NOS PORÕES DA GLÓRIA:
UMA REFLEXÃO SOBRE ARQUIVOS PESSOAIS, TEIXEIRINHA E ALGUNS CRUZAMENTOS ENTRE HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA

Francisco Cougo Jr 1
Nicole Isabel dos Reis 2

 

 

Resumo:No presente artigo os autores propõem um debate acerca da importância dos arquivos pessoais e dos mecanismos de criação, manutenção e desmembramento pelos quais passam os acervos privados. A partir da experiência empírica com a documentação do artista Teixeirinha (Vitor Mateus Teixeira, 1927-1985), temas como a idéia de “ilusão de verdade” ante os documentos e a instituição de entidades para a preservação do patrimônio e memória são discutidos.

Palavras-chave:Arquivos pessoais. Memória. Teixeirinha. História & Antropologia.

“Tesouros escondidos...”

Na nublada tarde de 5 de dezembro de 2007, visitamos a casa onde Vitor Mateus Teixeira (1927-1985) – artista do qual transformamos vida e obra em objetos de pesquisa – viveu. Foi uma espécie de “visita turística”: tomamos chimarrão, conversamos com Zoraida Lima Teixeira (viúva de Teixeirinha), que nos contou algumas histórias sobre a casa, e a pedido dela, fomos levados por Emílio Frehze, o caseiro e faz-tudo da propriedade, para conhecer os cantos e recantos da mansão.
Teixeirinha comprou a propriedade, na rua Oscar Pereira nº 5260, nos altos do bairro da Glória, com o dinheiro resultante da estrondosa vendagem de Coração de Luto, sua composição de maior sucesso, no início dos anos 1960. O bairro da Glória, distante cerca de 15 km do centro de Porto Alegre, era uma parte praticamente rural do município na época.
Foi o segundo endereço da família na cidade. Depois de passarem um tempo em uma casa no Morro Santa Tereza (perto das emissoras de rádio onde Teixeirinha se apresentava), mudaram-se para a Glória. Havia outra casa no local, onde ele e a família moraram provisoriamente durante a construção da residência atual. A edificação despendeu alguns anos de trabalho, foi feita aos poucos, conforme o dinheiro chegava 3. Resultou em uma casa grande, de amplos cômodos, que Teixeirinha reformava periodicamente, e que era um de seus maiores orgulhos.
O artista chamava a propriedade de “chácara”, devido ao tamanho do terreno, que se estende pela encosta do morro, com uma parte de mato nativo e pastagens. No passado, a extensão da área permitia que o cantor mantivesse criações de galinhas, porcos, vacas, faisões e até um veado (chamado por suas filhas de Bambi). Havia um galpão e um viveiro para os animais, além de um pomar. Um riacho, posteriormente canalizado, também constituía parte do cenário.
No amplo pátio calçado atrás da casa fica o traço mais característico da propriedade, conhecido mesmo por aqueles que sabem muito pouco sobre Teixeirinha – a piscina em forma de cuia de chimarrão.
Emílio nos deu um tour por toda a residência. Apesar de estar morando ali há apenas pouco mais de dois anos, já conhecia a história detalhada da chácara, e fizemos uma visita guiada a cada trecho do local. Esporadicamente fãs de Teixeirinha aparecem para conhecer a casa, e Emílio faz questão de mostrar tudo o que for possível. Em um dado instante, o caseiro decidiu que deveríamos conhecer uma casinhola construída em meio aos arvoredos do quintal. Era ali, segundo ele, que Teixeirinha se isolava para compor. Quando Emílio abriu a pequena porta que dá acesso ao interior do cômodo, nos deparamos com algo até então impensável: a casinhola era um depósito, do chão ao teto, de materiais que sequer sonhávamos existir. Cartas enviadas por admiradores do cantor, latas com seus filmes em várias bitolas, rolos de pôsteres, pastas de documentos, revistas contendo letras de canções e uma imensidão de outros materiais, que não conseguíamos identificar no momento, tomavam conta do espaço.
Toda a documentação parecia estar em péssimo estado. A casinhola tinha infiltrações, e muitos dos papéis pareciam umidificados. Um breve exame sobre os artefatos de mais fácil acesso nos provou que estávamos diante de um verdadeiro “tesouro escondido”.
Deixamos o bairro da Glória atônitos com a descoberta. Embora imaginássemos que havia uma reserva documental da família Teixeira, não suspeitávamos que fosse ali, e nem que existisse tanto material. Apesar de já termos tido um acesso prévio à parte das correspondências enviadas ao cantor e a pastas contendo recortes de jornal (estas últimas preservadas pela família através de uma fundação – sobre a qual trataremos posteriormente), percebemos que isso se tratava apenas da “ponta do iceberg”.
Mais do que uma sala com papéis velhos, o pequeno cômodo localizado no pátio da mansão era somente uma das tantas partes do emaranhado complexo de depósitos documentais sobre a vida, a obra e os empreendimentos de Teixeirinha, cuja existência até então não havia sido mencionada pela família do artista, durante mais de um ano e meio de nosso contato com seus herdeiros e viúva. Estávamos diante de um arquivo privado de grandes proporções e, mais do que desbravá-lo, seria necessário pensá-lo como tal.
As experiências em meio aos personal papers de Teixeirinha apontam para uma série de questões teórico-metodológicas sobre a forma, o conteúdo e as diretrizes dos arquivos pessoais, indagações que permeiam e exigem reflexões tanto da matriz disciplinar da História quanto da Antropologia; e também acerca das dificuldades de manutenção, das relações políticas ao redor da memória construída em torno dos acervos e da intervenção do pesquisador em um meio documental que expõe outros vieses desconhecidos, dentre os quais as íntimas relações familiares. Este artigo é um dos primeiros frutos de duas pesquisas distintas, realizadas por pesquisadores de áreas e formações acadêmicas diferentes, que, no entanto, compartilham do mesmo objeto/sujeito de pesquisa 4. O desafio do trabalho interdisciplinar e do compartilhamento de uma mesma profusão de fontes – com o delineamento de propostas diversas, porém complementares – é parte de um projeto conjunto no qual são abordadas questões de relevância que atravessam ambas as pesquisas. O mote do arquivo pessoal de Teixeirinha mostrou ser o mais importante neste primeiro momento, já que fomos confrontados com inúmeras indagações e problemáticas que dizem respeito não só aos próprios dados que ali se apresentam, mas também ao nosso papel em relação a eles 5.
O objetivo deste artigo é, portanto – ainda que de uma forma inicial – tentar construir respostas para algumas das questões levantadas anteriormente, que não se esgotam nestas páginas, mas se fazem presentes de forma central na construção dos resultados finais que em breve surgirão destas pesquisas.

Arquivos: um cenário na história do tempo presente

Os debates dentro da “história do tempo presente”, tema ultimamente muito em voga na historiografia 6, têm despendido considerável atenção à problematização das fontes. Mais do que isso, tais discussões passaram a refletir intensamente sobre a crítica aos documentos e os meios pelos quais os pesquisadores obtêm o corpus documental de seus trabalhos. O problema é complexo e abrange uma série de variantes. Neste ínterim, um merecido destaque tem sido dado às relações entre fontes, arquivos e disputas pela memória.
Constitutiva do tempo presente, a memória – e todos os mecanismos que se interpõem a ela – foi elevada à condição de prática coletiva capaz de desvelar processos subjetivos embasados em experiências e marcas simbólicas ou materiais. (Cf. JELIN, 2001, p. 2). Os processos que a tornaram objeto de conflitos e disputas são, hoje, um dos pontos de maior inflexão na disciplina História. Eles apontam para uma série de desafios ao historiador, tais como a compreensão sobre o frenesi da “musealização” ou “automusealização” (FRANCO; LEVÍN, 2007, p. 39) ou ainda a “presença de atores vivos, e então, de uma outra interpretação do passado que pode concorrer com o discurso científico”. (ROUSSO, 2007, p. 289).
Excelente exercício crítico sobre o ofício do historiador, conforme Cuesta (1993, p. 7), o trabalho com a memória envolve, em muitos casos, o contato com arquivos. De acordo com Fugueras e Mundet (1999, p. 11), “un archivo está formado por los documentos que produce y recibe un individuo, una familia, una empresa o un organismo público en el ejercício de sus actividades”.
Partindo de uma preocupação com o poder enunciador do arquivo, Foucault (1972, p. 128) caracteriza-o como o sistema que transforma afirmações em efeitos ou coisas. Para o autor,

 
O arquivo é em primeiro lugar a lei do que pode ser dito, o sistema que governa as aparências dos enunciados como eventos únicos. Mas o arquivo é também o que determina que todas as coisas ditas não se acumulem em uma massa amorfa, sem que sejam inscritas em uma linearidade inquebrável, nem desapareçam à mercê do acaso de acidentes externos; mas elas são agrupadas em figuras distintas, colocadas juntas de acordo com múltiplas relações, mantidas ou atenuadas de acordo com regularidades específicas... (FOUCAULT, 1972, p. 129. Tradução livre dos autores).

Steedman, tal como Foucault, reafirma o caráter construído do arquivo, diferenciando-o tanto da memória humana, por ele não ser formado por “tudo”, como também do inconsciente, lugar imensurável e atemporal de onde nada escapa. Ao contrário, para a autora,

 
O Arquivo é feito de documentação do passado selecionada e conscientemente escolhida e também das fragmentações loucas que ninguém quis preservar, mas de alguma forma ou outra terminaram lá. (...) E nada acontece com estas coisas no Arquivo. Ele é indexado, e catalogado, e parte dele não é indexada ou catalogada, e parte é perdida. Mas enquanto material, as coisas só ficam lá paradas, até serem lidas, e usadas e narrativisadas. (STEEDMAN, 2002, p. 69)..

Assim, para a autora, o que importa é o que é feito com o material do arquivo; através da atividade cultural da História, ela coloca a possibilidade do arquivo se transformar num espaço potencial da Memória. É neste ponto que Steedman (2002, p. 2) se afasta do pensamento tanto de Foucault como de Derrida, que afirmam o arquivo primordialmente como um modo de ver, ou um modo de saber; como um símbolo ou uma forma de poder. Em “Archive Fever”, Derrida remete aos arquivos como um ponto de entrada para discutir psicanálise, a memória e a busca por origens, relacionando o estabelecimento do arquivo com o estabelecimento do poder e da autoridade do Estado. O autor reivindica pela distinção entre arquivos reais (lugares oficiais para o recebimento de dados, com sistemas de armazenagem, organização, catalogação); e no que eles são usualmente transformados, como lugares de memória, desejo das origens, ou a “busca do tempo perdido”. Para Derrida, o arquivo necessariamente é algo que passa do privado para o público. (DERRIDA; PRENOWITZ, 1995, p. 9-10). A maioria dos trabalhos em arquivos é, sem dúvida, baseada em material “público”. Mas quais são as implicações para a pesquisa quando esta não é necessariamente a situação?
Neste contexto, merece realce um tipo de acervo cuja complexidade ainda não foi absolutamente mapeada pelas Ciências Humanas, mas cujos trabalhos recentes têm apontado para considerações de suma importância: são os fundos documentais privados e pessoais.
Legalmente, no Brasil, os arquivos são definidos como “os conjuntos de documentos produzidos e recebidos por órgãos públicos, instituições de caráter público e entidades privadas, em decorrência do exercício de atividades específicas, bem como por pessoa física, qualquer que seja o suporte de informação ou a natureza dos documentos”. (DUCROT, 1998, p. 8). Não há uma lei específica para os arquivos pessoais, isto é, aqueles fundos de caráter profissional ou de natureza eminentemente pessoal, auferidos, gerados e armazenados por indivíduos ao longo de suas vidas 7. Entretanto, tais acervos ganharam importância nas últimas três décadas, primeiramente na França – onde o boom dos arquivos privados se deu nos anos 1970, especialmente entre os historiadores da arte (Cf. GOMES, 1998, p. 2) – e hoje por todo o mundo, alçados pelo fetiche da monumentalização do passado. (CUESTA, 1993, p. 9).
A historiografia dedicada ao trabalho com personal papers tem indicado uma série de questões pertinentes ao estudo. A maior delas, com certeza, diz respeito à sedutora idéia de “ilusão de verdade” pela qual muitos estudiosos são tomados tão logo entram em contato com os arquivos pessoais. A imagem de que os papéis de um indivíduo são capazes de contar, por si só, sua vida é uma das armadilhas mais perigosas ao historiador que lida com este tipo de objeto. Segundo Heymann (2005, p. 4), é importante ter em mente que um arquivo não significa o “espelho da trajetória de seu titular, já que nem sempre existe uma equivalência entre história de vida e arquivo pessoal”. Mais residual do que a ideia de verdade explícita nos documentos é a forma como um acervo foi elaborado por seu autor. (Cf. VENANCIO, 2005, p. 6). Assim,

 
É sob essa ótica que a ‘espontaneidade’, a ‘autenticidade’ e a ‘verdade’ dos documentos pessoais precisa ser trabalhada. De forma alguma para ser desconsiderada, mas exatamente para ser refletida e problematizada, sendo associada a outros tipos de documentação e sofrendo o crivo de um rigoroso tratamento teórico-metodológico. Nisso os documentos pessoais em nada diferem de todos os demais documentos históricos. Dito de outra forma, o feitiço pode estar em toda parte, havendo apenas lugares mais perigosos que outros. (GOMES, 1998, p. 8).

Portanto, ao historiador, mais do que pensar no conteúdo dos documentos de um arquivo pessoal, é imprescindível trabalhar sobre os problemas igualmente candentes que se colocam ante tais acervos. É preciso estudar, da forma mais minuciosa que os registros permitirem, as formas de empreendimento pelas quais passam os arquivos e, principalmente, as relações entre intencionalidade e não-intencionalidade na formação de depósitos documentais. Acreditamos que o exemplo do arquivo pessoal de Teixeirinha nos ajudará a pensar nestas questões.

Nos porões da Glória

Vitor Mateus Teixeira nasceu no ano de 1927, em Mascarada, na época distrito do município de Santo Antônio da Patrulha (RS). Aos seis anos, perdeu o pai; aos nove, a mãe. Ainda muito jovem, exerceu diversos ofícios em muitas cidades. Entre suas andanças, aprendeu a ler e escrever de forma precária. Seu autodidatismo também se estendeu à música: além de compor e trovar, Teixeirinha tocava violão.
Em 1959, já um pai de família e artista amador – com passagem por inúmeras rádios do interior do Rio Grande do Sul –, ele viajou para São Paulo, onde gravou algumas matrizes pela gravadora Chantecler. Os primeiros discos não o alçaram para a fama, mas em julho do ano seguinte, sua composição autobiográfica Coração de luto estourou como fenômeno de vendas, alcançando o topo da parada nacional de sucessos.
A carreira de Teixeirinha decolou nos anos seguintes. Vieram outros êxitos, 49 LPs com gravações inéditas, mais de 1.000 composições de sua lavra (das quais cerca de 650 foram gravadas) e 12 filmes de longa-metragem produzidos e encenados pelo artista. De cantor, Vitor Mateus Teixeira tornou-se empresário: montou uma editora, uma companhia cinematográfica, um posto de gasolina; adquiriu propriedades de terra, apartamentos, casas. E esteve às voltas com a produção radiofônica e de televisão, chegando inclusive a estudar a possibilidade de pleitear a concessão de uma emissora de rádio na fronteira entre Brasil e Uruguai 8.
O dinâmico artista-empresário deixou um arquivo pessoal que abrange o período cronológico de 1961 a 1985. Entretanto, por motivos diversos e nem sempre conhecidos, encontram-se no acervo documentos posteriores à sua morte. Tais papéis constituem uma minoria e não fazem frente aos registros do período de vivência do cantor.
O fato de existirem documentos que remontam o início dos anos 1960 não nos autoriza a afirmar que o arquivo existisse desde esta data. Aliás, traçar uma cronologia do acervo documental de Teixeirinha ainda é uma tarefa pouco viável. Segundo relatos de seus familiares 9, a preocupação em manter a documentação a salvo das intempéries era característica no período em que o artista viveu. No entanto, dado o acúmulo de papéis, nem sempre a tarefa alcançou êxito. As datas são imprecisas, e as informações são desencontradas. Contudo, é sabido que existiram pelo menos cinco núcleos documentais mantidos por Vitor Mateus Teixeira: um escritório no Centro de Porto Alegre, onde ficavam os papéis mais candentes; duas salas nos porões da casa da Glória, que serviam como depósito; um escritório no andar superior da residência, onde eram guardados documentos e objetos de cunho eminentemente pessoal; a casinhola no pátio da mansão, na qual ficava pouco material; e um galpão na parte dos fundos da chácara, local que pertencia oficialmente a Teixeirinha Produções Artísticas e que tinha como função o armazenamento de equipamentos e documentação mais antiga.
Espalhado pela casa da Glória e por salas no Centro da capital gaúcha, o arquivo parece nunca ter passado por um período de unicidade total. Não há informações de que tenha existido um “Arquivo Teixeirinha”, isto é, um local especialmente projetado para catalogar e armazenar os documentos do cantor. A ideia de um centro de documentação, se existiu, nunca foi posta em prática. Tudo indica que a reserva documental que se formou obedeceu a critérios mais involuntários.
A propósito, cabe, desde já, apontarmos um problema: ao guardar tão vasta documentação, estaria Teixeirinha buscando formas de “monumentalizar” sua memória? A formação de seu arquivo pessoal permite-nos supor manifestações materiais de uma “trajetória que se pretende imortalizar”? (HEYMANN, 2005, p. 5).
Um olhar mais atento sobre o arquivo nos induz a relativizar tais questionamentos. Em primeiro lugar, embora seja predominantemente pessoal, o acervo que se encontra hoje no bairro da Glória é, também, empresarial. Desde 1970, o artista mantinha a Teixeirinha Produções Artísticas, uma empresa responsável por produzir programas de rádio, agenciar shows, corresponder-se com fãs e, principalmente, rodar filmes de longa-metragem encenados pelo próprio cantor 10. Como empresa legalizada, a produtora tinha evidentes obrigações perante a lei, como pagamento de impostos, prestação de contas e manutenção de contabilidade. Tais exigências geraram uma retumbante soma de papéis que constituem, hoje, a maior parte do acervo documental de Teixeirinha. Borderôs de cinema e rádio, contratos de publicidade e apresentações, telegramas, roteiros, livros-caixa e outra gama ainda desconhecida de documentos com certeza denotam uma preocupação muito maior com os trâmites legais da empresa do que com a preservação de uma memória da mesma, como se poderia supor a priori.
Mesmo os documentos eminentemente pessoais de Teixeirinha não devem ser tomados em absoluto como protagonistas de uma estratégia de manutenção de imagem. Pessoa física, Vitor Mateus Teixeira também teve suas obrigações com o fisco e demais órgãos governamentais. Empreendedor de sucesso, tal comprometimento lhe obrigou a manter junto aos seus arquivos um número relativamente grande de documentos. Nos porões da Glória encontramos passagens de ônibus e avião, notas fiscais de vestuário, automóveis, instrumentos musicais e material de construção, carnês de pagamento da escola de suas filhas, cadernetas de poupança, talões de cheque, anuários de desconto em INPS e Imposto de Renda e outra série de papéis que, como qualquer indivíduo atento aos compromissos fiscais, Teixeirinha guardava.
Por outro lado, também não se pode atribuir a vastidão de documentos apenas à mera funcionalidade que estes pudessem apresentar. Inegavelmente, existia uma preocupação em manter uma determinada documentação pessoal independente das obrigações legais. Guardar de forma relativamente catalogada a correspondência recebida durante duas décadas, os recortes de jornais em referência ao seu nome, cópias de seus discos, fotografias, publicações exclusivamente dedicadas à sua carreira, cadernos com letras de composições, diplomas e objetos ofertados por fãs e amigos pode nos apontar para uma tentativa de manutenção da memória a partir de seus pertences. Também é importante salientar que a montagem de tal acervo se deu a partir da intervenção do próprio Teixeirinha e, principalmente, de funcionárias destinadas a tal atividade. Desta forma, vemos que

 
O processo de seleção e ordenamento dos documentos é muitas vezes um empreendimento coletivo, especialmente no caso de homens públicos, para quem secretárias e colaboradores podem ser agentes decisivos no processo. (HEYMANN, 2005, p. 5).

Intencional ou não, o arquivo pessoal de Teixeirinha é fruto do acúmulo de documentação realizado durante anos a fio. Suas dimensões ainda hoje são um tanto quanto assustadoras. Milhares de cartas enviadas por fãs talvez sejam os itens que mais chamam atenção. Não é possível ainda darmos um número exato, mas estimamos que sejam em torno de 15 a 20 mil missivas num período que abrange os anos de 1963 até o início dos anos 1990 11. São correspondências vindas de todas as partes do Brasil, de países sul-americanos e mesmo da Grécia, Portugal, Estados Unidos, Canadá e outras nações. Surpreende ainda mais o fato de que, segundo relato de familiares, o número de cartas remanescentes gira em torno de apenas 10% do total que existiu um dia. A grande maioria delas foi queimada ou extraviada no decorrer dos anos.
Dos núcleos de armazenamento anteriormente citados, apenas a casinhola e o porão continuam armazenando documentos. O escritório no andar superior da mansão foi transformado em dormitório, apesar de ainda existirem alguns parcos papéis no local. O galpão nos fundos da casa foi demolido há alguns anos. Muitos registros acabaram perdidos durante este processo de fragmentação e desmantelamento do arquivo, enquanto os demais foram realocados. As salas no Centro também foram esvaziadas e a documentação constante nelas foi levada para a Glória.
Quando encontramos o acervo de Teixeirinha, ele estava dividido entre a casinhola e o porão. Além do material abrigado pelo pequeno cômodo do quintal, encontramos mais cartas, documentação pessoal, borderôs, fitas de áudio, vestimentas, instrumentos musicais, mobiliário, roteiros de filmes e outros objetos diversificados no subsolo da casa. Os documentos, literalmente espalhados pelas dependências dos depósitos, desde o princípio mostravam as imbricações daquele acervo. Uma delas, talvez a mais difícil de lidar, é a mescla de papéis relativos às empresas, ao indivíduo Vitor, ao artista Teixeirinha e à sua própria família. Com o tempo, surgiram fotografias da intimidade e do cotidiano dos Teixeira, mostrando o quanto são tênues as fronteiras entre a documentação profissional e a pessoal.
Mas a diversidade do arquivo de Teixeirinha está longe de ser o único e maior problema. Empecilhos muito mais complexos tomam conta daquele acervo. Em primeiro lugar, tudo indica que o universo documental guardado ali não tenha sido inventariado. Ou seja, não há um índice do que existe no local, das dimensões reais daquele arquivo. O inventário é de suma importância, visto que dá unicidade ao acervo e auxilia na manutenção de sua integridade 12. Construí-lo, entretanto, demanda tempo, capital e precisão profissional.
Mais do que manter a unicidade do arquivo, o inventário permite ao pesquisador e ao arquivista definir a lógica do acervo e, a partir de então, compreender as formas pelas quais ele foi estruturado e a intencionalidade (mesmo que involuntária) implícita na organização. O inventário dá ao pesquisador o “princípio da proveniência”. Originalmente tratado como respect des fonts, tal definição foi formulada em 1841 por Natalis de Wally. Segundo sua ideia, “os documentos não devem ser tratados isoladamente segundo um quadro metódico, e sim ficam agrupados em seus fundos de origem”. (DUCROT, 1998, p. 4-5). A ordem com que foi construído um arquivo é, por assim dizer, seu mais importante ponto de reflexão e o inventário sua caracterização final. Porém,

 
Com freqüência, contudo, o fundo recebido está na maior desordem. Seja porque jamais tenha sido classificado, seja porque a ordem primitiva sofreu alterações tais que é impossível restabelecê-la, seja, ainda, porque é extremamente insatisfatória. O pragmatismo deve, nessa hora, prevalecer sobre a teoria. Querer reconstruir uma ordem da qual não subsiste o menor vestígio (...) seria o equivalente às reconstituições arbitrárias feitas por certos arqueólogos no século XX, e além: o trabalho consiste em dar a esses fundos o quadro de arranjo mais lógico, devendo esse arranjo corresponder, sempre, à estrutura orgânica do fundo, quer dizer, ser decorrência de sua natureza. (DUCROT, 1998, p. 13).

O fundo documental remanescente do arquivo de Teixeirinha é, como já se pode supor, altamente fragmentado. Sem inventário e amplamente prejudicada pela intervenção de funcionários e familiares no período pós-morte do artista, a documentação perdeu boa parte de suas proveniências. Da classificação inicial 13, muito pouco restou; basicamente, apenas a ordem de correspondências consideradas “especiais” (leia-se cartas de fãs do exterior, contratos para shows e missivas enviadas por autoridades) e fardos indicados como borderôs de filmes e rádio. Algumas pastas contendo letras de canções e relações de LPs lançados também sobreviveram, mas tudo parece fora do eixo central que, supõem-se, existiu um dia. A intervenção da família é candente e veremos alguns desdobramentos dela a seguir. Antes, no entanto, é preciso que falemos sobre a intervenção própria do pesquisador.
Tão logo descobrimos a existência de um arquivo pessoal de Teixeirinha, buscamos um diálogo com a família para que pudéssemos pesquisar no acervo. Lembremos que o arquivo em questão não é aberto ao público, pois pertence aos familiares do cantor e está protegido pelos direitos privados de seus herdeiros. Só nos foi possível pesquisar no depósito a partir de uma negociação que envolveu confiança e o estabelecimento de um contrato de trabalho voluntário com a fundação mantida pela família. Em troca do acesso aos papéis, e preocupados com o próprio destino do fundo, nos oferecemos para “salvar” o arquivo.
Longe dos procedimentos formais da arquivística e cientes dos possíveis males que nossa intervenção pudesse causar ao acervo, iniciamos um trabalho de contenção da perda dos documentos. Mesmo sabendo que os últimos vestígios de ordem da documentação estariam perdidos depois da nossa ação sobre os papéis, foi preciso racionalizar sobre o acervo e optar primordialmente por salvá-lo. A primeira atividade planejada foi reunir em um só local a totalidade dos documentos. A casinhola não poderia mais armazenar a documentação, tendo em vista as precárias condições em que se encontra. A remoção de quase todos os papéis para o porão foi a melhor alternativa.
Estantes improvisadas, caixas para a condensação dos documentos e algum cuidado com o pouco de unicidade que restou ao acervo foram os elementos norteadores nos primeiros meses de trabalho. Desta forma, nossa intervenção no arquivo de Teixeirinha, mesmo que não-profissional e dotada de estratégias contestáveis, aproxima-se mais de uma tentativa de manter o acervo a salvo da ação do tempo por mais algumas décadas do que a uma institucionalização do depósito enquanto arquivo capaz de receber pesquisadores.
Além da nossa intervenção, merece destaque ainda a atitude da família de Teixeirinha em relação ao acervo. As perdas da documentação, no período após a morte do cantor, apontam para o fato de que não existiu uma necessidade imediata e nem uma intencionalidade a curto prazo para que se mantivesse “viva” uma memória do artista a partir de seu fundo documental. Esta atitude apareceu após uma década do falecimento de Teixeirinha. Com o ressurgimento de sua figura – em especial depois dos investimentos da indústria fonográfica e do grupo de comunicação RBS – o culto à memória do “Rei do Disco” se acelerou.
Em 1995, a família Teixeira organizou uma exposição e um festival de cinema com o enfoque na obra de Teixeirinha 14. Estas atividades trouxeram à tona documentos, fotografias e pertences do cantor, ensejando uma primeira tentativa de estabelecimento de sua memória. Quatro anos depois, em 1999, sua viúva e alguns de seus filhos instituem em Porto Alegre a Fundação Vitor Mateus Teixeira, um desdobramento da Teixeirinha Produções Artísticas, cuja pretensão inicial liga-se ao investimento em atividades culturais. Em seus estatutos, a Fundação Teixeirinha declara ter como objetivo “Defender, recuperar e preservar o trabalho cultural e o patrimônio histórico e fonográfico deixado por Vitor Mateus Teixeira – com pseudônimo artístico ‘Teixeirinha’” 15.
Contudo, a inauguração da Fundação Teixeirinha não significou a criação de um espaço exclusivamente dedicado a guardar os papéis do cantor. Ao contrário, ela acabou se transformando numa espécie de “desdobramento” do arquivo já existente, incluindo a fragmentação e a desordem do mesmo. Quando foi estabelecida, a instituição ocupava um dos cômodos da casa da Glória. Tempos depois, entretanto, ela foi transferida para uma sala comercial no Centro de Porto Alegre 16. Na transferência, os diretores da entidade optaram por criar um espaço em reverência à memória de Teixeirinha. Fotografias, capas de discos, cartazes de cinema, objetos pessoais e pastas contendo recortes de jornal e documentos variados foram reunidos na sede do órgão. Mais uma vez, o arquivo de Teixeirinha se dispersou. Os documentos e pertences do artista levados para a fundação foram retirados do acervo principal na casa da Glória. Além de um processo seletivo subjetivo – onde foram escolhidos para o “salvamento” aqueles documentos que a família considerou como de maior valia – o restante da documentação que não encontrou espaço na seleção da entidade foi deixado de lado 17.
Em uma primeira tentativa de organização do acervo, arquivistas foram chamados para fazer um levantamento do material, no final de 2007. No entanto, para que o trabalho fosse levado a cabo, a Fundação Teixeirinha entrou com um projeto junto à Lei de Incentivo à Cultura (LIC), para habilitar a captação de recursos necessários. No presente momento, o projeto encontra-se em tramitação, porém sem previsão de ser concretizado.
Da mesma forma que no porão da Glória, a Fundação Teixeirinha possui documentos que não foram catalogados ou inventariados. Cerca de vinte pastas contendo recortes de jornal, por exemplo, têm etiquetas indicando seu conteúdo, mas tais apontamentos ainda são do tempo em que as secretárias de Teixeirinha eram responsáveis pelo material. A catalogação improvisada e obsoleta muitas vezes não condiz com o conteúdo das pastas, indicando possíveis desaparecimentos de documentação. A não-profissionalização dos arquivos de Vitor Mateus Teixeira se mantém viva, passados 23 anos de sua morte.
A própria concepção de uma entidade de caráter cultural com pretensões a manter viva a memória do artista e, por consequência, seu acervo, nos indica caminhos interessantes de análise. Conforme Heymann (2005, p. 8),

 
A criação de uma instituição desse gênero pode ser vista como um passo estratégico no processo de monumentalização da memória de seu patrono, seja ele seu instituidor (...), seja a instituição produto da ação de herdeiros, após a morte do titular. Nesse último caso, em geral, a justificativa manifesta da instituição é resgatar, preservar e divulgar a memória do personagem, constituindo-se em um espaço para a evocação de sua imagem e a atualização de sua trajetória, lembrada e ressignificada em trabalhos acadêmicos, exposições, eventos e comemorações. O acervo do titular, por meio desse processo, é aproximado da noção de ‘legado’ histórico, inserindo-se no universo dos bens simbólicos reunidos sob a chancela do ‘patrimônio’ ou da ‘história’ nacionais.

Para além do discurso de preservação, as fundações funcionam como elementos políticos capazes de propor projetos e vinculações do nome de seu titular a órgãos e iniciativas governamentais. A Fundação Teixeirinha, como tal, seguidamente participa de projetos deste cunho. Em 2007, com auxílio da Lei de Incentivo à Cultura, a instituição organizou o projeto “Teixeirinha Memória Nacional”, uma exposição que percorreu seis municípios do Rio Grande do Sul, apresentando fotografias, shows, filmes e oficinas acerca da vida e obra do cantor 18. Tanto neste projeto, como em outros, é latente a preocupação que existe com o material que foi escolhido pela direção da entidade – isto é, parte da família do cantor – como o mais importante a ser preservado.

 
É certo que as fundações instituídas com a vocação declarada de preservar a memória de seu titular, manter seu arquivo e divulgar sua obra têm sempre caráter político, na medida mesmo em que a memória é instrumento político capaz de criar identidades, de produzir um discurso sobre o passado e de projetar perspectivas sobre o futuro. Nesse sentido, as instituições – e seus gestores – funcionam como agentes de mediação entre o passado (história, memória, acervo) e o presente (ação política). (HEYMANN, 2005, p. 11).

Mesmo que haja um visível “enquadramento” acerca dos documentos que foram escolhidos como de importância ou não, é inegável que a manutenção de um acervo, mesmo que limitado a certos registros em detrimento de outros, confere status e prestígio à Fundação Teixeirinha.

 
De fato, a legitimidade dentro do campo de instituições de memória depende, em grande parte, da capacidade de abrigar, de reunir peças e documentos inéditos – que funcionam como manifestação material de legado – ou, ao menos, de produzir um discurso convincente e documentado na apresentação do personagem e de sua trajetória. (HEYMANN, 2005, p. 11).

Além disso, o processo de seleção e realocação dos documentos (que, mais uma vez, separou a totalidade dos papéis, fragmentou o arquivo e o destituiu de suas proveniências) por parte dos herdeiros de Teixeirinha pode ser verificado como uma ação coordenada com o que Heymman (2005, p. 13) chamou de “ideologia da ancestralidade”, isto é, uma atitude seletiva por parte dos responsáveis pelo acervo no intuito de transformar os documentos a serem salvos para a posteridade em uma espécie de “retrato”, “que não respeita mais os projetos do titular ou sua posição num campo de disputas”.

 
O acervo passa a refletir os projetos e posições desses herdeiros, que buscam configurar uma imagem do ancestral de forma a maximizar o capital total herdado ou (...) se livrar de um estigma através da possibilidade de uma redenção da figura ancestral. (HEYMANN, 2005, p. 13).

Essa intencionalidade por parte da Fundação Teixeirinha fica evidente através das atitudes de “proteção” ao acervo. Embora a maior parte dos personal papers de Vitor Mateus Teixeira encontre-se em situação crítica, sofrendo as intempéries do tempo e as consequências do mau armazenamento, a família Teixeira sequer cogita a possibilidade de doá-lo ou mesmo vendê-lo. Diferentemente dos arquivos de Gustavo Capanema, Osvaldo Aranha e Filinto Müller 19, ou mesmo do escritor gaúcho Érico Veríssimo 20, por exemplo, não existe sequer uma negociação que engendre a transferência do acervo de Teixeirinha para uma instituição especializada.
Se tal movimento não ocorre, podemos atribuir suas causas a duas razões. Em primeiro lugar, o fundo documental de Teixeirinha é praticamente desconhecido do grande público. É provável que menos de uma dezena de pessoas tenha acesso ao arquivo atualmente.
O outro obstáculo à venda ou doação do arquivo diz respeito aos direitos de propriedade intelectual implícitos nele. De acordo com os princípios da arquivologia, um acervo não pode ser doado ou vendido “a conta-gotas”, isto é, aos poucos e obedecendo exclusivamente a critérios designados por seus proprietários. (PROCHASSON, 1998, p. 6). Os “doadores” podem ditar normativas sobre o futuro do acervo e mesmo acerca de quais documentos podem ser divulgados ao público, mas os “recebedores” do arquivo em geral negam-se a assumir os cuidados por fundos parciais de documentação. No interior da lógica arquivística, ou um arquivo é doado/vendido em sua totalidade, ou permanece com seus titulares.
No caso do arquivo de Teixeirinha, este processo de doação total esbarra em dois pontos. O primeiro diz respeito à documentação de produção intelectual. Na condição de artista, mais precisamente compositor, Vitor Mateus Teixeira gerou uma série de “documentos de criação” 21, principalmente roteiros de cinema e composições musicais (muitas delas inéditas ainda hoje). Nos porões da Glória, não é difícil deparar-se com letras de canções escritas a próprio punho por Teixeirinha. Tais composições têm sido esporadicamente aproveitadas por seu herdeiro artístico, Vitor Mateus Teixeira Filho, e por outros cantores a partir do pagamento de direitos autorais. A doação deste acervo, não comprometeria o processo de lucratividade implícito nele. Porém, a inexistência de um catálogo ou inventário dificulta a confiança da família na integridade e seriedade do processo.
Imbricado a isso, estão os chamados “direitos de personalidade”, isto é, o “direito à vida e integridade física, o direito ao nome, à honra e à imagem, à liberdade de ir e vir e à inviolabilidade do domicílio, além dos direitos autorais”. (COSTA, 1998, p. 6). Embora repleto por documentos de gestão (papéis relativos ao dia-a-dia contábil de Teixeirinha e seus empreendimentos, como já vimos anteriormente), uma boa parte do material obedece a critérios extremamente pessoais, como fitas-cassete com gravações informais do artista, cartas enviadas para familiares, fotos de comemorações e do cotidiano da casa, enfim, material de caráter íntimo, e em relação ao qual a família certamente gostaria de possuir exclusividade.
Note-se que o protecionismo aos interesses da família Teixeira abre frente à outra reflexão, pertinente aos pesquisadores da “história do tempo presente”. O contato com as testemunhas de um determinado momento histórico, e das memórias que são mantidas por estas, tornam muito tênues as chances que o pesquisador (historiador, antropólogo, sociólogo e jornalista, entre outros) tem de não conseguir acessar as fontes. Sobre as dificuldades implícitas no trabalho em arquivos privados mantidos por particulares, Prochasson (1998, p. 5) afirma:

 
Ao obstáculo da localização – descobrir descendentes nem sempre é uma empresa muito fácil –, somam-se os delicados problemas ligados à intervenção de uma pessoa estranha no interior de uma memória familiar. A violação da intimidade que a pesquisa histórica inevitavelmente perpetra deve sempre dar lugar a compensações afetivas. Os entraves que a entrevista oral geralmente encontra exigem estratégias de contornamento próximas daquelas a que podem ter de recorrer os historiadores que trabalham com fundos privados. Procedimentos visando a criar confiança, que podem às vezes resultar numa cumplicidade amigável ou mesmo numa amizade franca e plena, constituem a base de toda aproximação. Sem eles, nada é possível. O respeito pelas lendas familiares, pelos mitos e pelas referências, um conhecimento mínimo da biografia dos descendentes e dos conflitos que podem dividi-los impõem uma modéstia ao comportamento do pesquisador que pode capacitá-lo a obter informações ou leituras suscetíveis de esclarecer sua própria. Faltar a encontros ou tratar sem muito tato a memória familiar levam a resultados desastrosos e fecham as portas dos arquivos privados ao pesquisador.

É comum entre familiares proprietários de arquivos, a sonegação de informações acerca da existência de fundos documentais. Por detrás dos acervos, pairam interesses nem sempre explícitos aos pesquisadores que deles se aproximam. Há casos em que os responsáveis pelo arquivo negam-se a divulgar sua existência, pois tem pretensão de agir sobre eles. Estas ações se concentram nas mais variadas formas: construção de museus, produção de biografias ou documentários ou até mesmo o desaparecimento gradual do acervo sem que ninguém saiba. Também é comum que os personal papers venham a público lentamente, muitas vezes a partir da insistência dos pesquisadores. O arquivo privado guarda implicações complexas – em alguns casos, familiares e mesmo pesquisadores atribuem autenticidade exagerada à fonte pessoal, “como se esta refletisse um desnudamento do humano”. (PROCHASSON, 1998, p. 13). Essa prática – já apontada como a “ilusão de verdade” que a descoberta material de um arquivo pessoal enseja – faz parte de um discurso ingênuo sobre os acervos privados.
A tendência comumente difundida entre pesquisadores e arquivistas é, pois, a de mapear as estruturas complexas que estão para além daquilo que se vê num arquivo. O conteúdo dos documentos, evidentemente, é de suma importância; mas a distribuição do acervo, os cuidados que se despendeu ou não com ele e mesmo as lutas em torno da memória com base na documentação aparecem como de vital importância para a pesquisa.

 
Procurar decifrar a estrutura interna de um arquivo pessoal para perceber as intenções e as dinâmicas do sujeito que se dedica a construí-lo, torna-se, portanto, indispensável para aqueles que têm como atividade profissional a organização dessas fontes e sua disponibilização para pesquisa. (FRAIZ, 1998, p. 36).

Embora este trabalho seja comumente creditado aos arquivistas, há casos em que tais profissionais não aparecem como uma opção. A experiência empírica no arquivo de Teixeirinha é um destes exemplos. Alegando falta de condições financeiras, a família do cantor até hoje não despendeu capital para contratar uma equipe especializada no trabalho. Enquanto a Fundação Teixeirinha espera por recursos para viabilizar o projeto que propõe a revitalização do acervo, nós – os pesquisadores – acabamos assumindo esta missão, mesmo que cientes da nossa discutível compatibilidade profissional para tanto.

Considerações finais

Ao abordar algumas inquietações acerca do arquivo de Teixeirinha, procuramos tratar de forma abrangente as principais questões que se formam a partir da prática de trabalho em acervos privados e pessoais. Dado o ineditismo da temática – já que podemos encontrar diversos artigos sobre os fundos documentais pertencentes a empresas e figuras políticas, mas muito poucos relativos a artistas, ainda mais cantores populares – optamos por uma abordagem que enfocasse assuntos de ordem mais prática. Por esta razão, alguns leitores darão falta de discussões teóricas, geralmente incitadas em produções do gênero. Em pleno acordo com Castro e Cunha (2005, p. 2), não estamos

 
(...) desprezando a reflexão ‘teórica’ sobre o tema, e sim enfatizando nossa perspectiva de que, sem o apoio em experiências reais de pesquisa, corremos o risco de permanecer numa discussão pouco produtiva sobre fronteiras disciplinares e princípios metodológicos abstratos..

Mais do que isso, a pretensão é também divulgar e registrar a existência do fundo documental de Vitor Mateus Teixeira e de suas empresas. Para além da trajetória do artista (em suas diversas facetas), acreditamos que o arquivo de Teixeirinha seja de grande valia para o entendimento de outras temáticas não menos importantes, tais como a produção fílmica no Rio Grande do Sul, a “Era do Rádio” na região sul do Brasil e os meandros do mercado fonográfico brasileiro, especialmente daquele destinado às camadas populares. De um ponto de vista mais antropológico, este material ajuda a desvendar o lugar social do artista no Rio Grande do Sul durante um grande período do século XX; as relações dos fãs com o artista, e sua presença na vida, no afeto e no imaginário de uma importante parcela da população, que ouvia seus programas de rádio diariamente e que, de certa maneira, ensejava uma comunicação com o ídolo através da correspondência; as maneiras pelas quais era possível levar a cabo um projeto artístico como um filme ou um disco, em um período com tecnologia e modos de fazer diferentes da contemporaneidade; como funcionava o processo de criação do artista, quais eram seus materiais de inspiração, seu método de trabalho, sua relação com a indústria cultural da época, entre várias outras questões. Um acervo, é preciso lembrar, guarda muitos elementos para além daqueles visivelmente perceptíveis e o caso em questão é emblemático. A divulgação de sua existência e dos problemas que enfrenta, além de permitirem a reflexão sobre o tema, apontam ainda para uma ponderação acerca da importância do patrimônio histórico e de sua manutenção. A salvo ou não, tornados públicos ou omitidos, os “tesouros” escondidos nos porões da Glória ainda falam muito e sobre muitos temas diferentes.

Artigo recebido em 18/10/2008. Aprovado em 21/01/2009.

 

Down the basement in Glória: a reflection on personal files, Teixeirinha, and some crossovers between History and Anthropology

Abstract:In the present article the authors propose a debate on the importance of personal files and of the mechanisms of creation, maintenance and dismembering which private archives go through. Based on empirical experience with the documentation of the artist Teixeirinha (Vitor Mateus Teixeira, 1927-1985), themes such as the idea of the “illusion of the truth” regarding the documents, the creation of institutions for the preservation of memory and patrimony are discussed.

Keywords: Personal files. Memory. Teixeirinha. History and Anthropology.

 

1 Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e mestrando em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). Contato: chicocougo@gmail.com

2 Mestre em Antropologia Social e estudante de Doutorado em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista de Doutorado CNPq. Bolsista de Doutorado-Sanduíche CAPES na Columbia University em Nova York (2008/2009). Contato: nicolereis10@gmail.com

3 Informações obtidas a partir do depoimento de Zoraida Lima Teixeira, em 5 de dezembro de 2007.

4 O início formal da pesquisa de Reis ocorreu em 2005, com a realização de etnografias e contatos exploratórios sobre o tema. Em 2006, depois de aprovado na seleção de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS, o projeto foi retomado em vários âmbitos. Neste ano, Reis e Cougo engendraram contato. Cougo passou a trabalhar em uma proposta de projeto para a seleção de mestrado do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, a qual foi aprovada em 2007. Nos últimos dois anos, ambos têm discorrido acerca das grandes possibilidades de incorporação das fontes aos trabalhos, muitas vezes subvertendo as fronteiras do que constituiria um “clássico” modo de pesquisa histórico ou antropológico.

5 É importante ressaltar que ambos os autores possuem objetos de pesquisa distintos daqueles que são tratados neste texto – embora relacionados com a produção artística de Teixeirinha. A abordagem aqui efetuada parte, portanto, da necessidade de tornar pública a existência e os problemas que envolvem a documentação do artista.

6 Entre os autores mais comumente citados sobre o tema, destacam-se Hobsbawm (1998), Lacouture (1998), Chaveau & Tétart (1999) e Rousso (2007).

7 O Dicionário de Terminologia Arquivística define arquivo pessoal como o “arquivo de pessoa física” (1996: 26) e arquivo privados como de “entidade coletiva de direito privado, família ou pessoa” (1996:27).

8 Síntese formada a partir de informações obtidas no arquivo pessoal do cantor e também em LOPES, Israel. Teixeirinha: O Gaúcho Coração do Rio Grande. Porto Alegre: EST / Fundação Teixeirinha, 2007.

9 Principalmente os depoimentos de Flávio Lima (sobrinho de Teixeirinha) e Zoraida Lima Teixeira, ambos tomados em 2 de outubro de 2008.

10 Sobre a produção fílmica de Teixeirinha, consultar: ROSSINI (1996).

11 A família Teixeira continuou a receber cartas depois da morte do cantor, em 1985. Tal prática permanece viva entre os fãs até hoje, agora contando também com o envio de e-mails.

12 Inventário é o “instrumento de pesquisa em que a descrição exaustiva ou parcial de um fundo ou de uma ou mais de suas subdivisões toma por unidade a série, respeitada ou não a ordem de classificação.” (Dicionário de terminologia arquivística, 1996).

13 Apesar de não existir inventário, é notável que exista uma classificação mínima realizada no intuito de tornar eficaz a lógica do acervo.

14 A primeira exposição sobre a vida e obra de Teixeirinha ocorreu em dezembro de 1995, na Casa de Cultura Mário Quintana (Porto Alegre), e foi intitulada “10 anos sem Teixeirinha”. Cinco anos depois, no mesmo local, foi organizada a mostra “Teixeirinha, 15 anos de saudade”. Informações obtidas em Jornal do IGTF (dezembro de 1995) e Zero Hora (4 de dezembro de 2000).

15 FUNDAÇÃO VITOR MATEUS TEIXEIRA. Estatutos sociais, Título 1, Art. 3º, Parágrafo IX, 1999.

16 A Fundação Vitor Mateus Teixeira está localizada na Rua Andrade Neves nº 100 (conjunto 301/302), no Centro de Porto Alegre. As duas salas ocupadas pela instituição foram, no passado, a sede da Teixeirinha Produções Artísticas.

17 É interessante perceber que esta seleção nos remete ao conceito de “enquadramento” da memória, recentemente tomado pelos historiadores do tempo presente, em especial. Segundo Michael Pollak (1989, p. 9), os “enquadramentos” são de suma importância para o entendimento dos processos políticos que envolvem as memórias, pois devem “satisfazer a certas exigências de justificação” em geral muito pertinentes ao trabalho dos pesquisadores.

18 O projeto “Teixeirinha Memória Nacional” ocorreu entre os meses de março e julho de 2007 e percorreu os municípios de Passo Fundo, Vacaria, Bom Jesus, Sapiranga, Santa Maria e Pelotas.

19 Todos estes arquivos foram doados ao CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, em meados da década de 1990.

20 O acervo de Erico Veríssimo foi vendido para a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em 1982.

21 O termo é discutido em BELLOTTO, 1998.

 

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