UM ILUSTRE VIAJANTE PORTUGUÊS NO SÉCULO XV:
PERSPECTIVAS INICIAIS ACERCA DAS VIAGENS DO INFANTE D. PEDRO.

Douglas Mota Xavier de Lima 1

 

Resumo: O presente artigo consiste em analisar as viagens do Infante D. Pedro de Portugal (1425-1428), relacionando-as com o contexto político-social do reino. Fez-se a escolha pela estruturação da análise em dois tópicos: o primeiro relacionado com a narrativa imaginária das viagens do Infante; e o segundo tratando da relação das viagens de D. Pedro com o reino português em inícios da Dinastia de Avis. Tomou-se como base o Libro del Infante Don Pedro de Portugal de Gómez de Santistéban, no qual o Infante D. Pedro é apresentado como viajante privilegiado por ter alcançado o reino de Preste João e o Paraíso Terrestre. Conclui-se que as viagens de D. Pedro foram essenciais para o desenvolvimento das relações diplomáticas da nova dinastia e para sua formação enquanto Infante e futuro regente do reino.

Palavras-chave:Idade Média; Portugal; Infante D. Pedro; Viagens Medievais; Dinastia de Avis.

Introdução
A Idade Média foi percebida, durante muitos anos, como uma época de estagnação, de homens presos à terra, um mundo fechado. Alcunha que fortaleceu e formulou o mito da “Idade das Trevas”, desqualificando tal período histórico. Dentre as consequências desse mito podemos destacar conclusões precipitadas que percebem a época medieval como um período da ausência de viagens e de deslocamentos. Contrariamente a esta tese, diversos estudiosos do medievo têm comprovado que a Idade Média foi um tempo de superação, de diversidade e de intenso deslocamento, em que se viajou, sim, e não pouco, por todos os meios e direções, por motivos dos mais variados, por homens dos mais diversos segmentos sociais.
O deslocamento medieval é principalmente uma experiência de desenraizamento, mesmo que temporário. Viajar é perigoso, e a ameaça de marginalização constante. Dificuldades atmosféricas, caminhos precários, bosques extensos e impenetráveis, cadeias montanhosas, rios caudalosos, bandidos, etc. Muitas dificuldades. Apesar delas, viaja-se muito na Idade Média – a negócios, em peregrinações, para conhecer, para estudar, comemorar, por motivos políticos, para guerrear ou fazer as pazes.
Nessa Europa de viagens intensas desenvolve-se uma literatura que visava livrar o viajante ou peregrino dos infortúnios possíveis no caminho: guias, relatos, tratados para orientá-los em terras estranhas. A partir do século XIII, juntamente com os desenvolvimentos técnicos e materiais, os textos narrativos de viagens multiplicam-se, ampliando o conhecimento espacial e do tempo dos percursos. Como exemplo destas narrativas temos o Libro del Infante Don Pedro de Portugal, uma narrativa de viagem imaginária produzida em finais da Idade Média, que tem como protagonista o infante D. Pedro.
D. Pedro, o Infante das “sete partidas”, é o segundo filho de D. João I e D. Filipa de Lencaster. Homem das letras, das viagens, um escritor e tradutor, embaixador e conselheiro. Participou do processo da conquista de Ceuta. Esteve nas principais cortes da Europa. Lutou ao lado do Imperador contra hereges hussitas e os Turcos. Teve importância acentuada na promoção da expansão portuguesa. Mas, mesmo com um currículo de peso e tão vasto, muitos ainda são os caminhos pouco explorados sobre a vida, a obra e os feitos deste Infante.
Limitar-me-ei a discutir duas questões neste trabalho: de que forma a narrativa da viagem apresenta o Infante português como um privilegiado viajante e como a viagem do Infante D. Pedro relaciona-se com o contexto político da Dinastia de Avis.

O Libro e o Infante
A história das análises historiográficas desenvolvidas sobre a fonte começa bem longe das terras lusitanas. Inicia-se na América e deve importantes páginas a dois historiadores norte-americanos, Francis M. Rogers e Harvey Sharrer. O primeiro lançou-se em pesquisas sobre a expedição de D. Pedro e, entre o final dos anos 50 e o início da década de 60, publicou, em Portugal e nos Estados Unidos, um conjunto de trabalhos centrados no Libro Del Infante don Pedro de Portugal. Francis Rogers elaborou uma listagem contendo as 113 publicações da fonte consideradas genuínas. Entre essas publicações, o autor considera quatro impressões como sendo as mais antigas.
O mais antigo exemplar conhecido está guardado na Biblioteca Pública de Cleveland (Ohio/EUA), impresso na oficina sevilhana de Cromberger por volta de 1515, no qual faltam dois fólios iniciais. Temos, ainda, duas impressões de Juan de Junta, completadas em Salamanca (1547) e em Burgos (1554), e conservadas, respectivamente, na Biblioteca Nacional de Paris e na Biblioteca do Estado da Baviera. Por fim, o exemplar de 1563, publicado por Felipe de Junta, também em Burgos, e que se encontra na Biblioteca Nacional de Madrid. A mais remota edição portuguesa de existência comprovada data de 1602, e foi impressa nas oficinas de Antonio Álvares, numa tradução do castelhano atribuível a Duarte Nunes de Leão. A partir de tais exemplares o autor datou a produção da fonte no século XVI (ROGERS, 1962, p. I-II, IX).
Contudo, outro historiador norte-americano mudou as perspectivas de datação dessa fonte: seu nome é Harvey Sharrer. Em um artigo publicado na Califórnia, o autor mostrou que em um texto compilado entre 1471 e 1476 (Las bienandanzas e fortunas), havia uma longa interpolação da obra de Santisteban - descoberta que invalidava a construção das hipóteses formuladas por Rogers e inseria a fonte no século XV, abrindo novas pistas de pesquisa (SHARRER, 1976-1977, p. 85-98).
Mesmo com a retomada – ainda que “tímida” – dos estudos sobre o infante D. Pedro, suas viagens permaneceram com pouca receptividade na historiografia e nos estudos literários (CORREIA, 2000, p. 17). Atualmente, coube à Margarida Correia propor um recuo ainda maior na datação da fonte. Partindo dos indícios levantados por Harvey Sharrer, a autora articulou o contexto político ibérico com as relações estabelecidas entre as linhagens em busca de legitimidade, chegando à figura do descendente de D. Pedro, seu filho, o Condestável D. Pedro, e às consequências da batalha de Alfarrobeira. Para a autora, é provável que a obra tenha sido composta por volta de 1450 (CORREIA, 2000, p. 17).
Em o Libro del Infante Don Pedro o português é levado a percorrer a Cristandade em busca do reino mítico de Preste João, atravessando Jerusalém, passando pelo Monte Sinai, por territórios muçulmanos e, inclusive, o reino das Amazonas, para alcançar seus objetivos. O autor apresenta D. Pedro como “muy desseoso de ver [el] mundo” (SANTISTEBAN, 1962, p. 03), e por tal desejo obstinado foi capaz de enfrentar diversos perigos e até prisões.
Após encontrar o Preste João, D. Pedro estende sua viagem em direção ao Paraíso Terrestre. Segundo Adriana Zierer, por não ser um santo, D. Pedro não pôde entrar no Paraíso, o que não o impediu de ver os quatro rios sagrados descritos no Gênesis (ZIERER, 2004, p. 126). Mas, dentre os apontamentos desta autora, o mais pertinente para este trabalho, é o fato de D. Pedro chegar ao reino de Preste João e, principalmente, ao Paraíso Terrestre, o que faz dele um viajante destacado e um Príncipe “eleito” (ZIERER, 2004, p. 125).
Pelas mais recentes datações da fonte, não é possível inferir que a circulação dos relatos míticos da viagem do Infante tenha influenciado, em alguma medida, sua regência. Contudo, nos é lícito perceber que tal relato, desenvolvido após a morte de D. Pedro, alcançava dois objetivos importantes: o primeiro, em relação ao Infante, sua memória, e, consequentemente, sua família - com maior destaque para seu filho, o Condestável D. Pedro - popularizando e divulgando suas aventuras, seus feitos e sua aliança com o Preste João; e o segundo em relação à própria Dinastia de Avis, pois, ao encontrar o Preste João, D. Pedro engrandece seu pai, D. João I, e associa a Dinastia à ideia de reino perfeito (MORENO, 1987, p. 103-118).

O Infante e o Reino
É fato que D. Pedro nunca esteve com o Preste João, que nunca chegou ao Paraíso Terrestre e, nem mesmo, à Terra Santa. Mas, se o relato de suas viagens nos oferece uma imagem mítica de um Infante viajante e de suas motivações, devemos buscar nas relações sociais estabelecidas entre o mesmo e o reino português os objetivos e consequências de sua viagem (1425-1428) pela Cristandade.
D. Pedro partiu de Portugal em 1425, visitou a Inglaterra, Flandres, o Sacro Império, Veneza, Florença, Roma, Aragão e Castela, retornando em setembro de 1428. As escalas do percurso de D. Pedro revelam um objetivo claro de visitar as principais cidades da Europa. O contexto de suas viagens é o de uma monarquia em busca de legitimidade interna e externa, marcada pela instabilidade política e pela oposição de parte da nobreza à nova dinastia. Quais teriam sido as motivações de sua partida, visto que viajar nesse período é, antes de tudo, uma decisão muito arriscada?
Várias são as hipóteses. Alguns autores colocam tais motivações no despeito do Infante para com seu pai, o rei D. João I, pela preferência desse ao infante D. Henrique. Tal proposta ecoa e ganha força nas abordagens historiográficas que apontam uma oposição entre os infantes D. Pedro e D. Henrique. Paulo Accorsi Jr. apresenta D. Pedro como um Infante insatisfeito e ambicioso que, ao lado do Infante D. João, formou um “bloco” de oposição à continuação do projeto expansionista para o Norte da África – propondo, com isso, que as desavenças típicas da nobreza transfiram-se para dentro da Casa Real (ACCORSI JUNIOR, 1997, p. 55-91 e p.148-184).
Existem também os argumentos “positivos” sobre as motivações do Infante, isto é, que não ressaltam características de oposição entre o mesmo e a família real. Margarida Correia apresenta um recorrente argumento sobre as viagens: o desejo de saber. Assim, a viagem de D. Pedro teria como objetivo adquirir, através do convívio com outras cortes, o conhecimento necessário para analisar a conjuntura do reino (CORREIA, 2000, p. 41-42). Encontramos ainda outros argumentos sobre os motivos da partida: assumir como Marquês de Treviso; articular o casamento de sua irmã, D. Isabel com Filipe, o Bom, de Borgonha, entre outras.
Luís de Albuquerque rejeita tais propostas, argumentando que “todas as determinantes apontadas para a viagem de D. Pedro são fantasiosas, e algumas delas entre si contraditórias” e afirma ainda que, certamente, D. Pedro não foi presa fácil de convites ocasionais, nem tão pouco atuou com procedimentos inconsequentes de filhos segundos (ALBUQUERQUE, 1987, p. 10). Assim, se D. Pedro não estava em busca de ascensão social no exterior, se a oposição e a disputa entre ele o infante D. Henrique é mais uma construção historiográfica do que uma realidade histórica (MORENO, 1998, p.247-255), como encarar as motivações e a viagem do infante D. Pedro?
Acredito ser possível encará-las dentro do contexto de uma dinastia em busca de afirmação e diversificação de seus apoios. Os “novos tempos” de Avis serão marcados pela rearticulação da relação entre o Rei e a nobreza (ACCORSI JUNIOR, 1997, p. 55-59). Nas décadas posteriores à Revolução, verifica-se uma intensa busca da realeza por destacar-se, como instituição, do conjunto da nobreza. Numa conjuntura delicada e de rearticulação das relações sociais, o nexo que pode ser percebido entre os membros da Casa Real é, sem dúvida, de coesão, e não de oposição. Coesão esta que se tornou um elemento decisivo na distinção entre a nobreza e a Família Real. D. João I, desde inícios do século XV, fará de seus filhos D. Pedro e D. Henrique os principais nobres do reino, através da construção de seus ducados.
Além da legitimidade interna, buscou-se legitimar a nova dinastia a partir de relações externas com os demais reinos da Europa e o papado. Para isso, utilizar-se-á de arautos, de embaixadores e dos infantes. Assim, a viagem de D. Pedro pode ser analisada pela busca de fortalecimento externo da monarquia portuguesa. Virgínia Rau aponta que tanto D. João I como D. Duarte, e, em particular, o Infante D. Pedro, forjaram, por tratados de aliança, casamentos e viagens, as ligações diplomáticas necessárias para aliviar Portugal do binômio político Castela-Aragão (RAU, 1986, p. 66). E, sobre as viagens de D. Pedro, conclui de forma categórica: “elas constituíram um dos elos fundamentais do alargamento das relações internacionais de Portugal” (RAU, 1986, p. 67).
As viagens efetuadas pelo Infante D. Pedro faziam com que a Dinastia de Avis pudesse ter a seu dispor um ilustre embaixador nas cortes europeias no momento em que o reino dava prosseguimento à expansão e à luta contra os mouros da África. Eis um importante fator que fazia valer a pena correr os riscos de uma longa viagem pela Cristandade. O capital social acumulado durante a viagem, sem sombra de dúvida, contribuiu para sua formação pessoal, para sua percepção do mundo e para a imagem externa do Reino.

Conclusão
É possível concluir desta breve exposição que tanto a narrativa imaginária das viagens do Infante D. Pedro, quanto sua viagem propriamente dita, podem e devem ser analisadas no contexto político do reino de Portugal em inícios do século XV. Busquei perceber a Corte de Avis em seu aspecto de coesão interna em busca de distinção social e reestruturação das relações sociais da sociedade portuguesa. Dois temas permearam a análise: as viagens medievais e o Infante D. Pedro. Ambos nos possibilitam um gama enorme de possibilidades de análise. Quiçá este trabalho possa suscitar outras tantas nos leitores.

 

An illustrious Portuguese traveler in the XV century: Initial perspectives about the travels of Infante D. Pedro.

Abstract:This article intends to analyze the travels of the Infante D. Pedro of Portugal (1425-1428), relating them to the kingdom’s political and the social context. The analysis is based in two main points:  the first is related to the imaginary narrative of the Infante’s travels; the second relates D. Pedro’s travels to the Portuguese kingdom during the first years of Avis Dynasty. The source chosen was the Libro del Infante Don Pedro de Portugal, by Goméz de Satistebán, in which Infante D. Pedro is presented as a privileged voyager since he reaches Preste João’s kingdom and the Terrestrial Paradise. The conclusion of the main article is that his travels were essential for the new dynasty diplomatic connections’s progress, and for his formation as Infante and kingdom’s future regent..

Keywords:Middle Age. Portugal. Infante D. Pedro. Medieval Travels. Avis Dinasty.

 

1 Graduando em História pela UFF. Email: dougmotahistoria@yahoo.com.br.

Referências:

ACCORSI JUNIOR, P. Do Azambujeiro bravo à mansa Oliveira Portuguesa: a prosa civilizadora da Corte do rei D. Duarte (1412-1438). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal Fluminense. Niterói. 1997.

ALBUQUERQUE, L. de. Navegadores, viajantes e aventureiros portugueses. Sécs. XV e XVI. Lisboa: Círculo de Leitores, 1987, vol.1.

CORREIA, M. S. As Viagens do Infante D. Pedro. Lisboa: Gradiva, 2000.

MORENO, H. C. B. “Os Infantes D. Pedro e D. Henrique na política portuguesa”. In: FRÓES, V. L. (org). Viagens e viajantes – Almocreves, Bandeirantes, Tropeiros e Navegantes. Niterói: Scriptorium, Laboratório de Estudos Medievais e Ibéricos/UFF, IHGB, UNIOESTE, ANPUH, 1998, p.247-255.

______. “Contestação e oposição da nobreza portuguesa ao poder político nos finais da Idade Média”. Revista da Faculdade de Letras. História, Porto, 2ª série, 4, pp. 103-118, 1987.

RAU, Virgínia. Estudos de história medieval. Lisboa: Presença, 1986.

ROGERS, F. M. “Prefácio”. In: SANTISTEBAN, G. de. Libro del Infante Don Pedro de Portugal. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1962, p. I-II.

SANTISTEBAN, G. de. Libro del Infante Don Pedro de Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1962.

SHARRER, H. L. “Evidence of a fifteenth-century Libro Del Infante Don Pedro de Portugal and its relationship to the Alexander cycle”. Journal of Hispanic Philology, vol. I, Santa Bárbara, Universidade da Califórnia, p.85-98, 1976-1977.

ZIERER, A. Paraíso, escatologia e messianismo em Portugal à época de D. João I. Tese de Doutorado. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. 2004.