ANTIÓQUIA E A FOME: DOIS IMPERADORES ROMANOS ENTRE A SANGUINOLÊNCIA E A SÁTIRA

Gabriel Requia Gabbardo 1

 

Resumo: O presente artigo deseja apresentar dois episódios de aguda crise social na cidade romana de Antióquia durante o século IV DC, focando a análise nas relações entre os diversos estratos sociais da cidade com os imperadores reinantes no período estudado – os meio-irmãos Galo e Juliano – e as reações contrastantes deles.

Palavras-chave: História Antiga, Juliano, Galo, Antióquia

1. Um Edito em Antióquia

No fim de janeiro do ano de 363 DC, os habitantes de Antióquia se depararam com um documento insólito: um edito oficial, escrito pelo imperador em pessoa, Juliano (que passaria para posteridade como “Juliano, o Apóstata”), então residente na cidade. Tal edito se chamava Misopogon (“Odiador de barba”), embora a tradição manuscrita também carregue um título alternativo: Antiochikos (“Oração sobre Antióquia”), no qual o imperador satirizava a si mesmo, colocando a culpa de sua relação conturbada com a cidade nas suas diversas falhas de caráter.
Fazia mais de cinqüenta anos da conversão de Constantino ao cristianismo depois da batalha da Ponte Múlvia, quase quarenta do estabelecimento desta religião como a favorita do poder imperial, mais de dez anos desde que um imperador romano, Galo (meio-irmão de Juliano), perdera totalmente o controle da cidade, tendo que recorrer a linchamentos para manter a ordem, praticamente dez anos da ascensão de Juliano como César de seu tio, Constâncio II2, um ano desde que ele assumira o trono como soberano inconteste do Império – e revelara sua verdadeira religião, a pagã3 – e sete meses desde a entrada deste em Antióquia4.
A publicação do Misopogon foi o ponto culminante de um processo de alienação ocorrido entre Juliano e Antióquia. O presente artigo pretende dissertar sobre este processo, bem como o ocorrido entre a mesma cidade e o meio-irmão de Juliano, Galo.

2- Antecedentes Históricos

A conversão de Constantino ao cristianismo, em 312, inaugurou um período de progressivo favorecimento desta religião pelo sistema imperial. O processo deflagrado por Constantino foi continuado e aprofundado sob seus filhos, Constante (337-350), Constantino II (337-340) e, principalmente, Constâncio II (337-361). Quando Constantino morreu, estes três comandaram um massacre generalizado da família do meio-irmão de seu pai, Júlio Constâncio, do qual só sobreviveram Galo e Juliano (o primeiro por uma doença que por pouco não foi fatal e o segundo por sua pouca idade – seis ou sete anos em 337). Os dois foram exilados, mas tiveram suas vidas poupadas.
Sob os filhos de Constantino, o cristianismo se tornara a religião du jour; a recém-construída capital do Império, a “Nova Roma”, Constantinopla - fundada por Constantino, em 324, e engrandecida por Constâncio II (JONES, 1964, p. 83 e p. 1081) -, anunciava uma aliança permanente e estável, para além das idiossincrasias individuais de um soberano, entre o Estado romano e os cristãos. Para esta, acorreram não só a fina flor da elite burocrática do Império, mas também bispos de suas regiões orientais. A contínua profusão de concílios e de sínodos, seguindo o de Nicéia (entre outros, concílio de Sardica, em 342, sínodos de Ariminum e Selêucia em 359, concílio de Constantinopla em 360), não apenas demonstravam o fracasso deste e as contínuas divisões internas do cristianismo, mas também a estabilidade da preocupação imperial para com esta religião 5.
O novo exército romano estabelecido por Diocleciano (284-305), nascido da crise do século III (WALBANK, 1953), se mostrara muito mais resistente a ataques dos bárbaros (persas, germanos ou godos) do que os exércitos de Sétimo Severo. Contudo, o sistema militar do Dominato (como a nova lógica imperial instaurada por Diocleciano costuma ser chamada) não resolvia uma fraqueza congênita do Império: a frequência das guerras civis. Constantino tornou-se imperador inconteste em cima dos cadáveres daqueles que o contestavam (como Maxêncio ou Licínio). Constantino II foi morto por Constante em 340, que, por sua vez, foi assassinado em 350, por Magnêncio, um usurpador. Constâncio II derrotou-o, mas pagou um preço caro por essa vitória: as batalhas de Mursa (351) e Mons Seleucus (353) não apenas exauriram os recursos humanos do exército romano ocidental, mas também permitiram que os francos invadissem a Gália e a pilhassem impunemente6.

3- Galo César em Antióquia: A incompetência, a sanguinolência

O Império Romano vencera os persas sob Galério em 297; contudo, sob Sapor II (309-379), a fronteira oriental romana encontrava-se sob intermitente estado de guerra. Ao marchar contra Magnêncio, em 351, Constâncio II elevou ninguém menos do que Galo ao posto de César, com ordens expressas de cuidar da fronteira oriental. Na verdade, o novo César deveria se portar como um mero representante do verdadeiro imperador, Constâncio II, repetindo a relação entre Lúcio Vero e Marco Aurélio, quase duzentos anos antes.
Galo dirigiu-se a Antióquia, a terceira ou quarta maior cidade do Império Romano7. Localizada às margens do Rio Orontes e à sombra do Monte Cásio (com seus imponentes 1500 metros), 30 km distante do Mediterrâneo, Antióquia era a cidade ideal para a residência de um imperador nas províncias orientais (BROWNING, 1975, pp. 144-149; LIEBESCHUETZ, 1975, p. 92-100). Além do núcleo urbano em si, o território rural antioqueno estendia-se até Aleppo, ao leste, e por quase quarenta quilômetros ao sul, abrangendo não apenas planícies, mas também um importante território montanhoso (outro grande monte, o Amano, localizava-se cinco quilômetros ao norte da cidade). Tamanha extensão territorial era amplamente cultivada, sendo o produto principal o trigo, enquanto nas montanhas eram plantadas vinhas. A população rural falava predominantemente o síriaco, enquanto na cidade em si, a língua de uso corrente era o grego – afinal de contas, a cidade fora fundada em 300 AC por Seleuco Nicator, um dos mais bem-sucedidos generais e sucessores de Alexandre. Sem estatísticas confiáveis, podemos apenas supor quantos habitantes a cidade tinha: cerca de 200.000 no núcleo urbano e algo em torno de 500.000 no campo.
A classe dominante em Antióquia era basicamente formada por grandes latifundiários, proprietários inquestionáveis da quase totalidade das terras antioquenas. Sua participação no campo político, contudo, estava bem reduzida, desde as reformas de Diocleciano: a cúria local só tinha autoridade para a coleta de impostos. Quem realmente mandava na cidade, quando o imperador não residia nesta, era o Consularis Syriae (governador provincial da Síria) ou seu superior imediato, o Comes Orientis (JONES, 1964, p. 104-107).
Qualquer imperador que chegasse à Antióquia do quarto século DC tinha que levar em consideração o poder econômico e social da classe latifundiária, bem como ter uma estratégia bem-pensada e clara para lidar com este setor social, mesmo em tempos de abundância; infelizmente para Galo, ele residiu em Antióquia em um período de crise aguda, e demonstrou não ser um imperador capaz.
Por um infeliz acaso do destino, temos apenas uma parte da história de Amiano Marcelino8, nossa principal fonte para o reinado de Galo, e os eventos de Antióquia em 354. Ao iniciar a leitura deste, portanto, somos jogados in media res à uma severa crítica do caráter de Galo: este trouxe novos desastres ao Império Romano, graças à sua fúria, seus excessos de violência e sua ambição desmedida. Para piorar a situação, sua esposa, Constância (ninguém menos do que a irmã de Constâncio II), era extremamente cruel, e tal crueldade permite que Amiano dê vazão à sua predileção pelo grotesco: Constância, “uma Megera sob disfarce humano, constantemente incitava a selvageria de Galo, sendo ela tão insaciável quanto ele em sua sede de sangue humano” (AMIANO, 2000, XIV.1.2). Complicando ainda mais uma situação perigosa, o oficial designado por Constâncio para aconselhar (e vigiar) Galo era o arrogante Prefeito Pretoriano Talássio, que não tentou acalmar os ânimos do governante. Muito pelo contrário: Talássio freqüentemente entrava em conflito com o César, o que, segundo Amiano, muito contribuiu para enfurecer ainda mais o pretenso, e instável, representante de Constâncio II. Como praticamente todo imperador inseguro de sua própria posição, Galo usou e abusou de informantes. É interessante, e importante, notar que Amiano ressalta a posição social miserável destes informantes, e que explicita a espionagem destes nas residências dos cidadãos distintos ricos de Antióquia (AMIANO, 2000, XIV.1.6-7).
Um soberano raivoso e violento, demasiado cônscio de sua posição subalterna, ruminando, talvez, longos ressentimentos pelo massacre generalizado de um grande número de seus parentes pelo mesmo homem – pelo único homem! - que ora ele tinha que obedecer. Uma combinação de fatores perigosa. A cereja no bolo, ou, para usar uma imagem mais adequada à situação, a fagulha que deu origem ao incêndio, foi a fome.
Antióquia passava, então, por um dos intermitentes períodos de fome, que “volta sempre com tal insistência que se incorpora no regime biológico dos homens, é uma estrutura da vida cotidiana (BRAUDEL, 1995, p. 61)”. O trigo é muito pouco eficiente: ao contrário do arroz, sobre o qual descansava as glórias da civilização chinesa, o trigo não pode ser plantado por dois anos seguidos no mesmo território. Além disso, possui um rendimento fraco: para cada grão plantado, em média cerca de cinco grãos, apenas, são colhidos, sendo que um destes deve ser usado na sementeira seguinte. O trigo, até o fim do Antigo Regime, era uma mercadoria escandalosamente escassa, cujo fornecimento era precário, podendo ser interrompido graças à menor mudança conjetural (BRAUDEL, 1995, p. 91-126).
Podemos apenas conjecturar sobre os fatores que levaram a uma crise de suprimentos em Antióquia durante o governo de Galo. Nossa única fonte para esta é Amiano Marcelino, que menciona apenas que as causas desta eram “muitas e difíceis” (AMIANO, 2000, XIV.7.5). Tal evento não foi um raio em céu de brigadeiro; ao perceber que a crise era iminente, tanto Galo quanto a população tomaram medidas para resolver a situação.
Galo, segundo Amiano, tornava-se cada vez mais odioso, cometendo ofensas para todos os setores da sociedade, não poupando nem “ex-magistrados, nem os primazes das cidades, nem a plebe” (AMIANO, 2000, XIV.1.1). Vendo a escassez de trigo no horizonte, o César ordenou que os grandes latifundiários, a maioria (mas nem todos) membros da cúria de Antióquia, baixassem o preço deste, ao que os nobres deram uma resposta mais dura que seria necessária. Galo decretou nada mais nada menos do que a execução de todos os membros da cúria, ordem que só não foi posta a termo graças à oposição do comes Orientis Honorato.
Algumas coisas ficam claras, graças a esse pequeno trecho de Amiano: primeiramente, a impetuosidade e selvageria de Galo são colocadas ainda mais em destaque. No entanto, tal selvageria foi efetivamente reprimida, graças à influência exercida sobre o imperador por um de seus conselheiros. Não fica claro o porquê desta oposição: embora Amiano faça parecer que a oposição de Honorato ocorreu pela sua nobreza de caráter, exterminar sem distinção toda uma cúria de uma cidade como Antióquia seria suicídio político.
Mais importante, contudo, é a relação de Galo com a cúria. O César, ao que parece, identificou uma das causas da fome iminente como sendo a cobiça dos latifundiários. Decerto poderia haver um componente humano para a situação de escassez em Antióquia; é provável que a dificuldade em alimentar as tropas estacionadas nas cercanias da cidade tenha contribuído para aumentar os preços do trigo, visto que era mais rentável vender pão aos soldados do que à plebe (MATTHEWS, 1989, p. 406).
Além do mais, o próprio Amiano menciona um fator que exacerbou o estado de penúria: a própria incompetência de Galo. Ao ser confrontado pela plebe de Antióquia, o César não tomou as providências que seriam esperadas deste – basicamente, a importação de suprimentos de cidades vizinhas. Pelo que se pode apreender do texto de Amiano, a única medida que Galo tomou para resolver a escassez foi sua malfadada “negociação” com a cúria, com sua abortada ordem de extermínio geral. A resposta do imperador ao questionamento da população foi de culpar o governador da província da Síria, Teófilo. Nada ocorreu de imediato, mas as palavras de Galo foram lembradas quando a situação piorou, e, “movidos pela fome e fúria”, as “classes inferiores” tacaram fogo na casa de um nobre, Éubulo, e espancaram o desafortunado Teófilo até a morte, desmembrando seu cadáver (AMIANO, 2000, XIV.7.6).
Com a morte (natural) de Talássio e o brutal assassinato de Teófilo, Constâncio II passou a desconfiar de forma prudente de seu César. Mandou, então, Domiciano, um alto funcionário público, a Antióquia. Este, imprudentemente, cometeu o mesmo erro de Teófilo, tratando o César tal qual a um subalterno e ressaltando a superioridade de Constâncio II; Galo não tolerou tal tratamento e ordenou a prisão de Domiciano. Um questor (JONES, 1964, p. 368), Môncio, condenou tal ação de forma taxativa como equivalente à rebelião aberta, ao que também foi preso, posto que Galo já começava a temer por sua vida. Môncio e Domiciano foram arrastados pela cidade até a morte; seus corpos foram mutilados e jogados no Orontes (AMIANO, 2000, XIV. 7.9-16).
Estas mortes foram o sinal verde para que o César desse início a uma campanha de violência e repressão, que só acabou graças a um artifício de Constâncio II: após remover grande parte da burocracia de Galo, sob o pretexto de ouvir suas opiniões, o imperador manifestou o desejo de ver novamente sua irmã, Constância, e pediu que seus dois parentes se dirigissem à Trácia. O César não teve outra alternativa que não obedecer – e seu destino foi selado quando Constância morreu de febre durante a viagem. Em meio a tropas leais a Constâncio II, Galo foi privado de todas as suas prerrogativas e executado no ano de 354 (AMIANO, 2000, XIV.11.1-24).

4- Juliano César

Juliano convertera-se ao paganismo quando jovem, e seguia uma vida de estudos filosóficos e de profundo compromisso com o neoplatonismo teúrgico de Jâmblico (um segredo supostamente guardado a sete chaves – afinal de contas, o sobrinho de Constantino, um pagão?)9 quando do assassinato de Galo; em 354, foi chamado às pressas para Milão por um compreensivelmente precavido Constâncio II, mas logo liberado (graças aos argumentos da imperatriz Eusébia, que convenceu o imperador que seu parente escolástico não representava ameaça alguma à sua majestade), ao que retornou a Atenas.
Como já foi mencionado, Constâncio supostamente incitou os francos a atacarem a Gália, de modo a enfraquecer Magnêncio. Seja esta afirmação verdadeira ou não, o fato é que os territórios gauleses passavam por severas dificuldades, sendo alvo de freqüentes incursões dos bárbaros. No entanto, o Império Sassânida era uma ameaça ainda maior ao Leste, tornando a presença de Constâncio II nos territórios orientais uma obrigação. Para complicar a situação, um general, Silvano, se revoltou (AMIANO, 2000, XV.5.1). Embora este tenha reinado por apenas trinta e três dias, a precariedade da posição de Constâncio II era evidente. A imperatriz Eusébia, portanto, convenceu-o a elevar seu único parente masculino vivo, Juliano, à posição de César, com a tarefa de pacificar a Gália10. Tal evento se deu em 355.
Constâncio II imaginava, decerto, que seu parente intelectual seguisse fielmente as suas ordens, ao contrário de seu meio-irmão morto, e que não se destacasse de forma perigosa através de vitórias importantes sobre seus oponentes. Contudo, não foi isso que aconteceu: os sucessos militares de Juliano foram tão espetaculares quanto inesperados11 (sendo o ponto alto de suas campanhas a batalha de Estrasburgo, na qual 13000 romanos derrotaram 31000 francos e ainda capturaram o rei deste, Chnodomar), e só se equiparavam, em escala, com a crescente deterioração nas relações entre este e aquele que, afinal de contas, (ainda) era seu superior.

5- Juliano Augusto, um imperador pagão

Seguiu-se, em 360, um episódio confuso, no qual (segundo Amiano e o próprio Juliano), soldados gauleses convocados por Constâncio II a lutar no Oriente contra o Império Sassânida, posto que Sapor II invadira a Mesopotâmia e a situação militar era grave - a importante cidade de Amida fora saqueada em 359, depois de um longo e sangrento cerco (AMIANO, 2000, XIX.1.1, XIX.9.1) -, obrigaram Juliano a assumir o título e prerrogativas de Augusto, de modo a permanecerem na Gália, junto a suas mulheres e filhos12. Uma guerra civil entre os dois Augustos era iminente, e só foi evitada graças ao falecimento de Constâncio II, que, no seu leito de morte, designou Juliano como seu sucessor legítimo, em 36113.
O neoplatonismo teúrgico do novo soberano ainda era uma questão secreta, e o imperador continuou praticando os ritos cristãos (inclusive durante a Páscoa de 361) até a morte de seu tio e oponente. Mas depois do desaparecimento de Constâncio II, Juliano removeu a sua máscara, e passou a efetivar um amplo programa de reformas governamentais, não só religiosas, mas também econômicas (entre outras medidas, o novo soberano diminuiu o tamanho da corte imperial). Entre as vítimas das novas políticas imperiais, estavam os eunucos da corte de Constâncio II e o amplo corpo de informantes deste (muitos condenados à morte em um tribunal militar realizado em Calcedônia).
Contudo, o cerne das reformas do novo imperador situava-se, sem sombra de dúvida, no âmbito religioso. Juliano acreditava piamente que a antiga religião pagã era um presente dos deuses, e que os cristãos, ao abjurar dos antigos deuses e jurar fidelidade a um único deus (sendo por isso chamados por Juliano de ateus), cometiam um erro monstruoso, capaz de contaminar o bem-estar do Estado. No entanto, ao contrário dos perseguidores de épocas passadas (Décio, Valério, Diocleciano e Galério), Juliano pretendia mostrar os erros dos cristãos através do confronto de suas mentiras com a verdade do paganismo (negando a seus oponentes, também, o capital social adquirido pela coragem dos mártires).
A medida mais repressiva de Juliano contra os cristãos, ao menos durante a primeira metade do ano de 362, foi seu famigerado Edito dos Professores: apenas aqueles que professassem a religião pagã poderiam ensinar a retórica, literatura e filosofia clássicas. Com uma mera proclamação, os cristãos, não importasse qual fosse sua atitude frente à herança clássica, se viram privados de poder partilhá-la14.
O ponto essencial das reformas religiosas de Juliano era que elas se dirigiam principalmente para as mais privilegiadas classes da sociedade. Era imperativo que tais classes dessem total apoio às ações do imperador: este não planejava uma total erradicação da religião cristã, mas sim que esta “deveria desaparecer das classes governantes do Império – de forma parecida com a qual o budismo foi direcionado [apenas para] as classes subalternas por um mandarinato confuciano (...) na China do século XIII (BROWN, 1971, p. 93)”. O que Juliano pretendia restaurar, no fundo, era a aliança, sem intermediários, entre o imperador romano e as classes governantes das cidades do Império, aliança que teria existido durante o primeiro e segundo século, mas que tinha sido rompida durante a crise do século terceiro – e que era tipificada pela aristocracia cristã que lia Homero sem nenhum sentimento religioso (BROWN, 1971, p. 90-92).

5- Juliano em Antióquia: a alienação, a sátira

A presença de Juliano em Antióquia se impunha obrigatoriamente, graças ao o estado de guerra com o Império Sassânida. Contudo, o imperador via a metrópole da Síria com grandes expectativas: a cidade não apenas era um trampolim ideal para a conquista militar da Pérsia15 e uma das maiores cidades do Império, como também era uma cidade fundada por gregos (com uma história que remetia ao período dos Diádocos) e o lar de Libânio, o maior orador de seu tempo, a quem Juliano admirava desde os seus tempos de estudante – ou seja, Antióquia possuía um significativo contingente populacional pagão. Além disso, em seu território rural, em Daphne, situava-se o importante Oráculo de Apolo (a estátua do culto de Apolo fora feita setecentos anos antes pelo escultor Bryaxis, construtor do Mausoléu de Halicarnasso). A cidade era, aos olhos de Juliano, o oposto exato da recente e cristã Constantinopla, um lugar no qual o imperador nunca se sentiu confortável, ao que parece (a visão de estátuas dos deuses saqueadas pelo odiado Constantino para enriquecer a cidade que levava o nome deste não devia ser animadora para um imperador pagão, pai dos assassinos de sua família). Logo antes de partir para sempre da cidade, Libânio teria escutado do próprio imperador que este desejava tornar Antióquia uma cidade de mármore, imitando as ações de Augusto em Roma16.
O imperador desejava, e esperava, encontrar uma cidade que o apoiasse nas suas medidas religiosas, uma cidade na qual travaria contato e manteria encontros com intelectuais, retóricos e filósofos, uma cidade onde poderia consultar livremente um oráculo divino, uma cidade na qual a aristocracia aceitaria suas responsabilidades cívicas, uma cidade na qual ergueria grandes construções e da qual partiria para conquistar o maior inimigo de Roma e retornar em meio à glória. Encontrou uma cidade que rechaçou suas políticas religiosas, um oráculo emudecido, uma aristocracia que rechaçou suas tentativas de reforma da cúria local, um lugar onde não teve tempo para erguer sequer uma grande construção e de onde saiu para encontrar a morte prematura em combate.
Juliano não era, apesar de seus defeitos, um governante fraco ou incompetente. Pode-se afirmar, com razoável certeza, que Galo acabaria por entrar em conflito com qualquer cidade que governasse, fosse esta Antióquia, Alexandria ou Constantinopla. No entanto, seu meio-irmão, como diz Browning, “(...) succeeded in keeping on good terms with the citizens of Athens, Vienne, Paris and Constantinople17”. Por que a situação em Antióquia foi radicalmente diferente?
Primeiro motivo: a multidão de soldados reunida por Juliano em Antióquia e seus arredores (que contava, inclusive, com muitos dos homens que se revoltaram contra Constâncio por justamente não desejarem se deslocar ao Oriente) era, provavelmente, o maior exército organizado por um imperador romano no séc. IV: 65000 homens18. Em um contexto um pouco anterior (a Oração 11 foi pronunciada em 360), Libânio afirmou que

 
Então desaguaram [na cidade], tal qual os rios deságuam no mar, todos os soldados, os arqueiros e a cavalaria (...) As muralhas foram cobertas por escudos, lanças e elmos eram vistos em todos os cantos (...) Eram tantos os regimentos estacionados na cidade que mesmo os oficiais [desse exército] seriam sozinhos um não pequeno acréscimo à população da cidade. Tão grande era a hoste reunida que em qualquer outro lugar ela exauriria o suprimento de água (...) mas todos os cidadãos deram boas-vindas aos soldados tal qual eles fossem parentes há muito tempo ausentes (LIBÂNIO, 1987, Or. 11.178)

Não somos obrigados a acreditar na pacífica imagem apresentada pelo sofista. Mesmo essa passagem, que tenta apresentar um retrato idílico, não consegue esconder que a presença de um exército, especialmente um exército tão enorme quanto o de Constâncio II (e que se tornaria ainda mais numeroso durante a estadia de Juliano na cidade), não apenas era algo desconfortável em si - afinal de contas, as “requisições” exigidas pelos soldados equivaliam a um terço do que cada indivíduo podia pagar (CÓDIGO TEODOSIANO, VII.8.5) -, mas também desestabilizava de forma decisiva o suprimento de víveres para Antióquia19. A escassez de alimentos era uma oportunidade imperdível de lucros para a classe latifundiária, que não titubeou em manter estoques ainda maiores de suprimentos, de forma a elevar ainda mais o preço do trigo (BOWERSOCK, 1978, p. 96).
Quando Juliano entrou em Antióquia, em 18 de julho de 36220, a cidade já se encontrava em acentuadas dificuldades materiais. Na primeira visita do soberano ao teatro da cidade, a primeira ação da população foi protestar contra o alto custo de vida (JULIANO, 2002, 386D). A reação do imperador:

 
No dia seguinte eu tive uma conversa com os seus grandes cidadãos e tentei persuadi-los que é bom odiar lucros injustos e [desta forma] beneficiar cidadãos e estranhos em sua cidade. E eles prometeram controlar o problema, e embora eu, por três meses, tenha esperado [por suas ações], eles negligenciaram a questão de uma forma que ninguém acharia possível (JULIANO, 2002, 386D-369A)

Seria prematuro afirmar que a não-ação de Juliano foi ingênua: este dependia precisamente destes “grandes cidadãos” para efetuar suas reformas com êxito. Ao perceber a manutenção das políticas de acumulação, para não falar da corrupção, dos grandes proprietários, o imperador tentou forçar a entrada de vários destes para a abandonada cúria da cidade (que delegava obrigatoriamente algumas responsabilidades a seus membros), com resultados insignificantes (CÓDIGO TEODOSIANO, XII.1.51).
Decepcionado, Juliano realizou, então, grandes importações de trigo de outras regiões: primeiro, 400000 medidas de trigo de Cálcis e Hierápolis; depois que estes suprimentos se esgotaram, 22000 modii de suas próprias propriedades, e mais um pouco de material trazido do Egito. Tais medidas foram eficazes até certo ponto; oito anos antes, Galo não as realizou, seja por falta de inteligência, competência ou possibilidade de fazê-lo. Entretanto, esta importação estava ligada a um decreto que reduzia os preços dos alimentos a dois terços do que era praticado até então (JULIANO, 2002, 369A-B).
O governo imperial simplesmente não tinha capacidade de pôr a termo esta política de controle dos preços – nem mesmo no núcleo urbano de Antióquia, que dirá do hinterland rural desta. O resultado: o trigo estocado pelos grandes proprietários ou permaneceu onde estava (à espera do inevitável aumento dos preços) ou era vendido muito além do preço estabelecido, longe do núcleo urbano da cidade. Mesmo o trigo, vendido barato na cidade, era geralmente comprado para ser revendido com lucro de cerca de 50% no campo. Juliano tentou justificar sua política econômica ao afirmar que o pão se tornara barato e abundante na cidade, mas não parece sequer ter percebido a ação de especuladores no mercado (JULIANO, 2002, 369D-370A)21.
Em resumo: para resolver a crise de suprimentos, o monarca entrou em processo de alienamento mútuo com a aristocracia local – ele ficou chocado com a corrupção das classes latifundiárias (vendo o problema sob certa ótica, o fato é que Juliano nunca compreendeu o fenômeno da corrupção, acreditando que um mero sermão sobre “lucros injustos” seria suficiente para deter a ação deste), e estas classes ressentiram-se não apenas da tentativa do governante de “recrutá-las”, por livre e espontânea pressão, à cúria local, mas também de sua impensada política de controle de preços. Esta efetivamente anulou grande parte dos benefícios trazidos pelas extensas importações de alimentos efetivadas pelo governo imperial, sendo um verdadeiro tiro pela culatra: uma ação tomada contra os lucros injustos dos latifundiários nada mais fez do que oferecer maiores oportunidades para tais, o que deve ter diminuído em muito a estatura de Juliano aos olhos dos estratos sociais pequenos e médios de Antióquia, sem nenhuma contrapartida de aumento de popularidade do imperador entre a oligarquia.
Outro processo que contribuiu para o total colapso de relações entre Juliano e Antióquia foi a sua política religiosa. Antióquia era um importante centro do cristianismo. Foi lá que os primeiros seguidores de Jesus foram chamados de “cristãos” (ATOS DOS APÓSTOLOS, 11, 19-26) e que Paulo e Pedro tiveram suas diferenças (CARTA AOS GÁLATAS, 2, 1-14). Já em 268 reunia-se um sínodo na cidade, para julgar o bispo local, Paulo de Samósata, por imoralidade. Teodoro de Mopsuéstia e João Crisóstomo, indivíduos que trariam a glória para a tradição cristológica de Antióquia, eram ainda crianças quando Juliano chegou na cidade (BERNARDINO, 2002, p. 110-118). A alta incidência do cristianismo nas classes dominantes da sociedade antioquena era um desafio para o monarca, mas provavelmente um desafio que ele enfrentaria com gosto: afinal de contas, caso a reforma pagã desse resultados em Antióquia, aonde mais ela poderia fracassar (DOWNEY, 1939, p. 306-308)?
Mais complicada, talvez, seria a relação entre o paganismo do imperador e o paganismo de Antióquia. O soberano praticara por muito tempo a religião pagã, mas devemos lembrar que essa pŕatica teve que ser mascarada, contida, reprimida. O grande elo de ligação entre o divino e o humano, para Jâmblico – e para seu admirador, Juliano– era a prática do sacrifício (BOWERSOCK, 1978, p. 86, BROWNING, 1975, p. 54-55). Na Síria, o imperador deu apresentações públicas de piedade que lhe eram interditas. Amiano Marcelino, um historiador pagão, que elegeu o soberano pagão como herói de sua obra, nos conta:

 
Ele [Juliano] manchou os altares com o sangue de um número excessivo de vítimas, às vezes oferecendo cem bois de uma só vez, com [mais] incontáveis rebanhos de outros animais, e com pássaros brancos caçados por terra e mar; em nível tal que quase todo dia os soldados dele, que se empanturravam com a abundância da carne, vivendo de forma rude e corrompidos pela sua vontade de beber, eram carregados [pela cidade] (...) nos ombros de transeuntes dos templos públicos, onde eles se regozijavam em banquetes que mereciam punição, ao contrário de indulgência; especialmente os Petulantes e os Celtas, cuja indisciplina nessa época ultrapassava todos os limites. Ainda mais, os ritos cerimoniais foram excessivamente aumentados, com um gasto de dinheiro até então incomum e pesado. E, já que agora estava permitida, qualquer um que professasse um conhecimento da divinação, tanto o sábio quanto o ignorante, sem limites ou regras colocadas, podia questionar os oráculos e as entranhas, que às vezes revelam o futuro (AMIANO, 2000, XXII. 12.6-7).

As grandes comemorações religiosas elaboradas por Juliano, por mais que este elaborasse, proclamasse e verdadeiramente acreditasse em uma espiritualidade ascética, desembocavam em bebedeiras monumentais, uma crítica que se torna ainda mais pesada por vir de um partidário pagão do monarca. O paganismo de Juliano não era o de Antióquia.
O desastre de relações públicas em âmbito religioso era potencializado pela já discutida crise de suprimentos. Juliano se isolava mais e mais, e esse isolamento ficou dolorosamente visível em outubro de 362, quando se comemorava um festival em honra a Apolo, no monte Cásio.

 
E eu imaginei na minha mente o tipo de procissão que aconteceria, como um homem tendo visões em um sonho, feras para sacrifício, libações, coros em honra do deus [Apolo], incenso, e a juventude de sua cidade cercando o templo, as almas deles adornadas com toda santidade e eles mesmos vestidos em roupas brancas e esplêndidas. Mas quando eu entrei no templo, não encontrei incenso, nem mesmo um bolo, nenhuma fera para sacrificar. Por um momento fiquei abismado, e imaginei que eu ainda estava fora do templo e que vocês esperavam por algum sinal vindo de mim, honrando-me porque sou o pontífice máximo. Mas quando comecei a questionar sobre o sacrifício que a cidade planeja oferecer para celebrar o festival anual em honra do deus, o sacerdote me respondeu: ‘Eu trouxe um ganso de minha propriedade como oferenda para o deus, mas a cidade desta vez não fez nenhuma preparação’ (JULIANO, 2002, 362D).

O próprio soberano nos conta qual foi a sua reação:

 
Assim, gostando de fazer inimigos, eu fiz um discurso desagradável na Cúria, o qual talvez seja pertinente citar para vocês. ‘É uma coisa terrível que uma cidade tão importante negligencie mais os deuses que qualquer vila nas fronteiras do Ponto. Sua cidade possui dez mil lotes de terra possuídos por terceiros [ou seja, não pelo imperador], e ainda assim, quando o festival em honra dos deuses de seus antepassados seria celebrado pela primeira vez desde que os deuses dissiparam as nuvens do ateísmo [o cristianismo], ela não oferece para benefício próprio sequer um mísero pássaro (...). Entretanto, cada um de vocês se delicia em gastar dinheiro privadamente, em jantares e festas (...) do jeito que as coisas estão, todos vocês permitem que suas esposas levem os seus pertences de suas casas para os galileus, e quando suas esposas alimentam os pobres elas inspiram uma grande admiração pela impiedade [novamente, o cristianismo] naqueles que necessitam de tal ajuda (...) Não sei como qualquer homem bom poderia agüentar a visão de tais coisas na sua cidade, e tenho certeza que tal visão também é desagradável aos deuses’ (JULIANO, 2002, 363A-C).

Este trecho denuncia tanto um profundo estado de insegurança mental no imperador22 quanto ao colapso manifesto das relações entre Juliano e a cúria antioquena. Comparados negativamente com as proverbialmente atrasadas vilas da Capadócia, colocados retoricamente sob o jugo de suas mulheres, acusados de falta de espírito cívico, os grandes proprietários de terras tinham motivos de sobra para não simpatizar com seu soberano.
A política pagã de Juliano conseguira repetir o desastre de sua política econômica, ofendendo tanto gregos quanto troianos. A gota final seria o incêndio, provavelmente acidental, do templo de Apolo, com a destruição total deste (e da famosa estátua de Bryaxis). O imperador acreditava que foram os cristãos que atearam fogo no templo, e, como represália, ordenou o fechamento da igreja de Antióquia (AMIANO, 2000, XXII.13.1-3; TEODORETO, III.12.4). Como se não bastasse a alienação resultante de suas políticas, Juliano teve que enfrentar o súbito desaparecimento de Félix, um conselheiro próximo, e de seu tio materno (também chamado Juliano)23.
O monarca tornara-se uma figura ridícula para a sociedade antioquena, que o caricaturizava como um homem com barba de bode, um anão, um açougueiro que se pretendia sacerdote, entre outros epítetos. Provavelmente o mais agressivo insulto ocorreu depois do enterro do tio do imperador. Os documentos oficiais proclamados pelo soberano eram precedidos pelo nome completo de Juliano, “Dominus Noster Claudius Iulianus Pius Felix Augustus”, mas o povo subvertia a leitura e lia “Felix Iulianus Augustus” - ou seja, o Augusto (o imperador) seguiria Félix e Juliano ao túmulo (AMIANO, 2000, XXII.14.2-3, XXIII.1.5). Tais apelidos e jogos de palavras, proferidos especialmente durante as Calendas de Janeiro, eram uma prática social que tinha como objetivo apaziguar as tensões existentes entre imperador e sociedade, e realmente faziam isso – quando funcionavam bem, como durante a visita de Constâncio II a Roma, em 357:

 
quando realizou jogos, ele [Constâncio II] se deliciou com as sátiras do povo, que não eram nem presunçosas nem ignorantes do estatuto de sua própria liberdade, enquanto ele mesmo [novamente, Constâncio II] também observava respeitosamente a média [ou seja, o protocolo de tolerância para com essas sátiras] (AMIANO, 2000, XVI.10.13).

Era claro para Juliano que o povo de Antióquia foi além do que era permitido, mesmo durante as Calendas (GLEASON, 1986, p. 118). As tensões existentes foram exacerbadas, e não apaziguadas. O soberano, deparando-se com críticas violentas e questionadoras, tinha que reagir de alguma forma, que tanto silenciasse seus oponentes políticos como legitimasse as medidas que tomou durante sua estadia em Antióquia.
A resposta de Juliano a seus críticos poderia ser violenta: medidas econômicas dirigidas contra Antióquia, repressão política por meio do exílio, prisão dos líderes das claques de teatro antioquenas, que provavelmente incitaram as ironias direcionadas à figura do imperador(CAMERON, 1976, p. 193-230), ou, em último caso, um banho de sangue, semelhante ao que Galo realizou frente aos questionamentos levantados acerca de seu governo. O monarca era inteligente demais para perceber que perderia toda a legitimidade caso agisse desta forma24.
Juliano preferiu escrever o Misopogon, uma longa sátira na qual o monarca admite que é uma figura patética e esquisita, completamente alheia às preocupações terrenas e corretas dos antioquenos, cuja esquisitice seria manifestada de forma especial pela sua ridícula barba. É uma obra desconcertante aos nossos olhos: é difícil para nós imaginarmos um imperador romano dissertando publicamente sobre seu peito peludo (JULIANO, 2002, 339B) ou sobre como vomitou apenas uma única vez na vida (JULIANO, 2002, 340C). Glanville Downey definiu a escrita do Misopogon como “umas das coisas mais incríveis que um imperador romano, supostamente em perfeito controle de suas faculdades mentais, jamais fez” (DOWNEY, 1939, p. 310).
Não é possível analisar o Misopogon de forma detalhada neste artigo25; contudo, cabe afirmar dois pontos básicos. O primeiro é que tal obra é uma verdadeira inversão das ironias populares dirigidas contra Juliano. Este concorda com todas as críticas que foram direcionadas contra ele, e, espertamente, tenta subvertê-las durante o Misopogon. Quem sai prejudicado e ridicularizado desta sátira não é o monarca barbudo, apesar de toda a sua linguagem autodepreciativa, e sim Antióquia. Mesmo Sócrates e Sozômeno, historiadores cristãos do século V que não morriam de simpatias por este imperador, admitem a qualidade desta obra e a verdade das críticas direcionadas aos antioquenos (SÓCRATES, 2005, III.17; SOZÔMENO, 2005, V.19). O Misopogon causou menos estranhamento entre os contemporâneos de Juliano do que entre nós (GLEASON, 1986, p. 107).
O segundo é a resposta definitiva do monarca contra Antióquia: este não vai puni-la, mas simplesmente abandoná-la, tomando a cidade de Tarso como novo lugar de residência imperial, no Leste, quando retornar da expedição persa (GLEASON, 1986, p. 116-119). Tal medida permitia amplas possibilidades de reconciliação para o imperador e a cidade. Um Juliano vitorioso contra os persas legitimaria seu poder de forma tal que todos os problemas que encontrou em Antióquia seriam esquecidos; a cidade, por sua vez, teria a oportunidade de travar contato com a clemência imperial e de pedir perdão por seus atos, de forma a restaurar seu antigo status26. Um bom plano, talvez, mas que não contava com a possibilidade de Juliano voltar morto da Pérsia, como aconteceu.

Conclusão:

Galo e Juliano, meioirmãos, com um violento passado em comum, enfrentaram problemas similares no governo de Antióquia. Contudo, a resposta de um para tais problemas foi a incitação ao linchamento de um funcionário imperial, que deflagrou violentas perseguições políticas; a de outro, uma malsucedida tentativa de controle de preços, seguido do linchamento simbólico de sua própria barba e o simples abandono da cidade, sem derramamento de sangue.
Para além das significativas idiossincrasias individuais, os fenômenos estudados permitem observar algumas características da sociedade antioquena do séc. IV. A perda de representação política na cúria de Antióquia não danificou em nada o prestígio social e o poder econômico das classes latifundiárias da cidade; na verdade, estas efetivamente desejavam escapar da participação nestas assembleias, e dos custosos encargos que tal participação implicava. A estrutura política do Dominato permitiu, de forma curiosa, um maior controle da situação econômica em Antióquia pelas elites da cidade. Note-se também o papel do imperador como intermediário entre as classes menos favorecidas de Antióquia e estas elites.       
Tanto Juliano quanto Galo agiram em torno destas duas características, e ambos fracassaram em seus intentos. Os episódios de Antióquia, especialmente a muito bem documentada estadia de Juliano na cidade, ilustram bem os limites da ação imperial durante o século IV.

Artigo recebido em 20/10/2008. Aprovado em 21/12/2008.

Antioch and the starvation: two roman emperors between the bloodthirstiness and the satire.

Abstract: The present article intends to present two episodes of acute social crisis in the Roman city of Antioch during the fourth century CE, focusing the analysis on the relations between the social strata of the city with the reigning emperors during the studied period – the half-brothers Gallus and Julian – and their contrasting reactions.

Keywords: Ancient History, Julian, Gallus, Antioch

 

1 Mestrando em História na UFRGS com a pesquisa “A disputa em torno da memória da morte do imperador romano Juliano, dito o Apóstata, nos séculos IV e V DC”. Endereço eletrônico para contato: gabrielgabbardo@hotmail.com.

2 O César era imperador “júnior” sob o comando de um imperador “sênior”, o Augusto. Tais posições foram instauradas por Diocleciano, quando este criou o sistema da Tetrarquia. Ver JONES, 1964, p. 322-323

3 Uso o termo “pagão” de forma funcional, designando o amplo conjunto de crenças religiosas não-cristãs ou judaicas do Império Romano, incluindo nesse termo, por exemplo, o mitraísmo e o neoplatonismo.

4 JULIANO, Misopogon, 344A (faço referência aos autores antigos remetendo-me à numeração clássica de suas obras – as edições utilizadas encontram-se referenciadas no final do artigo). Glanville Downey, entre outros, calcula que o Misopogon foi escrito no final de fevereiro, mas tendo a concordar com Maud Gleason quando esta afirma que tal conta parte de primeiro de agosto, e não de 18 de julho, adiantando a data da escrita do Misopogon em quase um mês. Ver GLEASON, 1986, p. 108.

5 Os sínodos de Ariminum e Selêucia, que seriam posteriormente confirmados pelo concílio de Constantinopla, foram organizados por Constâncio II da mesma forma do que o de Nicéia foi pelo seu pai. Infelizmente para Constâncio II, os teólogos a quem ele escutou foram considerados como hereges pela ortodoxia, tanto católica quanto oriental, e sua memória foi severamente atacada por isso.

6 A se acreditar em Juliano, o próprio Constâncio teria incitado os francos a atacar a Gália, com o intuito de enfraquecer as posições de Magnêncio. JULIANO, Carta aos Atenienses, 286A-B

7 Só podiam rivalizar com Antióquia, Constantinopla, Alexandria e Roma, sendo que esta última estava em estado de relativo declínio, principalmente político, vivendo basicamente de seu capital social adquirido durante a República e os dois primeiros séculos do Império. Pode-se medir tal declínio levando-se em conta que Diocleciano nunca visitou Roma, e que Constantino sentiu necessidade de construir uma nova capital.

8 Autor pagão, Amiano escreveu uma obra, a Res Gestae, em 31 livros; perdemos os livros I-XIII.

9 Sobre a religião de Juliano, ver SMITH, 1995.

10 Eusébia tinha uma grande simpatia por Juliano, tendo provavelmente lhe salvo a vida: pode-se perceber a gratidão de Juliano para com a imperatriz graças aos três panegíricos escritos por este, dois a Constâncio II, um à esposa deste. Apenas o dirigido à imperatriz era sincero.

11 A melhor análise para as campanhas militares de Juliano ainda é a de BIDEZ, 1930, p. 136-183.

12 Cabe aqui uma certa desconfiança quanto à inocência de Juliano durante este episódio, conveniente demais para este. Sobre este assunto, ver BOWERSOCK, 1978, pp. 46-54

13 Browning afirma que essa história provavelmente era uma “clumsy propaganda”, haja visto que, juridicamente, o poder imperial não era herança familiar, e que uma terceira esposa de Constâncio II, Faustina – Eusébia falecera em 359 – estava grávida (de uma filha, Constância, que viria a ser esposa do imperador Graciano, em 374). A história do arrependimento de Constâncio é, tal qual a história da noite da ascensão de Juliano ao título de Augusto, conveniente demais, mas o Império era, de facto, e desde a época de Otávio, uma herança familiar. Ver JONES, 1964, 3-4.

14 Código Teodosiano 13.3.5. Gregório Nazianzeno, em um dos momentos mais calmos de sua invectiva contra Juliano, demonstra o absurdo desta lei aos olhos de um cristão educado como ele (Or 4.5), e mesmo Amiano Marcelino critica severamente esta lei (Res Gestae,XXII.10.7, XV.4.20).

15 Sobre Juliano e seus sonhos de conquista da Pérsia, ver ATHANASSIADI, 1992 p. 197-200.

16 Lib., Or XV, 52. A citação de Augusto provém de Suetônio, Augusto. 28, um autor que era muito familiar a Juliano.

17 “(...) conseguiu se manter em bons termos com os cidadãos de Atenas, Viena, Paris e Constantinopla”, BROWNING, 1975, p. 150

18 O número é dado por Zósimo, historiador pagão do final do século V, baseando-se no relato de Eunápio, filósofo do séc. IV. A.D. Lee aceita tal quantia de soldados, mencionando que o maior exército romano/bizantino do séc. VI foi 52,000 homens. A essa quantia, deve-se acrescentar os 30,000 membros do exército de Procópio, primo de Juliano que invadiria a Pérsia com um segundo exército. Ver LEE, 2007, p. 96

19 Lee (2007, p. 167-171), disserta sobre a relação difícil entre a população civil e os militares durante o Império Romano Tardio, levantando, inclusive, a desagradável temática da prática do estupro praticada pelo exército romano dirigida contra aqueles que, em tese, deveria proteger.

20 Bizarramente, quando da chegada de Juliano a cidade celebrava o festival da Adônia, na qual a morte de Adônis era lembrada com muito choro e lamentação. O espetáculo da chegada do imperador acompanhada de gritos de lamentação não era um bom sinal, e o imperador cometeu um equívoco ao entrar na cidade durante esta época. Para a Adônia, AMIANO MARCELINO, Res Gestae,XXII.9.15.

21 Para a crise econômica em Antióquia e os resultados funestos das ações de Juliano, ver BROWNING, p. 153-157

22 Sobre a insegurança de Juliano frente à sua rejeição pela população de Antióquia, ATHANASSIADI, 1992, p. 194-225

23 Tais mortes foram consideradas provas do julgamento divino sobre os ímpios seguidores dos ídolos pagãos pelos autores cristãos: TEODORETO, História Eclesiástica, 3.9, SOZÔMENO, História Eclesiástica, 5.8

24 Cabe aqui lembrar do macabro episódio do massacre de Tessalônica, em 390; frente a uma revolta da cidade, o imperador Teodósio ordenou uma expedição punitiva contra esta, que resultou na execução de sete mil habitantes. SOZÔMENO, História Eclesiástica, 7.25. Teodósio acabou sendo convencido pelo bispo Ambrósio a pedir penitência na catedral de Milão, admitindo claramente a ilegalidade de suas ações. Para tais fatos, ver BROWN, 1992, p. 109-113

25 A análise mais completa desta obra encontra-se em ATHANASSIADI, 1992, p. 201-225

26 O próprio Libânio escreveu uma oração – a XV – na qual tenta persuadir Juliano a desistir de seu desejo de abandonar Antióquia; tal desistência serviria para restaurar a confiança no imperador, e a possibilidade de retorno à cidade podia muito bem estar na mente do monarca.

 

Referências:

Fontes primárias:

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       Fontes secundárias:

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BIDEZ, Jean. La Vie De L’Empereur Julien. Paris: Les Belles Lettres, 1930.

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