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Didática do Inferno: teatro, pandemônio, tradução

RESUMO

Este ensaio examina a palavra didática partindo do seu uso vernacular em direção à sua gênese na cultura grega. Para além de filologismo, quer encontrar os valores de uso que encharcam a palavra. Ao investigar o uso hodierno do termo, obtido de dicionários, identifica-se a escolha da palavra grega vinda de textos cristãos, em detrimento do uso primeiro, inscrito no teatro grego arcaico. Esse esquecimento, como recalque, indica o investimento instintual que o assunto contém. Daí, a hipótese deste texto é que a didática, não obstante seus esforços a partir da segunda metade do século XX, segue inscrita em uma metafísica da presença que estabelece um ideal de ser humano. A fim de se distanciar dessa concepção, opta-se por recorrer à filosofia do inferno de Sandra Corazza em direção a uma didática do inferno, que considere, por um lado, as fraturas de um pensamento diabólico, e, por outro, assuma-a como transcriação didática.

Palavras-chave
Didática; Transcriação; Filosofias da Diferença; Educação

ABSTRACT

This paper examines the word didactics, starting from its vernacular usage and moving towards its genesis in Greek culture. Against the philologists, it wants to know the usage values that are inside the word. When the current use of the term is investigated, obtained from dictionaries, the choice of the Greek word from Christian texts is identified as much more of the first use, inscribed in the archaic Greek theatre. This forgetfulness, like repression, reveals the instinctual investment that the subject contains. Hence, the hypothesis of this text is that, despite its efforts from the second half of the 20th century onwards, didactics holds in the field a metaphysics of presence that finds an ideal of human being. In order to distance itself from this conception, it choses to follow Sandra Corazza’s philosophy of hell towards a didactics of the infernal that considers, on the one hand, the fractures of a diabolical thought and, on the other hand, its assumption as a transcreation of didactics.

Keywords
Didactics; Transcreation; Philosophy of difference; Education

Introdução

Este artigo tem o objetivo de examinar a didática, como conceito e campo. Para isso, toma como ponto de partida o surgimento da palavra grega. Essa escolha não foi feita por mera curiosidade filológica, mas quer, na gênese da palavra, examinar os valores de sua constituição. Esse procedimento é chamado por Nietzsche de genealogia. Como psicólogo, isto é, como um “leitor de signos” (Nietzsche, 2000NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: Um livro para espíritos livres. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., § 8), Nietzsche demonstra o modo como trabalha com as palavras. Para ele, primeiramente, “a origem e a finalidade” das palavras não supõem, necessariamente, que o sentido atual decorreu de uma finalidade de origem, ao contrário, “diferem toto coelo [totalmente]” (Nietzsche, 2001NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., Segunda dissertação, § 11-12). Segundo, há de se apreciar as palavras que assumem responsabilidades conceituais, pois elas respondem duplamente à filosofia e à moral, e “[…] onde quer que deparemos com uma moral, encontramos uma avaliação e hierarquização dos impulsos e atos humanos” (Nietzsche, 2001NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., § 116). Por fim, a avaliação dos valores em Nietzsche, assumida como transvaloração de todos os valores, contrapõe-se à “[…] inversão do olhar que estabelece valores” (Nietzsche, 2001NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., Primeira dissertação, § 10), típica do ressentimento; na transvaloração se quer examinar os “[…] nossos sins e nãos e ses e quês” (Nietzsche, 2001NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., Prólogo, § 2), pois sabe que “[…] cada palavra tem seu cheiro: há uma harmonia e uma desarmonia dos cheiros e, portanto, das palavras” (Nietzsche, 2008NIETZSCHE, Friedrich. Miscelânea de opiniões e sentenças. In: NIETZSCHE, Frederich. Humano, demasiado humano. Volume 2. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., § 119).

Este texto é escrito a partir de epígrafes que entoam uma espécie de canto à didática, ressoando seus primórdios, denunciando as forças que a movimentaram e sonhando com sua reinvenção transcriadora. Sua estrutura segue linhas de composição oriundas dos textos de Sandra Corazza (2002CORAZZA, Sandra. Para uma filosofia do inferno na educação. Nietzsche, Deleuze e outros malditos. Belo Horizonte: Autentica, 2002.; 2012CORAZZA, Sandra Mara. Caderno de Notas 3 - Didaticário de criação: aula cheia. Escrileituras, Porto Alegre, UFRGS, 2012. (Rede de Pesquisa).; 2013)CORAZZA, Sandra Mara. Didática-artista da tradução: transcriações. Mutatis Mutandis: Revista Latinoamericana de Traducción, Medellín, Colombia, v. 6, n. 1, p. 185-200, 2013., escritos em momentos diferentes, como atualização das potências de significação. Não se trata de lustrar conceitos para que brilhem novamente. É preciso combinar a energia de significações esquecidas – por censura, descuido ou recalque –, como forma de invocação dos mortos assassinados pela moral. Nesse sentido, este artigo trata com as palavras, feito arqueólogo, que quer ouvir delas novas configurações de sentido. Embora se valha das etimologias, não é uma filologia; embora se valha do trajeto das palavras, não é historicista. Embora prenda-se ao campo da didática, não é apenas educativo. Aposta que se pode ouvir dos ruídos sonoros dos túmulos novos encontros com a vida.

Dessa forma, este texto faz um ensaio de autocrítica, ao estilo nietzschiano; aqui a autocrítica contrapõe a didática histórico-humanista, de feição cristã, com o ensaio de uma didática do inferno. Esse movimento de autocrítica é feito a partir da leitura do livro de Sandra Corazza Para uma filosofia do inferno na educação, publicado em 2002, do qual decorrem a estrutura argumentativa e as epígrafes. Como afirma Corazza (2002, p. 33)CORAZZA, Sandra. Para uma filosofia do inferno na educação. Nietzsche, Deleuze e outros malditos. Belo Horizonte: Autentica, 2002.:

Para realizar tal experimentação, é preciso criar, como meio de imanência, uma pura contingência infernal, oposta à transcendência da bondade absoluta e do amor humanista, que não implica nenhum interesse prévio, necessidade, origem, história ou natureza da Educação, mesmo que malignos.

A Didática Histórico-Humanista

O Diabo é um derivado do humanismo historicista? Entra nas partilhas entre loucura e razão, vida sadia e morte, palavras e coisas, bem e mal?

(Corazza, 2002CORAZZA, Sandra. Para uma filosofia do inferno na educação. Nietzsche, Deleuze e outros malditos. Belo Horizonte: Autentica, 2002.).

Ao examinar a didática na condição de conceito, em seus limites e possibilidades, no estilo derridiano, quer-se desconstruir a didática, encontrar seus silêncios e tagarelices. Para tal, será trazida a história do conceito, como gesto de recordação, movimentando-o em seus efeitos de repetição e insistências, com intuito de elaborar uma abertura às possibilidades de novas efetivações.

Essa estrutura de movimentação encontra em Freud (2010)FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar. In: FREUD, Sigmund. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schreiber”), artigos sobre técnica e outros textos. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. boa tradução: recordar, repetir e elaborar. Trazer ao exame a história de um conceito exige que a investigação não suponha que o sentido perdido deva ser restituído a fim de seguir submetido a uma pretensa força semântica fundante, instituindo como tarefa alertar aos maus usuários dos conceitos, pois se furtam à essência de cada um deles. Essa posição, tipicamente metafísica, tem sido vencida por autores que suspeitam desse projeto, como bem observou Foucault em seu livro Nietzsche, Freud e Marx: eles não deram sentidos novos aos antigos conceitos, “[…] modificaram, na realidade, a natureza do símbolo [signe] e mudaram a forma geralmente usada de interpretar o símbolo [signe]” (Foucault, 1997FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud e Marx. Theatrum philosoficum. Tradução: Jorge Lima Barreto. São Paulo: Princípio, 1997., p. 17-18).

Se houver concordância com Foucault, Genealogia da moral (Nietzsche, 2001NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.), A interpretação dos sonhos (Freud, 2019FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.) e O Capital (Marx, 2013MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I. O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.), são livros que puseram fim ao século XIX, pois produziram outra natureza do signo e, ao mesmo tempo – sem que houvesse um projeto comum – modificaram o modo de leitura desses novos e velhos signos. Com isso, Deleuze concorda ao afirmar que

[…] um fenômeno não é uma aparência, nem mesmo uma aparição, mas um signo [signe], um sintoma que encontra seu sentido numa força atual. A filosofia inteira é uma sintomatologia, uma semiologia. As ciências são um sistema sintomatológico e semiológico

(Deleuze, 1976DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Tradução: Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976., p. 3).

A filosofia como sintomatologia decorre do modo como Nietzsche, Freud e Marx trataram os signos; a filosofia como um sistema sintomatológico. Marx concorda com tal dispositivo quando escreve que “[…] toda vez que acreditamos vislumbrar os sintomas que o anunciam, estes desaparecem de novo no ar” (Marx, 2013MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I. O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.). Nietzsche, em sua crítica dos valores morais, indaga sobre as “condições e circunstâncias nas quais nasceram” esses valores morais, vistos “[…] como consequência, como sintoma, máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas também moral como causa, medicamento, estimulante, inibição, veneno” (Nietzsche, 2001NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., Prólogo, § 6). Por fim, Freud trata o “sonho como um sintoma”, cabendo-lhe um método de interpretação próprio, afinal, sintomas não são indicações acabadas de causas desconhecidas, mas pontos de entrada investigativos, como convites a multiplicidade de caminhos labirínticos (Freud, 2019FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.).

Para além de estratégias hermenêuticas, que perseguem o sentido dado nas coisas, ideias ou valores, interessam as forças condensadas em conceitos, fazendo da interpretação, por um lado, uma sintomatologia e, por outro, como cena de criação de sentido a essas forças. A tarefa imposta a este artigo é trazer o conceito didática e o que, com ele, pode pôr-se a pensar, como campo e como prática.

Das Palavras

Gritamos palavras indizíveis

(Corazza, 2002CORAZZA, Sandra. Para uma filosofia do inferno na educação. Nietzsche, Deleuze e outros malditos. Belo Horizonte: Autentica, 2002.).

A adjetivação da palavra didática guarda indícios da combinação de ação pedagógica com preceitos morais. O senso comum mostrava essa mistura quando, ainda há pouco tempo, dizia-se que a docência – pretenso lugar da didática – era questão de vocação, termo usado, predominantemente, em religiões de mistério.

O substantivo feminino didática tem vínculos semânticos com a língua grega. Chantraine (1980)CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Histoire des mots. Paris: Éditions Klincksieck, 1980. e Liddell e Scott (1996)LIDDELL, Henry; SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. Oxford: Clarendon Press, 1996. indicam que o verbo dáô [δάω] – que significa aprender – com seu tema duplicado, veio a compor o verbo didáskô [διδάσκω], instruir; o verbo no aoristo é édidáchthên [ἐδιδάχθην], que significa tanto o passado “instruído” ou “aprendido”, como o uso que o poeta cômico antigo Cratinos (519-422 a.C.) fez de uma peça de teatro [drãma | δρᾶμα] que foi produzida. De certo modo, pode ser dito que a peça foi ensinada. Isso indica que a palavra, em seu ambiente inicial, instala-se na comédia antiga. O poeta era produtor [dîdaskãlos | δῐδασκᾰλος] que ensinava e ensaiava a peça cômica. Não é sem razão que a palavra mestre também será grafada por dîdaskãlos.

Na língua grega, o substantivo feminino dídaksis [δίδαξις] significa ensino, instrução, como na Metafísica de Aristóteles (1933)ARISTÓTELES. Metaphysics. Volume I. Books 1-9. Tradução: Hugh Tredennick. Cambridge: Harvard University Press, 1933. (Loeb Classical Library)., em que se encontra: “[…] fica evidente que, no caso das coisas simples, não é possível indagar ou ensinar [dídaksis], mas o método de investigá-las é outro” (Aristotle, 1933ARISTÓTELES. Metaphysics. Volume I. Books 1-9. Tradução: Hugh Tredennick. Cambridge: Harvard University Press, 1933. (Loeb Classical Library)., 1041b). Dessa raiz, didaskalía [διδασκαλία] carrega o mesmo sentido de dídaksis, como pode ser visto em Platão (1988)PLATÃO. A República. Tradução: Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998. na seu República, quando Sócrates trata os sofistas como mercenários pois pretendem compendiar o senso comum chamando-o de ciência “[…] para fazer deles objeto [technên | τέχνην] de ensino [didakalían | διδασκαλίαν]” (Platão, 1998PLATÃO. A República. Tradução: Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998., 493b).

Atualmente, a palavra didática é assim dicionarizada:

  1. no brasileiro Houaiss, didática é palavra datada de 1836, significando “[…] arte de transmitir conhecimentos; técnica de ensinar; parte da pedagogia que trata dos preceitos científicos que orientam a atividade educativa de modo a torná-la mais eficiente”; vem do grego didaktikê (Houaiss, 2009HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2009.);

  2. no dicionário alemão Duden, Didaktik tem sua origem no grego didaktikós; o tom da significação do termo está na teoria e método de ensino (Drosdowski, 1996DROSDOWSKI, Günther. Duden. Deutsches Universalwörterbuch A-Z. Mannheim: Dudenverlag, 1996.);

  3. a língua francesa trata didactique, do grego didaktikós, como “a arte de ensinar” (Littré, 1957LITTRÉ, Émile. Dictionnaire de la langue française. Paris: Jean-Jacques Pauvert; Gallimard; Hachette, 1957.);

  4. do mesmo modo, a palavra espanhola didáctico (do grego didaktikós), quando adjetivo, significa “pertencente ou relativo ao ensino”; quando substantivo, “arte de ensinar”.

  5. o italiano Treccani (2014)TRECCANI, Giovani. Dizionario della lingua italiana. Roma: Istituto della Enciclopedia Italiana, 2014. afirma que o substantivo didàttica decorre do adjetivo didàttico (do grego didaktikós), derivado do verbo didáskô; o substantivo feminino vincula-se às teorias e métodos de ensino;

  6. o Oxford Dictionary of English (Stevenson, 2010STEVENSON, Angus. Oxford Dicitonary of English. Oxford Dictionary of English. Oxford: Oxford University Press, 2010.) localiza a palavra que didact em meados do século XVII, vindo do grego didaktikós, com o mesmo sentido dos outros idiomas;

  7. o Grande Dicionário da Língua Portuguesa (Teixeira; Da Costa; Da Silva, 2013TEIXEIRA, Graciete; DA COSTA, Margarida Faria; DA SILVA, Sofia Pereira. Grande Dicionário da Língua Portuguesa. Porto: Porto Editora, 2013.), de Portugal, afirma que o substantivo feminino didática significa “ciência auxiliar da pedagogia”, “série de métodos e técnicas” de ensino e “arte e ciência de fazer aprender”; indica como origem o grego didaktiké como “arte do ensino”.

Com esse breve levantamento, é possível identificar a palavra grega didaktikós [διδακτικός] como origem da palavra didática, em todos os idiomas citados, cujo significado é “apto ao ensino”. São poucas as ocorrências dessa palavra grega, em que predomina o uso do termo como atributo moral, ou seja, a didática [didaktikós] é uma qualidade moral. Se essa suposição estiver correta, é possível explicar a recepção desse termo nas línguas vivas, do mesmo modo a conotação quase religiosa de seu uso, em ideias como a docência ser uma vocação ou o dever de ela ser feita por amor – expressões já em desuso, mas ainda presentes no imaginário social.

Como dito, o adjetivo didaktikós – “apto ao ensino”, “próprio para instruir”, “didático” – ocorre em três textos de toda a literatura grega arcaica e antiga. Inicialmente, em duas cartas paulinas enviadas a um cristão de nome Timóteo e em Contra os éticos, de Sexto Empírico. Na primeira carta a Timóteo se encontra escrito:

[1] Eis uma coisa certa: quem aspira ao episcopado, saiba que está desejando uma função sublime. [2] Porque o bispo tem o dever de ser irrepreensível, casado uma só vez, sóbrio, prudente, regrado no seu proceder, hospitaleiro, capaz de ensinar [didaktikón | διδακτικὀν]. […] [7] Importa, outrossim, que goze de boa consideração por parte dos de fora, para que não se exponha ao desprezo e caia assim nas ciladas do diabo [toû diabólou | τοῦ διαβόλου]

(Bíblia..., 2018BÍBLIA Interlinear Português - Grego/Hebraico. Timóteo I. Tradução: José Simão. Toronto, Ontário: Sociedade Bíblica do Canadá, 2018., 1 Timóteo, livro 3, § 1-7).

Esforço algum é feito para ler nessa lista de recomendações eminentemente morais que a didática seja considerada uma entre outras ordenações moralistas; reforçada na segunda carta:

[24] Não convém a um servo do Senhor altercar; bem ao contrário, seja ele condescendente com todos, capaz de ensinar [didaktikón], paciente em suportar os males. [25] É com brandura que deve corrigir os adversários, na esperança de que Deus lhe conceda o arrependimento e o conhecimento da verdade, [26] e voltem a si, uma vez livres dos laços do demônio [toû diabólou], que os mantém cativos e submetidos aos seus caprichos

(Bíblia..., 2018BÍBLIA Interlinear Português - Grego/Hebraico. Timóteo I. Tradução: José Simão. Toronto, Ontário: Sociedade Bíblica do Canadá, 2018., 2 Timóteo, livro 2, § 24-26).

Essas cartas paulinas que adversam contra as “paixões da mocidade”, ambas ameaçam o risco de sucumbir às “ciladas diabólicas” ou “laços do demônio”; entre todas as imposições da moral paulina, está a de ser “capaz de ensinar” [didaktikón]. A terceira referência, no caso, não cristã, vem do médico cético Sexto Empírico em sua adversão aos éticos:

Além disso, se o homem sensato ensina o insensato, a sabedoria deve estar ciente da falta de sabedoria, assim como a arte da não-arte. Mas a sensatez não pode estar ciente da insensatez; portanto, o homem sensato não está apto-ao-ensino [didaktikós] dos insensatos

(Sexto Empírico, 1936, p. 504-505, § 248).

Tendo sobre a mesa a leitura Sexto Empírico e São Paulo, vemos o apóstolo de última hora determinando a um líder de uma comunidade cristã o que, com boa vontade, poderíamos chamar de sensatez: para Sexto Empírico, a sensatez não ensina ao insensato; logo, quem é sensato não é “capaz de ensinar” a insensatez, justamente o alvo de sua educação. Porém, esse termo de tão pouca ocorrência na literatura grega antiga é justamente aquele que os dicionários contemporâneos dizem estar vinculado à “arte de ensinar”, à didática. Pois a hipótese deste trabalho é que esse ideário moral cristão funda uma noção de didática que insiste em não abandonar a “capacidade de ensinar”, não como técnica, mas como dispositivo moral. Irá verificar-se, com alguns exemplos, se tal afirmação é sustentável.

Ante a ameaça apostólica dos laços diabólicos aos que se opõem aos preceitos morais listados, entre eles, a “aptidão ao ensino”, será ensaiada uma resposta que não adjetive a didática – como compreendia até momento – que dispense sua aura fundante espiritualizada, como vocação, boa conduta, exemplo de retidão, para desenhar uma substância informe que seja verbo [didáskô], cuja ação é remunerável [dídaktra | δίδακτρα], exercida em uma instituição [didaskaleîon | διδασκαλεῖον] por um professor [didáskalos | διδάσκαλος] que manuseia o ensino [didaskalía | διδασκαλία] pelo trato de uma lição [didaskálion | διδασκάλιον].

No O Anticristo (Nietzsche, 2007NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: Maldição ao cristianismo. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., § 6), um livro que indaga sobre o que é bom, o que é mau, o que é felicidade, Nietzsche (2007, § 6)NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: Maldição ao cristianismo. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. golpeia o Cristo, a maior invenção de São Paulo. Seu principal argumento é de que nos valores da humanidade faltam vida e vontade, e por isso são valores de declínio, tais “[…] valores niilistas preponderam sob os nomes mais-sagrados”. Nesse sentido, podemos tomar a obra como uma indicação possível dos textos e recomendações de São Paulo. O apóstolo tardio, ao criar o seu evangelho, assim como outros, “[…] traduziram para sua própria crueza uma existência totalmente imersa em símbolos e incompreensibilidades” (Nietzsche, 2007, § 31). O resultado dessa empresa é que “[…] com Paulo o sacerdote quis novamente chegar ao poder — ele tinha utilidade apenas para conceitos, ensinos, símbolos com que são tiranizadas as massas, são formados os rebanhos”. Por fim, escreve: “[…] com Paulo o sacerdote quis novamente chegar ao poder” (Nietzsche, 2007, § 42). Pois, aqui, Nietzsche faz uma importante distinção: a vontade de potência se contrapõe ao sacerdote que quer poder: a vontade quer domínio, sim, e isso é sintoma de vida; o padre quer domínio, sim, mas seu resultado foi a décadence, pois, ao contrário da vida, submeteu-a à pequenez da moral. O impulso à vida diz sim; o impulso à sacerdotia diz não.

Desse modo, a palavra didática que se alcança, em seu uso hodierno, foi assumida como tradução da palavra grega didaktikós, que, como se viu está forjada no uso da literatura evangélica das comunidades cristãs iniciantes; melhor, como poder moral de líderes desses grupos.

Por opor-se à didática dos modos cristãos [didaktikós], a didática do inferno não vê no laço demoníaco [diábolos | διάβολος] um cativeiro, mas sua libertação. Como orienta Corazza (2002, p. 31), trata-se de libertar-se “[…] do culto à totalidade, transcendência, dialética, metafísica, humanismo, bem como dos casais de tensões certo/errado, culpa/castigo, bem/mal, morte/vida. Foge do pensamento único para tornar as singularidades possíveis, afirmar o múltiplo, multiplicar os devires”. Essa didática afirma aquele que se sabe não apto-ao-ensino, não-vocacionado, embora insista em ensaios e experimentações; ela compreende que a substância é um nome que se dá e não uma natureza.

Dos Livros

Transliteração: mudar o livro é mudar a vida. Cenografia espaço-temporal. Nos passeios de uma-vida, aparição de personagens

(Corazza, 2014CORAZZA, Sandra Mara. Introdução ao método biografemático. Em Tese, v. 20, n. 3, p. 48-65, dez. 2014. Disponível em: http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/emtese/article/view/8254. Acesso em: 26 jul. 2021.
http://periodicos.letras.ufmg.br/index.p...
, p. 61).

Há dois livros constituintes da noção de didática; Didática Magna (Comenius, 2011COMENIUS, John Amos. Didática Magna. Tradução: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2011.) e Ratio Studiorum (Miranda, 2009MIRANDA, Margarida. Código pedagógico dos Jesuítas: Ratio Studiorum da Companhia de Jesus. Campo Grande: Esfera do Caos, 2009.) foram cruciais na organização do ideal educacional moderno. Ambos os documentos estão inscritos no ambiente cristão. Enquanto se entende que o pensamento filosófico moderno foi distanciando-se progressivamente de seu vínculo religioso medieval, ao que parece, o mesmo não aconteceu com a didática. Desse modo, pode supor-se que o cristianismo foi responsável pela transposição do ideal grego da dídaksis ou didaskalía no ideal ascético da didática cristã, como didaktikós.

No Brasil, a construção da educação, como ideal civilizatório, se deu sob a tutela da fé cristã, como afirma Saviani (2019)SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2019. (Coleção Memória da Educação).: “A inserção do Brasil no chamado mundo ocidental deu-se, assim, por meio de um processo envolvendo três aspectos intimamente articulados entre si: a colonização, a educação e a catequese”. Mesmo que se assuma a história da didática no Brasil como progressivo distanciamento do cristianismo educacional católico, com a importante contribuição do tecnicismo americano e do pensamento crítico dos anos 1980, o sentido vocacional, o ideal humanista e a expectativa redentora seguem entranhados nas práticas e concepções da educação.

Livros de didática soam diferentes em diferentes tempos, por óbvio. Designados como gênero épico, na Grécia e Roma antigas; como manuais de instrução da fé, ao longo da história cristã; ou tratados acadêmicos para escolas, na contemporaneidade; aqui, servirão como ilustração de movimentos de pensamento instalados na Pedagogia. Chamar os textos que serão referidos a seguir por livros didáticos é um exagero retórico, pois soa como algo muito próprio da escolarização brasileira, com o conhecido livro didático, instituído por Gustavo Capanema em 1938. E não é o caso, certamente.

Nesse contexto, alguns textos podem ser reconhecidos como um gênero literário de nome didático. Como assinala Peter Toohey um “[…] épico didático fala com uma única voz autoral e isso é direcionado explicitamente a um destinatário”; é um texto que ocupa o lugar do doctor, eruditor, praeceptor, isto é, um texto que pretende dar ensinamentos, orientações; seu conteúdo “[…] é instrucional, e não meramente exortativo”, o que dá ao gênero um papel próprio; nesse estilo, há “painéis ilustrativos”, figurações, em muitos casos mitológicas, que funcionam em conjunto com o texto (Toohey, 2010TOOHEY, Peter. Epic lessons: An introduction to ancient didactic poetry. New York: Routledge, 2010., p. 4). Tais características se aparentam, com significativa proximidade, aos livros didáticos atuais. Contudo, o gênero literário didático não ocupará espaço neste texto; aqui, quer-se traçar, por deliberação, certos textos que demonstram como o ocidente foi, pouco a pouco, dando sentido a ideia de didática pela aproximação com a palavra grega didaktikós.

Para tal empreitada, seis livros serão brevemente apresentados: Ars Amatoria, de Ovídio, como exemplo de poesia didática, escrito entre 1 a.C. e 1 d.C., cuja característica é seu intento instrucional; Didachê, escrito em grego – documento cristão do fim do século I – como exemplo de uma didática moral, condensando os preceitos cristãos a serem instruídos à religião paulina; escrito em latim, no final da década de 1120, Dĭdascălicon veio a se tornar o principal documento da catequese cristã, pois reuniu, em um só documento, a estrutura do conhecimento necessário à filosofia e às artes, como satélites do conhecimento sagrado; Ratio Studiorum, como pedagogia jesuítica, ocupou grande papel na construção da educação brasileira; Opera Didactica Omnia, de Amós Comenius, como o mais robusto livro sobre a didática na modernidade; e The Technology of Teaching, como texto fundante do tecnicismo que emergiu no Brasil nos anos 1970. Nesse breve percurso, há de se observar se a didática vem a constituir seu campo como flutuações de um ponto essencial, que é o sentido cristão que o termo assumiu, distanciando-se do ambiente nascente do teatro grego.

Ars Amatoria

O que é que seria do ‘Amor Pedagógico’, que é um valor cristão, sem esse ‘Poder do Ressentimento’, que é uma prática judaica, se a moral da Pedagogia não transformas-se a vontade de potência infantil na moral da fraqueza adulta?

(Corazza, 2002CORAZZA, Sandra. Para uma filosofia do inferno na educação. Nietzsche, Deleuze e outros malditos. Belo Horizonte: Autentica, 2002.).

Texto escrito no último século a.C., Arte de amar, de Ovídio (2011)OVÍDIO. Amores & Arte de amar. Tradução: Carlos Minchillo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., coloca a leitora em uma experimentação do aprendizado de aula em seus três livros: os dois primeiros, dirigido aos homens, o último, às mulheres de Roma. Conforme definido por Volk (2002), esse gênero literário, reconhecido como didático, coloca a poesia ovidiana como predefinida nos quatro critérios relacionais aos arcabouços genéricos daquilo que se pretendia ensinar. Embora o texto não mantenha, fortemente, um tom professoral, o dístico elegíaco reproduzido nessa técnica estrutura, em seus três livros, narrativas; que são muitas vezes místicas, muitas vezes digressivas, para o ensinamento de estratégias de conquista de parceiros amorosos. Contrapondo-se, por exemplo, aos registros de sua época: ao relatar a lenda do rapto das sabinas, Ovídio constitui traços do magister que, embora com interesse para o jogo erótico, vincula o curso amoroso a um plano de leitura que reúne um conjunto de preceitos amorosos que, para além de conselhos práticos, tornam-no mais do que um simples manual prático.

Vejamos as linhas de abertura do texto:

Se alguém das nossas gentes não conhece a arte de amar, leia este canto; e, depois de o ter lido, entregue-se, com sabedoria, ao amor. E a arte e as velas e os remos que fazem mover as naus, é a arte que faz mover, ligeira, a quadriga. E a arte que deve reger o Amor. Era hábil Automedonte nas corridas e no manejo das rédeas; Tífis, na proa hemônia, era um mestre; a mim, Vênus me designou o artesão do Amor; o Tífis e o Automedonte do Amor, assim me hão de chamar

(Ovídio, 2011).

É possível dizer que o poema é instrutor, pois dele vem um ensino para aquisição de habilidade da sedução. O poeta usa a palavra ars para designar seu ensino, isto é, amar pode constituir matéria de ensino, dado seu caráter prático. A palavra latina ars é correlatada ao grego téchnê [τέχνη]. Nesse caso, o poema é didático porque traz o saber necessário ao domínio da técnica. Ao aprendiz – apresentado apenas como gente comum – é dado ler; a expressão legat et lecto sugere que o aprendiz leia com envolvimento, que traga sua leitura para si. O poema também canta que Tífis, mestre [magister], e Vênus, artífice [artifex], deram ao poeta-poema as artes que dominam, usadas para ensinar a quem lê a arte de amar.

A tradição grega, que reserva à palavra téchnê a ascensão da prática rotineira à sistematização técnica, no texto ovidiano compõe a arte, no caso, de amar. O caráter sistemático e, de certo modo, universalizante coloca o poema da sedução como ensino, pois pode ser aprendido e, por consequência, ensinado. A relação de alguém que ensina – o poeta, o autor, o professor – com um aprendiz disposto a ter domínio do ensino, explicita ao que foi chamado por poema didático.

Didaquê

[Esse livro do Inferno] integra-se à crítica da subjetividade, […] problematiza o sujeito essencialmente representativo, coerente, ativo, autônomo, consciente, racional, submetido ao Princípio da Identidade Universal, capaz de exorcizar toda forma de diferença

(Corazza, 2002CORAZZA, Sandra. Para uma filosofia do inferno na educação. Nietzsche, Deleuze e outros malditos. Belo Horizonte: Autentica, 2002.).

Foi escolhido como segundo livro desta história humanista da didática um documento do fim do século I d.C. Didaqué, ou Ensino dos Doze Apóstolos, é um dos textos cujos trechos mais comparecem na literatura cristã emergente do período pós-apostólico. Há hipóteses de que sua autoria, de um judeu convertido ao cristianismo, tenha sido ouvinte dos apóstolos, assistente ou algo assim. Sua função era a de ser usado na doutrinação de neófitos. De fato, como coletânea, parece condensar os elementos fundamentais da nova religião judaica que, progressivamente, toma feições romanas.

O título do livro, didachê [διδαχή] é substantivo que decorre do verbo grego didáskô. Assim, ensino, ou instrução, entoa o sentido do documento, qual seja, dá instruções, vinda dos doze apóstolos, de preceitos morais que devem fazer parte do comportamento e dos valores dos cristãos recém-convertidos. Em Platão, didachê ocorre no livro República, quando escreve: “Por conseguinte, o cálculo, a geometria e toda a propedêutica que constitui o preparo para a dialética devem ser ministrados na infância, sem fazê-los aprender impondo nosso sistema de instrução [didachê]” (Platão, 2013PLATÃO. Republic. Volume I. Books 1-5. Tradução: Christopher Emlyn-Jones, William Preddy. Cambridge: Harvard University Press, 2013. (Loeb Classical Library)., p. 186).

A Ética a Nicômaco de Aristóteles (1926)ARISTÓTELES. Nicomachean Ethics. Tradução: Harris Rackham. Cambridge: Harvard University Press, 1926. (Loeb Classical Library). traz outro exemplo do uso da palavra grega:

Ora, alguns pensam que a virtude é um dom da natureza; outros, que nos tornamos bons por hábito e outros ainda pelo ensino [didachê]. A dotação natural obviamente não está sob nosso controle; é concedida àqueles que têm sorte, no verdadeiro sentido, por alguma causa divina. Novamente, a argumentação e o ensino [didachê] não são, receio, igualmente eficazes em todos os casos: o solo deve ter sido cultivado anteriormente pelo hábito, tornando alguém capaz de apreciar ou desapreciar corretamente

(Aristóteles, 1926ARISTÓTELES. Nicomachean Ethics. Tradução: Harris Rackham. Cambridge: Harvard University Press, 1926. (Loeb Classical Library)., p. 630).

A instrução advinda do documento Didaqué tem início inferindo que há dois caminhos às pessoas: “o caminho da vida, e o outro, o da morte”. Essa abertura assemelha-se à formulação parmenídica, qual seja: “[…] os únicos caminhos de inquérito que são a pensar: o primeiro, que é e, portanto, que não é não ser […] o outro, que não é e, portanto, que é preciso não ser” (Apostolic Fathers, 2003APOSTOLIC FATHERS, The. Didache. In: EHRMAN, Bart (Ed.). The Apostolic Fathers. Volume 1. I Clement. II Clement. Ignatius. Polycarp. Didache. Translate: Bart Ehrman. Cambridge: Harvard University Press, 2003. P. 405. (Loeb Classical Library)., p. 416). Esse dualismo lógico de Parmênides parece orientar o documento cristão. O caminho da vida é amar a Deus e a seu próximo, mesmo se for inimigo. Logo, o primeiro caminho é a trilha de um amor incondicional. O ensino que decorre desse caminho é pedir o favor divino a todos, sendo ou não adversários. A segunda instrução é apresentada em uma lista de proibições, como “não matar”, “não cometer adultério” entre outros, semelhante às tábuas da lei mosaica, isto é, a instrução é não ter determinado comportamento ou não praticar algumas ações. No capítulo 4, o documento insiste em que as crianças devem ser instruídas nesses mesmos preceitos que são dirigidos aos adultos. O capítulo 11 faz um importante movimento com o uso da palavra grega didachê: “[…] se aquele que ensina se distanciar e ensinar outra instrução [didachên], não lhe dêem atenção” (Apostolic Fathers, 2003APOSTOLIC FATHERS, The. Didache. In: EHRMAN, Bart (Ed.). The Apostolic Fathers. Volume 1. I Clement. II Clement. Ignatius. Polycarp. Didache. Translate: Bart Ehrman. Cambridge: Harvard University Press, 2003. P. 405. (Loeb Classical Library)., p. 435). Essa afirmação, ao modo como foi apresentado anteriormente, e o conteúdo desviante tornam o ensinador [didáskalos] perverso. Mais adiante, no capítulo 15, o documento elenca valores assumidos pelo cristianismo como condição para que sejam mestres nas comunidades.

Desse modo, esse documento, que circulou nas comunidades apostólicas do século I, faz com que a instrução [didachê] seja feita por quem tem a qualidade moral compatível com os valores cristãos. Não é possível derivar outros problemas advindos do documento, mas é de se pensar se a instrução, mesmo que o conteúdo esteja alinhado com os preceitos cristãos, mas feito por quem não tem um comportamento moralmente aceito pelos apóstolos, nada valerá, ou seja, se a mensagem deve corresponder ao mensageiro.

Dĭdascălicon

Ao realizar uma experimentação com o inferno, [esse] livro busca formular novas indagações, valorar outros valores, conceber novos afetos, adensar diferentes emoções. [...] Precisará ser lido como não contendo nada a compreender ou interpretar e tudo a estranhar

(Corazza, 2002CORAZZA, Sandra. Para uma filosofia do inferno na educação. Nietzsche, Deleuze e outros malditos. Belo Horizonte: Autentica, 2002.).

O livro Dĭdascălicon (São Vítor, 2018SÃO VÍTOR, Hugo de. Didascalicon sobre a arte de ler. Tradução: Roger Campanhari. Campinas: Kírion, 2018.) apresenta a “arte de ler” – ars legendi –, que se propõe a estabelecer o que deve ser lido, em qual ordem e como deve ser lido. Escrito no final da década de 1120 por Hugo de São Vítor, teólogo saxônico e professor da abadia parisiense de São Vítor, o livro procurou organizar o conhecimento filosófico, tido como profano, com o conhecimento sagrado, advindo do cânone bíblico católico. Sua conclusão é de que a filosofia é “[…] a disciplina que investiga integralmente a razão de todas as coisas humanas e divinas”. Deste modo, afirma: “[…] aprende tudo, e depois verás que nada é supérfluo. Um conhecimento limitado não nos agrada” (São Vitor, 2018SÃO VÍTOR, Hugo de. Didascalicon sobre a arte de ler. Tradução: Roger Campanhari. Campinas: Kírion, 2018.).

A palavra latina dĭdascălicon – correlato da palavra grega didaskalikós – significa “pertencente à instrução”. No caso deste livro, São Vítor (2018) SÃO VÍTOR, Hugo de. Didascalicon sobre a arte de ler. Tradução: Roger Campanhari. Campinas: Kírion, 2018.adota como princípio menos o ensinar do que o aprender. Para ele, o ensino que permite aprender é, fundamentalmente, o de ler corretamente; assim, “[…] ensina com que qualidade deve ler a Sagrada Escritura aquele que busca nela a correção de seus costumes e um modo de viver. Por último, instrui aquele que a lê por causa do amor ao conhecimento, e assim a segunda parte também tem seu fim” (São Vitor, 2018SÃO VÍTOR, Hugo de. Didascalicon sobre a arte de ler. Tradução: Roger Campanhari. Campinas: Kírion, 2018.). Dito de outra forma, a técnica da leitura permite acesso ao conhecimento humano e divino, se houver disposição de espírito para alcançar o fim supremo do conhecimento. Já na abertura do livro, Hugo de São Vítor reconhece que pode haver falta de disposição para aprender, identificando que aqueles que “[…] não quiseram aprender” não o fizeram “[…] para não terem de agir corretamente” (São Vitor, 2018SÃO VÍTOR, Hugo de. Didascalicon sobre a arte de ler. Tradução: Roger Campanhari. Campinas: Kírion, 2018.). Essa concepção aproxima-se dos gregos, que também julgavam o erro como decorrente da ignorância. Desse modo, parece que o que pertence à instrução é o aprendizado do estudo logicamente organizado, independente do esforço maior ou menor para aprender.

Se o texto paulino exorta para que sejam líderes aqueles que são “aptos ao ensino”, essa não é uma preocupação medieval de São Vítor: a perfeita associação entre conhecimento profano e divino e o domínio técnico da correta leitura só não conduz ao bem se, deliberadamente, não quiser tornar-se um bom cristão. No limite, o correto comportamento moral decorre da disposição em dominar a arte da leitura.

Ratio Studiorum

[…] somente por meio da loucura exaltada do pensamento, a imaginação educacional poderá traçar o seu próprio plano de imanência e criar seus personagens, enquanto a invenção conceituai instaura a sua festa

(Corazza, 2002CORAZZA, Sandra. Para uma filosofia do inferno na educação. Nietzsche, Deleuze e outros malditos. Belo Horizonte: Autentica, 2002., p. 13).

Quase quinhentos anos após o texto de Hugo de São Vítor, outro modelo pedagógico religioso foi lançado, dessa vez apoiado às representações jesuítas: o Ratio Studiorum. Com a intenção de empreender um projeto de educação e formação dos integrantes da Companhia de Jesus, o livro é, em uma leitura simplista, a composição de um manual prático: um plano educacional com mais de 400 regras para todos os atuantes vinculados ao ensino jesuíta. Para Miranda (2009)MIRANDA, Margarida. Código pedagógico dos Jesuítas: Ratio Studiorum da Companhia de Jesus. Campo Grande: Esfera do Caos, 2009., o manual era uma combinação de estudos humanísticos e científicos, cuja formação era ideal tanto para leigos, quanto para religiosos, fomentando um aprendizado harmônico, a fim do desenvolvimento das faculdades mentais e afetivas de acordo com a natureza e destino das disposições espirituais. A escolha do professor [professores quomodo comparandi] deve observar aqueles que “[…] parecem mais competentes [videntur aptiores], os mais eruditos, aplicados e assíduos, os mais zelosos pelo progresso dos alunos não só nas aulas senão também nos outros exercícios literários” (Franca, 1952, p. 120). Curiosa escolha tradutória de Leonel Franca à expressão videntur aptiores por “mais competente”. A palavra latina videntur decorre de vĭdĕor – ser visto, mostrar-se, parece –; aptiores, adjetivo de aptus, se refere a “próprio”, “apropriado”. Tomando aptiores com o mesmo sentido de apto, em português, permite que se traduza para algo como “que se mostra mais apto”, sentido muito próximo do grego didaktikós, “apto-ao-ensino”. O sufixo nominal tikós adjetiva a didática, como algo próximo de ensinador. A expressão latina videntur aptiores pode ser entendida como “parece mais inclinado”; essa tradução aqui escolhida remete ao sentido de que uma inclinação diz respeito a um movimento natural, ou próprio, de algo ou alguém. Assim, devem ser escolhidos, prescreve a Ratio Studiorum, professores que parecem ser inclinados ao ofício.

Desse modo, de um lado, a Companhia de Jesus reconhece ser possível identificar a “inclinação”, ou não, de uma pessoa ao magistério, muito embora crie um elenco de outras características para o candidato ao magistério. Por outro lado, inscreve-se na herança de São Vítor, ao pretender organizar o ensino, a escolha dos conteúdos e os valores morais que devem fazer parte da educação. Ao que parece, a exortação paulina, mais do que os poemas didáticos de Ovídio, criam um nexo necessário entre o ato de ensinar com as condições morais do ensinador.

Opera Didactica Omnia

A Deusa Mãe do paganismo reina sem companheiro durante milênios. Aos poucos, é associada a um jovem deus, um filho, que assume o papel de Filho Amante, assujeitado a ela. No plano divino, a Magna Mater Deorum engendra esse Filho que é também seu amante

(Corazza, 2002CORAZZA, Sandra. Para uma filosofia do inferno na educação. Nietzsche, Deleuze e outros malditos. Belo Horizonte: Autentica, 2002.).

Nessa possível genealogia, outra função-pai fora reconhecida: se Ovídio seria visto como pai da poesia didática, tal feito só se fez possível a partir do teórico responsável ao início da sistematização da didática ocidental. Comenius [Jan Amos Komenský], em seu Didática Magna voltou-se à racionalização todas as ações educativas ao eleger categorias teóricas para, também, o cotidiano da sala de aula (Comenius, 2011COMENIUS, John Amos. Didática Magna. Tradução: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2011.).

Diferentemente dos missionários ou do poeta supracitados, essa didática não foi escrita em metros ou regras, embora o autor também fosse um cristão protestante. Didática Magna é um texto responsável pela profissionalização daquilo que se ensina, combatendo os modelos pedagógicos até então vigentes; contudo, o autor entendera a salvação da alma de alguma maneira, ainda que essa, no século XVII, pudesse ser realizada a partir da lógica auxiliar da ciência em vida terrena. Composta entre 1627 e 1642, a obra Didacticorum Operum reservou à segunda parte a conhecida Didática Magna, a arte de ensinar tudo a todos [Didactica Magna, Omnes omnia docendi artificia exhibens]. Destacam-se as palavras do título: o verbo docendi é gerundivo – portanto, seu sentido é passivo – de doceo, que significa “ser ensinado”, “ser instruído”, “ter despertado”; há uma ambiguidade nessa palavra, pois, em latim, assim como em português, pode significar “aquele que aprende com facilidade”, mas, igualmente, “aquele que se submete sem oferecer resistência”, bem como “aquele que apresenta temperamento brando” (Houaiss, 2009HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2009.); essas possibilidades de tradução combinam como gerundivo do verbo latino. O substantivo plural artificia, do singular artificium, se refere a “profissão”, “artifício”, “manejo”, “arte”; igualmente, exhibens é particípio presente do verbo exhibeo que, por ser uma forma verbal com características de adjetivo, pode ser traduzido por “exibição”, “apresentação”, “suscitação”, “causação”, “fornecimento”.

Dessa forma, o conhecido subtítulo da Didática Magna soa como se o livro apresentasse a arte que é capaz de ensinar qualquer matéria ou conteúdo a qualquer pessoa. Mas, pode soar também como o artifício de tornar a todos dóceis diante da exibição de qualquer assunto. Essa tradeação (Monteiro, 2018MONTEIRO, Silas Borges. Esporas otobiográficas: traduções feitas por um grupo de pesquisa do projeto escrileituras. In: CORAZZA, Sandra Mara et al. Cadernos de Notas 10: Traduções do arquivo escrileituras. Escrileituras, Porto Alegre, UFRGS, p. 156-170, 2018. (Rede de Pesquisa)., p. 163) – um jogo com as palavras cunhado para mostrar as formas pelas quais a tradução pode subverter a tradição – soa anacrônica, pois toma um possível sentido hodierno e o aplica retrospectivamente. Contudo, essa estratégia cumpre a função de sustentar que o atual sentido da didática não se distancia de seu marco fundante; ainda mais, quando Nietzsche argumenta que todo conceito instituído obedece à lógica das forças, que o faz ser “[…] transformado e transposto para nova utilidade” (Nietzsche, 2000NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: Um livro para espíritos livres. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., § 473). Não parece ter havido transformação ou transposição desde a formulação comeniana; a persistência às mudanças pode dar sinais de uma força de resistência, de inércia do que diz não à vida.

The Technology of Teaching

Descobrimos que religião e razão crítica-tecnocientífica emanam da mesma fonte?

(Corazza, 2002CORAZZA, Sandra. Para uma filosofia do inferno na educação. Nietzsche, Deleuze e outros malditos. Belo Horizonte: Autentica, 2002.).

O livro de B. F. Skinner, The Technology of Teaching, publicado em 1968, inaugurou uma tendência que chegou ao Brasil sob o nome de “tecnicismo”. Efeitos dos trabalhos de Skinner puderam ser vistos em Vera Candau na sua tese de doutorado publicada sob o título Ensino Programado (Candau, 1969CANDAU, Vera. Ensino programado. Rio de Janeiro: Iter Edições, 1969.). A atenção de Skinner se volta à ação de ensinar, que “[…] é o ato de facilitar a aprendizagem; quem é ensinado aprende mais rapidamente do que quem não é” (Skinner, 1972SKINNER, Burrhus Frederic. Tecnologia do ensino. Tradução: Rodolpho Azzi. São Paulo: Herder, USP, 1972., p. 4). Tendo no horizonte que há modificação no comportamento dos estudantes, Skinner resume:

O ensino é um arranjo de contingências sob as quais os alunos aprendem. Aprendem sem serem ensinados no seu ambiente natural, mas os professores arranjam contingências especiais que aceleram a aprendizagem, facilitando o aparecimento do comportamento que, de outro modo, seria adquirido vagarosamente, ou assegurando o aparecimento do comportamento que poderia, de outro modo, não ocorrer nunca

(Skinner, 1972SKINNER, Burrhus Frederic. Tecnologia do ensino. Tradução: Rodolpho Azzi. São Paulo: Herder, USP, 1972., p. 62).

De maneira mais radical, na época, Candau escreve que cabe à docência “[…] procurar reforços adequados à situação escolar” (Candau, 1969CANDAU, Vera. Ensino programado. Rio de Janeiro: Iter Edições, 1969., p. 53); e para Skinner, “[…] ao contrário das aulas, livros didáticos e recursos áudio-visuais, as máquinas provocam atividade contínua. O aluno está sempre alerta e trabalhando” (Skinner, 1972, p. 36). Seu entusiasmo é nítido com as “máquinas de ensinar”, pois condensam, nelas mesmas, ensinadores e livros didáticos, quando afirma: “Arranjar uma sequência eficaz constitui uma boa parte da arte de ensinar” (Skinner, 1972SKINNER, Burrhus Frederic. Tecnologia do ensino. Tradução: Rodolpho Azzi. São Paulo: Herder, USP, 1972., p. 212); arranjar uma sequência de contingências é atender às condições do ensino com vistas à mudança de comportamento. Além do eco da pedagogia comeniana, para Skinner, arte é técnica ao modo do século XX, qual seja, o uso de tecnologia eletroeletrônicas. Por outro lado, restringe-se a usar os termos ensino ou ensinar, sem denominar quem faz isso. Desse modo, ao menos nessa obra, didático é só livro.

Essa breve narrativa sobre a didática histórico-humanista coloca em questão a escolha feita do termo grego que se aproxima da moral cristã, ficando ao largo a didática do teatro grego. Isso posto, permite-se considerar que cabe concordar com Nietzsche, quando ele escreve: “Entendo corrupção, já se adivinha, no sentido de décadence: minha afirmação é que todos os valores nos quais a humanidade enfeixa agora sua mais alta desejabilidade são valores de décadence” (Nietzsche, 1978NIETZSCHE, Friedrich. Miscelânea de opiniões e sentenças. In: NIETZSCHE, Frederich. Humano, demasiado humano. Volume 2. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., § 6).

A Didática do Inferno

Por criar conceitos, em função de problemas que considera malvistos ou mal-colocados, a filosofia do inferno pode ser dita também uma pedagogia ou uma política. Embora os seus conceitos não se refiram ao vivido na escola, nem a qualquer estado de coisas didáticas ou curriculares, já que não encadeiam proposições ou funções, que partem necessariamente do vivido para exprimi-lo

(Corazza, 2002CORAZZA, Sandra. Para uma filosofia do inferno na educação. Nietzsche, Deleuze e outros malditos. Belo Horizonte: Autentica, 2002.).

Embora tenha havido mudanças significativas nos traços iniciais do humanismo cristão que tomou corpo na didática, desde a instauração do cristianismo paulino, não parece que a didática moderna tenha colocado em risco o caráter sagrado do ensino e os desdobramentos morais nas pessoas que atuam no recinto educacional. Sim, o esvaziamento tradicionalista das práticas de ensino; o abandono da prevalência das técnicas behavioristas; a aproximação ‒ importante, diga-se ‒ da dimensão política nas últimas décadas; embora todo esse movimento, ainda parece que a base estruturante da didática desliza em um terreno metafísico.

Giorgio Agamben, em seu livro Profanações, distingue entre secularização e profanação:

[…] a secularização é uma forma de remoção que mantém intactas as forças, que se restringe a deslocar de um lugar a outro […] A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso

(Agamben, 2007AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução: Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.).

A Arte de amar, de Ovídio (2011)OVÍDIO. Amores & Arte de amar. Tradução: Carlos Minchillo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., faz da sedução uma poesia didática, pois ensina jovens a terem habilidade na conquista erótica. O ato didático, desde a religião paulina, deve ser feito com intenções e propósitos morais, pois só o bom cristão deve ser apto ao ensino. São dispensadas a retórica, o conhecimento dos livros, a familiaridade com a própria história, tudo cede à força da doutrinação da vida além-túmulo. Se a história foi acrescentando elementos a esse currículo, como as artes liberais, por exemplo, o trivium e o quadrivium, o imperativo para que a fé seja alcançada e alimentada resistiu às reformas curriculares. A didática ainda é a promessa de um além, não religioso, um além secular, mas ainda um além como promessa de futuro, como garantia de sobrevivência, como acesso a bens que virão.

Profanar a didática, ao que sugere Agamben (2007)AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução: Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007., significa neutralizar as forças sacralizadoras: tomar o que foi tirado do uso comum, para ser santificado, e colocá-lo à disposição da vida comum. A isso se pode chamar de didática do inferno na educação (Corazza, 2002CORAZZA, Sandra. Para uma filosofia do inferno na educação. Nietzsche, Deleuze e outros malditos. Belo Horizonte: Autentica, 2002.). Ao mesmo tempo, há que se pensar no substantivo plural que decorre da palavra grega dídaksis: didaskalía é entendido como “lugar onde se ensina”. A tradição moderna elegeu um cômodo específico como sendo o lugar onde se ensina. Por um processo de sacralização, foi destinado a esse cômodo o nome de sala de aula, pois já não é mais um lugar comum, mas um espaço a ser ocupado por pessoas devidamente destinadas ao ofício “vocacionado” das pessoas aptas ao ensinar, como os cristãos chamavam, didaktikós. Mesmo tendo sido secularizado, com os concursos, com as matérias nada teológicas, com o acesso de todos, com as tecnologias, as forças da instrução catequética permanecem intactas. Na compreensão grega, os lugares do ensino é didaskalía ‒ tida, pelos antigos, como indicação das circunstâncias nas quais se realizava a representação de uma peça de teatro ‒ e constituem possibilidades de roteiro, de planos, de sinais de mudança, de variações, de aberturas.

Do Teatro

Participando, a um só tempo, de farsas e tragédias, os infernais fazem teatro dentro do teatro, jogam o jogo absurdo de papéis, convertem o mundo da aparência em realidade e vice-versa

(Corazza, 2002CORAZZA, Sandra. Para uma filosofia do inferno na educação. Nietzsche, Deleuze e outros malditos. Belo Horizonte: Autentica, 2002.).

Em uma das Chave de escrileitura – há algumas –, Corazza experimenta a dramatização de um currículo na leitura que faz de Diferença e repetição, de Gilles Deleuze. Na Introdução ao método, ela coleta fragmentos que dão a pensar o teatro, especificamente o espírito encenador, tipo filosófico-educacional da função didata, não a pessoa “apta ao ensino”, próprio da catequese apostólica, do cristianismo primitivo – que se estende ao longo da história e denomina a didaktika moderna e contemporânea –, mas a do teatro trágico relido por Friedrich Nietzsche. A Chave de escrileitura, como experimentação do método Valéry e Deleuze, enuncia provocações a um pensamento não representacional, portanto, não instrucional, a uma didática artista da diferença. Esse exercício se encontra no livro Didaticário de criação (Corazza, 2012CORAZZA, Sandra Mara. Caderno de Notas 3 - Didaticário de criação: aula cheia. Escrileituras, Porto Alegre, UFRGS, 2012. (Rede de Pesquisa)., p. 153-157); que, aqui, dispensamos as referências para fluidez do texto.

O teatro, ambiente que faz emergir a didática, é o lugar do espírito encenador, seguindo a trilha inaugurada por Nietzsche e continuada por parte da filosofia do século XX. Aqui se trata de produzir um movimento para fora de toda representação, pois o espírito encenador cria suas representações por espectros e não por lógica especular. Os signos diretos são abandonados para esvaziar, de vez, a conhecida dobra significado-significante, que não precisa de mais críticas, mas apenas abandoná-las pelo caminho. Interessa ao espírito encenador a invenção de espaços vazios a serem preenchidos pelas possibilidades tradutórias da matéria. Embora tenha, como toda cena, um roteiro, esse é chave de leitura e escritura: roteiros de imaginação, de expansão de vida, de força de criação.

Se a concepção de que à didática cabe a arte de ensinar parece vencida, ao espírito encenador é próprio uma didática-artista, como o ensino da arte infernal, como traço de plano de composição, artefatura da tradução transcriadora: “arte de influenciar espíritos” (Corazza, 2002CORAZZA, Sandra. Para uma filosofia do inferno na educação. Nietzsche, Deleuze e outros malditos. Belo Horizonte: Autentica, 2002., p. 61).

Do Pandemônio

Se o inferno atravessa o mundo da Educação, ele pode aterrorizar o seu pensamento

(Corazza, 2002CORAZZA, Sandra. Para uma filosofia do inferno na educação. Nietzsche, Deleuze e outros malditos. Belo Horizonte: Autentica, 2002.).

Inferno, aqui, funciona como provocação. No imaginário cristão, inferno é lugar de danação. Destino dos desconjurados. Lugar certo dos malditos. Futuro certo dos danados. Inferno e céu indicam uma cultura que está convicta de que se sabe o destino humano, pois pretensamente sabe sua origem. Esse vetor submetido à previsibilidade, convencido da lógica causal aristotélica, infunde a convicção da insuportável experiência do desvio, do erro, do ensaio, do andarilho (Nietzsche, 2008NIETZSCHE, Friedrich. Miscelânea de opiniões e sentenças. In: NIETZSCHE, Frederich. Humano, demasiado humano. Volume 2. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.), ou como usa Derrida (1995)DERRIDA, Jacques. Paixões. Tradução: Lóri Z. Machado. Campinas: Papirus, 1995., da destinerrance.

Nesse pandemônio, não há garantias de destino ou de envio. A palavra valise destinerrance, destino e errância, é tradução desse pensamento andarilho; neologismo de Derrida, implica o descontrole do alcance de um envio, colocando em qhttps://open.spotify.com/playlist/1bPpFoPGKsHJPEZVebygOduestão o modo convencional de se tratar a comunicação. Como um cartão postal, há disseminação da mensagem ou anúncio, embora possa haver, pretensamente, um destinatário principal. A convicção alimentada pela didática da instrução é de que se pode valer de estratégias de comunicação para que uma matéria se torne fácil de ser ouvida. Por outro lado, o alerta da cena trágica do didáskalos é que o trajeto de um envio é labiríntico, marcado pela incerteza da chegada do envio. Como pensamento errante, a tradução feita na dídaksis se perde em um emaranhado pathos. Como um vírus, em uma pandemia, o envio da dídaksis se descontrola, criando seus próprios caminhos, sujeitos a traições dos que enviaram. Ora, o pensamento que suspeita da possibilidade de uma origem deve abandonar, igualmente, a garantia de que controla seu destino.

Assim, os caminhos da dídaksis são errantes, trágicos, de andarilhos, pois o envio de sua criação é a entrega de uma trilha ainda não tracejada, pois a própria didática perde o controle da agenda futura, torna-se objeto de contínua disputa, é feita de litígio e não resulta do que foi planejado.

Da Tradução

O diabo da didática suporta esperar uma cultura universalizável das singularidades, na qual seja possível anunciar a possibilidade abstrata da impossível tradução. O diabo faz uma didática performativa, sem dogma e certezas, que avança no risco da noite absoluta

(Corazza, 2002CORAZZA, Sandra. Para uma filosofia do inferno na educação. Nietzsche, Deleuze e outros malditos. Belo Horizonte: Autentica, 2002.).

As cartas paulinas às comunidades cristãs alertam que as pessoas aptas a ensinar não devem percorrer o caminho diabólico, qual seja, não se empenhar em adquirir a moral estipulada pelo apóstolo tardio – “falsário inspirado pelo ódio”, de acordo com Nietzsche (2007, p. 48)NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: Maldição ao cristianismo. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.. O risco do líder cristão era de que o didaktikós viesse a ser um diabo da didática.

O diabo da didática é tradutor porque anuncia a possibilidade abstrata da impossível tradução; ele fala pela letra de Jacques Derrida, quando escreve: “Nada é mais grave que uma tradução” (Derrida, 2002DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Tradução: Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002., p. 40). Embora impossível, há algo de necessário nela, pois tudo quer ser traduzido, como força de domínio, como expansão. Há uma economia de força de apropriação, de tornar propriedade o que é, por inscrição original, de outro. Como roubo, a tradução se apropria de outra propriedade, por faturação, por transcriação. A isso chamado por Derrida de tradução relevante “[…] é uma tradução cuja economia, (propriedade e quantidade), é a melhor possível, a mais apropriante e a mais apropriada possível” (Derrida, 2000DERRIDA, Jacques. O que é uma tradução “relevante”? Tradução: Olívia Niemeyer Santos. Alfa Revista de Linguística, São Paulo, v. 44, n. Especial de 2000, p. 13-44, 2000., p. 19). O ato tradutório, de apropriação e de cálculo, é diabólico porque a adequação do cálculo luta com a força do nome próprio, numa espécie de negociação de ganhos (acúmulos) e perdas (desapegos) como ato contínuo de criação à cada versão.

Esse anjo rebelde da didática conhece a força da matéria com a qual trabalha, ao mesmo tempo que sabe que outras palavras podem ser ditas, além das suas próprias palavras: palavras de mortos, de indesejados; portanto, malditas. Esse procedimento, no qual não cabem clausuras, traduz-se em ato contínuo, pois se sabe que o texto original – da filosofia, das ciências, das artes – é franco o suficiente para admitir perdas e ganhos incontabilizáveis.

Conclusão

A didática, como conceito, acompanhou a trajetória histórica da trilha feita pelo cristianismo antigo e medieval, adotando, mais tarde, feição humanista. Quando chega ao século XX, esforça-se para se tornar secularizada (onto-teológico), pois seu sentido último permanece o de entregar um conteúdo que, ao ser examinado, contribua para um fim (moral). A fidelidade à matéria examinada é regulada pela replicação do conteúdo ofertado aos aprendizes. Em uma palavra, o valor da didática está em sua finalidade humanista e na mera repetição das produções humanas. Isso é bem ilustrado na conhecida expressão hermenêutica: “o autor quis dizer…”, pois pressupõe uma posição de apreensão como didachê, ou seja, o que bem cabe a práticas catequéticas. Este ensaio teórico indaga acerca dos elementos do entorno do vínculo da didachê com um pensamento da representação que lhe serve como vetor de sentido.

Como crítica a essa concepção, traz-se o sentido de dídaksis, como ambiente de florescimento do ensino como ensaio, como prática do teatro, como criação (poiêsis), finalmente, como tradução. Ao fazer da tradução o gesto de criação do novo, a dídaksis quer trazer os elementos da filosofia, das ciências ou das artes para reconfigurá-los inventivamente de modo a ultrapassar qualquer limite disciplinar, inclusive os seus próprios. A dídaksis lida com a tradução tanto no âmbito dos micros procedimentos em aula, bem como sistêmico, na escolha dos elementos a serem traduzidos e na cena maior que será fundada.

Os valores da dídaksis não são aqueles escolhidos dos cânones das estratégias de aprendizagem, mas aqueles que funcionam para atribuir vida aos originais, vida como movimento da vontade de potência, a entender-se que as más práticas da didática esgotam a vitalidade do pensar, do ler e do escrever, pois transformam a dynamis da matéria em conteúdo fácil, trivial ou comum. A distinção entre o didaktikós da catequese e o didáskalos do teatro grego antigo é que o primeiro é conservador, por suas práticas de manutenção da língua que circula nas instituições de ensino; enquanto o segundo se deixa afetar por outras línguas. Do primeiro, nota-se a covardia, por se esconder atrás da segurança da reprodução da matéria; enquanto, do segundo, nota-se a coragem, por trazer para si a tarefa da tradução, já que tem noção da sua impossibilidade. Por fim, o primeiro desiste; o segundo sempre se arrisca.

O campo da dídaksis assumirá a função de um verdadeiro elemento científico, filosófico ou artístico, pois não cede à submissão de ocupar esse lugar que é do outro, como mero representante ou substituto dos perceptos, afectos, conceitos e funções. Pelo contrário, esse campo quer autonomia para ser obra autônoma de Arte, de Filosofia ou de Ciência. Para tal, tem como ponto de partida relações de reimaginação, para além do literalismo rudimentar e da banalidade explicativa. Com isso, pensa que a dídaksis, como prática, pode criar “traduções relevantes” (Derrida, 2000DERRIDA, Jacques. O que é uma tradução “relevante”? Tradução: Olívia Niemeyer Santos. Alfa Revista de Linguística, São Paulo, v. 44, n. Especial de 2000, p. 13-44, 2000.), dignas de repercutir os seus impactos, como estratégia de renovação dos sistemas educacionais e culturais contemporâneos.

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Editora responsável: Fabiana de Amorim Marcello

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2022
  • Aceito
    12 Jul 2022
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