Para ler de perto o jornalismo:

uma abordagem por meio de dispositivos da análise

do discurso


Reges Toni Schwaab

1 Ler o jornalismo
2 Dispositivos para ler
3 Alguns apontamentos desta leitura
Notas
Referências

RESUMO
A partir da visão do Jornalismo enquanto processo e discurso e deste como efeito de sentidos, o presente artigo, de cunho teórico, traz anotações sobre a relevância do estudo do Jornalismo e seus produtos por meio de dispositivos teóricos da Análise do Discurso Francesa. Discute a importância da observação da indissociável dualidade texto e contexto, na busca por apreender o que está colado ao texto, ou seja, os efeitos de sentido que determinado discurso busca produzir. São questões necessárias ao debate sobre a centralidade do Jornalismo como foro informal e cotidiano de legitimação ou deslegitimação de saberes, atentando para o fato de que a existência de um discurso jornalístico, que é de mediação, pressupõe a relação com outros discursos socialmente construídos.
PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo. Discurso jornalístico. Análise do discurso


1 Ler o jornalismo

A expressão ler de perto advém de Althusser (1978) e encontra eco em Pêcheux (1995), principal representante da Análise do Discurso Francesa (AD), ao designar o embate com os sentidos, próprio do campo teórico da AD. É aqui empregada para dizer que ler consiste em ponto fundamental na AD no que tange ao papel dos interlocutores de um discurso, cujo dizer é resultado de uma leitura e cujo dito permite leituras (interpretações). E sendo o Jornalismo o objeto deste texto, convém sublinhar que ele, enquanto sistema organizado, traz em si a marca de ser disseminador de leituras de mundo, transformadas em discurso. A leitura produzida pelo Jornalismo, portanto, pode ser (re)lida por meio de dispositivos que permitem adentrar nos sentidos e filiações que se estabelecem no dizer, materializado em texto (oral, escrito, etc). Percorrer aspectos desses caminhos é o que o texto a seguir se propõe.

O artigo apresenta construções teóricas sobre o Jornalismo visto por meio de alguns dispositivos da Análise do Discurso Francesa, evidenciando aspectos desta perspectiva que contribuem para os estudos sobre a produção de sentido dos produtos jornalísticos. Parto do entendimento do Jornalismo enquanto um sistema perito, em constante interação com outras áreas (sistemas) do conhecimento e da vida social. É neste entremeio que se configura o discurso jornalístico, devendo-se considerar, ainda, o papel do jornalista num contexto que congrega elementos como a organização/empresa, a relação com as fontes de informação e o horizonte do público, um outro fundamental neste processo. São todos pontos a serem desprendidos da trama do discurso ao se buscar compreender o que é dito, como é dito e como isto significa, ou seja, os efeitos de sentido que emergem da relação entre texto e contexto.

Percorrendo alguns caminhos teóricos acerca do Jornalismo, desenvolvidos desde os anos 1970, do século XX, é possível encontrar pontos para uma aliança com a Análise do Discurso (AD). É o caso do paradigma construcionista e da ótica da Teoria Interacionista. A concepção de notícia como construção social ( TRAQUINA , 2001) refere-se ao processo de produção jornalística no seu todo, inclusive considerando o contexto, não apenas o da organização de trabalho, mas também aquele que a circunda e nela interfere significativamente. O entendimento das notícias como construções sociais traz consigo a compreensão de que elas são narrativas marcadas pela cultura jornalística e pela cultura em geral. Assim, ao produzir a notícia, o jornalista estabelece uma série de relações, seja com as fontes, com a sociedade, ou com os membros da comunidade profissional. Para cumprir sua função, ele se faz valer das técnicas, gêneros, formatos e processos de edição, por meio dos quais é possível escolher, excluir ou acentuar determinados aspectos dos acontecimentos.

Para Traquina (2001, p.87), as escolhas são orientadas “[...] pela aparência que a ‘realidade’ assume para os jornalistas, pelas convenções que moldam a sua percepção e fornecem o repertório formal para a apresentação dos acontecimentos, pelas instituições e rotinas”. Por esta concepção, a seleção do que vai virar notícia está calcada em critérios e estratégias, incorporadas como rotinas profissionais. Estas, por sua vez, revelam que a maior parte do trabalho jornalístico é fruto de procedimentos habituais e convencionados, o que para Sousa (2005) pode


[...] distorcer ou simplificar arbitrariamente o mundo dos acontecimentos”, constranger os profissionais, tornar o Jornalismo uma atividade burocrática e levar à utilização rotineira de fontes oficiais. Por tais razões, as rotinas seriam um [...] poderoso inimigo da abertura democrática e polifônica dos órgãos jornalísticos ao público em geral (SOUSA, 2005, p.51).

Ao propor pensar na processualidade do Jornalismo vou me valer aqui da classificação do Jornalismo enquanto um sistema, somando-a ao que já vinha sendo exposto. Tal proposta se justifica nos próprios dispositivos específicos desenvolvidos para a produção de objetos reconhecidos como de autoria sua e dentro da relação constante com outras áreas, visão buscada na definição de sistema perito de Giddens (1991). Segundo o autor, sistemas peritos são sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social. Cabe ressaltar, entretanto, que esta nomeação no que se refere ao Jornalismo não é nova.

O enquadramento do Jornalismo enquanto sistema perito já foi exercitado por Miguel (1999), que o considera como um foro informal e cotidiano de legitimação ou deslegitimação dos diversos sistemas peritos da sociedade. Segundo o autor, o contato das pessoas com o Jornalismo “[...] ajuda a confirmar ou desmentir as crenças estabelecidas na [con]fiabilidade dos diversos sistemas peritos” ( MIGUEL , 1999, p.202 [acréscimo meu]), levando em consideração que o público não conta apenas com a sua experiência pessoal, mas também com aquilo que lhe é relatado. Nomeia a imprensa, assim, como a principal operadora de reflexividade nas sociedades contemporâneas.

Para Giddens (1991), há um sentido fundamental no qual a reflexividade é uma característica definidora de toda a ação humana. As pessoas rotineiramente mantêm-se em contato com as bases do que fazem, como parte integrante deste fazer. Tal movimento é denominando por ele de “monitoração reflexiva da ação” (GIDDENS, 1991, p.44). Com o advento da modernidade, a reflexividade assume um caráter diferente. Ela é introduzida na própria base do sistema, de forma que o pensamento e a ação estão constantemente refratados entre si (GIDDENS, 1991, p.45). Uma parte básica do argumento do autor é que a natureza das instituições modernas está profundamente ligada ao mecanismo de confiança em sistemas abstratos, especialmente confiança atribuída aos chamados sistemas peritos.

No Jornalismo, esta confiança pode ser atribuída ao caráter de verdade que se dá aos produtos jornalísticos. Este é um privilégio no que tange ao seu capital simbólico pois capital do Jornalismo é, justamente, a credibilidade (BERGER 1998). Ao fazer circular a informação, o Jornalismo atua como um dos sistemas promotores da reflexividade na sociedade. Num cenário de centralidade da mídia nos processos sociais contemporâneos (SILVERSTONE, 1999), os produtos jornalísticos têm relevante papel no processo de cognição social (MEDITSCH, 1997), relembrando a reflexão que já vêm desde Park (1972), ao nomear o Jornalismo como uma forma de conhecimento. E conforme Berganza(2000, p. 364), as notícias orientam “[...] mais do que informam sobre o que está ao seu redor”. Esta compreensão também pode ser debatida a partir de Fausto Neto(1991, p.13) quando este diz que o campo do Jornalismo “[...] se destaca como agente que, dispondo de regras e poderes específicos, dá conta de operar a própria construção de sistemas de representações”.

Nesta mesma esteira é possível, ainda, recorrer à PONTE(2005), que considera o discurso jornalístico parte integrante da institucionalização da sociedade como realidade objetiva. Para a autora, os produtos jornalísticos são carregados de sentido ideológico, de escolhas, da noção de que essas são as matérias sobre as quais deve-se saber.


Os campos semânticos construídos pela linguagem constituem esquemas de classificação que permitem a acumulação da experiência. A transmissão de esquemas de classificação para diferenciar os objectos constitui o acervo social de conhecimento” (PONTE, 2005, p.99 [grifo e grafia originais]).

O Jornalismo é, portanto, lugar de seleção e de construção desse acervo de conhecimentos e lugar de circulação de sentidos, a partir das escolhas do que é dito e do que é silenciado, de quem participa ativamente na definição deste conhecimento e de quem não está presente. Mariani(1998, p.60) vê no funcionamento jornalístico inclusive um aspecto de “busca pelo convencimento”, assumindo para si a tarefa de desambigüisar o mundo ao construir “modelos de compreensão da realidade” ( MARIANI, 1999, p.112).

Desta forma, o Jornalismo constitui-se não apenas como um lugar de acolhimento das compreensões sobre os variados processos sociais, mas se destaca como agente neste cenário, dispondo de regras e especificidades que operam na circulação de sentidos. Essas teorizações permitem ver que as notícias são resultado de processos complexos. Mais do que isso, que o próprio Jornalismo é um processo e toda a sua processualidade se manifesta no texto, a materialização do discurso ofertada para interpretação do público. É sobre essa materialidade que o analista de discurso vai se debruçar, devendo, para isso, considerar fortemente as especificidades do Jornalismo. Sem isto, ressalta Machado (2007, p.2) [1] os resultados são “[...] equivocados, distorcidos ou mesmo totalmente inválidos”.

Na análise do discurso jornalístico é preciso estabelecer esta conexão com o ideológico no texto. O diálogo com os dispositivos da Análise do Discurso Francesa (AD) desenha-se como um caminho para fazer emergir os efeitos de sentido que constituem a teia discursiva. Trabalhar com a compreensão do Jornalismo enquanto discurso pressupõe considerar todos os aspectos envolvidos neste sistema, nesta processualidade própria do fazer jornalístico, sendo que estes aspectos não estão do lado de fora do texto, mas inseridos nele.

O modo como o Jornalismo interage e fala sobre os demais campos tem a ver com as suas próprias características enquanto um sistema organizado. Na construção do que é selecionado em seu discurso o Jornalismo recria o real estruturando-o mediante a disseminação de significados. Tais significados podem ser conscientes ou podem estar além dos sentidos imediatos do texto (MOTTA, 2000).

A própria lógica de pensar o Jornalismo enquanto um sistema pressupõe operar em termos de organização e interação (FOUNTCUBERTA;BORRAT, 2006) e embora as notícias sejam “[...] codificadas em estruturas já percebidas e previstas” (MOTTA, 2000, p.2), este sistema não preenche os furos nem se transveste de transparência. A opacidade, característica fundamental da linguagem, é intrínseca ao discurso. E quanto mais este funciona, menos evidente se mostra a ideologia. É neste momento, porém, que ela se faz mais presente. Puxar estes fios é tarefa do analista. Ele tem diante de si o desafio de observar a indissociável dualidade texto e contexto, na busca por apreender o que está colado ao texto, ou seja, os efeitos de sentido que determinado discurso busca produzir.


2 Dispositivos para ler

A teia de relações que compõe um discurso metaforicamente simboliza o efeito que ele tem enquanto produtor de sentidos. Aceitar o embate com o texto (escrito, falado, uma imagem) é buscar entendê-lo enquanto um objeto lingüístico-histórico e de como ele realiza a discursividade que o constitui.

Analisar o discurso jornalístico exige o domínio do dispositivo teórico analítico da AD, caracterizado por uma interligação de uma série de noções que concorrem, com igual peso, na constituição do sentido e na configuração da leitura que será feita. Cabe destacar que a palavra dispositivo transcende uma caráter puramente mecânico, traduzindo-se, na verdade, como lógica sistêmica, complexa, como lugar de observação e que compreende procedimento, instrumento e acionamento de processos que permitam, justamente, que se visualize o mecanismo de funcionamento dos discursos. Mais do que um resultado, o discurso se define pelo viés de um processo de significação. Nele estão presentes a língua e a história, em suas materialidades, e o sujeito, devidamente interpelado pela ideologia.

A AD vai considerar o funcionamento lingüístico (da ordem do interno) e as condições de produção em que ele se realiza (da ordem da exterioridade). Desse modo, o lingüístico e o aspecto histórico e social ficam reunidos sob a denominação do discurso. Isso porque o desenvolvimento da AD se dá a partir do imbricamento de aspectos da Lingüística, do Marxismo e da Psicanálise. Assim, busca relacionar a língua com a história e como elas atuam na produção de sentidos, deslocando a noção de homem e pensando um sujeito discursivo que funciona pelo inconsciente e pela ideologia.

Por estes motivos, a AD vai procurar compreender o modo como um objeto simbólico produz sentidos não a partir de um mero gesto de decodificação (ORLANDI , 2001, 1996a), mas como um procedimento que desvende a historicidade contida na língua, em seus mecanismos imaginários.

O conjunto de conceitos inaugurados por Michel Pêcheux, principalmente a partir da década de 1970, do século XX, pressupõe que não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia, a partir de entendimentos buscados em Althusser (1985), para quem todo indivíduo se torna sujeito ao ser interpelado pela ideologia, sem considerá-lo agente da história, mas agente na história (ALTHUSSER, 1978), ou seja, suas construções se dão a partir de determinadas condições e do que lhes é permitido avançar. Pêcheux (1995) ressignifica este pensamento a partir da linguagem e não sociologicamente, tendo a ideologia como conjunto de representações, como visão de mundo ou como ocultação da realidade. Orlandi (2001, p.48) ressalta que não há realidade sem ideologia: “Enquanto prática significante, a ideologia aparece como efeito da relação necessária do sujeito com a língua e com a história para que haja sentido.”

O sujeito é o usuário que põe a língua em ação. O faz, porém, dentro de determinadas condições, uma vez que este sujeito não é fonte do sentido, nem senhor da língua. É fundamental para a AD o pressuposto de que os processos discursivos não têm sua origem no sujeito, embora sua realização ocorra nele. O sujeito é um lugar de significação historicamente constituído, ou seja, é uma posição. Em AD, a posição-sujeito não significa presença física e nem mesmo lugares objetivos da estrutura social, mas um lugar social representado no discurso, sempre a partir de determinada Formação Discursiva. “O sujeito diz, pensa que sabe o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o modo pelo qual os sentidos se constituem nele” (ORLANDI, 2001, p.34).

Isto prova que o dizer não é propriedade particular e as palavras adquirem significação pela história e pela língua. Sujeito e sentido não são naturais nem transparentes, mas determinados historicamente, devendo ser pensados em seus processos de constituição. Torna-se essencial a relação de um discurso com outros discursos possíveis. Para operacionalização deste tipo de pesquisa é preciso estabelecer claramente o significado e a posição do sujeito no discurso. Como pontua Foucault (1995, p.118), “[...] indivíduo e sujeito não são a mesma coisa. Um indivíduo se fragmenta em muitos sujeitos e é o sujeito que fala – e fala de um lugar determinado”, como também ressalta Pêcheux (1995, p.117) ao argumentar que “a noção de sujeito é determinada pela sua posição, pelo lugar de onde fala”. Uma pessoa pode, desta forma, colocar-se como sujeitos diferentes nos discursos, como caracteriza Foucault no conceito de dispersão.

Uma formação discursiva (FD) é “[...] aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada, numa conjuntura dada, [...] determina o que pode e deve ser dito” (PÊCHEUX, 1995, p.160 [grifo no original]), entendimento construído a partir do postulado de Foucault (1995), primeiro a conceituar FD. Trata-se da remissão que o analista pode fazer de todo texto a uma formação ideológica, dado que o sentido do texto se define por essa relação. O conceito de FD é norteador para análise. Por meio dele é possível perceber como se faz a relação das marcas formais que aparecem no discurso com o ideológico, ou então, desbravando o percurso inverso, do ideológico para as marcas formais, tendo o conceito de FD como mediador. Uma formação discursiva é heterogênea por natureza e organiza blocos discursivos, como famílias, mas com fronteiras permeáveis. Todo discurso é produzido mediante uma formação discursiva e para Maingueneau (1993, p.115), “[...] toda formação discursiva é associada a uma memória discursiva, constituída de formulações que repetem, recusam e transformam outras formulações”. Conforme o autor, esse é um processo de reconfiguração incessante no qual uma formação discursiva é levada


[...] a incorporar elementos pré-construídos produzidos fora dela com eles provocando sua redefinição e redirecionamento, suscitando, igualmente, o chamamento de seus próprios elementos para organizar sua repetição, mas também, provocando, eventualmente, o apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação de determinados elementos (MAINGUENEAU, 1993, p.115).

O interdiscurso é o eixo da constituição dos sentidos, o já dito e o que poderá vir a ser dito. Qualquer discurso produzido traz em si outros, algo que é acessível pela memória discursiva. Os sentidos construídos historicamente são convocados nas novas formulações e têm um efeito sobre o discurso que está sendo construído no agora.

No entendimento de Machado e Jacks (2001), com o movimento de pesquisa em torno de elementos que o próprio texto mostra, é possível revelar o que no Jornalismo habitualmente permanece oculto. A AD permite desvendar quem fala e a partir de que posição ideológica e identificar o caráter polifônico ou monofônico de um texto, fazendo aparecer as vozes que conformam o discurso (MACHADO, 2006), bem como refletindo sobre as posições-sujeito ocupadas pelos sujeitos deste mesmo discurso. É ele quem recorta dizeres do interdiscurso para constituir o que, à primeira vista, parece um discurso de sua autoria. E o faz a partir de determinada FD, uma vez que os processos discursivos não têm sua origem neste sujeito, mas na FD com a qual o mesmo imaginária e inconscientemente ele se identifica.

Quando se está diante do discurso jornalístico, isto mostra-se bastante claro. Como propõe Berger (1998, p. 188), o discurso jornalístico só existe porque seu conteúdo provém de outros lugares, “[...] já que ele é um discurso de mediação dos campos sociais [...] lugar de produção e proposição de sentidos e, assim, construção de determinado registro histórico”. Mediação, no entanto, não é passagem de um lado para outro, mas antes um lugar de produção e proposição de sentidos e, vista desta forma, como construção de determinado registro histórico.

Outro horizonte fundamental para pensar o discurso, e neste caso, o discurso jornalístico, são as formações imaginárias. Seu funcionamento designa o lugar que destinador e destinatário atribuem a si mesmos e ao outro, como uma imagem que fazem do seu próprio lugar e do lugar do outro. “Dessa forma, em todo processo discursivo, o emissor pode antecipar as representações do receptor e, de acordo com essa antevisão do ‘imaginário’ do outro, fundar estratégias de discurso” (BRANDÃO, 2002, p.36). É necessário ter presente ser parte da estratégia discursiva situar-se no lugar do público (leitor, ouvinte, telespectador, internauta). Assim, está-se antecipando representações que são feitas a partir do próprio lugar de locutor. A AD, ao falar de sujeito, enunciador e locutor, trabalha com a noção de inculcar, ou seja, repetir muito (algo), recomendar, indicar, aconselhar. Temos o locutor (que produz os enunciados, diz) e seu interlocutor (entrevistado, público ouvinte), que, conforme Orlandi (1996b, p.126) “[...] ou é seu cúmplice ou seu adversário; daí a posição do locutor ser a de influenciar, transformar, inculcar, etc”.

Todo esse mecanismo está assentado no que Pêcheux (1995) denomina antecipação, que é o processo sobre o qual se funda a estratégia do discurso, que é de natureza argumentativa. Vale lembrar ainda que há um leitor inscrito no texto. As condições de produção dos discursos têm papel fundamental, pois o lugar a partir do qual o sujeito fala é constitutivo do que ele diz. Quem fala tem dois horizontes imaginários, pois reflete sobre si e sobre o outro. No caso dos jornalistas, é possível afirmar com Machado e Jacks (2001) que estes profissionais têm em mente, mesmo que de modo internalizado ou intuitivo, o seu público. Eles imaginam conhecer o que o leitor quer saber e até onde vai o seu interesse e para esse público imaginado falam e escrevem.

Tal abordagem fundamenta-se na noção de dois tipos de esquecimento pensados por Pêcheux (1995). O primeiro deles é da ordem do inconsciente, no qual o sujeito se coloca como origem/fonte do sentido. Trata-se de uma ilusão na qual opera o ideológico e é constitutiva do dizer. O esquecimento número 2 refere-se ao controle que o sujeito pensa ter do seu dizer, fazendo escolhas e entendendo aquele como o sentido possível (único). É de natureza enunciativa e constitutivo do dito e apaga possibilidades outras. Cumpre ainda o papel de naturalizar o primeiro esquecimento, o inconsciente. A transposição deste entendimento para o jornalismo encontra também estreita relação com a crença da imparcialidade e da verdade jornalística: “O jornalista acredita ser detentor de um discurso isento e objetivo, quando na verdade carrega uma grande parcela de subjetividade em suas ações” (HAGEN, 2006, p.8) [2] , noção que tem também reflexos no imaginário de quem busca a informação jornalística.


3 Alguns apontamentos desta leitura

As anotações aqui reunidas sobre o estudo do Jornalismo e seus produtos por meio de dispositivos teóricos da Análise do Discurso Francesa mobilizaram alguns conceitos necessários para este tipo de trabalho. As faço, todavia, com a ressalva de que na operacionalização de uma análise, o pesquisador deve agregar outras tantas quantas sejam necessárias para correta interpretação do seu corpus, explorando as potencialidades desses dispositivos.

Para a AD, todo discurso é efeito de sentidos entre locutores, com o sentido dependendo de complexas relações. Assim sendo, as palavras mudam de sentido segundo as posições daqueles que as empregam. Elas são adjetivadas a partir dessas posições, ou seja, da relação com as formações imaginárias. O sentido se forma por um trabalho da rede da memória, ele não está fixado a priori como essência das palavras, nem tampouco pode ser qualquer um: há a determinação histórica. Assim, um enunciado sempre pode se tornar outro. Um texto parte em inúmeras direções. A AD considera o texto em sua materialidade como uma peça com suas articulações. Todas são relevantes para a construção do ou dos sentidos. Importante ainda pensar que em um texto não encontramos apenas uma FD. O texto, ou a materialização do discurso, pode ser atravessado por várias formações discursivas, organizadas em função de uma FD dominante.

Na dispersão de textos que constituem um discurso, a relação com as FD é fundamental. Por isso, no procedimento de análise, é necessário remeter os textos ao discurso e estabelecer as relações deste com as FD, relacionando estas à ideologia. Assim, está explicitado o percurso que caracteriza as várias etapas da análise. O ponto de partida é o texto, da superfície lingüística para o processo discursivo, passando para a análise dos esquecimentos (memória, interdiscurso) e tentando chegar o mais perto possível do real dos sentidos, sempre observando as posições dos sujeitos.

O Jornalismo, enquanto sistema perito, é um lugar de produção social e de produção simbólica. Socialmente, temos sistemas independentes na forma de atuação (jornalístico, científico, político), mas, ao mesmo tempo, a ação combinada deles aponta para uma interdependência quando pensamos temas como a construção e legitimação de conhecimentos ou discursos. Está aí a razão de porque o Jornalismo e a construção da notícia adquirirem esta centralidade e de porque o discurso jornalístico não ser composto apenas por elementos produzidos nos dispositivos específicos que lhe são característicos.

É possível pensar no discurso jornalístico como um discurso sobre, chamando aqui dois aspectos importantes que envolvem os interlocutores de um processo discursivo, a leitura e a interpretação. O discurso sobre remete às escolhas feitas pelos jornalistas e suas fontes na construção dos sentidos que buscam ofertar. Eles, enquanto sujeitos, também carregam em si elementos que lhes permitem (ou autorizam) falar sobre o tema, como sua credibilidade perante o público e a legitimidade que o outro (seu interlocutor, a emissora) lhe concede. As fontes de informação, ao buscarem espaço, estão justamente almejando esta credibilidade que o Jornalismo carrega em si. Abrir este espaço é autorizar o discurso do outro, imprimir nele uma dose de confiança. O discurso de ambos, jornalista e fonte, se molda nesses pormenores, nessa proximidade. Cada palavra toma forma, ainda, levando em conta o público, este presente/ausente, a quem imaginariamente, mas ao mesmo tempo tão especialmente, cada sentido é estendido e se torna, um efeito de sentido a ser (re)lido e interpretado.

Investigar que sentidos são produzidos pelo discurso jornalístico é tarefa de grande importância dentro do atual contexto de centralidade da mídia e do Jornalismo nos processos sociais contemporâneos. O fenômeno da midiatização estabeleceu que a discussão sobre os mais diferentes temas pode se dar em variadas esferas, mas, certamente, o desenho das concepções de mundo construído pelo Jornalismo tem papel relevante na própria questão do imaginário que, por sua vez, tem determinação em todas as esferas do processo discursivo. O Jornalismo é, portanto, espaço profícuo de observação. Mobilizando os dispositivos teóricos e metodológicos da AD é possível apreender o que nele está colado, ou seja, os efeitos que seu discurso busca produzir.


For a close reading of journalism: an approach by means of devices from the analysis of the discourse
ABSTRACT
From the view of Journalism as process and discourse and of this as an effect of directions, the present article, of theoretical matrix, brings notes on the relevance of the study of Journalism and its products by means of the theoretical devices of the French Discourse Analysis. It argues about the importance of the observation of the undissociable duality of text and context, trying to apprehend what is implicit in the text, that is, the effects of meaning that determined discourse tries to produce. These questions are necessary to the debate on the centrality of Journalism as an informal and daily forum of legitimation or delegitimation of knowledge, having in mind the fact that the existence of a journalistic discourse, which is of mediation, presupposes the relation with other socially constructed discourses.
KEYWORDS: Journalism. Journalistic discourse. Discourse analysis


Para leer de cerca el periodismo: un abordaje por medio de dispositivos del análisis del discurso
RESUMEN
A partir de la visión del Periodismo como proceso de discurso y de éste como efecto de sentidos, el presente artículo, de cuño teórico, trae anotaciones acerca de la relevancia del estudio del Periodismo y sus productos por medio de los dispositivos teóricos del Análisis del Discurso Francés. Discute la importancia de la observación de la indisoluble dualidad texto y contexto, en la búsqueda por comprender lo que está pegado al texto, o sea, los efectos de sentido que determinado discurso quiere producir. Son cuestiones necesarias al debate acerca de la centralidad del Periodismo como foro informal y cotidiano de legitimación o no legitimación de los saberes, atentando para el hecho de que la existencia de un discurso periodístico, que es de mediación, presupone la relación con otros discursos socialmente construidos.
PALABRAS CLAVE: Periodismo. Discurso periodístico. Análisis del discurso


Notas
[1] Documento eletrônico.
[2] Documento eletrônico.

Referências

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[<] TRAQUINA, Nelson. O Estudo do jornalismo no século XX. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2001. 220 p.


Reges Toni Schwaab
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação /UFRGS. Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação/UFRGS. Bacharel em Comunicação Social - habilitação Jornalismo pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.
E-mail: reges.ts@gmail.com
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