CINEMA E IDADE MÉDIA:
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO MEDIEVAL NOS FILMES
“REI ARTHUR” (2004) E “TRISTÃO E ISOLDA” (2006)

Letícia Schneider Ferreira 1

 

 

Resumo: O presente artigo visa discutir as representações do feminino medieval no Cinema, e, para tanto, foram selecionados os filmes Rei Arthur (2004) e Tristão e Isolda (2006). Inicialmente realiza-se uma breve reflexão sobre a relação entre cinema e história e suas potencialidades. Após, debate-se o papel do feminino a partir das personagens Guinevere e Isolda, considerando o que estas representam em relação ao imaginário sobre o feminino no medievo e o que é possível denotar sobre a percepção da mulher a partir do contexto de produção dos filmes.

Palavras-chave:Cinema; Feminino; Idade Média.

Introdução

A realização de produções cinematográficas de cunho histórico é bastante frequente, recebendo atenção cada vez maior de pesquisadores da área de História. De fato, é fundamental salientar a importância deste veículo enquanto propagador de representações do passado, uma vez que se dirige a um grande público, o qual, muitas vezes, não possui outras fontes para a verificação do conteúdo abordado em determinado filme. Esta questão pode ser observada em relação à Idade Média, período retratado em abundância pela indústria do Cinema 2, principalmente através dos gêneros aventura, drama e guerra.    
O presente artigo propõe-se a realizar uma reflexão sobre a representação do feminino medieval a partir do Cinema. Num primeiro momento serão discutidas questões relativas à utilização do Cinema enquanto fonte histórica e enquanto espaço de construção simbólica e política, avaliando aspectos como, por exemplo, o contexto da produção cinematográfica, entre outros. A seguir, realizar-se-á uma apresentação do primeiro filme selecionado, Rei Arthur (2004), enfocando a personagem “Guinevere” interpretada pela atriz Keira Knightley. Logo após, este estudo observará a constituição da personagem “Isolda”, representada por Sophia Myles, no filme realizado em 2006 e intitulado Tristão e Isolda. Por fim, serão realizadas algumas considerações finais sobre o tema em estudo, procurando incentivar novas pesquisas vinculadas à temática abordada.

Cinema e História: uma breve reflexão

A abordagem sobre o Cinema e sua relação com a História vem sendo realizada desde os anos 60, momento em que este veículo de comunicação com as massas já tem sua importância consolidada. O pioneiro na realização da análise da vinculação dos recursos cinematográficos e da história foi o jornalista Siegfried Kracauer, o qual estudou o uso de filmes pelo regime nazista, avaliando os fatores psicológicos embutidos nestes e que favoreceriam uma ação coletiva em prol dos interesses do governo. (GONZAGA, 2008). Nos anos 70, destaca-se a contribuição de Marc Ferro, através da obra Cinema e História, a partir da qual argumenta a importância da fonte cinematográfica para a compreensão do momento histórico em que este filme foi realizado.
Ferro (1992) demonstra assim, que esta forma de expressão artística não é de maneira alguma neutra, possuindo elementos políticos e ideológicos que se referem ao contexto de sua produção, às posições dos produtores e diretores, e especialmente dos grandes estúdios de Cinema 3. Assim sendo, a análise de uma obra cinematográfica de temática histórica não pode prescindir de uma crítica sobre suas reais motivações e sobre a mensagem incluída no conteúdo do filme. Cristina Nova vai ao encontro desta posição, argumentando que os filmes considerados históricos pouco revelam sobre os fatos que retratam, mas sobre o momento no qual foi realizado 4. Este fato, entretanto, não diminui a importância deste material para o estudo da história, pois desvela diversos elementos constituintes de uma determinada sociedade, culturais e econômicos.
A escolha das temáticas abordadas nos filmes é realizada através da consideração do mercado bem como de histórias que de alguma forma estabeleçam um vínculo com o espectador. O estudo do filme enquanto documento histórico deve considerar todos os atores envolvidos, ou seja, não apenas “quem faz”, mas “para quem se faz”, evidenciando que estes filmes serão assistidos por diversas gerações ao longo dos anos. Do mesmo modo, é necessário observar as questões materiais envolvidas na elaboração do filme, como os cenários e figurinos, mas também as características apresentadas pelos personagens. O pesquisador que utiliza a fonte cinematográfica deve atentar para qual o código de valores apresentado no filme através dos personagens relacionados com o “campo positivo” e como são apresentados aqueles que se inserem na categoria de “vilões”. Assim, deve-se observar o que os personagens associados ao “mal”, a partir de uma visão maniqueísta e dicotômica, revelam sobre os inimigos atuais.   
As personagens femininas também revelam aspectos sobre a construção de papéis não apenas ficcionais, mas na sociedade constituída. Presentes desde o início da constituição da sétima arte enquanto uma indústria de grande expressão junto ao público, as mulheres doutrinaram e foram doutrinadas a partir das histórias apresentadas na grande tela. Através do cinema aprendia-se como agir, como vestir, como sentir. Na bilheteria eram vendidos ingressos não apenas para um filme, mas para um modo de vida. A mulher era apresentada nos filmes como em um papel coadjuvante, cujo desempenho está voltado para o esposo ou filhos. Outra questão valorizada em algumas personagens é a sensualidade, a imagem da mulher fatal, que terá seu auge nas décadas de 30 e 40. Protagonistas transgressoras, como Scarlet e Jezebel, recebiam sempre a punição por sua ousadia, o maior castigo imaginado até então para uma mulher: perder o amor de sua vida, seja pela morte, ou pior, pela indiferença.   
A luta por uma maior emancipação feminina e a desconstrução de papéis ditados socialmente para a mulher refletiu-se nas produções cinematográficas. As personagens femininas recebem cada vez mais um maior espaço, bem como um caráter mais dinâmico e complexo. Assim, cientes destas considerações serão avaliadas nos capítulos subsequentes duas importantes personagens da literatura medieval apresentadas pelo cinema: Guinevere e Isolda.

Guinevere em Rei Arthur (2004): a mulher guerreira

O filme Rei Arthur dirigido por Anthoine Fuqua foi lançado em 2004 propondo uma visão desmistificadora da lenda do Rei Arthur. Assim procura-se dar uma maior concretude ao mito arturiano, apresentando um comandante bretão que compactua com os ideais romanos, e cujas características de liderança incentivam e inspiram seus soldados, um grupo seleto formado por personagens como Lancelot, Tristão, Galahad, entre outros. O desenrolar da história, o contato com diferentes personagens e a invasão saxã, obriga Arthur a repensar seus posicionamentos, crenças e lealdades.
Macedo (2006) realiza uma análise do filme em questão, elogiando a precisão e o cuidado com o figurino e o armamento, denotando uma preocupação com a reconstituição do período, assim como a opção por situar a história no final do século V, momento durante o qual seria mais plausível a existência deste personagem. Entretanto, as liberdades artísticas permitidas ao autor e a necessidade de imprimir alguns elementos dramáticos na trama levaram a presença de elementos anacrônicos, como, por exemplo, a própria personagem Guinevere 5.
A figura de Guinevere, esposa de Arthur, inclui-se na tradição do amor cavalheiresco, cuja popularidade é percebida nos séculos XII e XIII. A personagem é evidenciada na história a partir da constituição de um triângulo amoroso, quando Guinevere e Lancelot, fiel cavaleiro de Arthur, se apaixonam. Tal temática do amor impossível é recorrente na literatura trovadoresca, possuindo um papel pedagógico em relação aos códigos de conduta masculino, disciplinando a agressividade juvenil. Assim, o homem aprende a controlar não apenas seus sentimentos, mas seu corpo e ações em nome de uma dama retratada, de modo geral, de forma bastante superficial.
No filme de Fuqua, é possível verificar uma Guinevere diferente: integrante de uma tribo celta comandada por Merlin, Guinevere é uma exímia guerreira. Veste-se com trajes que propiciem agilidade e que deixam seu corpo à mostra e demonstra habilidade no uso do arco e da espada. Guinevere deve sua vida a Arthur que a resgata dos calabouços de um nobre romano. Não se tornando subserviente, ela recupera as forças e passa a lutar ao seu lado. Guinevere tenta de fato atrair Arthur para sua verdadeira e mais importante causa: a luta pela defesa da Bretanha.
O amor que ocupa o coração de Guinevere e pelo qual ela luta incessantemente é o amor pela terra de seus ancestrais. Procura seduzir os homens não por interesses românticos, mas através do diálogo. É a partir de suas palavras que Guinevere provoca em seus interlocutores uma reavaliação de suas alianças e laços de lealdade. Guinevere conclama a defesa das terras bretãs tomadas por bárbaros saxões e pela liberdade de povos pagãos que estão sendo exterminados pelos dominadores romanos. O elemento emocional que sempre é destacado nos personagens femininos, não se dirige a um indivíduo, mas sim a um espaço, a um ideal.
Deste modo, é possível perceber o destaque proporcionado ao papel de Guinevere, que acompanha Arthur inclusive ao campo de batalha, que defende um ideal de amor mais amplo do que aquele existente entre indivíduos. A união de Guinevere e Arthur ao final do filme simboliza a força e a união da Bretanha: ele representando o elemento romano e civilizado, ela o emocional, a força da tradição e do elemento ancestral. A esposa de Arthur evidencia-se como uma mulher sagaz, determinada e acima de tudo destemida. Por fim, há uma cena que resume perfeitamente a imagem do feminino construída no filme de 2004: ao ouvir de Lancelot a insinuação de que estaria receosa diante do ataque dos saxões, homens que estavam há muito sem contato com mulheres, a Guinevere de Fuqua responde numa voz tranquilizadora: “Não se preocupe, não deixarei que o estuprem.”

Isolda em Tristão e Isolda (2006): a paixão acima do reino

O filme do diretor Kevin Reynolds tem sua ação em uma Inglaterra fragmentada em pequenos reinos, cujos governantes não conseguem unir-se em prol de um objetivo comum: o combate aos invasores nórdicos (no filme salienta-se os irlandeses) que matam e escravizam sua população. Em uma emboscada contra estes atacantes, Tristão, homem de confiança do Rei Mark da Cornualha, é dado como morto, mas acaba salvo pela habilidade medicinal de Isolda, princesa irlandesa. Desconhecendo a identidade de Isolda, o casal apaixona-se e reencontra-se somente sob uma irônica e trágica coincidência: na disputa de um torneio pela mão de Isolda, Tristão vence em nome de seu senhor, com quem sua amada termina por casar. Incapazes de controlar sua paixão, Tristão e Isolda vivenciam seu amor, colocando em risco a frágil aliança entre os reinos ingleses.
O “Romance de Tristão” como era originalmente conhecida a narrativa das desventuras de Tristão e Isolda, obteve um grande sucesso durante os séculos XII e XIII, e sendo um importante exemplo de história de amor cavalheiresco 6. A versão apresentada pelo filme retrata o despertar do amor entre o casal através da convivência e da intimidade proporcionadas pelos incansáveis cuidados de Isolda. Talentosa, Isolda conhece as propriedades das ervas e antídotos para venenos. E tal conhecimento, conforme as características apresentadas personagem evidenciada na obra de Reynolds, provém de uma aguçada curiosidade: Isolda é aquela que olha para o mar, que almeja conhecer novos lugares.
Isolda é também questionadora, expressa ao pai o desejo de interferir na escolha de seu futuro marido. Entretanto, é também uma verdadeira dama da nobreza, que aceita seu destino quando selado: Isolda cumpre a função de elemento de união política determinada pelo casamento entre membros de sua categoria social. Porém, não se conforma de todo, procura espaços de ação, dissimula e trai, pois a maior traição aos olhos da personagem é a negação do amor verdadeiro. O desenrolar do filme provoca situações nas quais os espectadores se compadecem dos sofrimentos dos personagens. Inegável, todavia, é a mácula moral: Isolda trai seu marido, que no filme aparece como um homem que a trata com consideração e afeto. Assim, seu erro, compreensível, mas talvez não justificável, acaba por associá-la à imagem do pecado, do mal, daquela cujas artimanhas induz à queda em tentação, compreensão sobre o feminino tão frequente durante o medievo.

Considerações finais

A análise das figuras de Guinevere e Isolda nos filmes selecionados permitiu perceber alguns aspectos comuns à apresentação das personagens, assim como elementos de distanciamento. Ambas recebem um papel de destaque na trama, são mulheres questionadoras, inteligentes e transgressoras. Isolda, entretanto, é evidenciada como uma jovem dama da nobreza, e que dentro dos atributos esperados de sua posição, cumpre as regras sociais. Já Guinevere ocupa um espaço no universo masculino, é uma guerreira. É uma mulher que luta por um ideal, pela liberdade de sua terra e seu povo. Ao contrário de Isolda, a relação de Guinevere com seu par extrapola o sentimento pelo indivíduo: seu amor por Arthur baseia-se na sua liderança e seu conhecimento bélico, fundamentais para alcançar seus objetivos.
As conquistas femininas no espaço público ao longo do século XX refletiram-se também num maior número de filmes que apresentem personagens do sexo feminino com maior densidade psicológica e maior importância no enredo. Os consumidores da indústria cinematográfica esperam mulheres que tenha uma atitude questionadora, que sejam determinadas na busca por uma causa, seja ela o amor por um homem ou por sua terra. Desta forma, não há uma preocupação nestas obras em avaliar se determinadas posturas e decisões das mulheres representadas seriam possíveis no período medieval, momento no qual encontramos registros pouco numerosos, e em sua maioria indiretos, sobre este grupo social. Guinevere e Isolda nas películas selecionadas possuíam um papel ativo em seu contexto e uma valorização muito maior naquele universo moldado por e para homens do que as mulheres que vivenciaram o momento em que tais personagens foram construídas pela literatura.
À guisa de conclusão, salienta-se que o pesquisador que trabalha com o recurso cinematográfico deve estar ciente da importância e das oportunidades abertas por esta nova fonte, bem como atentar para duas diferentes temporalidades e representações: aquela da história que se procura contar, baseada em fatos e recortes cronológicos, e a história do momento da produção do filme. Assim o olhar do historiador acompanha as cenas, critica o figurino e os cenários, mas não olvida um espaço de suma importância: aquele que fica atrás das câmeras.

 

 

Cinema and Middle Ages: the representation about the medieval feminine in the movies Rei Arthur (2004) and Tristão e Isolda (2006)

Abstract:This article discusses the representation about the medieval feminine in the Cinema, and, with this intention, were selected two movies: Rei Athur (2004) and Tristão e Isolda (2006). In the first place, it will be a brief reflection about the relation between cinema and history and its benefits. After, it will be debated about the women’s importance, analyzing two characters: Guinevere and Isolda. It will be considered the representation of the imaginary about the feminine in the Middle Age and the perception about women in the context of the movie’s production.

Keywords:Cinema. Feminine. Middle Ages.

 

1 Mestre em Sociologia pela UFRGS. Doutoranda em História pela UFRGS. Endereço eletrônico: axthi@yahoo.com

2 O período histórico didaticamente estabelecido como “Idade Média” vem sendo constantemente contemplado por diretores e produtores do Cinema, constituindo obras relevantes como, por exemplo, Ivanhoé (1952), O sétimo selo (1957) e O Leão do Inverno (1968).  Pereira (2006, p.9) afirma que “a civilização medieval exerce, sobretudo no cinema, um fascínio singular. Inúmeras produções procuram mostrar o modo de vida e os eventos significativos da história dos homens medievais”.  

3 Ferro (1992, p.13-14) explica que “desde que o cinema se tornou uma arte, seus pioneiros passaram a intervir na história com filmes, documentários de ficção, que, desde sua origem, sob a aparência de representação, doutrinam e glorificam.” O autor acrescenta que, após a verificação de sua importância e seu poder enquanto mídia,passa a ocorrer uma verdadeira disputa no interior do campo cinematográfico. Segundo o autor, “desde que os dirigentes de uma sociedade compreenderam a função que o cinema poderia desempenhar, tentaram apropriar-se dele e pô-lo a seu serviço [...] desejam tornar submisso o Cinema. Este, entretanto, pretende permanecer autônomo, agindo como contrapoder...”

4 A autora esclarece que “[...]os ‘filmes históricos’ desempenham uma função documental limitada sobre o período que retratam, principalmente para a pesquisa, assim como também o fazem os documentos escritos secundários (como os textos que remontam ao passado). Na verdade, esses filmes acabam por falar mais sobre o seu presente, não obstante seu discurso esteja aparentemente apenas centrado no passado. Mesmo assim, eles desempenham um papel significativo na divulgação e na polemização do conhecimento histórico.” (NOVA, 1996).

5 Macedo (2006, p. 34) afirma que “a diferença fundamental entre o filme e a realidade histórica é que o diretor, valendo-se da liberdade de criação cinematográfica, retrocedeu anacronicamente para o século V personagens nascidos na tradição romanesca arturiana, tanto Lancelot, quanto Guinevere e outros. Assim, o filme acaba por sugerir ao espectador que, já no século V, os principais personagens do universo arturiano teriam existido, o que não está de acordo com a história.” 

6 Duby (1995, p.88-89) afirma que “o sucesso do romance foi imediato, desconcertante, duradouro. Desde o lugar onde a lenda primitiva fora acolhida e depois elaborada, desde o ponto focal da cultura cavalereisca que era a corte anglo-normanda, a bela história invade a Europa inteira [...]. Esse encanto conservou seu vigor ao longo dos séculos. [...] A história de Tristão, todos estão de acordo com isso, se estabelece de maneira sólida no próprio núcleo de uma mitologia especificamente européia.”

Referências:

DUBY, Georges. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 

FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

GONZAGA, Sandro. A visão Global da História. A Ditadura Militar através da minissérie Anos Rebeldes. Projeto de Mestrado. 2008. 20p. (mimeo)

MACEDO, José Rivair. Rei Arthur: o homem detrás da lenda. Cadernos IHU em formação. São Leopoldo, Vol. 2, n. 11, 2006.

NOVA, Cristiane. O Cinema e o conhecimento da História. In: O Olho da História. Revista de História Contemporânea. Salvador, n°3, 1996. Disponível em: http://www.oolhodahistoria.ufba.br/o3cris.html. Último acesso em: 02 out. 2008.

PEREIRA, Nilton Mullet. A necessidade de Idade Média. Cadernos IHU em formação. São Leopoldo, Vol. 2, n. 11, p.6-9, 2006.