Um “museu vivo”:

espetáculo e reencantamento pela técnica


Carla Rocha


1 Introdução
2 Traços de um “museu vivo”: o Museu da Língua Portuguesa
3 Templo das mídias: comunicação e cultura contemporânea no museu
4 A Mediação tecnológica e a reconfiguração da experiência museal
5 Considerações finais
Notas
Referências

RESUMO
Busca problematizar algumas mudanças por que têm passado os museus nas últimas décadas, a partir de uma análise do Museu da Língua Portuguesa e considerando como pano de fundo a cultura contemporânea. Nesse sentido, o museu, a partir de uma dinâmica que privilegia as imagens massivas e as exposições temporárias, está alinhado com algumas perspectivas como o espetáculo e a cultura de massa. Da mesma forma, ao incorporar as tecnologias multimidiáticas e digitais, o museu redimensiona a própria experiência museal, possibilitando, pela mediação tecnológica, novas formas de percepção, visibilidades e uma apropriação mais participativa do conhecimento. O museu, portanto, é visto como um espaço de ambigüidades e contradições, refletindo os traços da própria cultura contemporânea.
PALAVRAS-CHAVE: Museu. Comunicação. Tecnologia. Multimídia.


1 Introdução

A noção de museu que ainda habita grande parte do imaginário ocidental recai sobre aquela desenhada desde a sua concepção moderna. Nela dá-se ênfase às coleções de objetos, que, em sua maioria, são destituídos de utilidade no cotidiano, os quais são ressignificados como depositários de nossa memória social. De regra, essa noção prevalece em grande parte da trajetória dos museus, reduzindo-os a um depósito de antiguidades ou, mesmo, de “coisas mortas” (mausoléu). Tal experiência está predominantemente restrita a uma atitude mais passiva do visitante, condicionando-o a manter uma distância e uma reverência, com isso reforçando um caráter de sacralização dos objetos museológicos.

É verdade que a associação entre museu e memória é uma temática recorrente, sobretudo no cenário globalizado em que vivemos. Nos últimos anos, para além dos museus tradicionais, assistimos à emergência de outras instituições de memória, com propostas distintas das que pontuaram grande parte de nosso imaginário social. Presenciamos um novo movimento, que revitaliza o museu como um centro de práticas culturais contemporâneas, a partir da introdução das tecnologias comunicacionais e informacionais. Essas práticas reconfiguram a experiência museal, pois, mais do que possibilitar um redimensionamento nas formas de percepção e visibilidade, viabilizam um processo mais interativo e participativo do visitante. Tal processo é potencializado pelo lúdico, o que, entre outros aspectos, provoca um “reencantamento” pela técnica.

Dentre as instituições que têm emergido no cenário museológico contemporâneo, destaca-se o Museu da Língua Portuguesa, cuja proposta abarca uma linguagem com forte apelo aos sentidos. Nele assume expressão o papel das exposições temporárias, pois, ao mesmo tempo em que dinamizam a temática do museu, essas exposições mobilizam uma grande quantidade de visitantes, denunciando uma associação entre museu e espetáculo. Na mesma medida, ao integrar em sua linguagem as mídias tecnológicas de reprodução, o Museu coloca em xeque aquele ideal centrado no objeto único, que ainda atua na construção de imaginários ligados ao acervo de muitos museus.

A multiplicação de imagens, textos e sons e seu fluxo evocam um caráter que conduz à lógica estabelecida pela indústria cultural e pela cultura de massa. Da mesma forma, a geração das imagens, dos textos e dos sons se dá a partir de diferentes suportes, que são específicos de suas respectivas mídias (ou são ligados às suas mídias específicas). Assim, a definição mais representativa desse Museu é aquela que toma o lugar da sua imagem mítica como um templo das musas, para uma imagem mais alinhada aos processos tecnológicos da comunicação: a de um templo das mídias.

Com base nos elementos acima apresentados, buscar-se-á delinear a proposta Museológica do Museu da Língua Portuguesa, destacando as transformações da própria sociedade contemporânea, sobretudo na ótica das tecnologias comunicacionais e informacionais. Isso implica refletirmos o museu não apenas pelo viés do passado ou do futuro, mas, cada vez mais, pelas perspectivas ancoradas no presente.


2 Traços de um “museu vivo”: o Museu da Língua Portuguesa

O Museu da Língua Portuguesa foi inaugurado em março de 2006, na cidade de São Paulo, tendo como temática central a exaltação à língua portuguesa, referenciada na afirmação da identidade cultural brasileira e do reconhecimento da memória dos diferentes povos, que têm nessa língua seu universo de expressão. O Museu está instalado no prédio da Estação da Luz, construído no final do século XIX. Seu projeto representa um exemplo das ações memorialísticas que têm se multiplicado no mundo contemporâneo, com as quais se busca a revitalização e reapropriação do patrimônio arquitetônico por parte da população, em uma típica reação ao cenário globalizante em que vivemos.

Somando a idéia de um “museu vivo”, o Museu da Língua Portuguesa está embasado em uma linguagem dinâmica, em que se tramam a arte, o design, a tecnologia e os processos interativos (“atitude pró-ativa”). A combinação de imagens, de textos e de sons para a abordagem da língua portuguesa possibilita uma conexão entre a palavra escrita e a palavra falada, alusiva a uma vivência cotidiana que se dá para além do museu, em uma evocação bakhtiniana da língua como exercício do social.

A tecnologia espraia-se pelo Museu, correlacionando várias linguagens, que incluem a multimídia e a hipermídia, e conjugando informações disponíveis em terminais de computadores com audiovisuais em distintas dimensões. As mídias se interpenetram, formando um grande espetáculo, que culmina em uma “praça da língua”: espaço onde a produção de poetas, de músicos e de escritores é transformada em narrativas visuais e sonoras, conclamando ao ápice de uma experiência que exorta ao sensível e às emoções. Junto a essa configuração multi e hipermidiática, nossos sentidos são também potencializados, enquanto experiência estética, por exposições temporárias, nas quais instalações alinhadas com a arte contemporânea exploram a biografia de um escritor representativo da língua portuguesa.

Embora não seja objeto de análise neste texto, cabe também ressaltar o desenvolvimento de atividades culturais ligadas às temáticas exploradas no Museu, como cursos, oficinas, palestras, entre outros, estendendo a sua proposta para um âmbito mais amplo, o que inclui dar voz ao visitante.

A idéia de tomar o Museu da Língua Portuguesa como referência para esta reflexão, tem como base o conjunto de proposições por ele apresentadas, que redimensionam algumas práticas culturais sob o ponto de vista das tecnologias da comunicação e da informação. Parte-se, dessa forma, da seguinte indagação: de que maneira a análise deste Museu possibilita uma abordagem da cultura contemporânea?


3 Templo das mídias: comunicação e cultura contemporânea no museu

Pensar a cultura pelo viés do Museu nos instiga a analisar algumas mudanças por que passam essas instituições e que refletem processos culturais que hoje estamos vivenciando. De acordo com Thompson (1995, p.181), a análise cultural reside no:


[...] estudo das formas simbólicas – isto é, ações, objetos e expressões significativas de vários tipos – em relação a contextos e processos historicamente específicos e socialmente estruturados dentro dos quais, e por meio dos quais, essas formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas [...]

As mudanças nos museus têm sido de distintas naturezas. Isso inclui alguns projetos arquitetônicos – especialmente quando vistos como suplantadores do próprio acervo do museu –, o recente fenômeno da multiplicação dessas instituições, as romarias em torno das exposições temporárias e, entre outros aspectos, a introdução das tecnologias digitais, que repercutem na própria concepção de museu.

As referidas transformações também colocam em evidência aquilo que sempre impulsionou a formação de seus acervos, que são as coleções. A implementação das exposições temporárias e o conseqüente distanciamento do foco nas coleções permanentes, inserem o Museu em uma dinâmica típica da cultura contemporânea. Canclini (2003, p.306), quando faz referência às exposições temporárias, enfatiza as mudanças na atitude e na percepção do espectador: “Para ser um bom espectador, é necessário abandonar-se ao ritmo, gozar as visões efêmeras” e, continua o autor, tem-se uma “percepção fugaz do real”.

Compartilhando do mesmo ponto de vista, Gagliardi (2007) [1] observa que “as coleções e os patrimônios se vêem submetidos à dinâmica do entretenimento, da publicidade, do ócio e do espetáculo”. A dinâmica apontada pelo autor relaciona-se àquilo que Debord (1997) caracteriza como uma sociedade do espetáculo. Nela o espetáculo toma todos os espaços da vida social, incluindo a cultura, o lazer, o tempo e a comunicação. As imagens também teriam um papel preponderante nesse contexto: assim como o real é transformado em imagens, as imagens transformam-se no real. Em conseqüência, as imagens convertem-se em ferramentas de mediação entre os homens.

O papel preponderante das imagens na sociedade contemporânea e a sua relação com os processos sociais que vivenciamos são indicados por muitos autores. Entre as visões mais significativas, podemos destacar Jamenson (1994), quando relaciona a superabundância de imagens a uma lógica consumista, característica do capitalismo tardio, e ao predomínio de uma estetização do cotidiano, e Baudrillard (1991), ao profetizar a substituição do real pelo simulacro, atribuindo à mídia, por meio da produção desenfreada de signos (imagens), o papel central na suplantação do real pelo simulacro, uma vez que o real produzido teria a pretensão de ser mais real que o próprio real (hiper-real). Por fim, pode ser apontado também o sociólogo Maffesoli (2003, p.47), que vê a imagem como uma aliada da informação e da comunicação para o vínculo social. Ele sustenta que na modernidade vivenciamos o desencanto do mundo como conseqüência do desenvolvimento tecnológico, ao mesmo tempo em que vigorava uma iconoclastia,influenciada pela herança da tradição judaico-cristã. Em contrapartida, na pós-modernidade haveria um “reencantamento do mundo”, favorecido pelas tecnologias digitais, motivo pelo qual se poderia falar do “(re)nascimento)” de um “mundo imaginal”, isto é, de uma “[...] maneira de ser e de pensar perpassadas pela imagem, pelo imaginário, pelo simbólico, pelo imaterial”.

Ao direcionarmos o foco para as imagens no Museu da Língua Portuguesa, vemos emergir uma combinação entre narrativas visuais, orais e textuais, todas atuando na construção de um imaginário motivado pela língua portuguesa. Representações relacionadas a identidades culturais, nacionais e de diferentes localidades evocam noções de pertencimento. Isso se acentua quando nos percebemos num mundo paulatinamente ditado pelos parâmetros da globalização e quando constituímos nossas identidades com base naquilo que Hall (2002) define como “identidades plurais” e “fragmentadas”, que caracterizam o mundo pós-moderno. Nas referidas narrativas podem ser identificadas vozes de ícones-estrelas da televisão, do cinema, bem como de intelectuais e poetas que, na sua maioria, já estão incorporadas ao imaginário coletivo pelo viés da comunicação massiva, especialmente da televisão.

Do mesmo modo, esse conjunto de narrativas é aquilo que constitui o acervo do Museu: imagens, textos e sons, em sua maioria virtualizados, que migram entre diferentes suportes midiáticos. Nesta medida, a análise desse acervo também requer a revisão das noções de documento e de autenticidade, os quais são conceitos-base museológicos que ainda pontuam um imaginário ligado ao acervo de muitos museus, associado à idéia do objeto único. Conforme Machado (1997, p.249), “[...] a imagem eletrônica é a que menos manifesta vocação para o documento [...] impondo-se, em contrapartida, como intervenção gráfica, conceitual ou, se quiserem,’escritural’”.

O caráter multiplicador inerente a esse acervo nos conduz à tese de Benjamin (1985). Consoante afirma, embora a disseminação da obra de arte por meio de imagens reproduzidas tecnicamente acarrete a sua fruição massiva, há, em seu prejuízo, uma ‘perda da aura’. Entretanto, se levarmos em conta o papel que as imagens adquiriram no mundo contemporâneo, especialmente enquanto mediadoras na construção de imaginários, como é o caso do Museu da Língua Portuguesa, poderemos nos indagar se não haveria uma certa restituição da aura perdida, de que falou Benjamin.

Outro ponto fundamental para se pensar as transformações por que têm passado os museus nas últimas décadas é estabelecido pela relação entre mídia e cultura. Discutindo essa relação, o filósofo Andreas Huyssens (1996), ao salientar a recente proliferação dessas instituições e das práticas memorialísticas, sublinha que o museu se tornou o paradigma-chave das atividades culturais contemporâneas, ao ser exaltado como um local da cultura de massa, expressa através da mise-en-scène e do espetáculo.

O filósofo atribui o fenômeno generalizado da “musealização”, a uma necessidade de ancoragem temporal na sociedade contemporânea. Essa necessidade decorre de uma mudança na relação que se dá entre o passado, o presente e o futuro hoje. De um lado, haveria uma produção de amnésia generalizada induzida pela mídia e pelos sistemas high-tech da informação. E, de outro, estaríamos vivenciando um boom de memória, baseado no enfraquecimento da história e da consciência política, ligados aos diferentes discursos de lamentação em torno do “fim de tudo”. O autor argumenta ainda que:


[...] há base para se supor que a cultura capitalista, com seu ritmo continuamente frenético, sua política televisiva de rápido esquecimento, e sua dissolução do espaço público em canais cada vez mais numerosos de entretenimento instantâneo, é inerentemente amnésica (HUYSSENS, 1996, p.17).

E é com base nessas considerações que o autor propõe pensar a memória e a amnésia simultaneamente, sem qualquer oposição entre ambas. Ademais dessas idéias, ao abordar o vínculo entre cultura e espetáculo, o autor destaca ser relevante a conivência do público para a sua manutenção: “O espectador, cada vez mais, parece estar em busca de experiências enfáticas, iluminações instantâneas, megaeventos e espetáculos de grande sucesso, ao invés da apropriação meticulosa do conhecimento cultural” (HUYSSENS, 1996, p. 224).

No mesmo sentido, ao analisar o museu pelo viés da cultura de massa, o autor retoma alguns fundamentos da crítica da Escola de Frankfurt, cuja teoria pontificava que “[...] o entretenimento popular responde em realidade a uma necessidade criada artificialmente pela indústria cultural, manipulada e, por conseguinte, depravada por ela” (HORKHEIMER, 1974, p.134, apud RÜDIGER , 2002, p.9).

Na concepção dos frankfurtianos, disso resulta que a indústria cultural, pelo seu poder de manipulação, bloqueia o exercício da autonomia e da independência nos indivíduos, bem como a sua capacidade de decisão e julgamento ( ADORNO , 1999). Entretanto, talvez não seja o caso de nos determos nessa crítica, e sim ampliarmos as possibilidades de apreensão das transformações que repercutem cada vez mais em todas as esferas da sociedade contemporânea. Essas transformações podem ser visualizadas seja na nossa vida cotidiana, seja nas instituições que colocam em constante evidência as mudanças culturais que estamos vivenciando, das quais podemos sublinhar os museus.


4 A Mediação tecnológica e a reconfiguração da experiência museal

Há pouco mais de uma década, Arlindo Machado (1997, p.17). indagava como seria um museu em que todo o seu acervo fosse digitalizado e atualizável: “ Ele não teria mais nenhum “objeto” para mostrar: toda a informação disponível estaria depositada sob a forma “imaterial” em suportes opacos, tais como disquetes, fitas eletromagnéticas, hologramas, microfichas, etc.”. Hoje é possível dizer que a idéia vislumbrada pelo autor vai aos poucos se naturalizando em nossa sociedade, à medida que as tecnologias digitais passam a ocupar os mais distintos espaços das esferas pública e privada.

Assistimos a uma disseminação dos museus virtuais e, ao mesmo tempo, a maioria dos museus, desde os mais tradicionais, disponibiliza os seus conteúdos temáticos na Internet. Assim faz o Museu da Língua Portuguesa, que criou um portal [2] com os conteúdos apresentados dentro no seu espaço físico. Isso demonstra o caráter de desterritorialização (LÉVY , 1996) próprio da natureza do virtual que se tem vinculado aos museus, provocando uma revisão do seu conceito.

A tecnologia digital modifica a experiência museal, quer por potencializar os processos interativos[3] , quer por gerar novas possibilidades de percepção e de visibilidade. Nesse sentido, diante de uma postura passiva e contemplativa do espectador, convencionalmente reivindicada em muitos museus, ocorre uma mudança de atitude. Há uma transgressão àquela sacralidade normativa, principalmente na grande parte dos museus que se orienta pelos moldes de tradição moderna. Nesse quadro, considerando a emergência das tecnologias digitais e o quanto elas redimensionam a experiência museal, é útil indagar o que está na base dos processos interativos e das novas formas de percepção e visibilidade.

Sevcenko (2001) faz um breve recorrido do desenvolvimento tecnológico e lembra que estamos experimentando um processo de alteração da percepção e da sensibilidade que, embora não seja novo, é central para entendermos as transformações que vêm ocorrendo desde o final do século XIX:


[...] a aceleração dos ritmos do cotidiano, em consonância com a invasão dos implementos tecnológicos, e a ampliação do papel da visão como fonte de orientação e interpretação rápida dos fluxos e das criaturas, humanas e mecânicas, pululando ao redor – irão provocar uma profunda mudança na sensibilidade e nas formas de percepção sensorial das populações metropolitanas. A supervalorização do olhar, logo acentuada e intensificada pela difusão das técnicas publicitárias, incidiria, sobretudo, no refinamento da sua capacidade de captar o movimento, em vez de se concentrar, como era o hábito, sobre objetos e contextos estáticos. [...] o grande ganho adaptativo, em termos sensoriais e culturais, consiste exatamente em estabelecer nexos imediatos com os fluxos dinâmicos (SEVCENKO, 2001, p. 64-65).

O processo envolvido na digitalização das imagens também deve ser considerado como responsável pelas mudanças nas formas de percepção e visibilidade. Machado (1997, p.240), quando se refere a isso, aponta a necessidade de se considerar o surgimento de uma “nova gramática dos meios audiovisuais”.

Na mesma linha Martin-Barbero, ao analisar a mediação tecnológica pelos processos digitais, enfatiza a sua repercussão na aquisição do conhecimento, ao provocar o rompimento de algumas fronteiras que se produziram ao longo da formação desse conhecimento:


Radicalizando a experiência de desenraizamento produzida pela modernidade, a tecnologia deslocaliza os saberes, modificando tanto o estatuto cognitivo, quanto o institucional das condições do saber e das figuras da razão [...], o que está conduzindo a um forte apagamento de fronteiras entre razão e imaginação, saber e informação, natureza e artifício, arte e ciência, saber experiente e experiência profana (MARTIN-BARBERO , 2006, p.54) .

Ao se aprofundar o que está envolvido nessas mudanças, cabe lembrar que a visualidade eletrônica, ao se tornar mais onipresente no cotidiano, afeta nossos modos de apreensão do conhecimento, resgatando dimensões que de há muito se achavam desencontradas, como salienta o autor:


[...] desde a invenção da escrita e do discurso lógico, isto é, a do mundo dos sons e das imagens relegado ao âmbito das emoções e das expressões. Ao trabalhar interativamente com sons, imagens e textos escritos, o hipertexto (G. Landow, R. Laufer) hibridiza a densidade simbólica com a abstração numérica, fazendo as duas partes do cérebro, até agora “opostas”, reencontrarem-se (MARTIN-BARBERO, 2006, p.74).

Quanto às experiências com a utilização de processos interativos que vêm sendo incorporadas pelos museus, além de reiterarem um potencial lúdico que está na base desses processos, podem estar gerando variadas formas de linguagens. No entanto, como ressalva o autor, quando relacionada aos processos tecnológicos, a interatividade não se restringe à autonomia dada ao receptor. Mais do que isso, ela estabelece uma relação a partir da própria linguagem hipermídia, a qual, segundo ele, consiste em uma representação mais adequada dos processos da consciência e da imaginação, ou seja, daquilo que mobiliza a noção mesma de criação, algo que é distinto dos “códigos seqüenciais restritivos das escrituras lineares”. (MARTIN-BARBERO, 2006, p.74). E, com a interatividade, de acordo com Santaella (2007), ocorre ainda um deslocamento dos objetos para os processos, o que é determinante para se compreender parte do que norteia o museu em análise.

O conjunto das questões que foram até aqui abordadas leva a concluir que o Museu da Língua Portuguesa pode ser visto como um grande texto que se constrói a partir de memórias e esquecimentos, e, principalmente, das práticas culturais ali refletidas. Por isso, tentar apreender as mudanças que estão envolvidas nessa textualidade é tentar apreender as mudanças na experiência do próprio sujeito da sociedade contemporânea.


5 Considerações finais

A centralidade da comunicação no mundo e a sua expansão em virtude do emprego das tecnologias digitais têm afetado as mais diferentes áreas, incluindo aquela que é uma das instituições referenciais da cultura e da memória ocidentais: o museu. Dentre tais instituições, desponta o Museu da Língua Portuguesa. A sua análise propicia a reflexão em torno das mudanças por que têm passado esses espaços de memória. A sua linguagem museográfica, em que há a predominância das mídias, possibilita uma revisão da imagem mítica do museu como um templo das musas, que, na perspectiva dos pressupostos da cultura contemporânea, pode ser considerado o templo das mídias.

As tecnologias da comunicação têm redimensionado várias instâncias museuais. No caso do Museu da Língua Portuguesa, essas mudanças se manifestam especialmente no seu acervo, que é predominantemente composto por sons, textos e imagens. Tal acervo estabelece novas formas de percepção e visibilidade e coloca em cena um conjunto de narrativas orais, textuais e visuais, que são combinadas para a encenação de um grande espetáculo, com o apelo ao sensível e às emoções. Da mesma forma, os processos interativos proporcionam uma mudança de atitude do visitante que, contrariamente a uma passividade clássica, tem uma experiência mais participativa, fundada no lúdico e permeada por imagens, dando origem a um reencantamento tecnológico.

Ao mesmo tempo em que o Museu da Língua Portuguesa integra algumas práticas culturais de nosso tempo, especialmente pela incorporação de uma dinâmica marcada por imagens e sua relação com os meios massivos, também somos remetidos as noções da cultura de massa e da indústria cultural. A ênfase nas imagens que identificam a linguagem do Museu e a instauração de exposições temporárias num movimento que mobiliza um grande número de visitantes caracteriza-se como uma manifestação da sociedade do espetáculo.

O conjunto de questões que delineia esse “museu vivo” convoca a uma revisão da própria noção de museu associada exclusivamente a um lugar onde se rememora o passado e se vislumbra o futuro. O presente vai se insinuando por meio de uma aproximação à vivência cotidiana da sociedade contemporânea, num cenário permeado pelas mídias, pelas imagens e por um imaginário tecnológico, que, em seu conjunto, remetem ao contexto próprio da cultura contemporânea.


A “alive museum”: spectacle and “reenchantment” by the technique
ABSTRACT
Search to problematize some changes that have passed the museums in the last few decades, from an analysis of the Museum of the Portuguese Language and considering as back-cloth the culture contemporary. This way, the museum from a dynamics that privileges the mass images and the temporary expositions, is aligned with some perspectives as the spectacle and the mass culture. In the same way, when incorporate the multimediatic images and the digital technologies, the museum change the museal experience, making possible by the technological mediation, new forms of perception, visibilities and a participative appropriation of the knowledge. The museum, therefore, is seen as a space of ambiguities and contradictions, reflecting the traces of the proper culture contemporary.
KEYWORDS: Museum. Communication. Technology. Multimedia.


Un “museo vivo”: espectáculo y reencantamiento por la técnica
RESUMEN
Busca problematizar algunos cambios por los cuales han pasado los museos en las últimas décadas, desde un análisis del Museo de la Lengua Portuguésa y considerando como paño de fondo la cultura contemporánea. En esta dirección, el museo, desde una dinámica que privilegia las imágenes de los medios de comunicación de masas y las exposiciones temporarias, se alinea con algunas perspetivas como el espectáculo y la cultura de la masas. De la misma forma, al incorporar las tecnologías multimidiáticas y digitales, el museo redimensiona la própria experiencia museal, haciendo posible, por la mediación tecnológica, las nuevas formas de percepción, visibilidades y una apropiación más participativa del conocimiento. El museo, por lo tanto, se ve como un espacio de ambigüedades y de contradicciones, reflejando los rasgos de la cultura contemporánea.
PALABRAS CLAVE: Museo. Comunicación. Tecnología. Multimidia.


Notas

[1]Documento eletrônico.

[2] Disponível em: www.museudalinguaportuguesa.org.br

[3] Cabe ressaltar que não foi necessariamente a tecnologia digital que instaurou os processos interativos dentro do museu, já que essa experiência foi inaugurada desde os museus de ciências, de artes, entre outros; neste sentido é que se considera aqui a sua potencialização


Referências

[<] ADORNO, T. W. Conceito de Iluminismo. In: TEXTOS escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os Pensadores)

[<] BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.

[<] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. v.1

[<] CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2003.

[<] DEBORD, Guy. A sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

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[<] HUYSSENS, Andreas. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.

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[<] SEVCENKO, Nicolau. A Corrida para o século XXI: no loop da montanha-russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

[<] THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

Carla Rocha
Mestranda em Comunicação e Informação - FABICO/UFRGS. Especialista em Museologia/ Patrimônio Cultural IA/UFRGS
E-mail: carlapvrocha@hotmail.com
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