ESTADOS, FRONTEIRA E DIREITOS DE PROPRIEDADE:
UM COMENTÁRIO SOBRE O ARTIGO
“CORREDORES DE COMÉRCIO E SALAS DE JUSTIÇA:
LEI, COERÇÃO E LEALDADE NAS FRONTEIRAS DO RIO DA PRATA”,
DE JOSEPH YOUNGER

Luís Augusto Farinatti 1

Em seu artigo “Corredores de comércio e salas de justiça: lei, coerção e lealdade nas fronteiras do Rio da Prata”, Joseph Younger (2008, p.291) explora“a relação entre variadas disputas legais e o processo maior de asseguramento da lealdade nacional e legitimidade soberana nas regiões fronteiriças entre o Brasil e o Uruguai.” O autor realiza uma análise perspicaz de um conjunto de demandas judiciais perpetradas em foros de um e outro lado dos limites entre o Império do Brasil e a República Oriental, envolvendo direitos de propriedade e transações que atravessavam os nascentes limites nacionais. Aquela zona de fronteira era uma região integrada social e economicamente, mas onde os Estados nascentes procuravam instalar e reiterar uma cisão jurídica e política. Younger mostra como os atores utilizavam estrategicamente os mecanismos institucionais oferecidos pelos Estados, desde a eleição dos foros onde iriam impetrar suas ações até o registro notarial e o apelo a instâncias consulares. Argumenta que essa situação também era favorável aos Estados, em sua busca de legitimação naqueles territórios, afinal “Estados poderiam fornecer aos proprietários de terras e comerciantes meios para projetar decisões locais através das fronteiras.” (YOUNGER, 2008, p.300).
Através de um trabalho empírico exemplar, o autor procede a análises criativas de um pequeno conjunto de processos judiciais. Younger verticaliza a análise desses documentos sem deixar de estar atento para outros tipos de fontes que forneçam elementos sobre atores ou sobre o contexto dos fatos narrados nos processos. Esses fatos são matéria de estudo e informam sobre a sociedade estudada. Porém, além disso, os próprios processos são problematizados como arenas de luta entre sujeitos que buscavam agir estrategicamente frente a outros e aos Estados. A análise das redes locais de poder em que estavam inseridos os atores envolvidos nas contendas judiciais encontra-se combinada com a formulação de problemas gerais e ambas as dimensões da análise são tratadas com o mesmo rigor.
O artigo funciona muito bem como uma primeira abordagem a um objeto complexo, que se presta a um programa de estudos de grande abrangência. Com uma argumentação bem tecida e hipóteses inteligentes, o autor consegue demonstrar a ligação existente entre temas diversos. São analisadas e postas em contato a instalação dos Estados Nacionais platinos em meados do século XIX; as relações de comércio que atravessavam a jovem fronteira entre o Brasil e Uruguai; o uso que diferentes agentes faziam das instâncias notariais e de justiça; e as formas de afirmar direitos de propriedade naquela fronteira.
Reconhecendo a grande relevância do trabalho, o que trago adiante, para o debate, não é nenhuma crítica ao eixo central do trabalho de Younger. O que passo a relatar a seguir são questões que surgem exatamente pela capacidade que o texto tem de gerar reflexões sobre ele, o que é mais um atestado de seus méritos. Vamos a elas.
Uma das premissas corretas do trabalho é a percepção de que o asseguramento da lealdade nacional e legitimidade soberana não se deu de imediato com a instalação dos Estados Nacionais, mas sim tratou-se de um processo, que se estendeu ao longo do século XIX. Contudo, aqui há um problema: o autor não situa os importantes debates historiográficos que têm cercado o estudo da construção do Estado tanto no Brasil como no Uruguai e na Argentina. No caso brasileiro, trata-se de um tema já clássico na historiografia que se ocupa do Oitocentos.
Uma dessas controvérsias presente nesse debate é justamente a participação das elites locais no processo de implementação do Estado nos confins do Brasil 2, em oposição a uma visão que percebe essa implementação como obra principalmente de agentes do centro, fossem eles funcionários do Estado 3 ou uma classe dominante de cafeicultores do Vale do Paraíba 4. Uma referência muito rápida ao trabalho de Richard Graham (1997) é tudo o que se pode encontrar, sugerindo que a posição de Younger parece estar alinhada com a daquele autor. Entretanto, os caminhos apontados por Younger servem para ir além, através da análise de casos específicos. Ali estão relatadas as formas como o Estado utilizou os novos cargos e instâncias institucionais para atrair frações das elites locais. E como estas fizeram uso estratégico desses cargos, legitimando o Estado, mas também dando contornos próprios à sua existência nos confins do país. Ao longo do trabalho, o autor consegue demonstrar empiricamente sua afirmação de que “[...] os vários Estados-Nação que emergiram na região não foram imaginados ou inventados pelas mentes de homens de elite, mas foram ativamente construídos através de uma miríade de conflitos legais, tanto em salas de justiça formais quanto informais através dos corredores de comércio transnacionais da bacia do Rio da Prata”. (YOUNGER, p.292).
Assim, o trabalho de Younger ajuda a pensar a questão de forma complexa, mas o fato de não incorporar os debates historiográficos faz com que sua contribuição perca a chance de ser ainda mais importante. Dada sua proposta de pesquisa, esse debate, que é um dos mais importantes e vivos da historiografia política brasileira, não poderia ter sido ignorado.
Um outro ponto importante no artigo são as formas de garantir e conferir legitimidade aos direitos de propriedade. O autor mostra como as instâncias judiciais e notariais eram empregadas para a garantia desses direitos em um mundo onde eles eram de difícil garantia e afirmação, situação que ganhava complexidade em razão da existência da fronteira política. Também aponta que os argumentos dos contendores buscavam sempre destacar a legalidade de seus atos e, ao mesmo tempo, empurrar os atos de seus oponentes para o terreno da coerção e da ilegalidade. A análise feita pelo autor é muito convincente. Há, contudo, alguns pontos que deixam o leitor a desejar um pouco mais.
Em primeiro lugar, o autor se propõe a escrever sobre direitos de propriedade em torno de redes comerciais transnacionais. No entanto, a maioria dos casos analisados por ele envolvem não exatamente redes comerciais transfronteiriças mas sim questões relacionadas a direitos de propriedade da terra e do gado e originadas em situações de guerra. Esse é um ponto subavaliado pelo autor. A guerra aparece no artigo como tendo uma influência geral sobre a garantia dos direitos de propriedade. Está dito que “a guerra quase constante havia obscurecido profundamente o limite entre o título legal e o confisco violento”. (YOUNGER, p.293). Aqui parece que sempre esses direitos foram assentados com base em um limite claro entre o confisco e o título. Porém, aquela sociedade de fronteira foi construída em um tempo em que a guerra podia conferir legitimidade a direitos de propriedade.
Para implementar a ocupação e rápida colonização da região, entre 1801 e 1825, o Império português facilitou a posse às terras recém conquistadas ou ainda em processo de conquista, através de uma doação rápida e pouco criteriosa de sesmarias. A doação de sesmarias estava calcada na lógica da mercê, da recompensa por serviços prestados ao monarca, da reciprocidade desigual, do dom e contra-dom, numa prática típica de Antigo Regime 5. O mesmo se pode dizer para a preia de gado alçado e para o saque de gado dos inimigos como butim de guerra (ver Gil e Hameister). Nessa lógica, a coerção, se associada a uma guerra feita a serviço do rei, não era sinônimo de ilegalidade.
Porém, havia a convivência dessa forma de legalizar direitos de propriedade com aquela advinda do contrato entre partes consideradas juridicamente livres e iguais. No caso específico da propriedade da terra, a quantidade de negócios envolvendo venda de terras nos extremos da fronteira, já nos inícios do período de ocupação luso-brasileira, era significativa. Esses direitos que eram negociados tinham uma efetivação arriscada e precária. Para que essa pretensão de direito fosse assegurada e mantida, ela precisava de outras formas, extra-legais, de garantir a propriedade, baseadas nas relações sociais. A enorme imprecisão dos limites entre as propriedades rurais exigia que o proprietário pudesse contar com agregados que reconhecem seus direitos nos confins das propriedades, e também com aliados entre os notáveis locais e entre as autoridades, que pudessem garantir pressão social a favor de seus direitos, caso esses fossem colocados em questão por outrem. Ao lado de tudo isso, o título, fosse ele judicial ou notarial, eram armas importantes na busca de assegurar direitos de propriedade e, provavelmente, sua importância tenha crescido ao longo do século XIX, especialmente com o processo de implementação da Lei de Terras de 1850 6.
Obviamente, as características das guerras de meados do século XIX na região não eram as mesmas daquelas presentes até fins da década de 1820. Pelo contrário, como venho buscando demonstrar desde trabalho anterior e também em pesquisa ainda em andamento, a perda da possibilidade de agir como mediador na redistribuição de recursos existentes nas áreas conquistadas foi uma das mais importantes mutações no papel dos comandantes militares locais ao longo da primeira metade do século XIX. (FARINATTI, 2007). Durante os conflitos que ocorreram entre 1835 e 1851, era muito mais difícil legalizar recursos econômicos apreendidos por meio de guerra, ao contrário do que ocorrera, por exemplo, na expansão que acompanhou a marcha dos exércitos luso-brasileiros rumo ao sul e oeste, em 1811 e 1816. Ações análogas às califórnias de fins da década de 1848, comentadas pelo autor, teriam causado muito menos embaraço se fossem realizadas apenas um quarto de século antes.
É possível que as dimensões do artigo analisado não pudessem contar com um tratamento diacrônico do fenômeno que ligava não apenas fronteira e redes comerciais, mas direitos de propriedade, Estados e guerra. Contudo, o fato de autor utilizar processos em que tais direitos são gerados em tempo de guerra autoriza o leitor a desejar um tratamento mais específico dessa situação.
De outra parte, o artigo analisado cumpre muito bem o papel de enlaçar história social e política, com o estudo das práticas jurídicas. No entanto, aqui novamente o leitor sente falta da referência a uma historiografia que vem tratando o tema de forma específica. Juízes de paz eleitos localmente, juízes de direito togados, nomeados pelo poder central e juízes substitutos são tratados da mesma forma pelo autor. Como se sabe, desde o clássico trabalho de Thomas Flory (1986), esses cargos guardavam muitas diferenças não apenas entre si, como também tiveram características variadas ao longo do século XIX no Brasil. É possível crer que essa variedade entre os operadores do direito em nível local tivesse uma influência não desprezível no desfecho das disputas judiciais analisadas pelo autor 7. Além disso, dentro do espaço platino, historiadores argentinos têm realizado uma profícua renovação no estudo da história social e política das práticas jurídicas 8. Um diálogo com essas obras, sem dúvida, enriqueceria a análise e ajudaria o autor a dar um tratamento mais específico às diferentes autoridades judiciais envolvidas nos processos analisados.
Por fim, é importante dizer que os comentários feitos aqui têm como objetivo estimular o debate e não contestam a validade do trabalho. Trata-se de um artigo que traz grande contribuição para o conhecimento do período e exerce papel inspirador para os historiadores que buscam investigar a construção social dos complexos processos políticos e econômicos que tiveram lugar no sul da América, ao longo do século XIX.

 

Comentário recebido em 08/06/2009. Autor convidado.

 

1 Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutor em História Social pela Universidade Federa do Rio de Janeiro (UFRJ).

2 Ainda que comportem variações, essas é, em geral, a posição de: GRAHAM, 1997; DOLHNIKOFF, 2005; MARTINS, 2007.

3 FAORO, 2000; CARVALHO, 2003.

4 MATTOS, 1987.

5 XAVIER; HESPANHA, 1998; HAMEISTER; GIL, 2007.

6 Graciela Garcia mostrou que as imprecisões entre as propriedades eram fonte perene de tensão e conflito social. As relações sociais desiguais seguiam sendo uma forma imprescindível de garantia dos direitos de propriedade da terra em meados do século XIX, em Alegrete. GARCIA, 2005.

7 Um trabalho posterior ao artigo analisado, mas que pode ser bastante elucidativo nessa questão é: SODRÉ, 2009.

8 GARAVAGLIA, 1999; FRADKIN, 2008.

 

Referências:

 

CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem – Teatro de Sombras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

DOLHNIKOFF. Miriam. O pacto imperial. Origens no federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005.

FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder. 10ª ed. (1ª ed. 1957). São Paulo: Globo/Publifolha, 2000. Vol. I.

FARINATTI, Luís Augusto. Confins Meridionais. Famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil (1825-1865). 2007. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

FLORY, Thomas. El Juez de Paz y el Jurado en el Brasil Imperial. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1986.

FRADKIN, Raúl. Justicia, policía y sociedad rural (Buenos Aires, 1780-1830). In: BONAUDO, Marta; REGUERA, Andrea; ZEBERIO, Blanca (Coord.). Las escolas de la historia comparada. Tomo 1. Buenos Aires: Miño y Dávila editors, 2008. p. 247-285.

GARAVAGLIA, Juan Carlos. Poder, conflicto y relaciones sociales. El Rio de la Plata, XVIII – XIX. Rosário: Homo sapiens Ediciones, 1999.

GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra. Conflitos e estrutura agrária na Campanha Rio-grandense Oitocentista. Porto Alegre: UFRGS, PPGH, 2005. (Dissertação de Mestrado).

GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do Século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.

HAMEISTER, Martha Daisson; GIL, Tiago Luís. Fazer-se elite no extremo-sul do Estado do Brasil: uma obra em três movimentos. Continente do Rio Grande de São Pedro (século XVIII). In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. (Org.). Conquistadores e Negociantes. Histórias de elites no Antigo Regime nos Trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. 1ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 265-310.

MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A Velha Arte de Governar. Um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007.

MATTOS, Ilmar H. O Tempo Saquarema. São Paulo: HCITEC/INL, 1987.

SODRÉ, Elaine Leonara de Vargas. A disputa pelo monopólio de uma força (i)legítima. Estado e administração judiciária no Brasil Imperial (Rio Grande do Sul – 1833-1871). 2009. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em História, PUCRS, Porto Alegre, 2009.

XAVIER, Angela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes clientelares. In: MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1998, v.4 – O Antigo Regime (1629-1807).

YOUNGER, Joseph. Corredores de comércio e salas de justiça: lei, coerção e lealdade nas fronteiras do Rio da Prata. Aedos, Porto Alegre, v.1, n.1, p.290-311, 2008. (versão traduzida para o português).