TEMPO DE LEMBRAR:
AS MEMÓRIAS DOS PORTADORES DE LEPRA SOBRE O ISOLAMENTO COMPULSÓRIO 

Keila Auxiliadora Carvalho 1

 

Resumen: O objetivo deste artigo é discutir as contribuições da História Oral para a compreensão do processo de construção da memória das pessoas atingidas pela política de isolamento compulsório dos “leprosos”. Particularmente, tratamos dos ex-internos da Colônia Santa Izabel, situada em Minas Gerais. A partir da metodologia de História Oral e da atenção às questões referentes à problemática da memória, pretendemos entender como estes indivíduos atingidos pela lepra, ao serem retirados da sociedade, conseguiram reconstruir sua “identidade”. Sendo assim, procuramos indicar as possibilidades oferecidas por esta metodologia, bem como elucidar certos preceitos básicos que envolvem o trabalho com fontes orais. Em primeiro lugar, é preciso entender que a perspectiva de que os relatos contidos nos depoimentos são a expressão da “verdade” e a “reconstituição” dos fatos, deve ser categoricamente recusada. Em seguida, deve-se considerar que a entrevista de história oral é uma construção teórica, e não meramente um procedimento técnico.

Palabras clave:Lepra; Isolamento; História Oral; Memória.

No Brasil, a segregação dos portadores de lepra foi uma medida de controle da doença implementada pelo Estado e legitimada pela sociedade ao longo de aproximadamente quatro décadas, entre os anos de 1920 e 1960. A justificativa do isolamento se dava em função da doença carregar consigo um forte estigma “e historicamente estar relacionada com as noções de pecado e corrupção” (CURI, 2002, p.57). A lepra era vinculada às ideias de sujeira, promiscuidade e miséria humana. O leproso era aquele indivíduo com o qual não se desejava relacionar, nem mesmo entre pais e filhos; era um genuíno “indesejável” na sociedade. Além dessa marca, a pouca precisão dos conhecimentos médicos sobre a doença – por exemplo, se era hereditária ou não, como se dava a transmissibilidade e a dificuldade em isolar o bacilo causador da lepra – também contribuíam para que a política de isolamento se sustentasse. Neste texto trataremos do isolamento compulsório sob a perspectiva da memória de indivíduos que sofreram sua ação. Como é uma pesquisa ainda em fase preliminar, faremos uma discussão teórica e metodológica envolvendo aspectos importantes para o tratamento das fontes orais, que são também fontes de memória. De maneira específica, lidaremos com os depoimentos de um grupo de ex-internos da Colônia Santa Izabel situada em Betim, Minas Gerais 2.
O asilo-colônia Santa Izabel, uma das maiores instituições criadas no país com o objetivo de isolar os indivíduos portadores de lepra, foi construído entre os anos de 1922 e 1931, abrigando 3.886 pacientes em 1937 3. Assim, os depoimentos das pessoas que foram levadas para este local e lá passaram a vida inteira, ajuda-nos a compreender melhor tanto o processo de re-construção de sua identidade quanto a dimensão social e econômica desta política de controle da lepra, que tinha como base o isolamento dos doentes. Mas, para que sirva a este propósito, devemos entender que o depoimento oral só pode ser trabalhado tendo em vista a memória e a subjetividade dos indivíduos que o constrói. Segundo Elizabeth Jelin,

 
en el mundo occidental, el movimiento memorealista y los discursos sobre lá memoria fueron estimulados por los debates sobre a Segunda Guerra Mundial y el exterminio nazi, intensificados desde comienzos de los años ochenta (2002, p.10)..

Esta autora identifica os anos de 1980 como o momento de eminência das discussões acerca da memória, cujo tema principal era o extermínio provocado pelos nazistas. A intenção era explorar a possibilidade de entender a história do holocausto utilizando como fontes de pesquisa os relatos daquela geração de sobreviventes dos campos de concentração. A partir deste período, as discussões referentes às questões de memória, bem como de História Oral, foram ganhando espaço dentro da historiografia, uma vez que os estudos sobre memória apareceram para dar “consistência” teórica aos relatos orais.  No Brasil estes trabalhos vêm se desenvolvendo desde o início da década de 1990, inicialmente com os debates gerados em torno da repressão ocorrida durante a Ditadura Civil-Militar de 1964, e, atualmente, abrangendo diversas áreas da pesquisa histórica, inclusive, para o caso desta pesquisa, a história das políticas públicas de saúde.
Existe, portanto, uma infinidade de aspectos que envolvem a memória dos portadores de lepra da Colônia Santa Izabel que só poderão ser analisados a partir da realização de um profícuo trabalho de História Oral. Pois, é preciso entender que tratar os problemas colocados pelas fontes orais entendidas como “fontes de memória” significa marcar algumas diferenças para com as fontes escritas “convencionais”. Como enfatiza Verena Alberti,

 
a postura envolvida com a história oral é genuinamente hermenêutica: o que fascina numa entrevista é a possibilidade de tornar a vivenciar as experiências do outro, a que se tem acesso sabendo compreender as expressões de sua vivência (2004, p.19).

Desta forma, cabe ao historiador um permanente exercício de interpretação para entender as expressões de vida do entrevistado bem como acompanhar seu relato. E ainda, segundo a mesma autora, “as entrevistas têm valor de documento, e sua interpretação tem a função de descobrir o que documentam” (ALBERTI, 2004, p.19). A postura do historiador frente ao entrevistado deve, então, ser orientada por uma preparação criteriosa, posto que é ele o interlocutor, e será também o responsável por transformar aquele relato em história.
De acordo com Alejandra Oberti, “lo que la entrevista le ofrece al entrevistado es una situación comunicativa excepcional, por lo tanto genera también un relato singular y la vez irregular” (2006, p.47). Por isto, o depoimento oral só pode ser trabalhado tendo em vista a memória e a subjetividade, e o historiador deve ter consciência de que a entrevista (o relato) não pode ser utilizada como dado empírico, mas sim como “fragmentos de uma memória”. Como destaca Silvia Salvatici, “a vida de uma pessoa se insere num campo de possibilidades históricas” (2005, p.35). Sendo assim, cabe ao historiador entender que não é sua tarefa encontrar a versão “verdadeira” dos eventos que pesquisa, mas sim compreender a historicidade da versão que lhe é relatada. Pois, de acordo com Dora Schwarztein, “os testemunhos de história oral são profundamente influenciados por discursos e práticas do presente e pertencem a esfera da subjetividade” (2001, p.73), e, portanto, deve-se considerar que a entrevista de história oral é uma construção teórica, e não meramente um procedimento técnico.
Deste modo, para que o trabalho de história oral tenha êxito, é necessário que o entrevistado esteja convencido da “própria utilidade de falar e transmitir seu passado” (ALBERTI, 2004, p.37), e quem imprime tal sentido à entrevista é o historiador. Alessandro Portelli afirma que a entrevista de campo deve ser um “experimento em igualdade”. Esta deve ser a busca do pesquisador como condição básica para uma comunicação menos distorcida. Todavia, tal igualdade, ainda segundo Portelli, não depende da “boa vontade do pesquisador, mas de condições sociais” (1997, pp.9-10). Assim, é necessário que se crie um ambiente que inspire confiança; do contrário, elementos importantes podem ser suprimidos quando o indivíduo for relatar suas memórias. Estas e outras questões são colocadas ao historiador devido à especificidade da História Oral criar seus próprios documentos, que, por definição são diálogos explícitos de memória, com o entrevistado circulando entre as experiências passadas e o contexto presente. Dora Schwarztein ainda chama atenção para o fato de que o historiador desempenha um papel importante na criação da fonte, pois é ele que realiza a operação histórica.
O conceito de memória é, pois, fundamental para a realização desta operação histórica que envolve os relatos orais. Para Michael Pollak,

 
A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs, nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser entendida também ou, sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes (1992, p.201).

O autor partilha da perspectiva de Maurice Halbwachs de que a memória é um fenômeno coletivo, uma vez que necessita de uma “comunidade afetiva” 4 para se realizar. Halbwachs não nega a existência de uma memória individual, ou seja, de certa seleção de acontecimentos por um indivíduo. Todavia, esta seleção só será “preservada” na memória daquele indivíduo, na medida em que ele estiver em contato com os membros do grupo que partilharam daquela experiência. Como destacou Maria Paula Araújo, “o pertencimento a uma comunidade – mesmo que difusa – permite o processo social de construção da memória”(2006, p.94). O grupo de pessoas que entrevistamos em Santa Izabel faz parte de uma comunidade afetiva, pois cada entrevistado faz questão de ressaltar que sua história não é isolada, faz parte da “história dos moradores de Santa Izabel”, e os mais idosos lamentam a perda de muitos dos amigos, dos companheiros que vivenciaram com eles a mesma dor, assim como as mesmas alegrias. Além disto, os depoimentos raramente são narrados em primeira pessoa, eles utilizam sempre o “nós”, ou “a gente”.
Seguindo as prerrogativas de Ecléa Bosi, “nosso interesse está no que foi lembrado, no que foi escolhido para perpetuar na história de sua vida” (1994, p.37). Neste sentido, é interessante pensarmos que as entrevistas, apesar de serem realizadas a partir de certa seleção de questões propostas pelo historiador, acabam por adquirir uma dinâmica própria, que é comum entre os membros da comunidade. Cabe, então, estarmos atentos para o fato de que “não é importante apenas o que se lembra – mas como se lembra e, principalmente, como se narra o que se lembra” (ARAÚJO, 2006, p.95). Também é preciso, perceber e analisar qual é o propósito que motivou a pessoa a falar de si. Para os ex-internos da colônia, percebemos que falar de si, é uma forma de sinalizarem que “venceram” o preconceito e a segregação e hoje estão sendo admitidos na sociedade. E, para, além disto, hoje a sociedade vai até eles, inclusive nós, pesquisadores, precisamos deles para construir nossos trabalhos. Em Santa Izabel, os ex-internos - que hoje são moradores - recebem constantemente a visita de grupos de pessoas da região, geralmente estudantes de ensino médio e de graduação, que vão até lá para realizarem algum trabalho, ou simplesmente para conhecerem a ex-colônia e seus moradores. Por isto, estão habituados com o fato de que se antes foram excluídos, hoje despertam o interesse da sociedade.
Podemos dizer, então, que a “comunidade afetiva” se forma entre pessoas que possuem alguma relação de afinidade umas com as outras e, através desta afinidade, constroem uma memória coletiva. Esta memória coletiva pode ser pensada como uma memória oficial do grupo, ou seja, como seus membros querem “se colocar” para a sociedade. Entretanto, não podemos entender “construção” como algo forjado ou mentiroso; como destaca Beatriz Sarlo, “no se trata simplesmente de una cuestión de la forma del discurso, sino de su producción y de las condiciones culturales y políticas que lo vuelven creíble” (SARLO, 2001, p.25). Porque ‘construir uma memória’, ou seja, fazer a seleção do que deve ser lembrado e do que deve ser esquecido, envolve uma relação política realizada de acordo com as necessidades dos sujeitos que participam de determinada conjuntura. No caso deste trabalho, podemos pensar como os moradores de Santa Izabel realizam este processo de construção de suas memórias, e quais são as necessidades que os direciona.
Percebemos que os portadores de lepra, que hoje são chamados hansenianos, ao construírem suas memórias, têm como necessidade fundamental a retomada do lugar de “sujeitos” na sociedade. Por isto, em seus depoimentos fazem questão de aludir ao sofrimento que enfrentaram, mas, principalmente, procuram mostrar que superaram. E o sofrimento - deixam bem claro - foi causado muito mais pela rejeição do que pela própria doença. A história do Sr. Vicente é bem característica da dor causada por esta situação. Chegado em Santa Izabel aos 9 anos de idade, em 1939, ele narra toda a dificuldade no tratamento da doença que era feito através de procedimentos muito dolorosos - como por exemplo, o que era realizado com ácido para queimar a pele 5. Mas quando perguntamos o que mais lhe causou sofrimento, ele responde:

 
Ah, só d’eu chegar lá minha mãe e minha irmã não me aceitar (...)
O copo da gente tomar café era só aquele, prato da gente comer também era só aquele...separava tudo, dentro da casa da gente...quando eu voltei lá separava tudo do mesmo jeito, tudo meu era separado....quando eu era novinho também era separado...era um preconceito danado! Se a gente contar a vida, a gente fica triste... mas aconteceu mesmo, fazer o quê, né?! (2008).

E esta é uma postura comum entre os entrevistados: falam dos males causados pela doença, mas, quando vão dimensionar os prejuízos, eles acabam sendo muito mais psicológicos do que físicos. Nenhum deles lamenta a perda dos dedos ou a falta de sensibilidade nos membros, mas lamentam profundamente as discriminações sofridas. Dona Antônia é outro exemplo: chegou a Santa Izabel aos 25 anos de idade, em 1960, depois do marido dela ter se suicidado e de terem dado sua filha para adoção. Seu depoimento é todo permeado por estes dois fatos. Porém ela sempre os associa à rejeição de sua mãe, pois, de acordo com seu relato, foi esta que não quis ficar com sua filha, que estava “novinha”, para o marido poder trabalhar. O último, desesperado, deu um tiro na cabeça ao saber que a jovem esposa iria para o leprosário e não poderia contar com a avó da criança para ajudá-lo a cuidar da mesma.

 
Vivia fechada no quarto... minha mãe com aquele pavor, falava: “ah, se você ficar aqui eu vou pôr fogo no quarto, quando você for embora...”, não tinha um momento que ela não me discriminasse, sabe. Então eu sofri muito, porque você sofrer uma discriminação de uma pessoa estranha a gente aguenta, mas de uma família, ainda mais de uma mãe... (RIBEIRO, 2008).

Sendo assim, existem elementos que são comuns a todos os depoimentos. Como destaca Michael Pollak, apesar das transformações e variações, existem também elementos que são relativamente imutáveis na memória construída, seja ela individual ou coletiva. É como se fosse processado um trabalho de “solidificação” da memória, que toma certos fatos como irredutíveis. No caso específico dos ex-internos do leprosário Santa Izabel, este elemento de imutabilidade parece residir na discursiva da dor e do sofrimento. Apesar das histórias serem diferentes, em todos os depoimentos as pessoas fazem questão de ressaltar as dificuldades de sua existência. Porém, sempre tratam do sofrimento e da dor como algo já superado, evidenciando a coragem que tiveram para enfrentá-los, constituindo, portanto, este aspecto de imutabilidade. Para Michael Pollak, a memória possui mesmo certos elementos que a constitui que

 
em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo lugar, são os acontecimentos que chamaria de “vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer (1992, p.201).

Neste segundo caso, pode ocorrer que a pessoa nem mesmo tenha participado ou vivenciado o fato em questão. Entretanto, no imaginário do grupo, este toma tamanho relevo que ela acaba nem conseguindo saber se efetivamente participou ou não – o que não a impede de tê-lo guardado em sua memória.
As histórias individuais se misturam às do grupo. No relato do Sr. Lázaro esta mistura entre memória individual e coletiva está bastante presente. Ele chegou à Santa Izabel em 1978, num momento posterior à política de isolamento compulsório. Entretanto, quando vai relatar suas memórias, notamos que ele mistura – ou aproxima - sua experiência individual das experiências do grupo. Uma das primeiras questões que fizemos a ele foi se havia sido obrigado a se isolar, ao que ele respondeu que foi um ato voluntário. Em seguida perguntamos os motivos dessa decisão, se, por acaso havia sofrido alguma rejeição, e ele respondeu negativamente, pois as pessoas já estavam aceitando melhor o portador da doença:

 
É já tava aceitando mais um pouco... é, já aceitava sim. Aí já era, vamos dizer assim, quase que normal né?! Aceitava, mas antigamente diz que não aceitava , não era no meu tempo. Quando eu cheguei aqui tinha um parlatório aqui, então tinha, acho que era um muro mesmo com os portão, então os paciente aqui que os parentes vinha visitar ficava lá no portão lá em cima, alguns com muita dificuldade entrava, mas o restante... (PIMENTA, 2008).

Porém, fez questão de dizer que antes de sua chegada as coisas eram diferentes, passando a descrever a formação da Colônia. Falou das correntes que separavam a área “sadia” da área “doente” 6, do portão de entrada e do parlatório 7, que era o lugar onde os doentes recebiam as visitas. Assim, dando continuidade à entrevista, tocamos novamente na questão da escolha em se internar, perguntando o que o havia motivado. Foi então que ele mencionou o fato de ter tido familiares que foram levados para a Colônia antes dele:

 
Se eu te contar que meus avós, tinha... inclusive morreu dois tio meu aqui e meu avô. Morreu aqui. A minha avó ela foi morrer lá em Santa Fé, Três Corações né?! Que ela tinha uma filha que era hanseniana e tava em Santa Fé, então lá ela  adoeceu, já tava muito velhinha já (PIMENTA, 2008).

E a partir de então, ele mudou a tônica de seu depoimento; se antes havia dito que não tinha sofrido discriminação, ao falar da família, ele diz exatamente o contrário:

 
É, eles falavam bem, que aqui era “bão” e tal né?!...que ficava mais a vontade. Que lá no nosso lugar lá, o povo é, ainda é até hoje, tem um preconceito “medonho”. Então, era sempre humilhando a gente mesmo, de verdade...humilhava a gente demais. Então a gente chegava a ponto de ficar nervoso né?! Com aquilo, porque a pessoa com aquela humilhação né?! Aí a gente via falando que aqui era “bão”, assim tal...então eu tinha aquela vontade, então eu pedi o médico lá quando ele tava me encaminhando pra Belo Horizonte, eu falei pra ele que eu queria ir direto já pra Colônia, aí ele falou assim: “ih, “ocê” vai achar muito ruim lá, lá não é “bão” não, lá tem muita pessoa muito mutilado, muita gente acamado, e “ocê” vai achar ruim, eu não vou te mandar pra lá não...vou te mandar pra Belo Horizonte, lá “ocê” vai fazer seu tratamento lá”... e tudo (PIMENTA, 2008).

Esta sequência do depoimento mostra como as experiências individuais e do grupo se misturam para o indivíduo que faz parte de uma comunidade afetiva. Notamos que ele utiliza sempre a expressão “a gente” para falar da discriminação sofrida pelos familiares. Mas quando diz “a gente”, ele se inclui, e afirma que o preconceito existe até hoje lá na terra de onde ele veio. Percebemos que o Sr. Lázaro, a princípio, não tinha a intenção de falar de seu sofrimento mas, na medida em que vai relatando suas memórias, ele faz conexões e, inevitavelmente, chega à questão do sofrimento causado pela rejeição. Primeiro, fazendo alusão à experiência de seus parentes que haviam sido internados compulsoriamente, e, posteriormente, de maneira bastante discreta, falando de sua própria experiência. Sempre que questionávamos sobre sua família ele se esquivava e falava apenas dos filhos, sem mencionar a esposa; até que chegamos à questão e perguntamos se ele havia tomado a decisão de internar-se em Santa Izabel sozinho, ou se a esposa o havia ajudado - ao que ele respondeu melancolicamente:

 
É...é, foi...foi junto com ela. Eu tomei a decisão de vim pra cá, então falei pra ela que eu vinha, que eu ia fazer meu tratamento, mas que eu...com tempo que eu melhorasse eu voltava pra lá...mas aí deu errado né?! Viraram a cabecinha dela lá (risos sem graça) ela partiu pra outra “banda”... (PIMENTA, 2008).

A lepra o separou dos filhos e da esposa, desta última definitivamente, pois ela casou-se novamente. Então, esta experiência, que é pessoal acaba tomando uma dimensão coletiva, na medida em que as “perdas” em função da doença são comuns a todos. Como salienta Michael Pollak,

 
é perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada (1992, p.201).

Acontecimentos marcantes, e, às vezes, até traumatizantes, que ocorrem em uma região ou com determinado grupo, acabam fazendo com que a memória seja transmitida ao longo de anos com alto grau de identificação. Não que eles não tenham vivenciado de fato o que relatam, mas o processo de elaboração da memória - envolvendo o exercício de seleção do que deve ser lembrado e do que deve ser esquecido – possui grande complexidade.
Desta forma, a memória herdada propicia a criação de um sentimento de “identidade”, ou seja, uma imagem de si, para si e para os outros. E, como destaca Michael Pollak,

 
podemos portanto dizer que a memória é um sentimento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (1992, p.205)..

A identidade é construída em relação aos outros, posto que seja preciso que haja a aceitação, que se acredite na imagem que está se formando para o grupo. Por isto, é necessária uma negociação direta entre os membros deste grupo, de onde vai resultar a sua identidade. Esta pode ser utilizada pelos grupos para fins específicos. Como assinala Michael Pollak, analisando o caso dos deportados franceses na Segunda Guerra Mundial, “a memória deles constitui um cacife importante para serem reconhecidos pelos outros, ou seja, serem valorizados pelos outros” (1992, p.205). Guardadas as devidas proporções entre os deportados e os ex-internos da Colônia Santa Izabel, nota-se esta mesma preocupação no exercício de construção da memória destes últimos, qual seja, criar uma imagem de si marcada pela dor, pelo sofrimento e ao mesmo tempo pela superação. Uma imagem que acaba por se constituir como identidade para aquele grupo de pessoas que viveram isoladas da sociedade em razão da lepra, mas que, individualmente, vivenciaram este isolamento de modo diferente, porque as experiências são em parte compartilhadas coletivamente, em parte individuais.
No caso desta pesquisa é de extrema importância este conceito de “identidade”, pois será necessário compreender qual o tipo que os moradores da Colônia Santa Izabel construíram para si. Seguindo as assertivas de Alessandro Portelli, em texto que analisa o massacre de Civitella Val di Chiana, podemos entender que a memória de um grupo “se fundamenta na experiência vivida e em emoções profundamente sentidas. Mas não deixa de ser uma construção bastante ideológica e institucional, distinta das memórias pessoais nas quais se baseia” (2001, p.126-127). Não obstante, o fato de ser uma construção ideológica não torna esta memória coletiva ilegítima, pois quando materializada, está repleta de valores importantes para a compreensão da historicidade do grupo. E como acentua Michel Winock (1996) as ideias e/ou ideologias são fundamentais para a história, porque permitem conhecer melhor os sistemas de representações das sociedades. Sendo assim, apesar de ainda não podermos precisar que tipo de identidade os moradores de Santa Izabel construíram para si, é possível afirmar que ela está pelo menos em parte, assentada sobre a perspectiva que opõe colônia versus sociedade - a primeira representando o lugar do acolhimento, da reconstrução da vida, enquanto a última representa o lugar de onde foram expulsos, onde sofreram todo tipo de rejeição.
O Sr. João do Carmo chegou a Santa Izabel em 1944, aos 10 anos de idade - ou seja, viveu muito pouco fora da Colônia. Órfão de pai e mãe passou sua vida inteira lá dentro e, ao avaliar seu passado, considera que teve uma vida tranquila. Porém, das poucas experiências que teve na sociedade ele guarda recordações que marcam muito bem esta oposição entre a vida dentro e fora de Santa Izabel:

 
É...eu considero sim uma vida tranquila, a gente tem aquelas recordações é das humilhações né? Humilhação...porque eu por exemplo, quando rapazinho, que tive que tirar documentos em Belo Horizonte, e o meu primo...tinha um primo aqui meu, e ele então, ele é que me incentivou, “não...você tem que tirar documento, vamos dar um jeito e tal” . Então ele e mais um outro companheiro, nós fomos pegar o ônibus aqui em Mário Campos para ir para Belo Horizonte, e nós entramos dentro do ônibus, ônibus de...como chama essa cidadezinha aqui perto de Mário Campos? É...Brumadinho. Então entramos dentro do ônibus e o motorista falou assim com nós: “vocês descem que eu não posso levar vocês não”...e nós...o companheiro falou assim: “mas por quê?” Ele respondeu: “não, não precisa de falar não...vocês podem descer, eu não posso levar não”. Então, nós tivemos que descer né? Aí pegamos o trem...mas isso aí já ficou aquele complexo pro resto da vida da gente né? A gente sempre tinha aquela desconfiança, chegava num lugar desconfiava (ALMEIDA, 2008).

A colônia ocupa, então, um lugar privilegiado na memória de seus moradores. É o lugar onde podiam viver sem a “desconfiança” de que, a qualquer momento, seriam expulsos ou impedidos de fazer alguma coisa. Nos depoimentos, as referências à Santa Izabel são quase sempre do ponto de vista do acolhimento, mas, obviamente, existem algumas queixas em relação ao funcionamento interno da colônia; entretanto, no que diz respeito à humilhação e rejeição, elas praticamente não existem. Sempre que os moradores fazem alguma reclamação é com relação aos funcionários: enfermeiros, médicos ou as freiras, por serem os únicos “sãos” que conviviam com eles e, consequentemente, expressavam o medo de contrair a doença:

 
Aqui dentro...aqui dentro... a gente sentia, mas não assim que...direto não! Por exemplo, as vezes uma...uma  religiosa, uma freira, as irmãs trabalhavam, ia abrir uma porta ela pegava o avental pra pegar ali na...na...pra abrir a porta né? A gente ficava pensando assim né?...mas isso não é...não atingia a gente. Só que a gente ficava com aquele preconceito “puxa” o negócio é feio né? (ALMEIDA, 2008).

É, portanto, justamente pensando na Colônia Santa Izabel como este local privilegiado nos relatos do grupo de moradores hansenianos que entrevistamos, que podemos refletir sobre o que Pierre Nora chama de “lugares da memória” como um constituinte importante da memória destes indivíduos. De acordo com este autor, “a memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto” (1987, p.9). Estes lugares de enraizamento podem ser, desde um lugar de férias na infância, até monumentos erguidos em homenagem a mortos. Neste trabalho, especificamente, o lugar da memória é também o lugar onde se vive - e os “ex-internos” de Santa Izabel continuam vivendo lá, seja nos arredores, ou mesmo dentro da Colônia. Naquele local eles elaboram e reelaboram sua memória transmitindo-a como “herança” aos seus descendentes. Pois o próprio ambiente é o lugar onde a memória está sedimentada. É interessante pensar que tipo de memória está “enraizada” naquele leprosário. E, nesse sentido, entender que não existe, entre os moradores, aversão ao lugar que foi construído com a exclusiva finalidade de segregá-los da sociedade. As queixas que fazem somente dizem respeito à falta de liberdade dentro da Colônia. Quando expressam suas memórias em relação a vida cotidiana no leprosário, eles fazem as seguintes afirmações:

 

A vida aqui era braba, tinha guarda pra todo lado, tinha cadeia, tinha muita diversão, mas tinha muita punição também.(...) Pra qualquer coisa, se fazer uma baguncinha, se “ocê” fugia tomava... (SILVEIRA, 2008)

Ah, aqui tinha uma ordem dura sabe...(...) A ordem aqui oh, o homem não podia conversar com mulher aqui em lugar nenhum. Uma mulher pra “ocê” conversar com uma mulher era a coisa mais difícil. O sujeito pra ser “bão” tinha que andar com o chapéu debaixo do braço...era tanta ordem, tanta coisa...sadio pra entrar aqui era a coisa mais difícil que existia, pois é, então em período assim de natal, aí eles liberava a colônia. Liberava e vinha aquela criançada, vinha passear aqui né?! Eles gostava de vim aqui, mas só podia vim no natal, e dia das mães, que eles vinha. (REIS, 2008).

Como podemos observar, as lembranças negativas da vida em Santa Izabel dizem respeito à ausência de liberdade em decorrência da regras de comportamentos impostas aos internos. Quando o Sr. Manoel menciona a “ordem dura”, ele está se referindo às regras de convivência dentro da Colônia. Não é nosso objetivo fazer uma análise delas neste texto; queremos apenas chamar atenção para o fato de que a memória produzida pelos moradores de Santa Izabel é profundamente relacionada àquele lugar. E, sendo assim, cabe pensarmos como a permanência naquela “minicidade” é capaz influenciar estes depoimentos. Cabe evidenciar que a memória é a presença do passado no presente, ou seja, são “representações” do passado a partir do contexto em que se vive. Como muito bem destacou Pierre Laborie a memória propicia um acréscimo de sentido ao passado , pois o indivíduo constrói a narrativa sobre seu passado com as “ferramentas” que possui no seu presente.
Sendo assim, é importante entendermos qual a influência que o “lugar da memória” - representado por Santa Izabel - tem sobre o processo de produção da memória daquele grupo. Hugo Achugar vai além, e chama estes “lugares” de “monumentos de memória”, pois de acordo com ele, “la monumentalización de la memória es una forma de documentar, construir o consolidar la identidad del ciudadano y de la polis” (2003, p.200). Para este autor, o monumento trata da objetivação da memória com vias a vencer tempo e esquecimento. A Colônia Santa Izabel representa esta objetivação, posto que não permite que a política de internação compulsória do indivíduo portador de lepra seja esquecida, justamente porque os edifícios que formaram a cidade em miniatura - abrigando milhares de pacientes e os mantendo segregados da sociedade por várias décadas do século XX - ainda se encontram lá. Os moradores, mesmo aqueles que não foram para lá obrigados, têm viva em sua memória a “lembrança” do período em que a colônia era “fechada com correntes” e, para eles, narrar isto é importante, pois é a única maneira que têm de impedir que o seu sofrimento caia no esquecimento. Um sofrimento que acaba por formar a identidade do grupo, dos “leprosos”, que hoje são conhecidos por “hansenianos”. A troca do nome da doença de lepra para hanseníase foi uma estratégia visando eliminar o estigma da doença. Todavia, notamos que os moradores de Santa Izabel fazem questão de destacar que quando contraíram a doença, eram chamados e tratados como “leprosos” e não “hansenianos”.
Portanto, para eles, trocar o nome da doença não pode implicar em um esquecimento de todo o sofrimento ao qual foram submetidos. A palavra “hanseniano” trás para eles uma nova compreensão da doença, pois eles delimitam com muita precisão a diferença entre o significado de ser “leproso” e de ser “hanseniano”. O leproso não podia conviver com outros, era expulso da sociedade, era rejeitado, despertava aversão e medo. Já o hanseniano convive na sociedade - apesar de deixarem claro que o preconceito ainda os ronda -, não é mais “condenado” 9 ao confinamento e, mais importante, tem a possibilidade de se mobilizar e lutar para ser aceito 10. E a própria Colônia, que atualmente está se firmando como centro de referência no tratamento de feridas, contribuiu para criar este novo significado para a doença. O trecho do depoimento de dona Antônia ilustra bastante esta questão:

 
...a gente que sofreu aquela discriminação, aquele horror, aquele pavor que todo mundo tinha medo da gente né?! Uma vez fui tirada até de dentro do ônibus, que eu fui a Belo Horizonte, quando chegou perto da Fiat o cobrador falou: “desce que a senhora é leprosa”. E hoje, quem daquela terra, que me jogou daquele ônibus que vive aqui dentro, consultando, tratando, quantas pessoas hoje né?! Vive aqui tratando, vem aqui na emergência...ainda fico pensando: meu Deus como o mundo dá voltas...quantas pedras foram atiradas na gente...e hoje...tão precisando da gente (RIBEIRO, 2008).

É, pois, justamente em função desta oposição ‘rejeição versus acolhimento’, que Santa Izabel vai além de um “lugar de memória”: para os ex-internos é o seu lugar. O testemunho de dona Antônia ajuda-nos a compreender como são construídas as memórias destes indivíduos. Como destacado anteriormente, a memória é o passado dentro do presente e, desta forma, se faz necessário entender como está a colônia hoje, ou seja, em quais circunstâncias as memórias sobre Santa Izabel estão sendo produzidas. E, neste sentido, é interessante salientarmos que ela não é mais “depositária de leprosos”, mas está sendo transformada em centro de tratamento de doenças da pele e, com isso, tem atraído pessoas de diversas regiões do estado, além da população dos arredores. Então, à medida que os moradores consideram Santa Izabel o “seu lugar”, consequentemente eles também entendem que as pessoas que vão em busca de tratamento estão “precisando deles”, pois usufruem do que os pertence. E com base nestas percepções os ex-internos daquela colônia imprimem novos sentidos ao seu passado, sem deixar de considerar a colônia como o “seu lugar”.

 

Mas aí eu falo assim...com sinceridade, aqui é que é minha terra! Eu gosto muito daqui, e graças a Deus sou muito querida...tenho muita amizade, portanto eu vou te contar eu não tenho saudade lá da minha terra...de dizer assim: ah, meu Deus que tristeza deu ter vindo...não eu não tenho...eu acho que aqui foi aonde eu encontrei a paz, o sossego e a tranquilidade, porque lá...você pensa bem, a gente vivia só da discriminação, não podia sair de casa né?! (RIBEIRO, 2008)..

É fiquei um tempinho, mas depois eu convenci que minha terra era aqui mesmo, vão deixar dessas besteira que eu to no lugar certo. Aí um dia que o médico chegou e falou assim: “o senhor é um negativo, o senhor pode ir embora pra casa, o senhor já chegou aqui quase tudo negativo, só com problema de vista e tal, o senhor pode ir embora”. Eu falei: “ocês” num quê eu aqui não? Amarra uma pedra no meu pescoço então e me joga no rio, porque eu tô gostando...aí ele perguntou: “então o senhor gosta daqui?” Eu sinto aqui como minha terra, melhor do que se eu tivesse lá na minha terra. Eu gosto daqui! (PIMENTA, 2008).

“Então aí a gente teve assim...uma vida ...meia sofrida, mas tinha também lá suas alegrias né?! E tudo. Mas foi sempre a... como se diz, a minha terrinha natal foi aqui, Sanatório Santa Izabel, porque você pensa bem, eu vim pra aqui com 10 anos né?!...Agora com 74 anos, ontem eu completei meus 74 anos...mas então a gente teve muitas experiências aí boa né?! (ALMEIDA, 2008).

Os trechos dos depoimentos citados acima fornecem elementos para pensarmos na dimensão assumida por certo sentimento de “enraizamento” dos ex-internos à colônia. Alguns deles já tiveram possibilidade de sair de lá, mas não quiseram, porque consideram Santa Izabel como “sua terra”. Podemos dizer que isto se justifica pelas experiências negativas que estas pessoas tiveram fora de Santa Izabel; todos falam da dificuldade em largar a família e da dureza do processo de adaptação à nova vida. Não obstante, eles afirmam que, passado os primeiros meses, já não queriam mais voltar. Dona Antônia deixa bem claro que, em Santa Izabel, “encontrou a paz”. Estes três depoimentos não são exceções: todos os nossos entrevistados são categóricos ao afirmar que a Colônia Santa Izabel é a terra deles, é o lugar onde se reencontraram.
Mas estes depoimentos, que expressam o sentimento de apego dos ex-internos em relação à colônia, não devem estimular a interpretação de que a política de isolamento tenha sido realmente humanitária (CARVALHO, 2008, p.130), como defendiam alguns médicos e associações filantrópicas. Ao contrário, eles fornecem elementos importantes para tentarmos entender mais amplamente toda a complexidade que envolve a política de isolamento. Há que se pensar que estas pessoas somente sentiram todo este “acolhimento” dentro do leprosário porque vinham de uma dura experiência de rejeição social. E, somado a isto, a contribuição dos próprios profissionais da saúde para manter o estigma da doença, ao recomendar o total afastamento das pessoas “sãs” dos “leprosos”, aumentava o sentimento de medo da doença e, consequentemente, a exclusão social do doente. Também não contavam com recursos capazes de mantê-los fora dos leprosários. Observemos o depoimento do Sr. Aldecir:

 
É...falaram ‘não, “ocê” tá bom’...eu falei eu vou ficar aqui. Daqui eu não saio pra lugar nenhum, enquanto eu não tratar eu não saio pra lugar nenhum. “Ah, mas “ocê” trata lá fora”...tratar lá fora onde? Não tem recurso nenhum lá não. Falar ah, “ocê” pode tratar lá, é bom. Mas depois que chega lá o posto de saúde não tem uma atadura, às vezes não tem uma pomada, não tem um antibiótico, só tem os funcionários lá...outra hora nem funcionário não tem, tá fechado. Lá no interior é assim. Não tem nada...agora pode ter, mas naquela época era assim...
Aí eu cheguei aqui tinha tratamento, tinha curativo duas vezes no dia, às vezes, outra hora tinha só uma vez, mas tinha. Tinha remédio, que é o que mais faltava era remédio pra gente tomar, então tem que ficar é aqui mesmo... (SANTOS, 2008).

O ex-interno descreve muito bem a situação que os portadores da doença enfrentariam fora da colônia, ou seja, a inexistência de uma estrutura de saúde pública capaz de lhes assegurar o tratamento. Voltar para a sociedade implicava em muitos enfrentamentos, em primeiro lugar, enfrentar a exclusão, e logo após, como bem destacou o Sr. Aldecir não ter acesso aos recursos necessários para se tratarem devidamente, e isto no momento posterior a política de internamento compulsório, porque antes esta possibilidade sequer existia. Portanto, para o indivíduo infectado pela “lepra” manter-se interno passou a ser a alternativa considerada mais viável, pois a doença desestruturava completamente sua vida, uma vez que além de sofrer com falta de tratamento, se tornava indesejável ao convívio social, despertando medo e repulsão nas pessoas ao seu redor.
Não estamos desconsiderando, com isto, o fato de que o isolamento dos “leprosos” foi uma prática preventiva pela qual os profissionais de saúde optaram tendo em vista a “proteção dos sãos”. Mas nossa intenção neste artigo foi destacar que tal prática trouxe profundas consequências para a vida daqueles que tiveram de se isolar. Consequências que tanto podem ser tomadas de um ponto de vista negativo, como também, podem ser compreendidas a partir de elementos que são comuns a qualquer trajetória de vida; quais sejam, o pertencimento a um lugar e a um grupo, as realizações profissionais e pessoais, entre outros. E os depoimentos de nossos entrevistados estão permeados por estas “consequências”, na medida em que narram “as memórias de suas existências” delineando a identidade não apenas do hanseniano - tal qual são conhecidos hoje - mas também do “leproso” de outrora. Para isto, precisam destacar sofrimentos e angústias, mas também conquistas e superações.

           
Artigo recebido em 20/10/2008. Aprovado em 06/07/2009.

 

Time to Remember: The memories of leprosy people about compulsory isolation .

Abstract: This article aims to discuss the contributions of the Oral History for understanding the process of building the memory of those affected by the policy of compulsory isolation of the “lepers”. In particular, care of the former colony's internal Santa Izabel located in Minas Gerais. From the methodology of Oral History, and attention to issues relating to the issue of memory, we want to understand how these people affected by leprosy, to be removed from society, managed to rebuild their "identity". Therefore, we seek to indicate the possibilities offered by this approach, as well as clarify certain basic precepts that involve working with oral sources. First, we must understand that the prospect that the reports contained in depositions are the expression of "truth" and "reconstitution" of facts, should be categorically rejected. Then, one should consider that the oral history interview is a theoretical construct, not merely a technical procedure.

Keywords: Leprosy; Isolation; Oral History; Memory..

 


1 Bolsista CAPES, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Mestre em História pela UFJF. Este artigo é resultado das pesquisas iniciais realizadas para a elaboração de minha tese de doutorado, cujo título provisório é: “Segregar para Modernizar: Ser Leproso entre História e Memória”.
E-mail: keilahis2002@yahoo.com.br.

2 As entrevistas foram realizadas no mês de julho de 2008. Foram entrevistadas 16 pessoas, totalizando 6:12 h de entrevistas. Utilizaremos apenas parte das mesmas, pois o trabalho de transcrição ainda está em fase de execução.

3 Atualmente vivem e recebem tratamento na Colônia, que se tornou uma unidade da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), cerca de 420 hansenianos (ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DA ASSEMBLEIA DE MINAS GERAIS, 2007).

4 Este conceito também é muito importante para esta pesquisa, pois os moradores da Colônia Santa Izabel podem ser pensados como participantes de uma “comunidade afetiva”, ou como prefere Ecléa Bosi “comunidade de destino”. Cf.: BOSI, 1994.

5 A pouca precisão sobre a etiologia da lepra consequentemente também tornava sua terapêutica pouco precisa. Por isto, nos hospitais-colônia era comum a experimentação de práticas de tratamento, como destacou Dilma Costa, “de forma similar ao que ocorreu nas teorias sobre a etiologia da doença, podemos constatar que os princípios terapêuticos sofriam uma perceptível mudança de rota.” Sendo assim, o tratamento ao qual o ex-interno faz alusão possivelmente é parte de uma terapêutica bastante empregada no tratamento da lepra, a qual consistia em aplicar um medicamento à base de ácido para “limpar” a pele do paciente, ou seja, queimar os nódulos causados pelo bacilo da leprótico. Ainda segundo Dilma Costa, havia tratamentos que incluía “drogas como ácido fênico, ácido ginocárdico, iodureto de potássio e agentes de redução, ácido pyrogálico, salicilato de sódio e crysaborina”. Cf.: COSTA, 2007.p.133.  

6 Em todas as colônias do Brasil havia esta separação entre ‘doentes’ e ‘sadios’, a área dos sadios era destinada aos funcionários que trabalhavam na colônia. Entretanto, o contato entre estes funcionários e os internos praticamente não ocorria, pois a maioria daqueles que precisavam ter um contato próximo com os internos também eram doentes. Inclusive os enfermeiros, segundo os relatos que obtivemos, os enfermeiros eram “práticos”, ou seja, doentes que aprendiam a aplicar injeções, fazer curativos, e até mesmo fazer medicação.    

7 Interessante destacar que o parlatório é um prédio – se mantém conservado até hoje – construído bem no limite entre as duas áreas: doente e sadia. Na verdade, era uma varanda separada ao meio por um balcão largo de cimento, sendo que um lado dava para a parte interna da Colônia e o outro para a parte externa. O que impedia o contato entre os doentes e os visitantes, aqueles raros amigos e familiares que não se conformavam em ficar distantes de seus entes queridos. A visita, então, era somente para ver o doente, não podia ocorrer nenhum contato físico com ele.

8 Conferência apresentada pelo autor no “Seminário Internacional Culturas Políticas, Memória e Historiografia”, realizado na Universidade Federal Fluminense em 27 de agosto de 2008.

9 Muito importante neste sentido, é o fato de que a própria medicina naquele momento contribuía para expansão do estigma sobre a doença, na medida em que proibia o contato do doente com seus próprios familiares.

10 Um dos principais instrumentos nesta luta é o Morhan (Movimento de Reintegração dos Hansenianos na Sociedade), que promove campanhas de conscientização sobre a hanseníase.

Fontes:
ALMEIDA, João do Carmo. Depoimento. Betim, 17/07/2008. Entrevista concedida à autora pelo ex-interno e atual morador de Santa Izabel.

PIMENTA, Lázaro Teodoro. Depoimento. Betim, 17/07/2008. Entrevista concedida à autora pelo ex-interno e atual morador de Santa Izabel.

REIS, Manoel José dos. Depoimento. Betim, 17/07/2008. Entrevista concedida à autora pelo ex-interno e atual morador de Santa Izabel.

RIBEIRO, Antônia. Depoimento. Betim, 17/07/2008. Entrevista concedida à autora pelo ex-interno e atual morador de Santa Izabel.

SANTOS, Aldecir Pereira dos. Depoimento. Betim, 17/07/2008. Entrevista concedida à autora pelo ex-interno e atual morador de Santa Izabel.

SILVEIRA, Vicente da. Depoimento. Betim, 17/07/2008. Entrevista concedida à autora pelo ex-interno e atual morador de Santa Izabel.

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