COMENTÁRIO SOBRE O ARTIGO DE JOSEPH YOUNGER,
“CORREDORES DE COMÉRCIO E SALAS DE JUSTIÇA:
LEI, COERÇÃO E LEALDADE NAS FRONTEIRAS DO RIO DA PRATA”

Mariana Flores da Cunha Thompson Flores 1

O texto de Joseph Younger, resultado de uma pesquisa em andamento e, à época da escrita, bastante no início, é de uma qualidade empírica que impressiona. Sem dúvida, esse é o primeiro ponto que chama a atenção, sobretudo quando se sabe que o autor frequentou o Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, de onde é a maior parte das fontes analisadas no texto, apenas por cerca de quatro meses e, nesse período, viu um grande número de documentos. É justo que se diga que é sabido por todos que as condições de trabalho de pesquisadores estadunidenses, em termos de recursos financeiros e materiais, possibilidade de viagens e prazos alongados, são definitivamente superiores às nossas. Contudo, a eficiência da pesquisa de Joseph Younger, no sentido de conseguir apresentar conclusões densas de forma tão precoce, é patente independente de suas possíveis superiores condições de trabalho.
Desconheço que grau de aproximação prévia Joseph Younger tinha com as fontes brasileiras manuscritas do século XIX, mas considerando que isso poderia ser um empecilho até que se alcançasse fluidez na leitura e na compreensão, tal obstáculo parece ter sido facilmente vencido pelo autor. A agudez e perspicácia de sua pesquisa são evidentes. Carlo Ginzburg (1999, p.177-179) já afirmou que um bom historiador precisa ter, naturalmente (porque “ninguém aprende o ofício de conhecedor ou diagnosticador”), alguns “elementos imponderáveis” como “faro, golpe de vista, intuição”. Quando se vê que entre as fontes analisadas por Joseph Younger encontra-se um processo riquíssimo, do tipo que se encontraria provavelmente entre Processos Crimes, refiro-me à contenda de Silva versus Lima, porém localizado em um fundo pouco pesquisado, os Alvarás, percebe-se que o autor nasceu munido dos predicados apontados por Ginzburg e que daí deriva seu refinamento empírico.
Outro ponto inescapável quando se lê o texto de Joseph Younger é o distanciamento que o olhar estrangeiro possibilita. Diferente de muitos reconhecidos brasilianistas e americanistas, alguns inclusive citados na bibliografia do próprio autor, Younger não parece imerso numa visão etnocêntrica, a análise que oferece vale-se de um saudável afastamento inerente.
É claro que o texto apresenta alguns problemas, dado que se trata de uma pesquisa recente. Parece-me que as escolhas bibliográficas de Younger podem ter contribuído para os problemas, ou melhor, não necessariamente a bibliografia escolhida, mas aquela que não foi escolhida, que está ausente. Na leitura do artigo senti falta de autores brasileiros com trabalhos relativamente recentes que poderiam ter ampliado o leque de análises de Younger. Evidente que me senti honrada de ser a única autora brasileira citada na bibliografia, mas acredito que os trabalhos de Luís Augusto E. Farinatti (2007), CONFINS MERIDIONAIS: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil. (1825-1865), Graciela Bonassa Garcia (2005), O domínio da terra: conflitos e estrutura agrária na campanha rio-grandense oitocentista, Cesar Augusto Barcellos Guazzelli (1998), O Horizonte da Província: A república Rio-Grandense e os Caudilhos do Rio da Prata (1835-1845) e Suzana Bleil de Souza & Fabrício Pereira Prado (2004) Brasileiros na fronteira uruguaia: economia e política no século XIX teriam sido fundamentais para a análise. Além desses, alguns autores platinos também seriam de imensa valia como Juan Carlos Garavaglia (1999), “Poder, conflicto y relaciones sociales: el Rio de la Plata, XVIII – XIX”, Julio C. Djenderedjian (2003), “Economía y sociedad en la Arcadia criolla. Formación y desarrollo de una sociedad de frontera en Entre Ríos, 1750 – 1820”, Roberto Schmit (2004), “Ruina y resurreción en tiempos de guerra. Sociedad, economía y poder en el oriente entrerriano posrevolucionario. 1810-1852”, entre outros.
A ideia central do artigo me parece irretocável: a de que as redes comerciais transfronteiriças transbordavam os aparatos legais existentes em uma e outra soberania, respectivamente de um lado e outro da linha de fronteira. Dessa forma, fazer valer direitos de propriedade nesse contexto significava combinar uma série de recursos jurídico-institucionais sem que, contudo, eles garantissem posse de fato. Os atores fronteiriços lançavam mão de diferentes instrumentos, como processos judiciais, acertos com autoridades locais, sistema notarial público, de forma quase experimental buscando assegurar a posse de bens que atravessavam a fronteira em um espaço juridicamente heterogêneo 2.
De certo essa situação dificilmente poderia ser diferente, já que se trata de soberanias diferentes cuja única forma de homogeneizar legislações de comércio e propriedade seria através de Tratados que, como se sabe, inexistiam ou eram de alcance restrito. Em 1856, o presidente da província, Jeronymo Coelho, referindo-se a tratados de extradição de criminosos, afirmou que estes tratados quando existiam eram, além de insuficientes, sujeitos “a tão morosas formalidades, que completamente inutilizam os fins” 3 .
Contudo, quando esses tratados existiram e estiveram em vigência, eles merecem atenção. Refiro-me, por exemplo, ao Tratado de 12 de outubro de 1851, assinado entre o Império do Brasil e o Estado Oriental, que esteve em vigor até 1861, e que nesse interregno mudou profundamente as relações de comércio dessa fronteira. Nestes dez anos, o trânsito de gado vacum e seus derivados pela fronteira entre Brasil e Estado Oriental foi decretado livre de taxações 4. Os saladeiros uruguaios arruinaram-se em função de que o charque rio-grandense poderia entrar no Uruguai sem pagar impostos, e, além disso, o Uruguai converteu-se na “reserva ganadeira” do Império já que haviam sido abolidos os direitos aduaneiros de exportação de gado em pé para o Rio Grande do Sul. (SIVOLELLA, 1987, p.75-79).
Esse dado por si só já poderia, se não alterar, pelo menos apontar outras análises possíveis a respeito da contenda entre Silva versus Lima (e também de outros casos apresentados pelo autor no artigo), uma vez que quando o problema teve início, em 1847, essa transferência de gado não estava contemplada por normas transfronteiriças, diferente da situação de 1855, quando Lima podia requerer a restituição de seu gado junto a Silva sabendo que esse atravessamento não demandaria pagamento de impostos. Nesse sentido, também vale mencionar que a permissão dada por Diego Lamas para Lima para a remoção do gado do Estado Oriental, em 1849, tratou-se de uma exceção uma vez que no ano anterior, 1848, numa tentativa de reter o gado no Uruguai, quando a campanha oriental encontrava-se devastada, o caudilho líder do partido blanco, Oribe, proibiu que se atravessasse gado para o Rio Grande do Sul, passando a ser considerado contrabando esta prática. (SOUZA; PRADO, 2004, p.12-13).
É certo que esses problemas de assegurar direito de propriedade sobre redes econômicas que atravessavam a fronteira sempre estiveram colocados, faziam parte do cotidiano desse espaço. Sobretudo em relação aos gados – haja vista que, ao longo do século XIX, houve a presença maciça de brasileiros, sobretudo rio-grandenses, proprietários de terras com gados no Uruguai, os quais, invariavelmente, também possuíam propriedades no Rio Grande do Sul 5 - esta questão é bastante evidente. Contudo, talvez seja prudente se ter cuidado com alguns casos que estão inseridos em regimes de exceção como os períodos de guerra.
É sabido que o estado de guerra em si nesta fronteira era praticamente a regra e não a exceção, mesmo assim, acho importante analisar com cautela e diferenciação quando estamos tratando de contexto de guerra ou não. O longo período da Guerra Grande, por exemplo, como é justamente o caso da disputa de Silva versus Lima, aguçou essas requisições de propriedade tendo como consequência direta as “califórnias”. As propriedades de terras de rio-grandenses no Estado Oriental se avolumaram a partir do período em que este território (a Banda Oriental) esteve anexado ao Império Brasileiro como Província Cisplatina. Essas terras serviam como campos de engorda para os gados de estancieiros rio-grandenses, bem como, local para salvaguardar essas reses quando do conflito da Revolução Farroupilha. Quando findou a Revolução Farroupilha, a debilitada economia rio-grandense necessitou lançar mão de seus gados “estocados” no país vizinho, mas encontrou o Uruguai afundado em uma guerra civil, abastecendo-se do gado disponível nas propriedades rurais e proibindo o atravessamento de gado para o Brasil independente de quem fossem os proprietários. A partir daí, iniciaram-se as “califórnias” comandadas por estancieiros rio-grandenses, que, buscando compensar o prejuízo acarretado por tais embargos e saques, reuniam milícias para adentrar na Banda Oriental, aprender gados e saquear propriedades. (SOUZA; PRADO, p.121-133).
Outro ponto que merece ser discutido no texto é a afirmação de que os fronteiriços, ao procurarem instrumentos jurídicos diversos e combinados, estavam em “busca da lei”, da legalidade a fim de assegurarem seus direitos de propriedades. Concordo que estar de acordo com a lei vai ao encontro de uma característica própria das sociedades pré-industriais: a valoração da honra. Segundo Barrington Moore (1999, p.19) a noção de honra pessoal e de seu oposto, a vergonha, eram extremamente importantes, sendo que “o prejuízo à reputação era tão importante quanto o prejuízo material.” O autor admite, no entanto, que, mesmo vigorando esse código moral, havia uma relativa proteção por parte da sociedade aos transgressores. Em minha dissertação de mestrado, por exemplo, percebi que muitos comerciantes procuravam manter suas reputações afastadas da pecha de contrabandistas, embora fizessem contrabando. Em minha pesquisa atual, encontrei um processo em que um estancieiro processava outro por danos a sua honra por tê-lo acusado de roubar gados, embora fortes indícios de um processo anterior o apontassem como ladrão de gados de fato. Da mesma forma, sabemos que quantos desses rio-grandenses proprietários de terras no Estado Oriental mantinham escravos nessas fazendas, apesar de lá já ter sido decretada a abolição, através de subterfúgios mascarados de legalidade.
Nesse sentido, parece mais certo que não se tratava de fato de uma “busca pela lei”, mas uma busca por garantir seu direito de propriedade, coordenado a uma honra ilibada, mesmo que para isso fosse necessário agir em detrimento da lei, através da coerção.
Por fim, devo dizer que, particularmente, o artigo de Joseph Younger foi extremamente importante para pensar meus problemas de pesquisa e reforçar a ideia de essas fronteiras, diferentemente da expressão utilizada pelo autor, não eram “porosas”, mas sim muito bem delimitadas. O espaço homogêneo e constante, que favorecia a formação de redes sociais que cruzavam de um lado a outro a fronteira, apresentava sua cisão quando questões institucionais vinham à cena e confrontavam as soberanias. E justamente por terem a clara noção de que estavam transitando em um espaço com essa característica, os fronteiriços se utilizavam de recursos jurídicos de um lado e de outro manejando esses instrumentos a seu favor, e, não necessariamente “recusando soluções nacionais”, mas valendo-se política e militarmente das redes sociais tranfronteiriças de que dispunham para solucionar seus problemas.

Comentário recebido em 10/06/2009. Autora convidada.

 

1 Doutoranda do PPG em História da PUCRS. O presente artigo é fruto de trabalho anterior e não tendo relação com a pesquisa atual de doutorado. Endereço eletrônico: mariclio@yahoo.com.br

2 Nesse sentido, na pesquisa que venho desenvolvendo, encontrei alguns casos de brasileiros residentes na fronteira da província sul-rio-grandense que, na segunda metade do século XIX, buscaram através de meios judiciais, por vezes combinando instâncias transfronteiriças, como bem demonstra Joseph Younger, assegurar posse sobre escravos que passaram para o Estado Oriental, onde a escravidão havia sido abolida em 1842.

3 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRGS). Relatório do Presidente da Província do Rio Grande do Sul. A-7.03. 1856.

4 Tratado de 12 de outubro de 1851. Tratado de Comercio e Navegación. IN: Tratados y Convênios Internacionales - suscritos por Uruguai en el periodo mayo de 1830 a deciembre de 1870. República Oriental del Uruguai. Secretaria del Senado – Documentacion y Antecedentes Legislativos: Montevideo, 1993. Tomo 1.

5 Segundo Susana Bleil de Souza e Fabrício Prado (2004, p.133-134), no ano de 1857, “estimava-se que os rio-grandenses possuíssem cerca de 30% do território oriental”.  O norte do Uruguai era como uma “extensão dos campos de pastoreio do Rio Grande” e essa invernada de engorda dos gados era fundamental para o abastecimento das charqueadas.

 

Referências:

DJENDERENDJIAN, Julio C. Economía y sociedad en la Arcadia criolla. Formación y desarrollo de una sociedad de frontera en Entre Ríos, 1750 – 1820. Buenos Aires: Faculdade de Filosofia y Letras. Universidade de Buenos Aires, 2003. Tese de Doutorado.

FARINATTI, Luís Augusto E. CONFINS MERIDIONAIS: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil. (1825-1865). Rio de Janeiro: PPGHIS-UFRJ, 2007. Tese de Doutorado.

GARAVAGLIA, Juan Carlos. Poder, conflicto y relaciones sociales: el Rio de la Plata, XVIII – XIX. Rosário: Homo sapiens Ediciones, 1999.

GARCIA, Graciela Bonassa. O domínio da terra: conflitos e estrutura agrária na campanha rio-grandense oitocentista. Porto Alegre: UFRGS, 2005. Dissertação de Mestrado.

GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: companhia das Letras, 1989.

GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. O Horizonte da Província: A república Rio-Grandense e os Caudilhos do Rio da Prata (1835-1845). Rio de Janeiro: UFRJ. 1998. Tese de Doutorado.

MOORE, Barrington.  Aspectos morais do crescimento econômico e outros ensaios.  Rio de Janeiro: Record, 1999.

SCHMIT, Roberto. Ruina y resurreción en tiempos de guerra. Sociedad, economía y poder en el oriente entrerriano posrevolucionario. 1810-1852. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2004.

SIVOLELLA, Cristina Retta. Los Tratados de 1851: repercusiones inmediatas en Uruguay y en Brasil. IN: Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica (SBPH). Anais da VI Reunião. São Paulo, 1987.

SOUZA, Suzana Bleil de & PRADO, Fabrício Pereira. Brasileiros na fronteira uruguaia: economia e política no século XIX.  IN: GRIJÓ, GUAZZELLI, KÜHN & NEUMANN (org.). Capítulos de História do Rio Grande do Sul: Texto e Pesquisa. Ed. Da Universidade/ UFRGS, 2004.