RESUMO
Este trabalho integra o projeto de pesquisa Marcas das relações
de poder na comunicação organizacional formal e/ou informal,
iniciado no Departamento de Comunicação da Universidade de
Caxias do Sul em 2006. Adotamos o Paradigma da Complexidade,
de Edgar Morin, como forma de olhar para a questão,
intimamente relacionada ao desenho dos processos comunicacionais
no campo organizacional. No artigo, olhamos em
maior profundidade para a noção de poder, amparando-nos
em Foucault e Althusser e relacionando-a à subjetividade dos
atores organizacionais, para o que recorremos à psicanálise,
fundamentando-nos em Freud e Lacan.
PALAVRAS-CHAVE: Poder formal. Poder informal. Subjetividade.
Comunicação organizacional.
Parece-nos importante pensarmos os vários discursos presentes no cotidiano das organizações numa perspectiva de circularidade de causa e efeito: eles revelam uma prática das relações/comunicação que se materializa em novo discurso, sempre numa relação dissimulada de forças, enfrentamentos e contradições. A luta de classes se configura como um dos aspectos de uma luta permanente, que lhe é maior e anterior, inerente à gênese e à psique do homem. Os estudos marxistas, que privilegiaram, ao longo dos anos 1960, a questão da luta de classes como motor das relações, ao que quer parecer, contemplam a parte pelo todo. O que parece, à luz do contexto do início do século XX, é que o todo – disputa de poder – está na parte – luta de classe – que, por sua vez, está contida no todo, circularmente. Acreditamos importante uma tentativa de revisão das relações que se estabelecem nas organizações, contemplando esse viés. Revel (2002,p. 38) lembra que, “por meio do par discurso/fala, o discurso se torna o eco lingüístico da articulação entre saber e poder, e a fala, como instância subjetiva, encarna, ao contrário, uma prática de resistência à ‘objetivação discursiva’”. Interessa-nos olhar para o movimento discurso/fala/discurso, objetivação/subjetivação/ objetivação, ao mesmo tempo em que buscamos compreender aspectos da psique dos sujeitos organizacionais implicados na construção dos processos da comunicação organizacional.
Se a cultura de massa, delineada a partir da década de 1930, inicialmente nos Estados Unidos e progressivamente nas sociedades ocidentais, desenha novo modelo social, modificando as relações dos sujeitos com o consumo/produção, a sociedade contemporânea, principalmente a partir das décadas de 1980 e 1990, primeiramente com a internet e, em seguida, com as tecnologias centradas no modelo digital, volta a reconfigurar esse mapa. O especular assume papel central, apagando a certeza adquirida no estádio do espelho, entre os seis e os 18 meses de idade, quando a criança percebe que a imagem não é ela. As imagens se descolam dos espelhos, e um duplo da organização – ideal, perfeito, superior – adquire vida, o mesmo acontecendo com aquele sujeito incapaz de duvidar, decidir, criar, desafiar, incapaz de viver sem a organização que, benemérita, o adota.[¹] Em nível de produção, essa mesma organização assume a capacidade de sustento; em nível de gestão, ela seduz, introduzindo o sujeito em um mundo de consumo ao qual, de outra forma, ele não teria acesso. Para compreendermos os movimentos desse “jogo especular e de sedução”, precisamos compreender como funciona a processo de comunicação na comunidade humana e, num recorte mais específico, no ambiente organizacional, onde o poder da força é substituído pela força do poder.
Pensar os processos comunicacionais é pensar o discurso[2], pois é por meio da linguagem que o sujeito acontece. A articulação da linguagem leva à criação do sentido e na cadeia significante está a possibilidade de geração de múltiplos desses sentidos, pois “todo Sujeito que engaja seu Discurso no curto-circuito da falação “faz necessariamente ouvir muito mais do que ele crê dizer” (grifo original). (DOR, 1989. p. 154).
Foucault mostra o discurso, como “[...] um jogo estratégico e polêmico, de ação e reação, pergunta e resposta dominação e esquiva, luta.[...] Espaço em que saber e poder se articulam.” (FOUCAULT, 1974, p. 6). Diz, ainda, que quem fala, fala de um lugar reconhecido institucionalmente (autoridade do discurso); portanto, faz circular o saber (institucional) e com isso gera poder (da Igreja, por exemplo, ou o da ciência). A produção desse discurso gerador de poder é organizada e distribuída por procedimentos cuja função é eliminar todo tipo de ameaça a sua permanência.
A “ordem discursiva” (REVEL, 2002, p. 37) própria a um período particular possui uma função normativa e reguladora e coloca em funcionamento mecanismos de organização do real por meio da produção de saberes, de estratégias e de práticas. Uma palavra assume sentidos opostos, dependendo do discurso onde esteja inserida. Bakhtin (1995, p. 32) afirma que [ela] “[...] é a arena privilegiada onde se desenvolve a luta de classes”. Podemos dizer que os diversos discursos materializam-se em visões de mundo das diferentes classes sociais com seus interesses antagônicos: são as várias formações ideológicas correspondentes às várias formações discursivas. (BRANDÃO, 2000, p. 52). E, para Pêcheux (1988, p. 160.) [...] “as palavras, expressões, proposições, etc. mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, ou seja, adquirem sentido em referência a essas (formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem).”
Para Foucault, há uma formação discursiva “[...] sempre que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão e se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos, transformações) entre os objetos, os tipos de enunciados, os conceitos, as escolhas temáticas” (1986, p. 46). O que Foucault denomina de formação discursiva, portanto, é um grupo de enunciados[3], ou seja, um conjunto de performances verbais, ligadas no nível dos enunciados. E o que legitima uma frase, uma proposição ou um ato de fala como enunciado é a função enunciativa, ou seja, ele ser produzido por um sujeito a partir de um lugar institucional, determinado por regras sócio-históricas que permitem que seja enunciado. “Não há enunciado, em geral, livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo; ele se integra sempre em um jogo enunciativo.” (FOUCAULT, 1986, p. 114).
Mas precisamos observar que a recepção não é apática, lendo o discurso como unívoco. Tampouco a cultura organizacional é impermeável. Uma série de mediações permeiam as relações organização/recepção, geram tensões, conflitos, identificações, aderências. É portanto importante contemplarmos os aspectos da subjetividade dos sujeitos, ao lado das “colagens” que trazem para a instituição onde atuam, considerando que à manipulação de elementos simbólicos corresponderá o jogo-resposta.
Habermas contrapõe dois tipos de organização:
A jornada de um trabalhador representa praticamente um terço de seu dia e parte do horário restante ele dedica a atividades ligadas ao trabalho, com vistas ao aprimoramento profissional. É importante, também, pontuarmos a paulatina absorção, pelas organizações, de papéis tradicionalmente desempenhados pelo Estado (segurança, saúde, ensino). Parece-nos enriquecedor resgatar alguns pontos colocados por Althusser e que explicam esse contexto. Ele mostra o Estado como máquina de repressão que permite às classes dominantes [...] assegurar sua dominação sobre a classe operária, para submetê-la ao processo de extorsão da mais-valia.
É importante frisarmos, ainda segundo Althusser (1974, p. 67), que o “Aparelho (repressivo) do Estado, unificado, pertence inteiramente ao domínio público.” Por outro lado “a maior parte dos Aparelhos Ideológicos do Estado (em sua aparente dispersão) remete ao domínio privado” a exemplo de Igrejas, famílias, algumas escolas, empresas, entre outras, as quais permeiam a produção de significação. Isso nos leva a traçar uma relação entre AIE e poder formal/ AIE e poder informal. Principalmente a partir do final do século XX e início do XXI, a organização:
Cada vez mais os sujeitos valorizam a carreira, dedicam-se a ela, delegam ao profissional espaços antes ocupados pelo social e legitimam a empresa num lugar que não é originalmente o dela. Elas, por sua vez, criam estratégias que acabam por legitimá-las nesse lugar, tecendo uma trama que é cultural, simbólica e imaginária. A carreira bem-sucedida é a “realização completa” e as organizações são a tábua de salvação das sociedades organizadas. (FREITAS, 2002).
Num contexto de acirrada competição, de mecanização extremada e tecnologização de processos de conglomerados com alto poder de barganha, a crise de emprego é, efetivamente, estrutural. Assim, o sujeito pode ver-se compelido a entrar no jogo da barganha, empreendendo todos os esforços possíveis, para manter seu emprego/empregabilidade. “O emprego é um privilégio em troca do silêncio sobre as condições de trabalho e os efeitos desestabilizadores (psíquicos) das novas práticas de gestão” (FREITAS, 2002, p. 62). Embora não seja algo formalizado, parece arraigar-se no Imaginário dos sujeitos a idéia de que sem a empresa eles não têm competência para qualquer tipo de auto-realização.
Ideologia é uma representação da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência. Ela funciona como um espelho duplo, e essa estrutura especular garante: – a interpelação dos “indivíduos como sujeitos; – sua submissão ao sujeito; – o reconhecimento mútuo entre os sujeitos e o sujeito, e entre os próprios sujeitos, e o reconhecimento de cada sujeito por si mesmo; – que tudo está bem assim, e sob a condição de que se os sujeitos reconhecerem o que são e se conduzirem de acordo, tudo estará bem.” (ALTHUSSER, 1985, p. 102). O autor a relaciona, ainda, à proposição de Freud, quando diz que o inconsciente é eterno, e, portanto, não tem história
A ideologia é material, pois “[...] existe sempre em um aparelho e em sua prática ou práticas.” (ALTHUSSER, 1985, p. 84). Ele sugere, ainda, que ela:
Além da qualificação, a reprodução da força de trabalho exige uma reprodução de sua submissão à ordem estabelecida. Dessa forma, a reprodução da ideologia dominante pressupõe um combate permanente, geneticamente subordinado à luta de classes.
A igreja, a escola, a família, a estrutura jurídica, a política, os sindicatos e os sistemas de informação e entretenimento, entre outros, constituem os aparelhos ideológicos de Estado, que vão, no plano institucional, segundo Althusser, garantir a difusão da ideologia da classe dominante, de forma predominante pela persuasão, mas, em alguns momentos, usando, também, da coerção. (ALTHUSSER, 2003)
Morin aponta um dos modos como se operacionaliza o aparelhamento de idéias na contemporaneidade, quando afirma, analisando a cultura de massa:
O autor descreve esse quadro como “um fenômeno de alienação”, e estabelece uma “analogia com o do operário industrial, mas em condições subjetivas e objetivas particulares,” apontando para uma diferença essencial: “O autor é excessivamente bem pago”. (MORIN, 2007, p. 33). Isso leva a refletir sobre a situação gestor/executivo inserido em uma Organização. Enquanto o operário recebe um discurso acabado, ele precisa “convencer-se para convencer”, (MORIN, 2007, p. 33), o que nos remete a Freitas, quando diz que
Parece importante que leiamos também a tensão/disputa que se atualiza no contexto organizacional. De um lado, o discurso (oficial da organização) aparece como “eco lingüístico da articulação entre saber e poder.” (REVEL, 2002, p. 37). De outro, vemos a fala (informal, troca de impressões, conversa de corredor) como uma instância subjetiva, uma prática de resistência à objetivação discursiva.
Ao mencionarmos organização/instituição e ideologia, surge a necessidade de mencionarmos as relações e disputas de poder ali instituídas. Essa disputa, ao que podemos perceber, anda em pelo menos três níveis simultâneos:
a) quando o grupo dominante, na defesa de seus interesses, busca impingir a outro grupo valores/crenças/idéias e interesses (Cultura);
b) quando se manifestam, no interior desse mesmo grupo dominante, vozes destoantes, com a formação orgânica/ dinâmica de subgrupos, na defesa de seus valores particulares;
c) quando o grupo dominado se submete, mas obtém com isso pelo menos um tipo de vantagem, o que o coloca em posição de litigante e não exclusivamente de dominado.
Se podemos relacionar libido e poder, teremos que a libido se manifesta, nesse caso, no sintoma, que substitui um desejo recalcado.[4] Da mesma forma, podemos destacar uma das três fontes de poder definidas por Galbraith (1999): personalidade/ propriedade/ organização. Pensamos que personalidades com traços paranóides e/ou personalidades com traços narcíseos tendem a relações assimétricas de poder (dominação por opressão).
O poder não é uma entidade unitária e estável. (FOUCAULT, 1979). Ele está indissociavelmente ligado às relações que se desenham a partir de condições históricas, portanto complexas e que implicam efeitos múltiplos, nem sempre previsíveis, e que podem dar-se fora do próprio campo do poder. “Isso implica dizer que a subjetividade tem papel de destaque nas relações de poder.” (REVEL, 2002, p. 67). Assim, uma tentativa de compreendêlo passaria pela necessidade de compreender a subjetividade, se considerarmos na análise as práticas, os saberes e as instituições. Foucault explicita, em Microfísica do Poder (1979), que o poder se pulveriza na sociedade em inúmeros poderes. Ele não existe senão em ato e exercido de uns sobre os outros.
Práticas, saberes e instituições funcionam integrados de forma circular, retroa-limentando-se permanentemente, à maneira do Princípio do Circuito Retroativo (MORIN), segundo o qual a causalidade não é linear. Os efeitos não decorrem de uma única causa, assim como uma causa pode levar a diferentes efeitos. Talvez seja preciso pensar que, a partir da segunda metade do século XX, temos um contexto diverso daquele desenhado no século XIX. A busca de solução para essas questões não pode, portanto, seguir uma lógica linear e racional, na medida em que o papel do inconsciente começa a ser (re)pensado/considerado. De outro lado, quando sujeitos e grupos sociais reconhecem a instância da psique, emerge uma nova sociabilidade, complexa.
Aumenta não somente a ansiedade/pressão pela transparência/ visibilidade, mas a competência para análises complexas, em múltiplas perspectivas. A verdade unívoca é destronada, dá espaço a múltiplas vozes. Na mesma proporção, em contrapartida, aumentam os modos/sistemas de controle, principalmente os tecnológicos (câmeras, circuitos, chips e alarmes), investidos da máscara de progresso. O fio condutor da sociedade desse tempo será o consumo, que atua em dois níveis: dá ao consumidor, na relação com a mercadoria (que precisa ser permanentemente renovada), a ilusão de poder, estabelecendo um ciclo vicioso, e garante ao proprietário dos meios de produção a demanda permanente, que por sua vez é aguçada pela mídia. Uma das formas de sustentar o poder é, portanto, aguçar a falta permanente de que fala Freud, instigando o sujeito a buscar o gozo permanente por meio da substituição de objetos.
No afã de sentir-se poderoso, o sujeito social consome, o que exige dele, em contrapartida, dependência cada vez maior do trabalho. (Re)desenha-se, dessa forma, uma relação assimétrica de poder, disfarçada por vários tons de maquiagem, da qual se encarregam aparelhos como escolas de administração (não é preciso relembrar a simbiose entre saber e poder), quando jogam luzes, apenas a título de exemplo, sobre “processos de gestão participativa”, processos de terceirização e relações autônomas de trabalho.
Assim, a noção de disciplina, tão cara à formulação benthaminiana do “panóptico”[5], ao contrário do que pareceria num primeiro momento, não perde força na sociedade contemporânea, apenas atualiza-se com nova roupagem, na medida em que seu foco de atenção precisa ser, nos parece, mais na direção da psique do que propriamente dos “corpos dóceis” dos sujeitos sociais.
Morin alerta: [...] “Toda esperança é tola se ignora que, por trás da Comunicação Social há o comando por aparelhos, ou seja, a ligação confusa e desconhecida entre Comunicação e dominação.” (2002a, p. 312). O que pretendemos pensar, porém, é que as reações dos sujeitos não são previsíveis/programáveis/controláveis, e que, portanto, o poder não é monolítico, as suas instâncias não são impermeáveis, havendo, em seus interstícios, a possibilidade de instalação de novas conformações, novos desenhos de relações e sociabilidades, principalmente se levarmos em consideração que os efeitos ou produtos retroagem sobre as suas causas, figurando como causadores e produtores no próprio processo e sendo os estados finais necessários à geração dos iniciais. Assim, pensamos que formal e informal são noções “capturadas” pelo poder, que transforma uma na outra, permanentemente, em processo que atrevemo-nos a associar à busca do objeto a, referido por Lacan, e que desloca, sempre, o prazer para “um mais além”.[6] É importante lembrar que
Elas são instrumentos para, por exemplo, “[...] fixar os operários ao aparelho de produção”, na medida em que eles se constituem na força produtiva ou de trabalho. Interessa, então, estabelecer um código que vai distinguir o bom do mau operário, adequando-o às necessidades de quem detém os meios de produção. (FOUCAULT, 1997, p. 12). Atualiza-se um tensionamento de forças, que se dá na instância da subjetividade, se dilui na esfera social e acaba parecendo natural, no nível do discurso, mas permanece latente no nível inconsciente, manifestando-se com “máscaras”, como doenças laborais, acidentes de trabalho, absenteísmo e retrabalho.
As práticas discursivas trazem consigo um código, a ordem do Discurso, que determina o que pode e o que não pode ser materializado pelo enunciado, “[...] que tem suas regras de aparecimento e também suas condições de apropriação e de utilização e que coloca, por conseguinte, desde sua existência, a questão do poder; que é objeto de uma luta, e de uma luta política.” (FOUCAULT, 1986, p. 139). Devemos considerar, porém, o ato falho, o deslize, o engano, o chiste, que “subverte” essa ordem do discurso, fazendo aparecer o que está por baixo, o que não pode/deve ser dito, mas está ali, latente. Portanto, “a retroação negativa é capaz de anular, desviar, transformar, contrariar e, inclusive, inverter os efeitos de uma causalidade externa.” (MORIN, 2002a, p. 314). Foucault não dispõe em campos opostos o poder e a liberdade, na medida em que a resistência a ele está em seu próprio interior.
Parece-nos importante ressaltar que a capacidade de poder é inerente a todo ser humano e pode ser associada ao instinto de sobrevivência, sendo, especialmente para o mundo do trabalho, uma condição a priori. O que podemos observar é que ela é mais ou menos “competente” de um sujeito para outro, dependendo de fatores contextuais, culturais e singulares à psique/história desse sujeito. Olhando o contexto pelo viés da Psicanálise, percebemos a valorização radical da subjetividade, na tentativa de desfazer a equação saber/poder ao reconhecer a ilusão objetivista do discurso de uma ciência que se reduz a ser uma tecnologia de resultados. Vejamos a situação acidente/doença laboral. Ferir-se/adoecer podem ser formas de “punir/ameaçar” a organização. Assim, o ator, que num primeiro momento, aparece como vítima pode, inconscientemente, estar no papel de agressor, ou, por outro, deter poder , mesmo que informal.
No que diz respeito às relações de poder (e seus conseqüentes e intrínsecos tensionamentos) nas organizações, cabe evidenciar a diferença entre informação e conhecimento. Entendemos informação como momento necessário para chegar ao conhecimento. Numa primeira instância, à informação basta a memória (armazenamento). Morin (2007, p. 27) diz que “[...] informação não é um conceito de chegada, é um conceito de partida”. Já o conhecimento exige reflexão, comparação interação, decisão, sendo atividade de maior complexidade. A informação é matéria-prima para tecermos o conhecimento. Morin explicita que a tomada de consciência é mais do que o conhecimento: “Trata-se de um ato reflexivo que mobiliza a consciência de si e engaja o sujeito numa reorganização crítica do seu conhecimento ou mesmo na interrogação dos seus pontos de vista fundamentais.” (MORIN, 2002a, p. 212).
Quando, portanto, uma organização agregar a seus processos comunicacionais a noção de conhecimento, estará abrindo espaço para que se reconfigurem relações de poder. De outro lado, à medida que ela privilegie, exclusiva ou majoritariamente, a noção de informação, estará cristalizando a arquitetura de poder instituída e dificultando a oxigenação de seus valores culturais. Pensando a organização como um sistema em relação, temos:
Num primeiro momento, parece explicar-se o apego à implantação de sistemas reducionistas e meramente informacionais nos processos de comunicação organizacional, que parecem garantir o status quo das relações de poder. A relação custo versus benefício, porém, pode implicar processos de entropia, à medida que cristalizar a arquitetura organizacional.
Cada vez mais, as organizações buscam fazer com que os sujeitos apaguem a identificação com a nação/Estado e se identifiquem com elas. Na medida em que grande número delas é multi(trans)nacionais, enfraquece a idéia de nacionalidade/cidadania, dirimindo, paulatinamente, a instância crítica da sociedade; enquanto um “discurso de efeito” dissemina a (falsa) idéia de que quem detém o poder é o mercado.
À medida que os sujeitos são invocados a absorver práticas e valores culturais da organização e à medida que são submetidos a uma rígida hierarquia, parecem recalcar sua visão de mundo/ realidade, o que acaba por facilitar uma relação assimétrica (de dominação), que por sua vez abre caminho para que a organização assuma o papel de produtora de significação e de valores. Em contrapartida, é preciso que se instale a cristalização de conceitos, diretamente relacionada à entropia e à degeneração das relações, comprometendo ou, no mínimo, dificultando o fluxo dos processos e as relações interpessoais e, por conseqüência, a produtividade e a qualidade, condição de sobrevivência de qualquer organização. Quando um sujeito ou grupo é submetido ao que convencionamos denominar cultura organizacional, o simbólico que lhe é apresentado esquematicamente tenta anular/enfraquecer/distorcer o (seu) real. Mas, acreditamos, permanece latente um resto do real de que fala Lacan. Assim, nos parece que seria produtivo para as organizações repensarem a forma como repassam sua cultura ao trabalhador principalmente reconhecendo a individualidade de cada integrante desse público organizacional.
Parece importante frisarmos que, na relação do trabalhador com a organização, as diversas instâncias de poder funcionarão como superego,[7] em uma identificação parental (pai como lei ou interdito), mas, ao mesmo tempo, como ideal de Ego, ou seja, modelo com o qual o sujeito procura identificar-se, explicando a alternância de momentos de amor (em que a dependência e os limites justificam as limitações) e ódio, ou agressividade, que levam à culpa e à frustração. “O indivíduo se encontra [...] sob a dominação da organização, ao nível inconsciente, e essa dominação será cada vez mais forte na medida em que há a dissolução da instância crítica.” (PAGÈS et al; 1993, p. 158). É vislumbrando os sujeitos organizacionais como grande grupo que a organização busca repassar/imprimir sua cultura. Ela não reconhece os atores como individualidades; isso fica posto à medida que não agrega os valores, padrões, conceitos, formas de agir/pensar deles à sua própria cultura.
Percebemos a tentativa de dissolução da instância crítica dos sujeitos organizacionais em três atos. Numa primeira instância, esses sujeitos recebem os valores no nível ideológico: são os manuais de treinamento, as palestras e encontros de adaptação. Em uma segunda instância, essa ideologia deverá marcar seu comportamento, dentro e fora da organização. Ele passa, então, para a assimilação de valores, da missão e dos princípios reproduzidos no cotidiano das tarefas e, em muitos casos, implantados na própria casa. A conduta desse sujeito no grupo social externo à organização deve corresponder ao que a ela espera dele. Num terceiro momento, a cultura organizacional se materializa; vemos o trabalhador levar para casa o jornal da organização, que será lido pela família, ou vemos seu automóvel decorado com adesivos da organização, enquanto ele veste abrigo esportivo, camiseta, boné... e usa chaveiros da organização, a caminho da sede esportiva.
Ao comportamento da organização, na direção de apagar sinais de identidade e, logo, de diversidade, soma-se o que talvez pudéssemos chamar de comodismo –, tendência do sujeito instalar-se em determinada situação ou zona de conforto. Isso pode levar a pensar que na relação que se estabelece com o grupo pode haver, de parte da organização (chefia), um componente de sadismo que pode estimular/desencadear uma reação masoquista. Parece importante, também, lembrar que Freud mostrou que o sujeito não renuncia facilmente ao sintoma, porque nele há um gozo implícito. É um resto real que persiste. Quando nos satisfazemos de modo parcial com sintomas[8] e fantasias, garantimos não pisar no terreno perigoso do mais-gozar (gozo do outro), que desejamos permanentemente, mas que não podemos atingir.
Morin defende que “a aceitação da confusão pode se tornar um meio de resistir à simplificação mutiladora.” (MORIN, 2002a, p. 29). Trata-se, portanto, de ligar o que estava separado, por meio de um Princípio de Complexidade, que é, segundo ele,
Ainda segundo o autor, ordem e desordem se confundem, se chamam, se requerem, se combatem, contradizem. “Esse diálogo se dá no grande jogo fenomenal das interações, transformações, organizações em que trabalham cada um por si, todas contra uma, todas contra todas [...] ” (MORIN, 2002a, p. 106). Parece-nos importante relembrar que no final do século XIX uma série de transformações sociais amplia pontos de contato entre Filosofia e Sociologia, insinuando uma nova Ciência Social. O saber atualizase multi e transdisciplinar, enfraquecendo a força monolítica do paradigma racionalista, que sofre abalos significativos a partir dos anos 1960, quando as Ciências Físicas e Matemáticas assumem nova atitude na descrição da natureza. A teoria dinâmica e a mecânica clássica estabelecem diálogo, mostram que as relações entre simples/complexo e ordem/desordem são mais estreitas do que se pensava. Esse rearranjo descortina novos saberes e amplia fronteiras epistemológicas. Procuram-se, em diferentes campos, noções teóricas que permitam um saber como gerador de um campo sui generis, pronto a buscar em áreas já estabelecidas, fragmentos que lhe confiram hibridismo.
Olhar para um objeto demanda contemplar a ambigüidade, a ambivalência, variáveis não passíveis de mensuração linear. O objeto não é uma realidade em si, mas algo construído, em movimento, em mudança permanente, até porque o sujeito/observador é permanentemente outro e modificado pelo próprio objeto. Daí buscarmos pontos de contato entre o Paradigma da Complexidade de Morin e a teoria psicanalítica, quando pensamos o sujeito organizacional.
Podemos pensar com Morin (2002a) quando acrescenta o cogito ao computo, momento em que o sujeito tem consciência de sua (in)consciência, e demanda a linguagem como meio de objetivação. Nesse caminho, a psicanálise verá a existência de um a priori mental, que determina o meio e se opõe às concepções do funcionamento da mente como um sofisticado processador de informações. Diferentes efeitos/respostas/reações parecem depender da interação das energias psíquicas que ocorre de modo particular em cada sujeito.
Pensar pelo Paradigma da Complexidade significa preservar o antagonismo na complementaridade como condição da fecundidade. O conhecimento complexo pressupõe/exige o diálogo retroativo e permanente das aptidões complementares/ concorrentes/ antagônicas, que são análise/síntese, concreto/abstrato, compreensão/explicação (MORIN, 2002b).
A técnica metodológica empregada na pesquisa maior é a Análise do Discurso,[9] que entendemos como “pluridisciplinar, já que, de um lado, o discurso integra as dimensões sociológicas, psicológicas, antropológicas... e, de outro lado, está no coração dessas mesmas disciplinas...” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2006. p. 15).
Nossa perspectiva de análise buscou explorar as condições de produção do discurso em questão, ou seja, o contexto e, como evidenciam Moraes e Galiazzi ( 2007, p. 144), “tem como preocupação primeira a interpretação, especialmente uma interpretação crítica”. A análise do discurso busca contemplar questões nele implícitas, mais do que as explícitas propriamente, “uma vez que se preocupa com as condições de produção do discurso, com sua crítica a partir de pressupostos externos”. (MORAES; GALIAZZI, 2007, p. 148). O oculto, o não-dito, é a preocupação central da análise do discurso em nossa perspectiva de pesquisa.
A opção pela entrevista em profundidade buscou, além da coerência com o método, considerar que “é evidente o valor da Pesquisa Qualitativa para estudar questões difíceis de quantificar, como sentimentos, motivações, crenças e atitudes individuais.” (GOLDENBERG, 1997, p. 63). Ela permite considerar reações subjetivas, o que no caso da pesquisa em curso é fundamental, na medida em que buscamos relacionar as noções de poder, de formalidade e de informalidade, numa perspectiva dinâmica.
Parece-nos importante reforçar o que já dissemos, destacando o fato de que, camaleônica, a noção de disciplina, não perde força na sociedade contemporânea; pelo contrário, atualiza-se, sempre com nova roupagem, mais na direção da psique do que propriamente dos “corpos dóceis” dos sujeitos sociais e transmitindo ao sujeito a falsa idéia de participação e liberdade. Nessa direção, as organizações, na medida em que privilegiam a noção de informação, cristalizam a arquitetura de poder instituída, dificultando a oxigenação de seus valores culturais, o que significa dizer, caminhando na direção da entropia.
Como regra, as organizações buscam fazer com que os sujeitos se identifiquem com elas e apaguem a identificação com a nação/Estado. Na medida em que grande número delas é multi(trans)nacionais, enfraquece-se a idéia de nacionalidade/ cidadania, dirimindo, a instância crítica da sociedade; enquanto um “discurso de efeito” dissemina a (falsa) idéia de que quem detém o poder é o mercado.
É importante, também, darmo-nos conta do quanto a reconfiguração sócio-político-econômica do novo século, causa e conseqüência de novos modelos de relações e modos de produção, traz uma perspectiva multifacetada de análise, em que agregar torna-se fundamental ao olharmos para questões até aqui objeto de disputa de feudos e guetos que acreditavam poder, de um único lugar, obter um panorama.
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