E fez-se a luz: contribuições do medium fotográfico para a instauração do realismo literário
ABSTRACT
The nineteenth century was the scene of deep changes in several areas of society: art, industry, science and others. Officially emerged in 1839, the photographic medium was received, discussed and practiced by many of these areas. This article deals with the arisal and the first receptions of photography in the artistic sphere, considering the shock between painting x photography, the discussion about visible reality and its forms of representation in art. It is also briefly discussed the artistic and social context in which the first realisitic publications appeared, the importance of photography in these texts, how they were received in Germany and the fundamental differences between French and German literary realism. Thus, it is intended to point the emergence of the photographic medium as one of the aspects which - through the theoretical and conceptual reconfigurations which have taken place in art - contributed to the establishment of the realistic movement in painting and literature.
Keywords:realism, photography, painting, literature.
Desde seu surgimento em meados do século XIX, a fotografia busca reconhecimento em diversas áreas e de diversas formas: como medium artístico, instrumento de trabalho, método e recurso científico, entre outras. Nem sempre, porém, são avaliadas aprofundadamente as influências que a fotografia exerceu e exerce em outros setores da sociedade. Quando da sua invenção, questões como banalização do registro da realidade ou ameaças do fim da pintura foram discutidas, mas nenhum desses fatos acabou se concretizando. A fotografia conquistou alguns espaços e vive até hoje, mais forte do que nunca, relacionando-se de diversas maneiras com formas de artes mais tradicionais como, por exemplo, a pintura e a literatura.
Oficialmente apresentada à comunidade científica no ano de 1839, a fotografia suscitou, além de questões sobre suas aplicações práticas, diversas discussões teóricas e conceituais, e a sua relação com a arte, em especial com a pintura, foi um dos principais embates desde o primeiro momento. É nesse sentido que pretende-se analisar neste artigo as redefinições teóricas, conceituais e práticas ocorridas no campo artístico, em especial na literatura, que o medium fotográfico suscitou, bem como algumas de suas implicações para a instauração do movimento realista.
Para isso, propõe-se de uma abordagem que focaliza a relação entre imagens e textos, partindo da fotografia como medium recebido pelas formas tradicionais de arte como essencialmente mimético, devido à sua capacidade de registro fidedigno da aparência exterior, e que, disputando espaços em diversas áreas, pode ter influenciado tanto a pintura quanto a literatura europeia do século XIX.
Está claro que o movimento realista, já consolidado nas diferentes abordagens da história da literatura, pode ser analisado sob diversos aspectos: social, ideológico, artístico etc. Neste trabalho, busca-se analisar o surgimento do realismo a partir da invenção da fotografia e dos debates sobre o visual, bem como avaliar as reconfigurações teóricas e conceituais ocorridas na pintura e na literatura a partir dessas discussões.
A fotografia é considerada aqui como medium que exerce diferentes funções nas diferentes áreas em que atua, pois desde seu surgimento foi discutida e utilizada em diversas áreas do conhecimento social, desempenhando diferentes papéis. Enquanto cientistas utilizaram-na como recurso de prova de alguns experimentos visíveis, artistas aproveitaram-na como modelo para suas obras; enquanto os incipientes fotógrafos buscaram expressar seus anseios através da imagem produzida, a imprensa utilizou a fotografia como ilustração real dos textos; e assim por diante. Na arte, por sua vez, a fotografia pode ser utilizada, dentre outros objetivos, como forma mimética de expressão, modelo a ser copiado por outras formas, ou mesmo recurso de auxílio técnico; ou seja, serve para diferentes aplicações, sendo, inclusive, modelo e anti-modelo ao mesmo tempo em certas discussões e práticas artísticas.
Além de diversas análises sobre a “Galáxia de Gutenberg”, são consideradas aqui abordagens já clássicas sobre os media como as de Marshall McLuhan (media como extensões do corpo humano), Vilém Flusser (aparelhos técnicos que intensificam não a comunicação de massa, mas a individual, face-to-face) ou Paul Virilio e Friedrich Kittler (os media controlam as pessoas). Um ponto evidente na grande maioria das perspectivas sobre o assunto é de que, de uma forma ou de outra, os media alteram nossa sociedade, ou seja, que o uso social de cada medium em diferentes épocas e locais faz com que determinadas ações e percepções humanas sejam modificadas de acordo com a produção, o envio, a recepção e a assimilação das mensagens midiáticas.[1]
Walter Benjamin também segue este caminho e afirma que a existência, a maneira de ser das pessoas transforma-se a partir das suas formas de percepção: “Nos grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência”.[2] Ou seja, as formas de percepção também são transformadas “reciprocamente” a partir das formas de expressão, pois que cada expressão exige, ou ao menos sugere, uma determinada maneira para ser compreendida. Nesse sentido, Benjamin afirma que a forma como as pessoas percebem e assimilam está ligada não apenas aos seus sentidos naturais, mas também à história da sociedade, alterando-se também de acordo com essa história; logo, a vivência das pessoas, a maneira de ser de cada pessoa como indivíduo social é alterada de acordo com as formas de perceber e assimilar o mundo em que vivem, e nesse sentido a atual sociedade midiática teria iniciado com o surgimento da fotografia e a inaugurada era da reprodutibilidade técnica.
Manter imagens fixas que representassem fielmente o mundo exterior foi um objetivo buscado por muito tempo. Embora os princípios utilizados pela fotografia remontem a épocas antes de Cristo e diversas tentativas tenham sido realizadas anteriormente, a fixação permanente de imagens deu-se apenas no início do século XIX. Aparelhos como as câmaras escuras, por exemplo, utilizavam pressupostos óticos que até mesmo as atuais câmeras fotográficas ainda utilizam.
Modelos antigos de camara escura
Marcado por forte progresso científico, o século XIX registrou importantes descobertas em diversos campos, como a ótica, a química e a física. A evolução de áreas como essas é que possibilitou a “invenção” da fotografia, alcançando o objetivo tão perseguido da fixação permanente de imagens reais.
Uma história de muitos inventores
É possível observar pelos registros históricos que, mais ou menos ao mesmo tempo e em diferentes lugares, estudiosos trabalharam isoladamente concebendo soluções para juntar numa só máquina os conhecimentos de duas áreas do saber: a óptica e a química. Procuravam, enfim, criar um mecanismo que reproduzisse a realidade e registrasse a sua imagem. Esses pesquisadores mal podiam imaginar os benefícios que tal mecanismo traria para todas as ciências e artes.[3]
A fotografia foi recebida como o grande método de reprodução da realidade exterior, e sua importância e abrangência, bem como o interesse despertado, podem ser evidenciados com os diversos aparelhos e instalações anteriormente desenvolvidos na busca desse objetivo. Para apresentar e explicar as descobertas e inovações técnicas no campo da ótica entre 1800 e 1860, Buddemeier traça uma linha evolutiva dos principais inventos relativos à fixação de imagens do século XIX (1970), entre eles o panorama (figuras de grandes dimensões, obtidas com ajuda de camaras obscuras, que pretendiam oferecer ao público uma visão de 360º a partir de um mesmo ponto de observação) e o diorama (método muito mais complicado que o panorama e que tinha como característica e objetivo básicos a busca pela inserção do movimento nas obras através de efeitos de iluminação direcionadas a figuras estáticas). Diversas publicações da época acerca desses e outros meios de expressão registraram as polêmicas sobre a inserção de processos técnicos de cópia e reprodução na arte, questionando muitos aspectos da arte em geral, desde seu conceito clássico de imitatio naturae, passando pela revisão de conceitos como estética, cópia e semelhança, até a obra de arte no sentido tradicional de trabalho realizado por um artista que expressava nele sua individualidade.[4]
Muitas dessas questões serão acirradas com o surgimento da fotografia, tanto pelo alcance que esta teve, inserindo-se com rapidez em diveras áreas da sociedade e evoluindo tecnicamente em pouco tempo, quanto por se tratar do auge da reprodução fidedigna do mundo exterior de todos os meios desenvolvidos até então.
Foi em 1826 que o litógrafo francês Nicéphore Niépce conseguiu manter fixa uma imagem sem o escurecimento característico da maioria das experiências anteriores. Há mais de dez anos ele perseguia esse objetivo e embora conseguisse registrar as imagens esbarrava na não permanência destas devido à sensibilidade dos produtos químicos utilizados. A primeira “fotografia” foi fixada por Niépce através da exposição aproximada de oito horas. Com isso, ele pôde perceber o sol tanto do lado esquerdo quanto do lado direito da imagem, o que o irritou profundamente, pois seu objetivo era uma cópia matematicamente exata da natureza.
Niépce, porém, veio a falecer em 1833, e seu sócio, pintor de paisagens e desenhista de cenários para teatro, Loius-Jacques Mandé Daguerre deu seguimento às pesquisas, obtendo resultados cada vez melhores. Mas foi só em 1839 que a invenção foi apresentada à comunidade científica por Fraçois Arago em nome de Daguerre, que desenvolveu o aparelho daguerreótipo e registrou-o em seu nome, vendendo-o posteriormente ao governo francês por uma generosa pensão vitalícia.[5] Dessa forma, este passou a ser considerado como o ano da invenção da fotografia.
Comparando os media visuais, Buddemeier [6] chama a atenção, ao apontar características como exatidão e nitidez das daguerreotipias, que naquele momento elas foram consideradas como cópia ou representação da realidade, não mais com referência ao conceito de ilusão, como ocorrido com os métodos anteriores panorama e diorama. Como forma de divulgar a daguerreotipia, diversas publicações didáticas como manuais e livros surgiram nos anos posteriores a 1839, ao mesmo tempo que as descobertas técnico-científicas continuaram contribuindo para o aperfeiçoamento do novo método. Dessa forma, a daguerreotipia alcançou rapidamente a superação de barreiras como a demora na captura da imagem (em torno de 1858-60) e a diminuição do tamanho dos equipamentos (em 1888). Além disso, tendo causado furor no público em geral, logo surgiram músicas e vaudevilles, espécie de teatro popular da época, que exaltavam a descoberta.
O próprio Daguerre não mediu esforços para divulgar seu invento. Desde o início, dedicou-se a sessões de exibição do novo método: já em setembro de 1839 eram feitas em média três apresentações por semana, em salões onde até 200 pessoas aguardavam pacientemente mais de uma hora até que as imagens pudessem ser visualizadas. Além disso, Daguerre publicou uma pequena brochura, espécie de livro-manual, no qual apresentava alguns documentos e discursos sobre o novo medium e descrevia minuciosamente os métodos do daguerreótipo e do diorama, processo técnico que pretendia imitar movimentos através de palcos especialmente pintados e jogos de luzes. Muitos entusiastas usaram o livro para praticar, testar e desenvolver outras técnicas fotográficas, e já entre 1839 e 1940 o livro foi traduzido para sete línguas e teve 31 impressões.[7]
Tendo sido recebido com descrédito por uns e entusiasmo por outros, o novo medium fotografia suscitou diversas aplicações e discussões já a partir de seu surgimento, desde usos para descrição analítica da natureza e do espaço urbano e social, como o registro de plantas para a área da botânica, até a fotografia médica, microscópia e telescópica. Já em 1842, por exemplo, o arquiteto Viollet-le-Duc fez uso de diversas daguerreotipias especialmente encomendadas para a restauração da Catedral de Notre Dame[8]
As discussões sobre o novo medium alcançavam desde sua aplicação em áreas científicas até, e em especial, a posição que ocuparia frente à arte. Uma das áreas na qual a fotografia também exerceu um impacto importante foi a área jurídica, pois, com sua característica mimética de representação fiel do mundo exterior, podia ser usada como prova do visível.
O inglês William Henry Fox Talbot foi quem publicou a primeira obra que utiliza e discursa sobre fotografias, The Pencil of Nature, em 1844. O autor não apenas foi um dos pioneiros ao enriquecer um livro com a inserção de fotografias mas, muito mais do que isso, conseguiu visualizar aplicações potenciais do novo medium. Nesse sentido, surpreende que tenha sugerido, já naquele momento, usos bastante diferenciados para a fotografia, comentando a utilidade artística para registro de paisagens e objetos, o uso para arquivamento e documentação, a aplicação na área jurídica como recurso de prova, entre outros usos possíveis. Além de estudioso e pesquisador de áreas como ótica e química, indispensáveis à fotografia, Talbot foi também um extremo visionário.
Já na introdução de The Pencil of Nature o autor denomina as figuras que serão apresentadas como “a nova arte do desenho fotogênico,” que teriam sido formadas a partir da “mera ação da luz sobre o papel sensível,” e que, também de acordo com o título, foram “impressas pela mão da natureza.” Talbot admite que a técnica ainda não é totalmente dominada, mas prevê a evolução dos procedimentos fotográficos no caminho da perfeição, ao passo que a fotografia “encontraria suas próprias esferas de utilidade,” e é exatamente aí que reside toda a genialidade do cientista: visualizar, de maneira extremamente precursora, os usos diversos para o medium que surgia.
A grande diferença entre o processo de Talbot e o de Daguerre é que o Daguerreótipo registrava a imagem em apenas uma chapa metálica, enquanto Talbot trabalhava com o processo negativo-positivo, possibilitando copiar a imagem mais de uma vez.
Posteriormente os franceses também enveredaram pelo caminho da reprodução infinita de cópias, e diversas outras invenções relativas a equipamentos e suprimentos surgiram nos anos seguintes, fazendo a fotografia se desenvolver e popularizar de forma rápida e eficiente, inclusive e em especial com a diminuição dos custos para se fazer uma foto. Já em 1888 o americano George Eastman, que havia criado o filme flexível dispensando as chapas de vidro ou metálicas, lançou a empresa Kodak com o conhecido slogan“Aperte o botão, nós faremos o resto”, oferencendo câmeras portáteis que trabalhavam com filmes de 100 fotogramas.
Na Alemanha, o primeiro livro fotograficamente ilustrado surgiu em 1846. Frank Heidtmann faz um rigoroso apanhado sobre as primeiras formas de intersecção livro x fotografia, partindo do surgimento do medium na França e na Inglaterra, e das primeiras publicações que continham fotos nesses países. Comentando brevemente as publicações de cada ano no período aproximado de 1850 até 1915; as técnicas utilizadas, litografia, galvanografia etc.; os tipos de livro, de ciências e medicina, de expedições de viagens ou, mais tardiamente, livros de arte e fotográficos propriamente ditos; e as principais editoras de cada período, Tauchnitz, Gustav Schauer e Adolphe Braun, entre outras, o autor apresenta uma pesquisa quantitativa da trajetória da inserção de fotos em livros alemães.
Heidtmann[9] aponta a publicação do livro Gedenkblätter an Goethe, de Herman Johann Keβler, como o primeiro publicado na Alemanha contendo uma fotografia, o que ocorreu já em 1846. Não há registro, porém, da recepção deste livro pelo público da época. É só a partir de 1853 que surgem outras publicações ilustradas fotograficamente, afirma o autor. Neste ano, aliás, foi lançado o conhecido Album Seiner Majestät des Königs Ludwig I von Bayern,que continha 12 fotos feitas pelo fotógrafo J. Albert e que sucitou discussões sobre o caráter artístico do medium fotográfico. A inserção de fotografias foi tornando-se mais intensa nos anos seguintes (11 publicações em 1854, 25 em 1858), e em 1856 sete publicações alemãs continham o termo fotografiajá no próprio título.
Diversos artigos e comentários sobre as primeiras recepções da fotografia servem de fonte ainda hoje. O escritor e crítico francês Jules Janin, num dos primeiros artigos sobre o novo medium, escrito em 1839 com base na apresentação que Arago fez à Academia de Ciências e na observação de algumas figuras obtidas pelo novo método, aponta a daguerrotipia como uma ameaça contra a arte. Janin, que inclusive publicou diversos artigos sobre o contexto artístico-cultural e os media da época, mostra-se impressionado pelas características do método e visualiza diversas aplicações para este. O autor considera aspectos técnicos, econômicos e sociais nos quais o daguerreótipo poderá interferir, além de relacioná-lo com a arte da pintura colocando-o em primeiro plano, ou seja, vendo-o como uma possível ameaça. “Através de intensas pesquisas, o conhecido pintor foi transformado num grande químico”,[10] afirma logo no início do texto. Descrevendo sucintamente a técnica utilizada por Daguerre, o autor afirma que o resultado só foi alcançado através de muito gênio e perserverança em infinitas séries de tentativas, e que uma invenção desse porte deverá trazer mais influência à sociedade do que a própria máquina a vapor.
Janin não esconde a fascinação pelo novo método que não usa o olhar ou a mão humana para produzir a figura final, nem exige três dias para obter certas sombras, muito pelo contrário, o novo método é rápido “como a luz do sol” e constante como o pensamento. E cita a Bíblia, com o conhecido: Deus disse: faça-se a luz, e a luz se fez para comparar às possibilidades criadas: pode-se ordenar às torres da Notre-Dame “Sejam figuras” e elas obedecerão. A Camara Obscura também é citada nas comparações que o autor faz, antes de listar algumas das vantagens da daguerreotipia: rapidez, riqueza de detalhes, custo, entre outras, e com esses argumentos profetiza a rápida popularização do novo método.
Muito embora possa ser resultado do clima de novidade que circundava o novo medium, chama a atenção, neste texto, a inclusão de diversos aspectos numa mesma perspectiva sobre a invenção de Daguerre, ao contrário dos textos posteriores que tenderão a concentrar-se em considerações mais específicas, o embate com a arte, por exemplo.
A grande maioria dos artigos publicados neste período faz referência aos métodos anteriores, traçando paralelos entre a daguerreotipia e processos como a Camara Obscura e Camara Lúcida, bem como com a própria pintura. Muitas observações concernem à objetividade e ao detalhismo do novo método, sem esquecer uma pequena parcela de imperfeição, uma “falta de vivacidade,” em vista da técnica incipiente: dependendo do objeto a ser fotografado e da intensidade da luz, os detalhes eram registrados de formas diferentes. Mesmo assim, nestes artigos os resultados da daguerreotipia normalmente eram comentados como de uma perfeição e fidelidade jamais vistas, não obstante a monocromia das imagens finais.
Outro aspecto bastante recorrente nas primeiras publicações que tratavam da daguerreotipia é sobre os assuntos registrados pela nova técnica, normalmente objetos e paisagens. Em virtude da longa exposição que o aparelho exigia, entre 20 e 30 minutos dependendo da luz solar, o mais das vezes eram retratados prédios, pontes ou mesmo plantas, ou seja, assuntos inanimados. Dessa forma, os raios luminosos “fixos” emitidos por esses assuntos garantiam a exatidão da imagem, ao contrário de assuntos móveis que resultavam em daguerreotipias borradas ou que, dependendo do tamanho ou da rapidez do movimento, nem mesmo eram registrados. É também em virtude desse obstáculo técnico que surgirão opiniões posteriores de que a daguerreotipia seria um olhar morto, muito embora essa dificuldade tenha sido solucionada pouco tempo depois da invenção a partir do uso de químicos mais sensíveis à luz.
Há que se registrar um detalhe diferenciador comentado normalmente quando da comparação da daguerreotipia com os outros processos: a sua automatização. Enquanto a pintura, a Camara Obscura e a Camara Lúcida dependiam de um indivíduo que as utilizasse ou operasse, a daguerreotipia funcionava sozinha, “escrevendo” nas chapas metálicas a partir da incidência da luz. Ou seja, era o mundo exterior desenhando-se por si só, era a natureza registrando sozinha e de forma muito fidedigna a sua própria aparência.
Em relação ao original da fotografia, tem-se uma questão que até então não era debatida, mas foi tema de diversas análises posteriores. Enquanto a pintura é uma obra de arte original na sua essência, pois que o produto final é um determinado quadro, mesmo que este possa ser copiado por outros pintores, o objeto original da fotografia não é exatamente o mesmo objeto que é distribuído ou observado pelos seus admiradores e críticos. A fotografia funciona por cópias a partir de um determinado original: o negativo. Logo, vem a ser o primeiro caso na história que propõe, como obra de arte, um objeto que não apenas pode mas deve ser copiado para que possa ser apreciado, abordagem muito bem explanada por Walter Benjamin em A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica.
Em suas considerações, Benjamin[11]identifica na fotografia a perda da aura da obra de arte, pois esse medium sugere, para não dizer exige, uma produção serial, cópias seriais, uma linha-de-produção. Também é dessa perspectiva que Bazin afirma: “Todas as artes se fundam sobre a presença do homem; unicamente na fotografia é que fruímos da sua ausência.”[12]
Epistemologicamente é essa a idéia que o novo medium transmite, muito embora o termo fotografiaainda não estava consolidado à época de Daguerre: foto-grafia: foto= luz, grafia= escrever: ou seja, não é um indivíduo ou um artista que escreve, é a luz que, sozinha e por si, estaria escrevendo, pintando, registrando o visível.
Num dos primeiros textos nos Estados Unidos sobre a nova invenção (BOSTON MERCANTILE JOURNAL, 1839), foi comentada a apresentação que Daguerre fez à comunidade científica parisiense. Mais do que descrever basicamente o método utilizado, o artigo demonstra a estupefação do público que chega a duvidar do processo, dúvida essa facilmente extinta após uma observação minuciosa dos exemplares exibidos. Chama a atenção, também, exatamente a afirmação de que a natureza desenha-se por si mesma, o que pressupõe essa não-interferência do artista no processo.
The editor of the Constitutionnel has been permitted to examine some of these curious specimens of art, where nature has delineated herself — which he describes with enthusiasm, in the following language: "At every picture placed before our eyes, we were in admiration. What perfection of outline — what effects of chiaro scura — what delicacy — what finish!” (BOSTON MERCANTILE JOURNAL, 1839, não paginado, grifo nosso).
Já em 1840, um ano após a invenção oficial da fotografia, Edgar Allan Poe corroborou o que alguns cientistas e estudiosos do medium já haviam ponderado anteriormente: que essa seria “perhaps the most extraordinary triumph of modern science. ”[13]Tendo publicado neste ano três artigos sobre o assunto em diferentes revistas, Poe enaltece a descoberta no primeiro deles, The Daguerreotype, descrevendo o processo técnico no qual a ação da luz é responsável pela maior parte do registro, registro esse “infinitamente melhor do que qualquer desenho feito por mãos humanas,” e considera a fotografia como a “invenção representante da ‘milagrosa’ ou até mesmo do mágico potencial da idade moderna,"[14]de consequências inimagináveis.
Neite afirma que o primeiro cidadão alemão que teve contato com o novo medium foi Alexander von Humboldt. Em viagem diplomática à França desde o fim do ano de 1838, von Humboldt foi convidado a participar da apresentação à Academia Francesa do novo método de Daguerre em janeiro de 1839. Em carta à Duquesa Friedrike von Anhalt-Dessau ele relata suas impressões sobre a descoberta, e este veio a ser o primeiro documento escrito por um alemão que faz referência ao novo medium. Os comentários vão da fidelidade inimitável com que os objetos são registrados até a essência técnicado método, o uso de químicos na fixação das imagens, e a rapidez da captação, que exigia de 8 a 10 minutos na região de Paris e poderia chegar a 2 ou 3 em zonas mais iluminadas, em virtude da dependência técnica da luz. Von Humboldt cita não só Daguerre como o inventor do novo método mas também seu colaborador Niépce, e refere-se ainda aos retornos financeiros que ambos receberam. O método, porém, permanece envolto num véu de mistério que Daguerre ainda não estava disposto a esclarecer, afirma von Humboldt. Já nos primeiros meses do ano de 1839 foram feitos diversos outros registros sobre a daguerreotipia na Alemanha, como cartas e artigos nos jornais e publicações de pesquisadores universitários. Em julho do mesmo ano foi publicado em Leipzig o primeiro livro em alemão sobre daguerreotipia: Das Geheimnis der Daguerreotypie, oder die Kunst: Lichtbilder durch die Camera obscura zu erzeugen. Mit einer Anweisung zur Bereitung des photogenischen Papieres nach Talbot und Daguerre[15]
Todos esses comentários, aqui apresentados como pequeno panorama do contexto no qual a daguerreotipia se difundiu, apresentam diferentes perspectivas, opiniões e, porque não dizer, anseios dos críticos e teóricos em relação à novidade. Como era de se esperar, algumas dessas abordagens se confirmaram, enquanto outras não passaram de um certo frenesi, como é comum ocorrer quando do surgimento de um novo medium, ainda mais um tão versátil e promissor quanto a fotografia.
Na esfera artística, por exemplo, foram realizadas algumas tentativas de elevar a fotografia ao status de arte. Artistas experimentais utilizaram a fotografia para explorar artisticamente novas possibilidades através de encenações, multiexposições, desfocalização e colagens. Apesar das primeiras aplicações da fotografia terem sido direcionadas ao registro do visível, do mundo exterior, do real, enfim, trabalhos como esses merecem especial atenção por buscarem, desde o princípio, a aplicação da fotografia como forma de expressão artística.
Esta foto de Oscar Gustave Rejlander, exemplo clássico, data de 1857 e é uma montagem de 30 negativos sobrepostos. As fotos foram feitas individualmente em closes e só depois o artista montou-as dando forma à imagem final:
Fotocomposição The two ways of life, O. G. Rejlander, 1857
Uma das fotos originais
É fácil perceber que The two ways of life não pretende ser uma imagem que imita a realidade, mas encena uma determinada situação. Neste caso específico de Rejlander, a situação encenada suscitou controvérsias na crítica e no público por seus motivos “questionáveis” como jovens em meio à luxúria de bebidas e prostituição, o que foi visto por alguns como uma referência ou representação da família, da indústria e da religião. Tendo sido exibida na Escócia, por exemplo, apenas o lado direito da imagem pôde ser visto, pois o outro foi ocultado.[16] Pode-se perceber que a cena de Rejlander é dividida ao meio, formando duas partes opostas, dois pólos, dois mundos, dois caminhos de vida. Essa proposta entretando não é nova, em especial nas artes visuais. O pintor renascentista Rafael, numa importante obra feita a pedido do Vaticano, já tinha retratado entre 1509 e 1510, em Escola de Atenas, um mundo também dividido entre dois pólos: o sensível e o inteligível, a filosofia e a ciência: Além dos motivos retratados e da carga de significação e discussão que a divisão polarizada suscita, a pintura de Rafael é considerada clássica pelo uso atento que o pintor fez de linhas e desenhos geométricos (a proporção áurea), bem como a inserção de figuras facilmente identificáveis como Platão e Aristóteles (ao centro), Sócrates, Pitágoras e outros (em volta).
Um dos primeiros casos, se não o primeiro, de utilização da fotografia com objetivos propagandísticos pode ser encontrada na conhecida foto de Hippolyte Bayard. Ele foi um dos que também desenvolvia estudos sobre a técnica da fotografia quando do seu “descobrimento.” Aconselhado por Arago, atrasou a apresentação dos seus métodos à Academia Francesa mas, quando o fez, Daguerre já havia registrado seu invento por conselho do mesmo Arago.
Auto-retrato de Hippolyte Bayard, 1840
Pelas declarações do autor, esse auto-retrato não é apenas a demonstração da técnica desenvolvida por ele, mas também uma forma que o artista encontrou de chamar a atenção para seu caso. Enquanto o governo francês “comprou” a invenção de Daguerre por uma pensão vitalícia, Bayard recebeu apenas uma quantia em dinheiro para comprar alguns equipamentos, e por isso reivindicava direitos de invenção do medium. Bayard foi ainda o responsável pela primeira exposição fotográfica do mundo, em junho de 1839, apenas quatro meses depois da apresentação oficial da daguerreotipia.[17]
Outros exemplos poderiam ser citados, como o da fotógrafa Julia Margaret Cameron, que acreditava que a fotografia era arte pelos seus objetivos estéticos, ou de Henry Peach Robinson, que produziu diversas fotomontagens, publicou estudos sobre fotografia e entendia que a fotografia era arte porque podia mentir,[18] mas os citados já são suficiente como amostra de que, desde o princípio, o novo medium fotografia teve seu potencial artístico parcialmente desenvolvido. Mesmo num contexto cultural no qual diversos críticos e teóricos negavam a capacidade do novo medium de traduzir-se em arte, é interessante notar que esses fotógrafos trilhavam o caminho contrário buscando exatamente a valorização da fotografia artística.
Toda a discussão sobre a fotografia ser ou não arte foi muito bem resumida por Sontag, muito embora ela mesma admita no mesmo artigo que é uma espécie de discussão interminável: “Mais importante do que a questão de ser ou não a fotografia uma arte é o fato de que ela anuncia (e cria) ambições novas para a arte."[19]
Outra área social na qual a fotografia foi recebida com entusiasmo por alguns indivíduos é a ciência. Com sua representação fidedigna do exterior visível, a fotografia foi a utilizada como método de estudos produzindo novas imagens até então impossíveis e questionando, assim, algumas das representações pictóricas da época.
Outra área social na qual a fotografia foi recebida com entusiasmo por alguns indivíduos é a ciência. Com sua representação fidedigna do exterior visível, a fotografia foi a utilizada como método de estudos produzindo novas imagens até então impossíveis e questionando, assim, algumas das representações pictóricas da época. Exemplos recorrentes de usos da fotografia com objetivos científicos são os de Eadweard Muybridge e Etienne Jules Marey que, a partir dos progressos relativos ao tempo de exposição necessários para se fixar uma imagem, aproximadamente dos anos 1870, desenvolveram pesquisas sobre o movimento dos humanos e dos animais, inventando inclusive equipamentos para registro e projeção dos resultados obtidos em suas pesquisas.
Muybridge foi um fotógrafo e pesquisador inglês que desenvolveu pesquisas sobre movimento e locomoção humana e animal, e é figura central em um caso curioso: através de registros fotográficos comprovou que um cavalo, em certo momento do galope, não encostava todas as patas no chão. Para isso, utilizou uma bateria de máquinas fotográficas que registraram os movimentos sequencias, congelando as fases do galope do animal. Muito mais do que uma simples brincadeira, o cavalo desempenhava função representativa na economia norte-americana por se tratar de importante meio de locomação, e diversas publicações sobre a fisiologia do animal foram publicadas à época.[20]
Os resultados obtidos com o teste foram divulgados em publicações científicas da época, incentivando outros estudos e novas experiências, como as de Etienne Jules Marey na França. Este era especialista em fisiologia, estudioso dos movimentos do sangue no corpo, e foi o inventor, dentre outras coisas, da cronofotografia, outro método de registro rápido para fotografar sincronizadamente assuntos em movimento, que também veio a ser uma das bases para os posteriores cinematógrafos dos irmãos Lumière.[21] Além disso, na área da aviação Marey desenvolveu estudos aprofundados sobre dinâmica de vôo e criou a Smoke Machine, aparelho utilizado nas pesquisas sobre as variações dos ventos e que rendeu belas fotos mostrando fumaça em túneis de ar.[22]
Estes estudiosos foram importantes não só para a produção, diversificação e disseminação desses conhecimentos científicos em si, mas também e principalmente para o aprimoramento das técnicas e práticas fotográficas da época. Considerando que conseguiram registrar ações até então imperceptíveis ao olho humano, pode-se afirmar que Muybridge e Marey foram responsáveis pela proposição de um novo modo de olhar, modo esse que viria a inspirar não só novos media, como o cinema, mas também influenciar as formas de expressão visual, tanto a pintura como a própria fotografia.
Por outro lado, ao revelarem novas formas de percepção visual experiências como essas também trouxeram um outro problema em relação a alguns trabalhos da pintura da época, pois os registros fotográficos obtidos, registros esses verossímeis e fiéis à realidade, não condiziam com algumas imagens pintadas de assuntos em movimento, nem com imagens que o olho humano podia registrar. Disso surge a pergunta: deveria a arte continuar limitada ao universo observável ou partir para o registro de imagens que, mesmo não sendo captadas pelo olho humano, eram justificadamente reais?[23]
O medium fotográfico, desde as primeiras décadas seguintes à sua invenção, foi usado também na área jurídica. Partindo do aspecto da fotografia como prova do visível, Dubois apresenta e discorre sobre o optograma, surgido em 1870, cuja técnica consistia em retirar metódica e cuidadosamente as retinas de pessoas assassinadas para que fossem fotografadas em busca da última visão que a pessoa assassinada teria tido, como comprovação científica do envolvimento dos criminosos. Esse processo é analisado por Dubois como uma radicalização dos operadores de representação sugeridos (ver – pensar – acreditar), pois que esse processo do optograma pode ser visto como uma busca, um desejo, uma necessidade de veralgo onde nada até então era visto; verpara pensar, e só então acreditar.
Outro método desenvolvido a partir do medium fotográfico foi o chamado identificação antropométrica, utilizado pelo Serviço de Identidade Judiciária da Polícia de Paris no final do século XIX. A partir de três operações complementares, fotografiado rosto, mensuração antropométrica (a medida do corpo), e sinalética do “retrato falado,” a descrição dos elementos fisionômicos e marcas corporais, poder-se-ia combinar algumas informações para apontar uma “identidade irrefutável.”[24] Tanto o optograma como a identificação antropométrica, porém, revelaram-se métodos problemáticos e não se mantiveram como técnicas científicas de estudo.
Como se pode perceber, desde seu surgimento a fotografia suscitou discussões a respeito de sua gênese, se artística, técnica, científica etc. Na segunda metade do século XIX observa-se a evolução técnica e a popularização do medium fotográfico, bem como outros usos em diversas áreas sociais, inclusive com tentativas artísticas, aspectos esses que, em conjunto, acirraram o debate sobre a representação fiel da realidade exterior e os próprios métodos de registro dessa realidade.
Como se pode perceber, desde seu surgimento a fotografia suscitou discussões a respeito de sua gênese, se artística, técnica, científica etc. Na segunda metade do século XIX observa-se a evolução técnica e a popularização do medium fotográfico, bem como outros usos em diversas áreas sociais, inclusive com tentativas artísticas, aspectos esses que, em conjunto, acirraram o debate sobre a representação fiel da realidade exterior e os próprios métodos de registro dessa realidade.
Ainda antes da surgimento e estabelecimento do realismo, na primeira metade do século XIX, a produção artística ainda era bastante influenciada pelo sentimento romântico das épocas recentes. Strickland[25] caracteriza a arte do período como bastante ligada a sentimentos subjetivos: “Tanto escritores como artistas optaram pela emoção e pela intuição no lugar da objetividade racional.” Considerando como uma das marcas do romantismo o culto à natureza, Strickland afirma que essa natureza era heroicizada, como que tocada pelo sobrenatural no qual era possível visualizar uma divindade interior. Essas características são bastante recorrentes em outras análises do romantismo, como observa-se neste comentário de Argan: “A pintura romântica quer ser expressão do sentimento; o sentimento é um estado de espírito frente à realidade; sendo individual, é a única ligação possível entre o indivíduo e a natureza, o particular e o universal.”[26]
Assim, o espírito romântico buscava negar a racionalização característica dos períodos artísticos anteriores através da exacerbação de seus sentimentos naturais e apaixonados. Com os novos aspectos da sociedade da época, como a urbanização cada vez mais acelerada, em que pese a consolidação das metrópoles Paris e Londres, a burguesia emergente, a industrialização com seu binômio técnica-ciência e diversos progressos decorrentes, a arte romântica continuou existindo, mas lentamente surge outra tendência artística que busca refletir diversas facetas dessa sociedade na arte, e não mais apenas os aspectos românticos que vinham sendo valorizados.
Hauser afirma que o início do século XIX na Europa foi marcado pela emancipação e estabilização da burguesia numa sociedade em rápida evolução científica e tecnológica. Certos autores produziram textos que assimilavam e faziam repercutir alguns aspectos dessa nova sociedade, e é nesse contexto que surgem os primeiros romances realistas de Stendhal e Balzac, reproduzindo na literatura a sociedade burguesa da época e tratando “dos seus questionamentos particulares, suas dificuldades e conflitos morais, desconhecidos das gerações anteriores.”[27] O autor afirma que em vista do crescimento da consciência de classe do proletariado as teorias socialistas alcançam suas primeiras formas concretas, resultando também no engajamento do ativismo artístico. Assim, desde seu surgimento ainda no período romântico, a l’art pour l’art vive sua primeira crise ao ser questionada pelo utilitarismo e pela arte “socialista” ou mesmo pela arte “burguesa” que surgiam naquele momento. O racionalismo científico, a progressiva industrialização, a vitória do capitalismo, o progresso da ciência e o cientificismo do pensamento da época, somados ainda à experiência de uma revolução fracassada, tiveram como consequência um realismo crítico e político (em relação à França) totalmente contrário ao romantismo. A preparação e a introdução dessa disputa entre realismo e romantismo, conforme Hauser, só foi possível através das contribuições da geração de 1830 para os princípios básicos do século XIX, pois mesmo que a visão de arte da época fosse em parte socialista, em parte burguesa, era de todo não-romântica.
Embora já do início do século XIX possam ser encontradas referências em discussões teóricas que anunciavam o movimento artístico subsequente, o realismo como conceito pragmático, no sentido de referência ao visível e ao concreto, foi usada pela primeira vez por Champfleury numa discussão sobre o quadro L’Enterrement à Ornans, de Courbet, em 1850. A partir de então o termo foi usado para denominar a exposição Le réalisme do pintor francês Gustave Courbet de 1855, intitulou o estudo que Max Buchon publicou em 1856 (Lé réalisme; discussions esthétiques), o ensaio de Champfleury de 1857 Le réalisme e a importante revista Réalisme mantida entre julho de 1856 a maio de 1857 por Edmond Duranty.[28]
Foi nesse contexto artístico que Courbet assumiu a alcunha de “realista,” mesmo que tenham sido registradas reclamações posteriores de sua parte sobre essa denominação.
Gustave Courbet (1819-1877) foi atacado por críticos de arte como “realista” por obras como Os Britadores de Pedra de 1850 com a sua técnica grosseira e pastosa desprovida de qualquer tendência idealizada. No entanto, transformou a crítica em virtude.[29]
Como comprovam as críticas da época, Courbet foi um dos artistas censurados exatamente por se aproximar demais da fotografia numa busca pela representação exata do que via, negligenciando principalmente uma parcela da magicidade romântica atribuída aos artistas até então. Sua posição é a de artista que tem total consciência do que está produzindo, o que se evidencia em comentários como esse: “o pintor perfeito deve ser capaz de destruir a sua melhor composição dez vezes de seguida e de cada uma das vezes, pintá-la de novo para demonstrar que não depende nem da sua decisão nem do acaso.”[30]
Já consolidada desde há muito como forma de arte, a pintura representava o principal meio de reprodução do exterior visível até o surgimento da fotografia. Embora totalmente dependente do espírito artístico do pintor, era vista como a forma mais eficiente de registro do visível. Por sua vez, a fotografia surge e passa a oferecer uma possibilidade de cópia mais fidedigna do mundo exterior, sem a idealização, a representação ou a “interferência” do pintor. Porém, diversos artistas e críticos viram exatamente aí, na falta de representação, na falta de purificação, o aspecto diferenciador que fazia com que a fotografia não pudesse ser considerada arte.
Nesses parâmetros, a pintura foi obrigada a questionar o papel que desempenhara até então. Aproximadamente naquele momento, grande parte dos pintores buscava referências à aparência externa de seus modelos, fossem pessoas, objetos, paisagens ou afins, como por exemplo Jean-Auguste-Dominique Ingres, Théodore Géricault, Honoré Daumier, Eugène Delacroix, Claude Monet, entre outros. Assim, nada mais natural que se iniciasse uma reavaliação das concepções e conceitos tanto da arte em geral quanto dos artistas individualmente.
Houve quem afirmasse que a pintura, daquele momento em diante, não mais existiria. Sobre o medium recém surgido, o pintor Paul Delaroche declarou: “a partir de hoje, a pintura está morta!”[31] Houve, porém, quem fizesse uso da fotografia para facilitar seu processo artístico. Courbet “não hesitou em transpor para a pintura imagens extraídas de fotografias,“[32] e acreditava que “The principle that the exact imitation of nature is the aim of art.”[33] Ele foi uma das figuras centrais responsáveis pelo surgimento do realismo, considerando que tanto sua postura como artista quanto sua produção, além da exposição de 1855, contribuíram muito para os debates sobre o visual.
Na Europa do século XIX, os salões de arte tinham grande importância cultural e artística, sendo respaldados tanto pela crítica quanto pelo público. Dessa forma, exerciam certa influência sobre artistas, obras e movimentos. Na Exposição Universal de Paris de 1855, Courbet teve duas obras rejeitadas pelo comitê organizador, e decidiu fazer uma exposição independente intitulada Le réalisme onde não só oferecia à venda os quadros como também fotografias dos mesmos.
A exposição Le réalisme foi realizada por Courbet num pavilhão próximo à Exposição Universal e, entre outros quadros, foram exibidos os negados pela organização:
Retrato de Champfleury, Gustave Courbet, 1855
Burial at Ornans, Gustave Courbet, 1849-50
Avaliando as obras expostas por Courbet, a crítica da época não poupou observações negativas que consideravam as pinturas excessivamente fotográficas, como comprova este comentário do crítico Étienne-Jean Deléluze sobre Burial at Ornans: “In that scene, which one might mistake for a faulty daguerreotype, there is the natural coarseness which one always geths in taking nature as it is, and in reproducing it just as it is seen.”[34] Isso demonstra uma reflexão crítica por parte dos comentaristas que consideravam o medium fotográfico como um possível parâmetro comparativo, mesmo que numa comparação negativa, como também consta em uma observação de 1854 sobre certa obra de Holman Hunt, obra essa “tão feia como um daguerreótipo.”[35]
Observe-se ainda que pinturas feitas a partir da Camera obscura já haviam suscitado avaliações negativas de pintores no século XVIII, por serem pinturas “não-artísticas;” da mesma forma que autores como Goethe e Friedrich Klingers já tinham algumas opinões sobre a Camera obscura. O primeiro, ele próprio possuidor de um exemplar do aparelho e interessado em suas possibilidades, foi o organizador e editor de ensaios sobre pintura de paisagens na qual o pintor Phillip Hackert afirmava: “Muitos amadores podem se divertir com isso [com a Camera obscura], mas os artistas não devem usá-la, pois é desvantajosa como original por não ser correta,”[36] e segue comentando detalhes técnicos como foco e perspectiva que não corresponderiam à realidade visível. Já Friedrich Klingers escreveu ensaios comparando os resultados óticos obtidos e certas manifestações literárias: “Há poetas – não escritores – que nos descrevem corretamente a natureza tão fria, dura, formal e medíocre como se tivessem trabalhado atrás de uma Camera Obscura, [...] na qual tudo é diminuído e apertado, e onde tudo está lá, menos o movimento e a vida.”[37]
Courbet desafiadoramente questionou a tradição da pintura da época até mesmo na proporção de seus quadros. Burial at Ornans tinha 6,6 metros de comprimento e foi uma das primeiras pinturas desse porte que não retratava motivos históricos grandiosos. Pelo contrário, o assunto apresentado é um simples funeral da província, o que também acarretou críticas pela vulgaridade do assunto. Courbet queria apenas pintar assuntos visíveis, coisas reais e existentes, e quando solicitado a pintar um anjo, respondeu irônico: “Nunca vi anjos. Se me mostrarem um, eu pinto.”[38]
Foi também em 1855 que a fotografia alcançou conquistas importantes: a Sociedade Heliográfica tornou-se Sociedade Francesa de Fotografia e seus membros objetivavam elevar a fotografia à categoria de arte. Além de fotógrafos conhecidos à época, como Eugène Durieu, Nadar e Bayar, também participavam da Sociedade Francesa de Fotografia alguns pintores, como Delacroix, e escritores e críticos, como Benjamin Delessert e Théophile Gautier.
A exposição de Courbet de 1855 não pode ser vista como um fato isolado que justifica automaticamente o surgimento de todo um movimento artístico, mas pode-se identificar nela um dos eventos importantes que colaboraram para a definição ou mesmo a consolidação de certos pressupostos artísticos da época que já estavam em ebulição aproximadamente desde a invenção da fotografia em 1839. Opiniões comuns entre diversos artistas é que podem direcionar e definir determinada corrente artística, e é nesse sentido que devem ser considerados esses fatos. Da mesma forma, outro evento importante para a instituição do realismo foi a publicação do manifesto Le réalisme, em 1857, por Champfleury. Nele, o autor busca defender a pintura ao mesmo tempo que rejeita de forma veemente a daguerreotipia como arte, e cita um exemplo bastante elucidativo sobre as qualidades artísticas da pintura e da daguerreotipia: se dez daguerreotipistas registrassem uma determinada cena, o resultado seria dez daguerreotipias iguais, enquanto que se dez pintores fossem registrar a mesma cena, os resultados seriam dez pinturas diferenciadas entre si.[39]
No seu manifesto, Champfleury deixa clara sua posição da qual vê a pintura como uma arte muito mais elevada, de forma a possuir certo espírito ou genialidade do artista, coisa que a daguerreotipia, por ser mecânica e fazer-se por si, não possui e nunca poderia possuir. Essa referência negativa, e de certa forma até depreciativa, em relação à qualidade artística tão díspar entre a pintura e a fotografia poderá ser também observada nas avaliações entre a literatura e fotografia: aquela era possuidora de espírito e gênio artístico, esta, um simples meio de reprodução do visível, não. Sobre a literatura realista do século XIX, por exemplo, Plumpe[40]
afirma que “à época do realismo a fotografia serviu como conceito negativo no discurso literário, pois surgiu apenas para reproduzir o mundo fenomenal imediato e “não-transfigurado” em toda sua contingência.”É nesse sentido que o novo medium pode ser visto como referência positiva e negativa ao mesmo tempo: alguns artistas utilizavam a fotografia como auxílio técnico para suas pinturas e esculturas, por exemplo, enquanto outros negavam qualquer contribuição possível da fotografia para as artes tidas como institucionalizadas.
Ainda sobre Courbet, observa-se que tendo ele seguido pelo caminho da pintura realista, diversos de seus quadros podem ser diretamente comparados a fotografias. Mais do que isso: posteriormente foi descoberto que ele utilizava retratos como modelos para suas obras, tanto para estudos de posição e movimento quanto de luz e cor.
A conhecida obra L'Atelier du peintre — Allégorie réelle déterminant une phase de sept années de ma vie artistique et morale, de 1855, é uma das que foi elaborada a partir de fotografias. Nessa pintura, Courbet traz à tona algumas questões de seu tempo, inclusive com referência a personagens conhecidos da comunidade cultural e artística, e coloca-se entre dois pólos da sociedade da época, ou, um pouco mais poeticamente falando, entre dois mundos: o artístico e o real.
L'Atelier du peintre, Gustave Courbet, 1855
Detalhe PB de L'Atelier du peintre
Foto usada como modelo
A programática pintura de Courbet, O Estúdio do Artista (Uma alegoria real de uma fase de sete anos na minha vida artística e moral), torna claro que se interessava pela realidade nas suas várias manifestações: esta vasta obra, pintada em 1855, retrata o artista a trabalhar numa paisagem da sua terra natal, o Franco-Condado; a seu lado, encontra-se uma jovem nua, um jovem pastor e um gato, enquanto que do lado direito se encontra um grupo de amigos de Courbet, todos eles identificáveis [...]; o lado esquerdo da pintura está ocupado por figuras que simbolizam, entre outras, o trabalho, o comércio e a arte acadêmica.
O nu anteriormente mencionado, referido pelos críticos contemporâneos como “musa da verdade,” é um exemplo freqüentemente citado de um estilo de pintura que recolhia os seus motivos da fotografia: a figura inspirava-se no nu de uma fotografia tirada por Julien de Vallou Villeneuve.[41]
É representativo que numa das suas principais obras realistas, Courbet retrate justamente um mundo polarizado, enquanto se coloca exatamente no meio desses dois mundos. Se Rafael, um ícone universal da arte da pintura, com seu quadro Escola de Atenas, apresentou o mundo dividido entre a filosofia e a ciência, e se Rejlander, por sua vez e com o seu incipiente medium fotográfico, no quadro The two ways of life, sugere uma divisão entre os prazeres e as responsabilidades do mundo, é possível perceber na pintura de Courbet não apenas o ressurgimento da temática do mundo dividido, mas também o uso dos dois media, a pintura e a fotografia, esta como referência e meio de auxílio técnico, para retratar a polaridade responsabilidade x prazer.
Outro artista que também utilizou fotografias para suas pinturas foi Eugène Delacroix. Ele fez uso de fotografias como modelo, aproveitou as instalações de um estúdio fotográfico por alguns anos, foi sócio fundador da primeira sociedade fotográfica da França (a Sociedade Heliográfica) e foi um dos mais ativos apoiadores dos fotógrafos para que pudessem expor suas fotos nas exposições anuais do Salão. Alguns dos outros pintores que também utilizaram o novo medium como auxílio às suas pinturas foram David Octavius Hill, William Powel Frith, Degas, Cézanne, Gaugin, Manet e Ingres.[42]
Esses exemplos trazem à tona a questão das vantagens que alguns artistas tiraram exatamente da característica mimética da fotografia. Esta característica, usada anteriormente em benefício de outras áreas, obviamente não era utilizada, quiçá aceita, por todos os pintores, pois muitos deles viam na excessiva exatidão fotográfica a falta do espírito artístico que somente a pintura possuía.
Enquanto pintores como Courbet, Ingres e Delacroix apropriaram-se desses recursos fotográficos, tanto a pintura quanto a fotografia evoluíam progressivamente, aquela na direção do impressionismo e do expressionismo, esta na busca do reconhecimento dos seus espaços, fosse na arte, na ciência ou outras áreas nas quais atuava:
Trata-se sempre de estender ao máximo as possibilidades do olhar humano. Logo os homens se põem a explorar o espaço (Nadar e seu balão...) rumo ao infinitamente pequeno, ou rumo ao cosmos (1840: primeiros daguerreótipos com microscópio solar de Donné. 1845: imagem do sol de Fizeau. 1851: magnífico daguerreótipo da lua de John Adams Whipple com o telescópio do Observatório do Harvard College).[43]
Tendo a fotografia desde aquele tempo conquistado ou não os espaços que almejava, o que se percebe é a apropriação que certos pintores fizeram de parâmetros óticos que a fotografia possibilitava.
Contudo, se por um lado é possível identificar em certas pinturas de Courbet e Delacroix uma nítida influência, ou, de outra forma, o uso claro da fotografia como referência, deve ser observado que desde seu surgimento existiram tentativas de valorizar a fotografia como medium artístico. De qualquer modo, não seria correto considerar toda a intermedialidade entre fotografia e arte nessa óbvia relação de causa e efeito daquela nesta, pois isto seria uma excessiva simplificação.
Sontag dá uma visão retrospectiva sobre a “libertação” da pintura através do efeito mimético da fotografia: “Ao tomar para si a tarefa de retratar a realidade de forma realista, tarefa que era até então um monopólio da pintura, a fotografia liberou a pintura para a sua grande vocação modernista – a abstração.”[44] Porém, ela não aponta no novo medium a causa única dessa libertação, pois crê que a pintura já se encaminhava para a busca de outras representações que não a essencialmente realista. Também assim pretende-se compreender que essa predisposição da pintura, bem como o surgimento da fotografia e o rápido desenvolvimento de diversas técnicas e os progressos intensos dos equipamentos e suprimentos fotográficos ao longo de todo o século XIX em muito impulsionaram a “tomada de consciência” de alguns pintores de que poderiam dedicar-se a outros objetivos, pois a reprodução mimética da realidade já havia sido compreendida pela fotografia.
Embora tenha surgido em 1839, apenas duas décadas depois a fotografia foi aceita para a mais importante exposição artística da época, o Salão de Arte de Paris.
Os Salões sempre cumpriram o papel ambíguo de ser uma vitrine de novas tendências e um espaço de afirmação da tradição da arte francesa. Sua origem remonta a 1667 [...]. Sobrevivendo e adequando-se aos ideais da Revolução Francesa, os Salões permaneceram ao longo do século XIX como um dos mais importantes eventos da arte européia, sem no entando deixar de motivar constantes polêmicas entre críticos, artistas e jurados, e também entre tendências [...][45]
A partir do apoio da Sociedade Francesa de Fotografia, em 1859 a fotografia pôde ser exposta no Salão, mas num pavilhão separado da exposição principal e com entrada isolada. Contando com 1295 expositores, inclusive do Brasil, a exposição recebeu em torno de vinte mil visitantes e foi um sucesso de público e crítica. Enquanto as fotografias eram elogiadas a partir de parâmetros com os quais se avaliavam pinturas e mesmo em comparação a estas, o processo inverso não foi o mesmo, pois diversas pinturas foram criticadas exatamente por mostrarem-se excessivamente fotográficas ou por assumirem certas referências e aspectos exclusivamente originários da fotografia.[46]
Apesar dessa importante conquista da fotografia e mesmo sendo percebidas características ou aspectos nitidamente advindos deste medium (perspectiva, sombras, detalhes etc.), alguns críticos e artistas ainda não haviam se convencido a tratar a fotografia como arte, e Charles Baudelaire é o maior dos exemplos.
Um dos mais importantes críticos de arte da época, Baudelaire foi um dos que publicou diversas resenhas e ensaios sobre os Salões de Arte. Embora sua biografia denuncie o interesse que tinha por fotografias de entes familiares, bem como a atenção por suas próprias fotografias (o amigo e já reconhecido fotógrafo Nadar fez alguns registros do poeta), Baudelaire foi um dos maiores adversários do uso da fotografia no campo da arte e demonstrou sua aversão no artigo A fotografia e o público moderno publicado na Revue Française 10, de 20 de junho de 1859, artigo esse frequentemente citado em diversas pesquisas sobre o assunto e sobre a época. Baudelaire aceitava o medium como instrumento útil a outras áreas da sociedade, ciência em especial, mas não como forma de arte. Extremamente irônico, debocha de quem considera a arte como uma reprodução idêntica da natureza, e condena Daguerre como o Messias da multidão que assim crê. Afirma que a indústria fotográfica seria o refúgio dos “pintores fracassados, demasiado mal-dotados ou preguiçosos para acabar seus estudos,”[47] que o desenvolvimento da fotografia seria o responsável pelo empobrecimento do gênio artístico francês, e clama que a fotografia se volte ao seu verdadeiro dever, qual seja, ser uma humilde criada da ciência e da arte – e não ser a arte em si – assim como o foram a imprensa e a estenografia, que nem criaram nem substituíram a literatura.
Com essas afirmações, Baudelaire demonstra bem uma visão de artistas e críticos da época: a fotografia seria por demais industrial, técnica, serial, enquanto a arte deveria conter o gêniodo artista. A questão da técnica é uma das primeiras abordagens sobre a fotografia, medium esse que, por depender essencialmente de um equipamento técnico, foi inicialmente identificado com a produção industrial e serial, em contraponto à produção artística, essa sim autêntica e individual. Enquanto o pintor podia ser livre para expressar as possibilidades das cores, formas e linhas, o fotógrafo não teria qualquer liberdade, pois deveria deixar a elaboração das suas imagens à mercê das leis da natureza. Parece que exatamente o objetivo buscado pelos precursores da fotografia passou a ser um argumento contrário para sua aceitação como arte: a foto faz-se “sozinha”, através do lápis da natureza, logo, o “operador” de uma máquina fotográfica não poderia influenciar na obra final.
Plumpe apresenta esquema binário: “Ou a fotografia é ‘arte’ porque ela é autêntica, individual, criativa etc., ou ela não é ‘arte’ porque ela é um meio técnico, anônimo, só reprodutivo etc.”[48] Enquanto a autonomia das belas obras seria identificada com um organismo (com a vida, com o movimento, com uma estrutura harmonicamente organizada), os processos técnicos estariam mais próximos da ideia de mecanismo (um somatório mecânico, uma combinação casual de peças fabricadas, estáticas e mortas). Também a perspectiva de valorização do artista na obra final pode ser repensada através da polaridade superficial x profundo. Imitar ou apenas mostrar a realidade como a fotografia faz seria excessivamente superficial, enquanto transformar a realidade seria uma alteração mais profunda, e, assim, uma efetiva criação artística.
O princípio da imitação (Nachahmung), Plumpe considera como uma cópia passiva de um mundo potencial, enquanto que a arte autêntica buscaria a essência desse mundo. Dessa forma, contrapõe a arte (autônoma, ativa, humana, verdadeira, profunda, criativa, individual, singular e viva) à técnica (não-autônoma, passiva, mecânica, mentirosa, superficial, copiada, anônima e coletiva, reproduzível e morta). Nesse aspecto, o problema maior parece ser aceitar a industrialização da sociedade mas ao mesmo tempo negar a industrialização da arte, evitando assim sua mecanização, sua reprodução serial e talvez até sua morte. Se por um lado diversas esferas da sociedade admitiam a industrialização como aspecto positivo, no campo da arte sujeitar-se à industrialização representava uma ameaça, e aceitar a fotografia como arte seria consentir a inclusão da indústria na esfera artística.
Para se evitar uma espécie de empobrecimento por igualdade de significação, por simples “reflexo” da realidade, haveria que se defender ou até exigir a produção de algo, a transformação dessa realidade em busca da sua essência, a reificação do espírito e do gênio do artista na obra de arte, ou seja, a transfiguração da realidade (Verklärung), objetivos esses inantingíveis pela fotografia.
Enquanto essas questões eram pensadas, os fotógrafos, por sua vez, defendiam a existência da subjetividade no seu trabalho como fator potencial para serem considerados artistas, além da importância sócio-econômica que conquistavam gradativamente através da popularização do medium. Um boomde ateliês fotográficos pôde ser percebido em diversos países europeus entre 1850 e 1860; o primeiro jornal alemão especializado em fotografia surgiu em 1854 (em 1870 eram já 13 e em 1900, 57 publicações especializadas!); aulas de fotografia iniciaram em Berlim em 1865; além das organizações dos profissionais surgidas já em 1861; e mesmo as discussões teóricas e conceituais como a polêmica da Bayrische Akademie der bildenden Künste sobre o caráter artístico da fotografia em 1864 atestam a crescente valorização do medium. Além disso, as primeiras exposições na Alemanha, em 1865 em Berlim e em 1868 em Hamburg, colaboraram para a tomada de consciência por parte dos fotógrafos alemães, bem como a aceitação em museus de arte a partir de 1893. Em especial, a exposição na Academia de Arte de Berlim, em 1898, foi vista por alguns como o “reconhecimento oficial” da fotografia como arte.[49]
Mesmo considerando todos esses importantes acontecimentos até o fim do século XIX, percebe-se que a fotografia conseguiu se estabilizar em certo estágio da hierarquia cultural, mas isso não representou exatamente sua aceitação como arte nos parâmetros tradicionais. Como foi mostrado, não havia consenso entre artistas e teóricos sobre as vantagens e desvantagens do novo medium, que, tendo sido utilizado como meio de apoio para outras formas de expressão artística, lentamente conquistou alguns espaços mas continuou sendo não apenas criticado, mas também usado como referência positiva e negativa nas artes visuais e na própria literatura.
É na França do início do século XIX, marcado por importantes descobertas tecnológicas, avanços na ciência e na indústria, bem como pelo surgimento das grandes cidades e pela crescente urbanização, que surgem os primeiros textos literários realistas como Le Rouge e le Noir (Stendhal, 1830), La femme de trente ans (Honoré de Balzac, 1831-34), Madame Bovary (Gustave Flaubert, 1857) ou, na Inglaterra mas aproximadamente na mesma época, Oliver Twist (Charles Dickens, 1838).
Chama a atenção, já num primeiro momento, que podem ser encontradas algumas referências ao novo medium em alguns destes romances. Em O vermelho e o negro (1830), por exemplo, o protagonista Julien guarda com carinho e admiração um retrato de Napoleão, retrato esse que lhe causará preocupações diversas pelo medo de ser descoberto por seus patrões.
Já em Oliver Twist (1838), apesar de não haver uma fotografia propriamente dita, é através de um quadro bastante realista que o protagonista é reconhecido como filho e herdeiro de uma pequena fortuna:
'Are you fond of pictures, dear?' inquired the old lady, seeing that Oliver had fixed his eyes, most intently, on a portrait which hung against the wall; just opposite his chair.
'I don't quite know, ma'am', said Oliver, without taking his eyes from the canvas; 'I have s een so few that I hardly know. What a beatiful, mild face that lady's is!'
'Ah!', said the old lady, 'painters always make ladies out prettier than they are, or they wouldn't get any custom, child. The man that invented the machine for taking likenesses might have known that would never succeed; it's a deal too honest. A deal', said the old lady, laughing very heartily at her own acuteness.
'Is... is that a likeness, ma'am?' said Oliver.
'Yes,' said the old lady, looking up for a moment from the broth; 'that's a portrait.'[50]
Além da importante função que o quadro representa na trama, saliente-se a opinão da outra personagem sobre o homem que inventou a máquina para “copiar semelhanças” condenando-o ao fracasso.
Discutindo a relação da fotografia com a realidade, Sontag faz referência explícita ao escritor inglês:
É claro, as fotos preenchem lacunas em nossas imagens mentais do presente e do passado: por exemplo, as imagens de Jacobs Riis da miséria de Nova York na década de 1880 são extremamente instrutivas para quem não sabe que a pobreza urbana nos Estados Unidos no fim do século XIX era de fato dickensiana[51]
É interessante notar que ela refere-se exatamente a um dos primeiros escritores realistas como contraponto a antigas fotografias, como se um texto detalhadamente descritivo pudesse ainda ser complementado por uma imagem, ou mais, que uma imagem pudesse realmente comprovar as descrições de Charles Dickens.
Por sua vez, em Madame Bovary(1857) não se encontra referência ao novo medium fotografia. Outrossim, chama a atenção que na introdução da edição brasileira de série especial “Os imortais da literatura universal” (1971), é oferecida uma breve biografia do autor bem como a contextualização da primeira publicação (com ilustrações e quadros da época, inclusive O atelier do artista, de Courbet), além de um pequeno relato do processo que o autor sofreu por imoralidade contra os bons costumes da sociedade burguesa da época. Irônico, Flaubert respondia às insistentes indagações das autoridades e dos curiosos com um singelo “Madame Bovary sou eu.” Na apresentação desta edição brasileira, aos comentários de que Flaubert utilizava um livro de notas para registrar qualquer fato interessante do cotidiano, segue-se que ele teria sido o inaugurador do realismo, que “esmiúça a realidade como um cientista, procurando ser o mais objetivo possível,” já que, ao contrário dos preceitos românticos, não existe “assunto proibido para a arte, como nada é vedado à ciência” (1971, p. 139).
Também não são encontradas referências à fotografia em A mulher de trinta anos (1834), de Balzac. Atente-se, porém, que o autor francês é referência constante no que tange à relação biográfica de artistas com a fotografia. Enquanto escritores como Lewis Carol ou Anton Tchekhov praticaram a fotografia de forma amadora ou até mesmo como forma de expressão, Balzac tinha verdadeira aversão a fotografias.
Nadar, importante e conhecido fotógrafo francês, registra nas suas memórias (Quando eu era fotógrafo, 1900) que Balzac tinha uma espécie de pavor de ser fotografado, da mesma forma que alguns povos primitivos temem que a fotografia irá lhe roubar uma parte do seu ser. Conforme Nadar, Balzac afirmava que:
Uma vez que o homem nunca foi capaz de criar, ou seja, de fazer algo material a partir de uma aparição, de algo impalpável, ou de fazer um objeto a partir do nada – qualquer operação daguerriana, por conseguinte, havia de se apoderar de uma das camadas do corpo que tinha em foco, destacá-la e usá-la[52]
Comentando a situação, Nadar afirma que esse temor tinha um certo fundamento, considerando que a operação da fotografia era facilmente comparável à origininalidade romancista do escritor, qual seja, a de atentar a um detalhe ínfimo de uma cena tornando esse detalhe representativo e significativo do todo, ao passo que é ampliado e mostrado ao leitor.
Nadar, aliás, é homenageado por um dos grandes adversários da fotografia artística, Charles Baudelaire, no poema O sonho de um curioso, d´As flores do mal (1857). O fotógrafo Nadar, por sua vez, é o autor de Charles Baudelaire, Íntimo. O poeta virgem, publicado em 1911, livro que contém “descrições poéticas da personalidade do poeta e algumas breves histórias” além de fragmentos de cartas com referências aos Salões de Arte da época.[53]
Apresentando e discutindo as diversas representações da realidade na literatura ocidental, Auerbach aponta nos romances de Stendhal e Balzac publicados na década de 1830 o surgimento do realismo moderno. Conforme o autor, Stendhal “sempre trata, nos seus escritos realistas, da realidade com que se defronta,”[54] colocando seus personagens em confronto com o seu tempo, o que faz com que o realismo stendhaliano seja, ao mesmo tempo, ligado à ideologia histórica da época bem como represente a luta dos seus personagens pela sua auto-afirmação. A história de Julien Sorel é essencialmente contextualizada, histórica e politicamente, e sua trajetória é muito mais aproximada dos heróis do que os posteriores personagens de Balzac ou Flaubert.
Balzac é o outro autor apontado por Auerbach como criador do realismo moderno. Tal qual Stendhal, suas histórias dependem sobremaneira do contexto histórico, político e social da época, muito embora Balzac apresente suas narrativas em atmosferas referentes à burguesia francesa com certos “exageros melodramáticos.”
Afirma Auerbach:
Em grau não menor do que a simpatia romântica pela totalidade atmosférica dos espaços vitais, também uma outra corrente romântica contribuiu para o desenvolvimento do realismo moderno, a saber, aquela da qual já falamos tão repetidamente: a mistura de estilos. Foi ela que permitiu que personagens de qualquer classe social, com todos os seus entrelaçamentos vitais prático-quotidianos, tanto Julien Sorel como o velho Goriot ou Mme Vauquer, se tornassem objetos da representação literária séria.[55]
Nesse sentido, pode-se observar nas primeiras narrativas realistas de Stendhal e Balzac uma atenção a assuntos que até então não eram representados pela literatura. É o olhar realista que se nega aos temas românticos e utópicos de épocas e movimentos anteriores em detrimento da apresentação fidedigna de acontecimentos verossímeis, numa “mistura do sério com a realidade cotidiana.”
É nesse cotidiano que Flaubert baseia sua obra Madame Bovary (1857), não na forma heroicizada de Stendhal, mas como amostra de um cotidiano medíocre que satura a persosagem principal ao passo que agrada seu próprio marido. Além disso, Flaubert em momento algum dá sua própria opinião sobre as ações e personagens de Madame Bovary, no que também se diferencia dos romances realistas de Stendhal e Balzac. É discutindo esses três autores que Auerbach delimita o surgimento e desenvolvimento do romance realista moderno, e conclui que seus fundamentos são:
O tratamento sério da realidade quotidiana, a ascensão de camadas humanas mais largas e socialmente inferiores à posição de objetos de representação problemático-existencial, por um lado – e, pelo outro, o engarçamento de personagens e acontecimentos quotidianos quaisquer no decurso geral da história contemporânea, do pano de fundo historicamente agitado [...][56]
Já Hauser, ao comentar e contrapor as obras de Stendhal e Balzac, considera as características deste último “mais coerentes, menos dúbias e menos problemáticas que as de Stendhal, pois de certo modo significam um retorno à psicologia da literatura clássica e romântica.”[57] Enquanto as crenças dos personsagens de Balzac são intimamente ligadas à realidade, mesmo que não sejam de simples compreensão, as de Stendhal relacionam-se mais a conceitos psicológicos, afirma o crítico. As personagens balzaquianas podem ser menos cintilantes e interessantes do que os heróis de Sthendal, mas atuam mais vivamente, menos confusas e de forma mais inesquecível. Ao descrever as características de suas personagens, Balzac nunca fala sobre os aspectos psicológicos, mas sim “sobre sua sociologia, sua história natural e sua função do indivíduo particular na sociedade.” Assim, ao contrário dos romances de Rousseau, Chateaubriand, Goethe e Stendhal, Balzac rompe o ambiente, a moldura, a idéia do destino individual, afirma Hauser.
Balzac seria ainda o “primeiro escritor que trata com entusiasmo de uma cidade moderna do mundo”[58] através de seu Weltanschauung realista que vê de forma positiva a nova indústria, a força do mundo concentrada, o dinamismo e as regras da cidade grande. Paris para Balzac é um mito, a cidade das luzes noturnas, o paraíso clandestino. Apesar de ser conhecido como um anarquista inimigo da sociedade da época, suas perspectivas de encantamento sobre as coisas novas e modernas eram como uma ruptura para sua esperança e confiança no futuro.
Com tudo isso, pode-se considerar que os romances realistas franceses apresentaram-se de forma contextualizada histórica e politicamente, ou seja, mostrando e de certa forma até questionando e discutindo certos aspectos da sociedade na qual estavam inseridos, enquanto que o realismo alemão parece ter sido menos crítico ou radical.
Rothmann indica como antecessores do realismo os movimentos Biedemeier, entre 1810 e 1850, relativo à cultura burguesa, e Junges Deutschland und Vormärz, entre 1835 e 1848, uma espécie de literatura engajada que pretendia se preocupar mais com o pensamento e as ações de transformação no mundo do que com o lado espiritual, pois para esses escritores “burguesia mundial era mais importante do que patriotismo, crítica racional mais importante do que o cristianismo, progresso e socialismo significavam mais do que individualismo e tradição.”[59] O autor delimita o realismo literário alemão entre os anos de 1840 e 1897 e afirma que foi um realismo burguês, poético. Embora também tratasse de questões e necessidades da sociedade e do seu contexto, apresentando o Milieu (ambiente) de forma mais crítica do que embelezada, Rothmann entende que os realistas alemães, ainda sob influência do idealismo alemão, de certa forma ignoraram muitas das questões sociais apresentadas pelos realistas franceses e russos.
Na tentativa de conceituação deste realismo poético, o escritor Otto Ludwig esclarece:
A principal diferença do realismo artístico para o idealismo artístico é que o realista recria o mundo tanto em sua extensão e variedade quanto quer entender sua “unidade mental” (gestigen Einheit) [...]. Os naturalistas tratam mais da variedade, os idealistasmais da unidade. Ambas direções são unilaterais, que o realismo artístico reúne em um meio artístico.[60]
Para definir o realismo alemão Rothmann (2003, p. 180-228) considera ainda o pessimismo de Schopenhauer, a filosofia de Nietzsche, o teatro de Hebbel e a música de Richard Wagner com seu objetivo de Gesamtkunstwerk (a obra de arte total, numa união de poesia, música, pintura, encenação, dança e arquitetura), além do romance e da novela realista em contraposição à poesia da época, ainda bastante ligada a Goethe e aos românticos em geral. Dessa forma, aponta no naturalismo uma expressão ou imitação mais fidedigna da natureza, através da fórmula descrita pelo poeta Arno Holz Arte = Natureza – x, onde “x” seria a interferência do homem, a possibilidade de erro, a variação entre a natureza que era o modelo a ser seguido e o resultado final. A evolução do realismo e do naturalismo literário na Alemanha teria resultado no impressionismo e simbolismo (1883-1923), num contexto social que considerava tanto as evoluções técnicas, científicas, industriais e urbanas do século XIX, como o clima de pessimismo de fin de siècle e da décadence, movimentos esses também bastante ligados com as artes visuais, bem como o posterior expressionismo (1910-1925).
É importante ressaltar que, embora a revolução industrial e o surgimento das grandes cidades tenha ocorrido primeiramente na França e na Inglaterra, a Alemanha também teve seu contexto sócio-geográfico bastante modificado nesta época. Em 1800, 74% da população alemã vivia no campo. Já em 1900, esse número se reduziu para 27%. A população aproximada de Berlim e Hamburg juntas em 1840 era de 100 mil habitantes, mas nos primeiros anos de 1900 Berlim contava com um milhão de habitantes e Hamburg, mais de 400 mil. [61]Embora aproximadamente 90% da população alemã fosse alfabetizada, o público leitor negava os temas modernos e era essencialmente interessado em assuntos burgueses, o que de certa forma explica a manutenção do realismo poético alemão até o fim do século XIX com o chamado späte Realismus, do qual Theodor Storm, Gottfried Keller, Conrad Ferdinand Meyer e mesmo Theodor Fontane são exemplos.[62]
Eisele propõe uma teoria do realismo a partir da interpretação dos fenômenos literários na esfera social e compreende o realismo literário alemão como menos preocupado com as questões políticas e sociais daquele momento, ou seja, à realidade e à mentalidade daquele momento (o Zeitgeist). Baseado nos escritores da época, o autor vê a literatura realista como a maneira “normal,” a “mais natural” de se contar uma história. Essa maneira dita “natural” é vista como contraponto da artificialidade de outras correntes e períodos literários, pois o realismo literário teria sido executado sem esforço ou exagero, sendo a expressão “espontânea” da literatura; logo, a literatura realista seria a mais “literária das literaturas”, a mais verdadeira e mais natural de todas, e por isso expressaria a essência da realidade. O autor apresenta a visão de autores alemães sobre o realismo como “a tentativa de estabelecer-se uma formação literária como universal (absoluta), e na verdade com base na sua pretensa naturalidade.”[63]
Já Fontane, considerando que o realismo em si sempre esteve presente na arte, não vê o realismo como um retorno aos períodos anteriores que já estavam “doentes” ou talvez comprometidos, mas sim como a própria arte, como a essência da literatura: O realismo na arte é tão antigo quanto a própria arte, sim, ainda mais: ele é arte. Nossa direção moderna não é outra coisa que um retorno a único caminho correto, a recuperação que não podia faltar a um doente, enquanto seu organismo ainda fosse capaz de sobreviver.[64]
Buscando exemplificar o modo como os escritores realistas alemães fizeram uso da realidade sem expressá-la de forma nua e crua, ou seja, purificando ou transfigurando essa realidade, Eisele[65] traz duas metáforas de Fontane, que atentam e apontam para o mundo como contingente, ou melhor, potencial: o mundo como uma mina de beleza para os artistas, e a vida como um pedaço de pedra de mármore que traz em si a matéria para infinitas obras. Dessas imagens pode-se tentar compreender dois conceitos fundamentais bastante utilizados pelo realismo alemão: Läuterung, no sentido de “purificação” ou “sublimação” e Verklärung como “transfiguração” ou “apoteose”. Ou seja: não se pretende mostrar o mundo exterior, a dita “realidade,” de forma totalmente fidedigna, com seus aspectos positivos e negativos, mas sim partir do mundo tal qual o conhecemos, o mundo concreto, o mundo visível, para depois de purificado, limpo, transformado ou alterado, apresentá-lo de forma a ser reconhecível nas obras artísticas. Não se quer apresentar o mundo empírico em si, mas usá-lo como matéria-prima.
Eisele (1982) ainda discute brevemente a noção de verdadepara os realistas, verdade essa que Friedrich Theodor Vischer compreendia como o conteúdo essencial da vida e que Fontane buscava dizendo que o realismo não queria meramente o mundo perceptível pelos sentidos, mas a verdade, o verdadeiro, ou seja, a essênciada realidade. É nessa perspectiva que a fotografia não é compreendida pelos realistas alemães como expressão nem de verdade nem da própria arte, pois esse medium faria apenas o registro da visão sem que fosse purificado ou sublimado; logo, sendo apenas um recorte superficial, bruto e acidental da realidade, e não ela em essência. Ao contrário da literatura realista, a fotografia selecionaria apenas um elemento qualquer que não poderia ser tomado como a realidade verdadeira: haveria que se purificar, transfigurar, trabalhar esse recorte de realidade para que dele se retirasse a essência, coisa que o medium fotográfico não conseguiria fazer.
Essa visão negativa do medium fotográfico também pode ser observada no seu uso como motivo literário: “Na ‘alta’ ou ‘canônica’ literatura alemã do século XIX a fotografia desempenha só uma função marginal e surge antes de tudo em romances e contos triviais e textos ocasionais."[66]
Ainda sobre a representação da realidade pela literatura, Otto Ludwig afirma que “o mundo da poesia devia ser o mundo real, mas transparente,” o autor conclui que literatura e a realidade externa devem ser compreendidas como parcialmente idênticas, pois o escritor “pega o caso único, como ele é na realidade, e tira o comum, especializando-o novamente e produzindo uma realidade elevada, uma realidade poética. [...] O real é simplificado para o ideal e outra vez individualizado na realidade poética.”[67]
Com essa afirmação, Ludwig explica o ato do escritor realista que retira uma espécie de matéria-prima da realidade comum, escolhendo o que ali é universal para, a partir desse (ou nesse) universal extrair uma “realidade superior,” a essência, a realidade poética. Dessa forma, a realidade seria simplificada e idealizada, para novamente ser individualizada na realidade poética, na forma de um personagem, por exemplo. De maneira aproximada respondeu Fontane sobre a função de um romance afirmando que ele deve contar uma história na qual nós acreditamos, mostrando-nos um mundo da ficção que surja como um mundo real. Ao que pode ser somada a perspectiva de Ludwig sobre os limites e fronteiras da literatura em relação à verdade: “a naturalidade e realidade não podem ser estimuladas (movidas/elevadas) tão longe que nós não mais possamos contemplar com clara consciência, pois assim elas seriam só cópia,”[68] ao mesmo tempo que nega a imitação/cópia (Nachahmung) como objetivo da literatura. Ou seja, não basta apenas imitar ou copiar fidedignamente a “realidade,” pois deve-se utilizá-la como matéria-prima que, depois de devidamente transfigurada, sublimada ou purificada, será mostrada pela literatura.
Plumpe refere-se a um realismo “não-crítico” quando escreve que “tem-se sempre acentuado que a literatura alemã do século XIX não foi justa com o desafio da modernização da vida e reagiu de forma regressiva e provinciana,”[69]referindo-se especificamente ao novo medium fotografia, que teria sido recebido com silêncio e até um certo descrédito pelo realismo burguês alemão.
Por um lado, a fotografia havia tomado para si a tarefa mimética da exata representação da realidade, mas a visão fotográfica também implicava numa visão morta, sem espírito. Assim, coube à literatura apresentar, ou re-apresentar, uma outra visão: “a fotografia mata o vivo, a literatura deixa o morto fotográfico levantar: seu olhar é vivificado.”[70]
Partindo do contexto social e científico no qual o medium fotográfico surgiu, foi mostrado de que forma o embate com as artes tradicionais, em especial com a pintura, gerou diversas discussões sobre o visual, resultando na reconfiguração de alguns aspectos artísticos. A publicação dos primeiros romances realistas franceses ocorreu aproximadamente junto às primeiras recepções da fotografia e discussões artísticas e críticas, servindo como parâmetro negativo e positivo ao mesmo tempo, além de auxílio técnico a outras formas de arte. Na Alemanha, estes romances não foram bem recebidos por serem excessivamente fotográficos, e os autores realistas e críticos alemães buscaram trabalhar com a representação da realidade de forma mais poética ou burguesa, conforme sugerem os conceitos de Läuterung e Verklärung.
Com essa abordagem intermedial, pode-se concluir que o medium fotográfico não foi a única causa da erupção do realismo, mas que colaborou sobremaneira com a definição de certos parâmetros artísticos e conceituais do movimento, culminando na instituição efetiva do realismo nas artes visuais e sua ampliação a outras formas de arte.
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Disponível em: <http://www.mediaculture-online.de/fileadmin/bibliothek/kuebler_begriffe/kuebler_begriffe.html>. Acesso em: 28 jan. 2008.[2] BENJAMIN, Walter. Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit. In: Texte zur Medientheorie. Stuttgart: Reclam, 2002. p. 163-189.
[3] ZUANETTI, Rose; REAL, Elizabeth; MARTINS, Nelson et al. Fotógrafo: o olhar, a técnica e o trabalho. Rio de Janeiro: Ed. Senac Nacional, 2004. p. 159.
[4] BUDDEMEIER, Heinz. Panorama, Diorama, Photographie: Entstehung und Wirkung neuer Medien im 19. Jahrhundert: Untersuchungen und Dokumente. München: Fink, 1970. p. 52-64.
[5] ZUANETTI, Rose; REAL, Elizabeth; MARTINS, Nelson et al. Fotógrafo: o olhar, a técnica e o trabalho. Rio de Janeiro: Ed. Senac Nacional, 2004. p. 160.
[6] BUDDEMEIER, Heinz. Panorama, Diorama, Photographie: Entstehung und Wirkung neuer Medien im 19. Jharhundert: Untersuchungen und Dokumente. München: Fink, 1970. p. 81.
[7] Id., p. 76-77.
[8] SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad.: Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 91.
[9] HEIDTMANN, Frank. Wie das Photo ins Buch kam. Berlin: Berlin. Verlag Arno Spitz, 1984. p. 46-84..
[10] JANIN, Jules. Der Daguerreotyp (1839). In: KEMP, Wolfgang (Hrsg.). Theorie der Fotografie. Passau: Schirmer Mosel, 1980. p. 46-51.
[11] BENJAMIN, Walter. Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit. In: Texte zur Medientheorie. Stuttgart: Reclam, 2002. p. 163-189.
[12] BAZIN, André. Ontologia da imagem fotográfica. In: O cinema: ensaios. Trad.: Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 22..
[13] BRIGHAM, Clarence S., Edgar Allan Poe's Contributions to Alexander's Weekly Messenger. Worcester: American Antiquarian Society, 1943. Disponível em: <http://www.daguerre.org/resource/texts/poe.html>. Acesso em: 14 fev. 2008. p. 20-22.
[14] TRACHTENBERG, Alan. Classic Essays on Photography. New Haven: Leete’s Island Books, 1980. p. 37-38.
[15] NEITE, Werner. Die frühen Jahren der Photographie — Dokumentarisches zu den Anfängen in Deutschland. In: GOHR, Siegfried. In: unnachahmlicher Treue: Photographie im 19. Jahrhundert, ihre Geschichte in den deutschsprachigen Ländern. Köln: Museen der Stadt Köln, 1979. P. 27-42..
[16] LEGGAT, Robert. Rejlander, O. G. 2002. Disponível em: <http://www.rleggat.com/photohistory/history/rejlande.htm>. Acesso em: 14 fev. 2008.
[17] BRAIVE, Michel François. Das Zeitalter der Photographie. München: Callwey, 1965. p. 24.
[18] SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad.: Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 142..
[19] Id., p. 164..
[20] FABRIS, Annateresa. A captação do movimento: do instantâneo ao fotodinamismo. Revista Ars, Departamento de Artes Plásticas, Escola de Comunicação e Artes/USP. p. 50-77. Disponível em: <http://www.cap.eca.usp.br/ars4/fabris.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2008. p. 52.
[21] LEGGAT, Robert. Marey, Etienne Jules. 2002e. Disponível em: <http://www.rleggat.com/photohistory/history/marey.htm>. Acesso em: 11 fev. 2008..
[22] THE PIONEERS: AN ANTHOLOGY. Étienne-Jules Marey. Disponível em: <http://www.ctie.monash.edu.au/hargrave/marey.html>. Acesso em: 20 fev. 2008.
[23] SCHARF, Aaron. Art and Photography. Harmondsworth: Penguin, 1974. p. 14.
[24] DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Trad.: Marina Appenzeller. 10ª ed. Campinas: Papirus, 2007.
[25] STRICKLAND, Carol C. Arte comentada: da pré-história ao pós-moderno. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
[26] ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 33.
[27] HAUSER, Arnold. Sozialgeschichte der Kunst und Literatur. Band II. München: C. H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, 1953. p. 239.
[28] BUCHER, Max. Realismus und Gründerzeit I: Manifeste und Dokumente zur deutschen Literatur 1848 – 1880; mit einer Einführung in den Problemkreis und einer Quellenbibliographie. Stuttgart: Metzler, 1976. p. 5..
[29] STREMMEL, Kerstin. Realismo. Koeln: Taschen, 2005. p. 6.
[30] Id., p. 7.
[31] Ibidem.
[32] ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 81..
[33] SCHARF, Aaron. Art and Photography. Harmondsworth: Penguin, 1974. p. 129.
[34] Id., p. 128.
[35] SCHARF, Aaron. Art and Photography. Harmondsworth: Penguin, 1974. p. 130.
[36] KOPPEN, Erwin. Literatur und Photographie. Über Geschichte und Thematik einer Medienentdeckung. Stuttgart: Metzler, 1987. p. 24.
[37] KOPPEN, Erwin. Literatur und Photographie. Über Geschichte und Thematik einer Medienentdeckung. Stuttgart: Metzler, 1987. p. 28.
[38] STRICKLAND, p. 84.
[39] BUDDEMEIER, Heinz. Panorama, Diorama, Photographie: Entstehung und Wirkung neuer Medien im 19. Jharhundert: Untersuchungen und Dokumente. München: Fink, 1970. p. 119.
[40] PLUMPE, Gerhard. Der tote Blick, zum Diskurs der Photographie in der Zeit des Realismus. München: Fink, 1990..
[41] STREMMEL, Kerstin. Realismo. Koeln: Taschen, 2005. p. 6.
[42] SCHARF, Aaron. Art and Photography. Harmondsworth: Penguin, 1974. p. 119.
[43] DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Trad.: Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 2007. 10ª ed. p. 32..
[44] SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad.: Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 110.
[45] ENTLER, Ronaldo. Retrato de uma face velada: Baudelaire e a fotografia. FACOM. N. 17. 1o. Semestre de 2007. Disponível em: <http://www.faap.br/revista_faap/revista_facom/facom_17/entler.pdf>. Acesso em: 19 mar. 2008.
[46] SCHARF, Aaron. Art and Photography. Harmondsworth: Penguin, 1974. p. 144.
[47] BAUDELAIRE, Charles. Die Fotografie und das moderne Publikum. In: Texte zur Medientheorie. Stuttgart: Reclam, 2002. p. 109.
[48] PLUMPE, Gerhard. Der tote Blick, zum Diskurs der Photographie in der Zeit des Realismus. München: Fink, 1990. p. 16..
[49] Id., 137-144..
[50] DICKENS, Charles. Oliver Twist. Plain Label Books. Disponível em: <http://www.google.com.br/books?id=oAtQNb7H4FQC&printsec=frontcover&source=gbs_summary_r>. Acesso em: 20 mar. 2008. p. 142.
[51] SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad.: Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 34.
[52] SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad.: Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 75.
[53] ENTLER, Ronaldo. Retrato de uma face velada: Baudelaire e a fotografia. FACOM. N. 17. 1o. Semestre de 2007. Disponível em: <http://www.faap.br/revista_faap/revista_facom/facom_17/entler.pdf>. Acesso em: 19 mar. 2008.
[54] AUERBACH, Erich. Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1971. p. 403.
[55] Id., p. 413.
[56] Ibid., p. 430.
[57] HAUSER, Arnold. Sozialgeschichte der Kunst und Literatur. Band II. München: C. H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, 1953. p. 283..
[58] Id., p. 290..
[59] ROTHMANN, Kurt. Kleine Geschichte der deutschen Literatur. Stuttgart: Reclam, 2003. p. 167.
[60] Id., 179.
[61] BULLIVANT, Keith. Industrie und deutsche Literatur: 1830 - 1914. München: Dt. Taschenbuch-Verl., 1976. p. 11.
[62] MÜLLER, Ulrich, e WENZELBURGER, Dietmar. Vom Naturalismus zum Expressionismus. Literatur des Kaiserreichs. Leipzig, Stuttgart u. Düsseldorf: Ernst Klett Schulbuchverlag, 2006. p. 14.
[63] EISELE, Ulf. Realismus-Theorie. In: GLASER, Horst Albert (Hrsg.). Deutsche Literatur. Eine Sozialgeschichte. V. 7. Reinbek Hamburg: Rowohlt p. 36-46, 1982.
[64] FONTANE, Theodor. Unsere lyrische und epische Poesie seit 1848. In: PLUMPE, Gerhard (Hrsg.). Theorie des bürgerlichen Realismus. Ditzingen: Reclam, 2005.
[65] EISELE, Ulf. Realismus-Theorie. In: GLASER, Horst Albert (Hrsg.). Deutsche Literatur. Eine Sozialgeschichte. V. 7. Reinbek Hamburg: Rowohlt p. 36-46, 1982.
[66] STIEGLER, Bern. Philologie des Auges: die photographische Entdeckung der Welt im 19. Jahrhundert. München: FinK, 2001.
[67] EISELE, Ulf. Realismus-Theorie. In: GLASER, Horst Albert (Hrsg.). Deutsche Literatur. Eine Sozialgeschichte. V. 7. Reinbek Hamburg: Rowohlt p. 36-46, 1982.
[68] Idem.
[69] PLUMPE, Gerhard. Der tote Blick, zum Diskurs der Photographie in der Zeit des Realismus. München: Fink, 1990.
[70] STIEGLER, Bern. Philologie des Auges: die photographische Entdeckung der Welt im 19. Jahrhundert. München: Fink, 2001.