paisagens, de modo que, como escreve o próprio Benjamin, com aquilo se poderia capturar a história em suas “[...] cristalizações menos evidentes” (Sarlo, 2013SARLO, Beatriz. Sete Ensaios sobre Walter Benjamin e um Lampejo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2013., p. 34).

Estamos falando aqui de um método poético posto em ação, por Benjamin, filósofo “[...] sensível ao aspecto mais estranho, excepcional, fortemente individual da experiência [...], que descobre no incomum o significado geral, em vez de buscar o geral no habitual e na acumulação do mesmo” (Sarlo, 2013SARLO, Beatriz. Sete Ensaios sobre Walter Benjamin e um Lampejo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2013., p. 35). É isso o que nos interessa e é o que buscamos colocar em operação com mestrandos e doutorandos, como vimos com a estudante Elena: imaginar a viabilidade de um método poético de investigação e de escrita. Tal método operaria por fragmentos e intensidades, sem abandonar o horizonte de algo mais amplo - o que significaria construir provisórias totalidades, marcadas às vezes por mínimos acontecimentos, nem sempre claramente visíveis. Um método ao qual interessam bem mais os acontecimentos excepcionais, raros, desviantes, e não os grandes fatos que, a rigor, se mostram visivelmente assemelhados a tantos outros.

Como vestir os trajes do poeta, que trabalha com imagens condensadas e condensadoras, por vezes quase opacas, mas que, por força da arte da composição inusitada das palavras, acaba por iluminar justamente as dores (ou até a riqueza) de certo momento histórico e político? Por certo, não reivindicamos o lugar do poeta, do pintor ou do cineasta; não pretendemos, é claro, confundir modos tão diversos de criação. A ideia é colocar-nos na escuta de artistas, e com eles aprender sobre seus modos de elaboração de imagens, versos, personagens literários e dramatúrgicos, cenas de filmes, narrativas ficcionais. E por quê? Talvez porque estejamos supondo que as artes do pensamento não se separam do próprio pensamento com (e sobre) as diversas artes; ou que, por hipótese, nossas pesquisas se fariam mais vivazes e plenas de movimento, se tivéssemos no horizonte de nossos estudos a preocupação estética e também política, que nos levaria a olhar o chamado real com imaginação e, ao mesmo tempo, com uma lucidez que nos distancia de nós mesmos - “[...] essencial para poder continuar fazendo escolhas, realizar modificações e transformações” (como diz Fellini sobre si mesmo e o que espera que seus filmes provoquem no espectador) (Fellini, 1983FELLINI, Federico. Fellini por Fellini. Porto Alegre: L&PM, 1983., p. 130).

Michel Foucault nos deixou textos literariamente belos, mas ainda assim não se considerava, rigorosamente, um escritor, e sim um escrevente (distinção feita por Roland Barthes). Em diálogo com Claude Bonnefoy, um modesto Foucault referiu-se a si mesmo como alguém sem imaginação, uma pessoa pouco inventiva:

[...] estou do lado daqueles cuja escrita destina-se a designar, mostrar, manifestar fora dela própria alguma coisa que, sem ela, teria permanecido, se não oculta, ao menos invisível. Talvez seja aí que exista, apesar de tudo, para mim, um encantamento da escrita (Foucault, 2016FOUCAULT, Michel. O Belo Perigo: conversa com Claude Bonnefoy. Belo Horizonte: Autêntica, 2016., p. 68-69).

Embora a confissão de considerar-se nada original, a verdade é que Foucault nos encanta, e nessa condição encontra-se intimamente próximo de criadores como Magritte, justamente na medida em que, como artistas e poetas, tenta “[...] fazer aparecer o que está próximo demais do nosso olhar para que possamos ver, o que está aí bem perto de nós, mas que nosso olhar atravessa para ver outra coisa” (Foucault, 2016FOUCAULT, Michel. O Belo Perigo: conversa com Claude Bonnefoy. Belo Horizonte: Autêntica, 2016., p. 69). E, cumprindo tal intento, como ele mesmo diz, é assim que se devolve espessura e densidade (opacidade, diríamos) àquilo que “[...] costumamos experimentar como transparência” (Foucault, 2016FOUCAULT, Michel. O Belo Perigo: conversa com Claude Bonnefoy. Belo Horizonte: Autêntica, 2016., p. 69).

Pesquisar: tornar-se ética e esteticamente um outro

Colocar em primeiro plano o que está tão perto de nós; estranhar o comum, que se torna por vezes até invisível, de tão dado que é - eis um bom objetivo para o pesquisador. A doutoranda Elena experimentou um lugar novo, como vice-diretora: um aluno envolvido com traficantes não era simplesmente um aluno envolvido com traficantes. Ela foi atrás daquela ínfima existência e a tornou visível. Antes de julgá-lo precipitadamente, aproximou-se dele ética e esteticamente. Estava ali, diante dela, mais do que uma cena corriqueira nas periferias urbanas deste País. Elena perguntou-se: o que, ali, nos falava dos perigos de nosso tempo? Essa era uma importante preocupação de Michel Foucault. E essa foi também a preocupação de um dos cineastas mais surpreendentes do século XX, Abbas Kiarostami. Em livro repleto de depoimentos e relatos sobre seus filmes, o iraniano, diretor de obras célebres como Onde fica a casa do meu amigo? (1987)ONDE fica a casa do meu amigo?. Direção de Abbas Kiarostami. Teerã: Abbas Kiarostami Productions, 1987. (83 min.). e Cópia fiel (2010)CÓPIA Fiel. Direção de Abbas Kiarostami. Teerã: Abbas Kiarostami Productions, 2010. (106 min.)., seduz o leitor com uma narrativa densa e ao mesmo tempo poética, profundamente filosófica, contando-nos sobre como cria seus filmes e o que pensa do cinema. Ao ler Kiarostami, remetemo-nos a suas belas obras e, simultaneamente, vamos anotando preciosas questões - como fez nossa doutoranda Elena.

Sobre o filme Close-up (1990)CLOSE-UP. Direção de Abbas Kiarostami. Teerã: Kanoon, 1990. (98 min.)., há uma passagem em que Kiarostami nos diz sobre o desejo comum a qualquer ser humano: tornar-se um outro, modificar-se - e isso vale para o próprio cineasta, na medida em que constrói seus personagens, encarna-os, vive cada um deles. O diretor faz observações que certamente valem para todos os seus filmes. Por exemplo, a ideia de que precisamos de paciência para “[...] prestar atenção àquilo que um ser humano vive interiormente” (Kiarostami, 2013KIAROSTAMI, Abbas. Abbas Kiarostami: duas ou três coisas que sei de mim. São Paulo: Cosac Naify, 2013., p. 229-230). Segundo ele, os dispositivos jurídicos não dispõem desse tempo; diferentemente, o dispositivo da arte aproxima-se do ser humano e o coloca em primeiro plano, “[...] para vê-lo em profundidade, compreender-lhe as motivações, adivinhar seu sofrimento” (Kiarostami, 2013KIAROSTAMI, Abbas. Abbas Kiarostami: duas ou três coisas que sei de mim. São Paulo: Cosac Naify, 2013., p. 229-230).

A cada página, os relatos e as observações de Kiarostami sugerem a completa paixão pela arte de filmar, afirmando que “[...] o cinema e a vida são uma coisa só” (Kiarostami, 2013KIAROSTAMI, Abbas. Abbas Kiarostami: duas ou três coisas que sei de mim. São Paulo: Cosac Naify, 2013., p. 245). Eles nos dizem da arte da simplicidade, da genuína curiosidade em relação ao outro, de “[...] colher, da vida, a intensidade em vez da duração” (Kiarostami, 2013KIAROSTAMI, Abbas. Abbas Kiarostami: duas ou três coisas que sei de mim. São Paulo: Cosac Naify, 2013., p. 252). Mais uma vez a ideia de vida, para além de práticas ou de cotidianos. Trata-se de tempo, de acontecimento, de um olhar filosófico que recolhe o que há de mais ínfimo e o transmuda em pensamento e em atitude ética, pelo gesto de criação.

Em quase todos os textos, as observações sobre o tempo são ditas de um modo tão claro, tão modesto - como se nos permitissem escutar com calma e reverência uma pessoa mais velha, retornando a uma época em que se aceitava que sabedoria tinha a ver com muitos (e bons) anos vividos. A propósito, num encontro com estudantes de cinema, em Beirute, rememorado pelo cineasta, um dos jovens comenta que, de tão simples, o filme Dez5 5 O filme Dez 2002 se passa inteiramente dentro de um automóvel, registrando diálogos, basicamente entre mulheres. jamais seria aceito, se tivesse sido feito por um mero universitário: “Só mesmo o senhor poderia ter realizado um filme como Dez, por causa da fama que conseguiu” (Kiarostami, 2013KIAROSTAMI, Abbas. Abbas Kiarostami: duas ou três coisas que sei de mim. São Paulo: Cosac Naify, 2013., p. 263). Kiarostami recorda, na sequência: “Já que eu era o professor ali, tive de contar-lhes a verdade: fazer coisas simples exige uma boa dose de experiência. E, além disso, é preciso entender que simplicidade não é sinônimo de facilidade” (Kiarostami, 2013KIAROSTAMI, Abbas. Abbas Kiarostami: duas ou três coisas que sei de mim. São Paulo: Cosac Naify, 2013., p. 263). E conclui, no parágrafo seguinte: “Tive de esperar sessenta anos para ousar um filme como esse” (Kiarostami, 2013KIAROSTAMI, Abbas. Abbas Kiarostami: duas ou três coisas que sei de mim. São Paulo: Cosac Naify, 2013., p. 263).

Simplicidade. Humildade. Lembro aqui Clarice Lispector e os tantos textos em que ela expõe a dor e a beleza de escrever. No conto Amor - sobre a personagem Ana, sua sacola de tricô, o trajeto num bonde e o desarranjo em sua vida, quando vê um homem cego mascando chicletes (Lispector, 2016LISPECTOR, Clarice. Todos os Contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.) -, entendemos melhor o que ela diz sobre a humildade como técnica, no ofício da escrita. Por que a humildade? Clarice confessa perceber em si a incapacidade de atingir, de entender. Mais: vê-se como alguém com a “[...] plena consciência de se ser realmente incapaz” (Lispector, 2004LISPECTOR, Clarice. Aprendendo a Viver. Rio de Janeiro: Rocco, 2004., p. 62). Como Kiarostami, Benjamin, Fellini e Foucault, Clarice precisa de tempo. E de humildade. “Humildade como técnica é o seguinte: só se aproximando com humildade da coisa é que ela não escapa totalmente” (Lispector, 2004LISPECTOR, Clarice. Aprendendo a Viver. Rio de Janeiro: Rocco, 2004., p. 62).

Essa frase de Clarice abre-se, a meu ver, para o que podemos chamar de atitude ética não só do artista, movido pela interpelação do ato criativo, mas de qualquer pessoa - como pode ser o caso de um pesquisador no âmbito das artes e das ciências humanas -, alguém interessado em falar deste mundo. Até porque, ensina Gilberto Gil, tudo merece consideração6 6 Trecho da letra da música Oriente, de Gilberto Gil, faixa do disco de 1972, Expresso 2222. . Pierre Hadot (2010)HADOT, Pierre. No te Olvides de Vivir: Goethe y la tradición de los ejercicios espirituales. Madrid: Siruela, 2010., em diálogo que aproxima os filósofos clássicos ao poeta Goethe, refere-se ao tema da ocupação com o presente, no sentido da imersão filosófica e poética na intensidade da experiência, possível de se encontrar nas coisas mais triviais e ordinárias. Hadot lê neles o convite a uma entrega ao tempo presente, em que quase sempre não vemos mais do que coisas corriqueiras e fúteis, automáticas; a ideia, proposta por Goethe, é de que cada instante presente não se esgota no trivial: a ele pode-se conferir um valor ético, de deveres para consigo e para com o outro - e que isso, justamente, seria a matéria-prima da criação.

A personagem de Clarice, que saiu de casa para fazer o que há de mais prosaico (comprar ovos), vê seu pequeno e simplório mundo desfazer-se repentinamente, ao deparar-se com o cego e o chiclete. Cada um desses objetos, cada frame da sequência de imagens, olhares e sentimentos de Ana acaba, assim, por adquirir, por meio da literatura de Clarice e para o leitor, uma nobreza, uma tragicidade e uma dignidade, talvez impensáveis no andar vendado e inconsciente do cotidiano de qualquer um de nós. O presente (kairós) se impõe, é verdade; mas a arte nos inventa o elo entre tempo e eternidade - como escreve Hadot, a partir de Goethe (Hadot, 2010HADOT, Pierre. No te Olvides de Vivir: Goethe y la tradición de los ejercicios espirituales. Madrid: Siruela, 2010., p. 22).

Pergunto: como poderia o pesquisador, inebriado pela fruição das artes, todas elas e sem distinção hierárquica, também pela filosofia, interessar-se pelas realidades que lhe são mais próximas e alegrar-se espontaneamente com a própria existência? (Hadot, 2010HADOT, Pierre. No te Olvides de Vivir: Goethe y la tradición de los ejercicios espirituales. Madrid: Siruela, 2010., p. 26). Como amalgamar vontade ética e vontade estética? De que modo, até no caso de escolhermos um tema difícil e árduo, como os horrores de uma época (por exemplo, violências que atingem refugiados no mundo todo, ou jovens negros e pobres das periferias urbanas brasileiras, ou os milhares que morrem neste momento de pandemia pelo coronavírus) - como reportar essa realidade e, ao mesmo tempo, em meio a tal desassossego, transformar a si mesmo, exercer imenso esforço sobre si, converter o próprio olhar e fazer emergir, apesar de tudo, o plano da criação artística?

As perguntas não cessam. Como elaborar a analítica de tantos discursos e acontecimentos, e fazê-lo por meio da criação de si, no sentido trabalhado por Michel Foucault, em A Hermenêutica do Sujeito e em várias entrevistas, conferências e artigos, sobre o tema da estética da existência (Foucault, 2004FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004., 2010aFOUCAULT, Michel. A Escrita de Si. In: FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade e Política: ditos e escritos V. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a. P. 144-162.; 2010dFOUCAULT, Michel. Uma Estética da Existência. In: FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade e Política: ditos e escritos V. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010d. P. 288-293. ; 2014FOUCAULT, Michel. Sobre a Genealogia da Ética: um resumo do trabalho em curso. In: FOUCAULT, Michel. Genealogia da Ética, Subjetividade e Sexualidade: ditos e escritos IX. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. P. 214-237.)? Essa criação de si, vale dizer, não se separa de uma escrita que registre a atitude graciosa de viver, tal qual uma criança o faz, disponível a entregar-se ao presente e ao curso de um eterno devir. Como integrar esse gesto à pesquisa acadêmica? Não falo aqui de aplicação de uma coisa à outra, mas de ter no horizonte essa disposição, esse desejo de fazer de si mesmo obra de arte, deixando-se encharcar justamente das artes. O tempo gasto por nossa doutoranda Elena não foi em vão, já que a espera se fez de uma feliz entrega à escrita literária, às tantas narrativas fílmicas e à filosofia.

A atitude de Clarice, de achegar-se com humildade, para que não lhe escapem as coisas do mundo e sobre elas possa escrever, não seria, a meu ver, indiferente ao que propõe Didi-Huberman sobre o trabalho a que é convidado o espectador e, de modo particular, o estudioso das artes e das imagens. Haveria uma ética das produções artísticas, uma ética das imagens, no sentido de que a arte pede de nós uma atitude - o gesto de pensar sobre os grandes males produzidos pelo homem (como o horror nazista, por exemplo, que, aliás, reaviva-se em todo o mundo e muito perto de nós, no Brasil), aproximando-nos deles, malgré tout - apesar de sabermos da total impossibilidade de um acesso ao real. Isso não significa em absoluto consolar-se com uma mera abstração, ou com a fatalidade do que é dado; significa, antes, empenhar-se em compreender, apesar de tudo; mergulhar na complexidade de certos acontecimentos ou fenômenos, por belos ou terríveis que sejam (Didi-Huberman, 2014DIDI-HUBERMAN, Georges. Imágenes Pese a Todo: memoria visual del holocausto. Tradução de Mariana Miracle. Barcelona: Paidós, 2004., p. 226). Assumir que definitivamente não temos acesso direto ao real não é tão óbvio assim para nós, pesquisadores das ciências humanas. Quantas vezes cremos ter apanhado a coisa, a chamada realidade - simplesmente porque entrevistamos pessoas e registramos suas opiniões, suas memórias, seus planos? Como fazer o movimento despojado da suave aproximação, despretensiosamente, no desejo de captar e narrar lampejos de vida, na sua misteriosa existência, sem a soberba de uma suposta posse de algumas verdades, no caso, sobre a arte e a educação?

Assumir que não temos, definitivamente, posse de nada. Essa é, a meu ver, uma boa atitude para o pesquisador. Um texto exemplar, descoberto distraidamente, tem-me alimentado, seja como referência teórica, material empírico ou como inspiração analítica. Trata-se da conversa de Italo Calvino com o pintor Tullio Pericoli, sobre o tema dos furtos com arte (Calvino, 2015CALVINO, Italo. Furtos com Arte (conversa com Tullio Pericoli - 1980). In: CALVINO, Italo. Mundo Escrito e Mundo não Escrito: artigos, conferências e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. P. 65-78.). Os dois mantêm um instigante diálogo sobre os processos criativos e o problema do furto, da cópia, da releitura ou da apropriação da obra do outro. Essa é uma questão que se coloca para os artistas, pintores, escritores, cineastas - e é, igualmente, um problema para nós. Pericoli se indaga sobre a escolha de trabalhar a partir da criação de Paul Klee. Os dois discutem o que seria a posse, para um artista. Afinal, ele é mesmo proprietário de alguma coisa?. Ambos nos ajudam a pensar sobre a importância das formas “[...] descartadas, irrecuperáveis, perdidas” (Calvino, 2015BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um Lírico no Auge do Capitalismo: obras escolhidas III. Rio de Janeiro: Brasiliense, 2000., p. 66) dos processos de criação. Somos instigados a ver que qualquer atividade criativa carrega reminiscências literárias, visuais, suas e de outros (afinal, elas seriam cópias? Seriam furtos? Quem sabe: homenagens?). E quanto à apropriação do texto do outro, as citações alheias - isso tudo não poderia impulsionar-nos exatamente para não nos repetirmos? Assistimos a um diálogo de dois criadores, que falam de si mesmos e de seus processos inventivos, ao mesmo tempo em que tecem comentários a respeito de outros artistas. Discutem, teórica e livremente, sobre relações entre arte e pensamento.

Em obra recente, o cineasta Wim Wenders sintetiza muito do que vimos discutindo neste ensaio. No livro, encontramos diversificados textos sobre a criação - no cinema, na dança, no teatro, na pintura, na fotografia. Seriam furtos? Sim, furtos com arte. Trata-se de depoimentos, memórias, conferências, textos para catálogos, conversas, em que Wim Wenders elabora o que Foucault chamaria de uma genuína escrita de si mesmo; e a originalidade do cineasta alemão é que ele nos fala de si, como criador que de fato é, mas delicadamente deposita um olhar no caminho que outro artista traçou. Além disso, na maioria dos escritos, escolhe fazê-lo em versos, não exatamente querendo-se poeta, mas para criar “[...] blocos visuais de ideias”, sem perder de vista “[...] a gramática dos pensamentos” (Wenders, 2016WENDERS, Wim. Los Pixels de Cézanne y otras Impresiones sobre mis Afinidades Artísticas. Buenos Aires: Caja Negra, 2016., p. 17, tradução nossa).

No texto dedicado à coreógrafa alemã Pina Bausch, por exemplo, e sobre quem ele dirigiu o documentário Pina (2010)PINA. Direção de Wim Wenders. (Documentário). Berlin: Neue Road Movie, 2010. (106 min.)., Wenders tece comentários a respeito do quanto alguns artistas buscam de fato aproximar-se do tempo que lhes foi dado para viver, de tal modo que, cada um deles com suas ferramentas, acabam por fazer uma verdadeira incisão no real, avizinhando-se dos contemporâneos, e relatando em sua arte um pouco do que se convencionou chamar de espírito de uma época. Para Wenders, Pina se aventurou a criar no mundo do teatro e da dança, como poucos artistas o fizeram, um modo muito particular de falar da solidão humana e também dos tantos encontros, dos espaços entre as pessoas,

[...] servindo-se, como única ferramenta, de gestos e de movimentos para desvelar alegrias, felicidades e tormentos, esperanças, dores, arrebatamentos e angústias, apresentando-os diante de nossos olhos, em toda a sua transparência, em sua própria gramática e na linguagem da dança (Wenders, 2016WENDERS, Wim. Los Pixels de Cézanne y otras Impresiones sobre mis Afinidades Artísticas. Buenos Aires: Caja Negra, 2016., p. 110-111, tradução nossa).

O importante, aqui, é sublinhar o que Wenders destaca numa artista como Pina: nela, aproximar-se do próprio tempo, e dele falar pela dança, significa criar não a partir de um ato de razão ou desde uma posição amarga - já que vivemos tempos tão sombrios; pelo contrário, suas coreografias são criações imaginadas a partir do sentimento lúdico da existência: “Pina nos faz sentir uma leveza de ser que, frequentemente, nós nem acreditávamos ainda possuir; permite-nos participar de uma leveza da qual não imaginávamos ser capazes” (Wenders, 2016WENDERS, Wim. Los Pixels de Cézanne y otras Impresiones sobre mis Afinidades Artísticas. Buenos Aires: Caja Negra, 2016., p. 111, tradução nossa). Seus métodos contagiam - escreve o cineasta.

Esse é exatamente um dos pontos a que desejamos chegar, discutindo processos criativos e investigação científica: não teríamos muito a aprender com a filosofia prática da vida, levada a termo pelos artistas e filósofos aqui citados, e que parece dialogar tão belamente com os antigos, como os gregos e romanos estudados por Foucault em seu curso A Hermenêutica do Sujeito? Isso não teria a ver com a expressão raciocínio poético, usada pelo cineasta Tarkovski (2010)TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2010. - essa espécie tão particular e inusitada de raciocínio, tão mais próximo das descobertas mínimas cotidianas e das tantas complexidades da existência? Entendo que isso teria a ver com o desapego ao anseio de tudo dizer e, assim o fazendo, propiciaríamos a imaginação poética do leitor, do espectador, do estudante (e do próprio pesquisador). Pergunto: não seria esse um genuíno e saudável contágio?

Para Concluir

Interrogar-se sobre o presente. Parece que Fellini e os demais criadores citados neste ensaio fazem exatamente isso - assumem o escuro do presente, essa parte do não vivido em todo vivido, como diz Giorgio Agamben7 7 O texto reproduz a palestra de abertura de um curso sobre Filosofia Teorética em Veneza, na Itália, em 2006. Nele, Agamben se vale do poeta russo do final do século XIX, Osip Mandelstam, para criar a imagem do contemporâneo como um estado de vértebras quebradas, a exigir algum tipo de sutura. . Afinal, o que dizemos quando nos afirmamos contemporâneos? Não podemos fugir a nosso tempo - mas o fato é que o presente estará sempre distante para nós, ele não nos alcança, é completa escuridão. Agamben ressalta, então, que ser contemporâneo “[...] é uma questão de coragem: porque significa ser capaz de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida a nós, distancia-se infinitamente de nós” (Agamben, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o Contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009., p. 65).

Nas primeiras palavras da conferência, não por acaso, Agamben cita Nietzsche e Roland Barthes, acentuando que, tanto quanto esses pensadores, ele acredita que pertencer verdadeiramente a seu tempo é, de modo paradoxal, não coincidir com uma época, não estar adequado às suas pretensões; em suma, é-nos exigido que nos distanciemos, que nos desloquemos - pois essa é a única maneira de “[...] perceber e apreender o seu tempo” (Agamben, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o Contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009., p. 58-59). Estamos sempre imersos num tempo de vértebras quebradas, que requerem algum modo de sutura. Talvez os poetas, com seu sangue, possam soldar “[...] o dorso quebrado do tempo” (Agamben, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o Contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009., p. 60-61).

O filósofo italiano vira ao avesso nossos modos corriqueiros de entender o presente e a ideia de contemporaneidade: o presente é fratura, é escuridão; e ser contemporâneo é, antes, afastar-se do agora - porém com os olhos fixos neste aqui. E mais: sem deixar-se cegar pelas luzes do século em que se vive. Tal paradoxo nos remete à necessidade da arte e da poesia - estes espaços de ver na cegueira, como Chico Buarque na letra de Choro bandido: Mesmo que você fuja de mim/ Por labirintos e alçapões, / Saiba que os poetas, como os cegos, / Podem ver na escuridão8 8 Versos de Chico Buarque e música de Edu Lobo, para a peça O corsário do Rei, de Augusto Boal, 1985. .

Soldar com o próprio sangue as fraturas de um século, de um tempo, de uma dada formação - guardadas as devidas proporções, se considerarmos o ofício de um poeta, de um pintor, de um cineasta ou de um pesquisador em ciências humanas - não deixa de ser um convite radical, cuja força está numa ideia que é também de Foucault: a de que o trabalho do estudioso consiste, no limite, em fazer a experiência do que nós mesmos somos, neste preciso momento histórico. E fazê-lo, como queria Foucault, a partir da ideia de uma construção en abîme, para que o pensamento que se elabora permaneça aberto, incompleto. Em tal metodologia, uma dobra remete a outra; é a linguagem ao infinito, são as leituras ao infinito. Como escreve Sarlo (2013, p. 43-44)SARLO, Beatriz. Sete Ensaios sobre Walter Benjamin e um Lampejo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2013., “[...] alisar uma imagem, como se gosta de dizer, é encontrar na nova superfície as linhas de superfície anterior, mas modificadas”.

Embora seja uma formulação muito usada (com referência a Foucault), não cansamos de furtá-la: pensar é transformar a nós próprios, de tal forma que, ao construirmos nossos objetos de pesquisa e a eles nos dedicarmos, isso só será verdadeiro se, ao nos entregarmos a tal tarefa, nós o fizermos para de algum modo sairmos dali transformados. Só seremos verdadeiros se pudermos dizer, ao concluir, que se tornou possível (mesmo que minimamente) estabelecer novas relações com nosso objeto de estudo, com o perigo de que falamos. Para Foucault (2010b)FOUCAULT, Michel. Conversa com Michel Foucault. In: FOUCAULT, Michel. Repensar a Política: ditos e escritos VI. Rio de Janeiro: Forense, 2010b. P. 289-347., um livro (e, acrescento, uma pesquisa) “[...] funciona como uma experiência”, e esta não será nem verdadeira nem falsa. “Uma experiência é sempre uma ficção; é alguma coisa que se fabrica para si mesmo, que não existe antes e que poderá existir depois” (Foucault, 2010bFOUCAULT, Michel. Conversa com Michel Foucault. In: FOUCAULT, Michel. Repensar a Política: ditos e escritos VI. Rio de Janeiro: Forense, 2010b. P. 289-347., p. 293).

Pesquisar é, de alguma forma, fazer ficção, furtar, afastar-se de si e de seu tempo, justamente para perceber o histórico, apanhar o espírito de uma época, a nossa época, e que, por vezes, nos sufoca e nos exige imensos esforços. É raciocinar poeticamente (ou, pelo menos, tentar fazê-lo, como ensaiou a doutoranda Elena, em seus contos escolares). Ensaiar outras gramáticas, que não a nossa, costumeira. Fazer incisões não imaginadas no real. Buscar uma lucidez que nos distancia, por momentos, de nós mesmos. Meras palavras? Penso que não. Cada arte, cada linguagem, cada modo de criação nos ensina a força de um presente que jamais se reduz ao trivial: antes, veste-se de uma ética de obrigações a que somos chamados, para com o outro, para conosco mesmos. Disso é feita toda e qualquer criação. Também nossas invenções acadêmicas. Uma criança que pede à professora mais tempo é certamente um grito de alerta. Mas é também matéria de poesia e pensamento.

Notas

  • 1
    Em depoimento ao cineasta Gustavo Spolidoro, no filme De volta ao quarto 666 (2008)DE VOLTA ao quarto 666. (Curta-metragem). Direção de Gustavo Spolidoro. Porto Alegre: Fronteiras do Pensamneto, 2008. (15 min.). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PgmMhbWtjxA>. Acesso em: 03 ago. 2016.
    https://www.youtube.com/watch?v=PgmMhbWt...
    .
  • 2
    Imagem usada por Marilena Chauí no conhecido texto Janela da alma, espelho do mundo, referindo-se à pintura de Van Gogh e aos escritos de Merleau-Ponty sobre o visível e o invisível (Chauí, 1999CHAUÍ, Marilena. Janela da Alma, Espelho do Mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). São Paulo: Companhia das Letras, 1999. P. 31-63.).
  • 3
    Em conversa com Dreyfuss e Rabinow (Foucault, 2014FOUCAULT, Michel. Sobre a Genealogia da Ética: um resumo do trabalho em curso. In: FOUCAULT, Michel. Genealogia da Ética, Subjetividade e Sexualidade: ditos e escritos IX. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. P. 214-237.).
  • 4
    Nome fictício.
  • 5
    O filme Dez 2002DEZ. Direção de Abbas Kiarostami. Teerã: Abbas Kiarostami Productions, 2002. (89 min.). se passa inteiramente dentro de um automóvel, registrando diálogos, basicamente entre mulheres.
  • 6
    Trecho da letra da música Oriente, de Gilberto Gil, faixa do disco de 1972, Expresso 2222.
  • 7
    O texto reproduz a palestra de abertura de um curso sobre Filosofia Teorética em Veneza, na Itália, em 2006. Nele, Agamben se vale do poeta russo do final do século XIX, Osip Mandelstam, para criar a imagem do contemporâneo como um estado de vértebras quebradas, a exigir algum tipo de sutura.
  • 8
    Versos de Chico Buarque e música de Edu Lobo, para a peça O corsário do Rei, de Augusto Boal, 1985.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

References

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  • CLOSE-UP. Direção de Abbas Kiarostami. Teerã: Kanoon, 1990. (98 min.).
  • CÓPIA Fiel. Direção de Abbas Kiarostami. Teerã: Abbas Kiarostami Productions, 2010. (106 min.).
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  • DEZ. Direção de Abbas Kiarostami. Teerã: Abbas Kiarostami Productions, 2002. (89 min.).
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Editado por

Editor-responsável: Gilberto Icle

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2020
  • Aceito
    13 Maio 2020
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