Televisão comunitária:

mobilização social para democratizar a comunicação no Brasil


Cicilia M.Krohling Peruzzo


1 Introdução
2 Uma história que começa no formato de protesto e trabalho educativo
3 No caminho da autogestão
4 Grades de programação partilhadas
5 Em busca de uma televisão pública popular
6 Conclusão
Notas
Referências

RESUMO
Síntese de estudo sobre a televisão comunitária no Brasil. Baseado em pesquisa bibliográfica, documental e em entrevistas junto a coordenadores de canais comunitários pioneiros, o estudo tem como objetivos: identificar as modalidades de participação popular nos canais comunitários no sistema cabo de televisão no Brasil, além de resgatar as origens desse tipo de produção audiovisual desde o seu formato de TV de Rua. Conclui-se que em meio a crises, distorções e avanços, tais meios de comunicação representam um passo significativo na democratização da mídia no País e na configuração de um novo modelo de televisão pública.
PALAVRAS-CHAVE:Comunicação. Televisão de rua. Canal comunitário. Participação na gestão. Participação popular. Acesso público.


1 Introdução

Este texto aborda o tema da televisão comunitária. Faz breve resgate histórico de iniciativas pioneiras que fizeram televisão na rua, por falta de possibilidade de entrar na tela dos televisores, bem como daquelas que estrearam o sistema cabo de televisão[¹].

Ao contrário do que pode parecer, o tema televisão comunitária no Brasil não remete ao um modelo único. Ele é multifacetado, pois a sociedade civil construiu diferentes maneiras de trabalhar o audiovisual, originalmente a partir do vídeo, único meio capaz de conciliar imagem e som, acessível às manifestações populares durante muito tempo. No final do século passado, as lutas pela democratização da comunicação no País provocaram mudanças no quadro de controle do sistema televisivo, especificamente no sistema de transmissão por cabo, ao possibilitar a criação no canal comunitário e demais canais públicos de uso gratuito. Um estranhamento não tardou a se manifestar: canais comunitários num sistema de televisão por assinatura, portanto tão elitista? Esse assunto gerou debates e controvérsias que, longe de estarem encerrados, se transformaram em bandeira de luta visando levar esses canais ao sistema aberto[2] de televisão.

Houve uma passagem da TV Livre exibida em praças públicas - servindo como instrumento educativo e de animação cultural - para os canais comunitários recebidos nas casas das pessoas, o que não representou o fim dos vídeos populares com cara de televisão.

A lei de TV a cabo instituiu canais de uso gratuito, tais como o comunitário, educativo-cultural, os legislativos (do Senado, Câmara Federal, Assembléias Legislativas, Câmaras de Vereadores) e o universitário, acrescidos mais tarde do canal judiciário. Os dois primeiros canais a entrarem no ar foram o de Porto Alegre e do Rio de Janeiro. O Canal da Cidade de São Paulo está entre os que foram ao ar num terceiro momento, próximo aos de Belo Horizonte e de Brasília. Os canais comunitários instituem sistemas coletivos de gestão e partilham as grades de programação o que, nesse aspecto, os diferencia totalmente da televisão comercial e pública. São canais que incorporam uma dimensão pública diferente daquela representada por canais público-estatais. Contudo, é uma televisão em construção que depende da consciência e mobilização da sociedade civil, especialmente das forças políticas encarregadas da gestão dos mesmos, para poder cumprir um papel social cada vez mais importante. O empoderamento da mídia pelas classes populares é uma ousadia que exige o rompimento de entraves históricos e conjunturais de diferentes matizes.

O objetivo do estudo é identificar as modalidades de participação popular efetivadas nos canais comunitários no sistema cabo, além de resgatar as origens da televisão comunitária no País. Do ponto de vista metodológico, utilizaram-se pesquisa bibliográfica e documental, e a realização de entrevistas com os coordenadores dos canais pioneiros. A fundamentação teórica se ancora em conceitos de participação, que permitem captar a inserção das pessoas nos meios de comunicação popular e comunitária tomando por base os níveis possíveis de envolvimento, já esmiuçados em outros textos[3], e que partem, mas ampliam os modos de participação apontados por Merino Utreras (1988)[4], que em síntese são: participação nas mensagens (nível mais elementar de participação, no qual a pessoa dá entrevista, pede música etc.); participação na produção de mensagens, materiais e programas (consiste na elaboração e edição dos conteúdos a serem transmitidos); participação no planejamento (envolvimento das pessoas no estabelecimento da política dos meios, na elaboração dos planos de formatos de veículos e de programas, na elaboração dos objetivos e princípios de gestão etc.); participação na gestão (participação no processo de administração e controle de um meio de comunicação).


2 Uma história que começa no formato de protesto e trabalho educativo

A primeira TV comunitária não foi uma emissora nem um canal de televisão. Era apenas uma produção audiovisual, no formato vídeo, assistida em praças públicas (por vezes também em recintos fechados, tais como postos de saúde e salas onde se realizavam cursos de formação política) através de um monitor de televisão ou telão sobre algum veículo de maior porte (caminhão ou Kombi). Conhecida por TV de Rua ou TV Livre, tratava-se de uma TV itinerante e participativa transformada em meio facilitador de processos educativo-comunitários, uma vez articulados a trabalhos de mobilização social realizados por Organizações Não-Governamentais, setores da Igreja Católica etc.

Fazer uma nova televisão, que denunciasse as injustiças e promovesse o debate sobre temas então ausentes da grande mídia, processo uma vez facilitado com a chegada do videocassete, tornou-se uma opção de trabalho comunitário visando a conscientização e a mobilização por melhoria das condições de existência de setores empobrecidos da população. A experiência pioneira foi a da TV Viva (Olinda/Recife-PE) nos anos 1980, passando pela Bem TV (Niterói-RJ) e pela TV Mocoronga (Santarém-PA), até hoje existentes.

A TV Comunitária no País também fez experiências no sistema aberto em VHF (Very High Frequency) (TV Cubo, TV Vento Levou, TV 3Antena, TV Beira Linha) nos anos 1980 e 1990, porém somente com transmissão ocasional, já que a legislação proíbe o uso do espectro televisivo sem a devida concessão de canal.

No conjunto, as iniciativas têm também como objetivos denunciar o controle oligárquico da mídia, reivindicar a sua democratização e desmistificar a própria televisão, em geral super apreciada e vista como insuspeita pelo cidadão comum.

Outro tipo de TV Comunitária, ou pelo menos assim denominada – é aquela de alcance local e transmitida em UHF (Ultra High Frequency), normalmente com autorização em nome de fundações e universidades. Em geral retransmitem parte da produção das redes educativas e produzem programas localmente também.

A invenção mais recente e que aos poucos vai se difundindo é o canal comunitário na TV a cabo, um dos sete canais de uso gratuito – próximo a um tipo de canal conhecido canal de acesso publico em outros países - viabilizados pela Lei 8.977, de 6 de janeiro de 1995, e outros dispositivos legais subseqüentes. Estes canais (Comunitário, Universitário, do Senado, da Câmara Federal, das Assembléias Legislativas, Câmaras de Vereadores, Educativo-Cultural e o do Judiciário)[5] podem ser organizados em cidades onde há sistemas de televisão a cabo em funcionamento, cujas operadoras (NET, TVA etc.) são obrigadas a destinar espaço específico para transmissão de programação própria e livre de interferência das operadoras. Há no País cerca de 70 canais comunitários em operação, tanto em capitais como em cidades de menor porte, hoje representados pela Associação Brasileira de Canais Comunitários (ABCCom).


3 No caminho da autogestão

A partir da Lei 8.977/95 a sociedade passou a ter o direito a ocupar o espectro televisivo nacional, embora apenas pelo sistema de transmissão por cabo. Somente um ano e meio após a promulgação da lei é que os canais comunitários começaram a operar.

O POA TV, inicialmente identificado como Canal Comunitário de Porto Alegre, foi o primeiro a entrar no ar. Realizou sua primeira transmissão no dia 15 de agosto de 1996, pelo canal 14 da NET Sul. Atualmente ocupa o canal 6. O segundo canal a entrar em funcionamento foi o do Rio de Janeiro, denominado de TV Comunitária e que estreou com o nome TV Carioca. Começou transmitindo pelo canal 41 da NET Cabo Rio. O Canal Comunitário de São Paulo – hoje denominado TV Aberta, mas que também experimentou os nomes de TV Paulista e TV Com - estreou experimentalmente em 27 de julho de 1997 e partir de 01 de novembro de 1997 passou a transmitir regularmente pelos canais 72 da TVA, 14 da Multicanal e 14 da NET, mais tarde transferido para o canal 9. Está entre os que entraram em funcionamento numa terceira leva, no ano de 1997, juntamente com o de Belo Horizonte, que teria iniciado suas operações em fevereiro de 1997, o canal de Brasília, que começou a funcionar experimentalmente no dia 13 de agosto de 1997, e o de Campinas (TV Fênix) que iniciou suas operações em 27 de setembro de 1997.

O diferencial dos canais comunitários em relação à televisão convencional é o seu sistema de organização e de operação. São geridos por associações de usuários formadas por entidades sem fins lucrativos da sociedade civil que partilham também a grade de programação com produções próprias. A filiação de entidades não-governamentais é voluntária. A associação é aberta à agregação de novos membros quando há afinidade destes com os princípios da mesma. Uma vez criado o canal, elegem-se os membros dos conselhos (diretivo, de programação etc.), diretorias e/ou coordenações, que têm mandatos temporários e se reportam à assembléia geral (constituída pelas entidades que formam a associação), que é a instância máxima de poder.

Quanto à sustentabilidade, cada entidade ajuda a custear as despesas do canal, mediante o pagamento de uma mensalidade (de valor flexível) e adquire o direito de transmitir seus programas. Há casos desviantes em que, além de não se formar associação de usuários, é cobrada taxa de veiculação para exibição de programas. Outras alternativas de sustentabilidade são doações, apoio cultural e permutas. Um grande debate é travado no âmbito dos canais comunitários em torno da proibição da inserção de publicidade como forma de custear seu funcionamento. Representantes do setor reivindicam alteração dos dispositivos legais, mas, de fato, alguns canais a praticam, mesmo que indiretamente, por intermédio das produções de terceiros que são exibidas. Ou seja, algumas organizações que produzem programas inserem mensagens publicitárias de seus patrocinadores.

O estudo demonstrou que o maior problema da maioria dos canais comunitários é de ordem financeira. A situação dos canais comunitários é impar: são criados pela vontade mobibilizadora de organizações locais sem fins lucrativos, as quais precisam obter recursos para sua instalação, equipamentos, operação e manutenção, sem nenhum tipo de ajuda do poder público, nem das operadoras de televisão a cabo, ao contrário dos outros canais de uso gratuito, que são sustentados por recursos públicos, com exceção de alguns canais universitários. Sendo assim, entre as reivindicações desses canais estão: a criação de um fundo público de recursos e a formação de Centros Coletivos de Produção Audiovisual. Tais centros favoreceriam o treinamento dos usuários para a produção audiovisual.

É um processo que experimenta um modo de gestão coletiva. Os canais são geridos tendo por base instâncias decisórias democráticas, todas emanadas de decisões coletivas. Há casos em que o sistema de gestão, apesar de constituir-se de forma coletiva, acaba forjando características de heterogestão, já que estabelece relação dual entre direção e os membros. Assim, não se pode dizer que todos os canais comunitários sejam autogestionários, apesar de todos desenvolverem algum tipo de autogoverno.

Entre os canais comunitários na televisão a cabo perfilam diferenças de concepções e de estratégias, porém apresentam semelhanças quanto aos objetivos almejados em relação ao conteúdo das mensagens. No conjunto, se pautam por colocar no ar uma programação de caráter educativo-cultural e almejando a ampliação da cidadania cultural.


4 Grades de programação partilhadas

Quando falamos em televisão comunitária, tendemos, de imediato, a relacioná-la com as noções que já temos de televisão – segundo nossa experiência, ou seja, com as grandes emissoras de televisão que têm grades de programas regulares e produzidos pela própria emissora. O que inclui ênfase no entretenimento, unidade de conteúdo, alta qualidade técnica e dinamicidade de linguagem, que as emissoras, principalmente as privadas, oferecem e que acabam acostumando o telespectador, tornando-o mais exigente enquanto receptor no que diz respeito ao ritmo da programação e aspectos técnicos.

A televisão comunitária tem entre suas diferenças, duas que são fundamentais para o entendimento de sua programação. Uma diz respeito à possibilidade de ser um canal produtor ou um canal provedor de conteúdos. O canal é produtor quando ele mesmo produz os programas que coloca no ar. Nesse caso, é natural que a programação tenha uma unidade de gêneros e formatos, no estilo de linguagem e no ritmo de produção. Já um canal provedor é aquele que apenas abre e organiza o espaço para transmissão de programas produzidos por terceiros, no caso uma diversidade de entidades associadas partilham a grade de programação. Trata-se de uma decisão básica a ser tomada pelo corpo diretivo de um canal comunitário, o qual definirá a estratégia de ocupação da grade. Ela depende da concepção de canal comunitário idealizado pelo grupo dirigente e os associados, e das condições econômicas, técnicas e de infra-estrutura disponíveis. Assim, quando se faz a crítica de que o canal comunitário não apresenta uma unidade de programação, ela está baseada nos padrões da televisão convencional, que a TV comunitária, por natureza, não se vê obrigada, não quer e nem precisa seguir.

A outra diferença diz respeito à sua força motriz que, por princípio, é a geração de uma programação voltada para ampliação da cidadania, educação, cultura e desenvolvimento social com base em ampla participação popular, sem se submeter aos padrões da TV comercial. A TV comunitária não depende de altos índices de audiência para operar, pois sua sobrevivência escapa a lógica do mercado. Não lhe cabe reproduzir um tipo de programação igual ou similar a das grandes redes de televisão que têm suas próprias finalidades e são regidas pela lógica do mercado capitalista. Acrescenta-se que as grandes TVs já desenvolvem de forma competente a programação a que se propõem e não faz sentido o canal comunitário entrar na mesma linha de conteúdo. Sua finalidade maior é ser canal de expressão para aqueles que historicamente foram privados dos direitos de participar como emissores ativos de conteúdos através dos meios de comunicação de massa; os movimentos sociais, sindicatos e outras organizações sem fins lucrativos. É fazer uma televisão que enfatize o desenvolvimento da cidadania cultura, e, conseqüentemente, contribua para o desenvolvimento social e local.

Tomando por base os conceitos de participação popular na comunicação, observa-se que nos canais comunitários de televisão estudados, vêm desenvolvendo níveis bastante elevados de participação no âmbito da programação. Não se trata de uma participação eventual, de uma participação controlada pelas equipes de direção, como ocorre na grande maioria da grande mídia. Pelo contrário, as entidades obtém – sob condições definidas legitimamente por cada canal comunitário - espaços para veiculação de programas de sua autoria, os quais são produzidos segundo a linha de ação e a perspectiva político-ideológica de cada entidade. São apresentados por pessoas que, na maioria dos casos, pertencem ao quadro associativo ou funcional de cada instituição. Os conteúdos e linha de abordagem são definidos pelas mesmas associações, os quais, em última instância, espera-se que se conjuguem com os objetivos e o caráter público do canal.

Como se vê, realiza-se uma comunicação em que aqueles (entidades da sociedade civil e cidadãos) que eram apenas receptores de mensagens passam a ser emissores ativos.

Há participação no planejamento, na produção, na transmissão e na recepção dos conteúdos veiculados. Tal processo revela que a prática de participação na programação nos canais comunitários se realiza em nível elevado, em que o poder de decisão sobre o conteúdo, a linguagem, o formato do programa e são no grupo, na entidade que veicula programas, e não na equipe técnica ou de direção do canal. Uma ressalva porém precisa ser feita: às vezes se contrata alguma produtora e esta reproduz mecanismos centralizadores de produção, além de, em geral, colocar sua marca com mais destaque do que a da instituição para a qual produziu o programa.

Por outro lado, todos os canais estudados estimulam a participação aberta e direta do cidadão ou de entidades impossibilitadas de produzir seus próprios programas, por meio de programas dos próprios canais, aqui caracterizados como de livre acesso, de modo a facilitar a participação popular e estimular a democratização da comunicação de caráter comunitário e de interesse público. Os espaços de livre acesso em vigor são bastante tímidos e precisariam ser ampliados. Em alguns casos houve até redução de programas facilitadores desse tipo de participação. Aliás, a legislação da TV a cabo, através da norma 13/96 Rev/97, determina que os canais estruturem suas grades deixando horários de livre acesso. Tais espaços são denominados de “livre acesso” porque representam a participação voluntária e livre, portanto sem condicionantes impeditivos, como por exemplo, de taxas e exigências em termos de linguagens e conteúdos. A participação pode ocorrer através da inclusão de programas (ou vídeos) produzidos autonomamente, de vinhetas, programetes, como também por meio da participação direta na tela com informações, depoimentos e entrevistas.


5 Em busca de uma televisão pública popular

Uma das perguntas a serem respondidas é o que significa ser TV comunitária em grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, mas também em cidades como Piracicaba, Petrópolis e assim por diante. É um tema complexo, pois transita entre os conceitos de comunidade, que apontam para a unidade e interesses e laços de proximidade - e as diversidades características dessas realidades.

Nessas condições, há que se extrapolar a noção de comunidade de lugar, sem deixar de considerá-la, mas agregar o sentido comunitarista advindo de outros tipos de proximidades, tal como de interesses, objetivos e outros sentidos de vida em comum ,a exemplo de grupos étnicos, culturais, sindicais, associações de bairros, movimentos sociais etc.

Há que recordar que comunidade pressupõe participação ativa dos seus membros, caráter cooperativo, sentimento de pertencimento, compromisso, interação, compartilhamento de objetivos e outros elos em comum. Portanto, um canal comunitário pressupõe o acolhimento dos diversos atores que compartilham dos interesses emancipatórios do ser humano e requer a existência de democracia e envolvimento direto de cidadãos, associações, movimentos populares e demais organizações sem fins lucrativos nos seus processos de criação, de administração e na programação.

Essa noção aparece, mesmo que de modo fragmentado, na dinâmica interna dos canais comunitários e varia de um para o outro, ao se adotar o princípio de ser um canal “canal”, ou Canal das TVs comunitárias (canal provedor de espaço para a transmissão de programas de produtoras dos próprios movimentos populares e associações). Significa ser, além de produtor de programas, um provedor de espaço para entidades, cidadãos ou pequenas TVs Livres. O senso de partilha da grade de programação e os mecanismos de gestão pública e coletiva também inferem dimensões comunitaristas já em prática nos canais.

Não nos parece adequado conceber um canal comunitário de televisão numa cidade grande como Rio de Janeiro ou São Paulo, entendendo comunidade como algo fechado e restrito a uma única “comunidade”, nem tomar a localidade como algo uníssono e livre de contradições. Um canal comunitário numa cidade de grande ou de pequeno porte pressupõe basear-se na pluralidade e assim refletir a diversidade que a constitui enquanto cidade, ou seja, portadora de uma gama de comunidades, grupos organizados, movimentos sociais e organizações sem fins lucrativos de interesse social. Requer abertura à pluralidade de visões e perspectivas de ação social, representando quase uma “comunidade de comunidades”. Requer representatividade.

O compromisso com o bem-estar coletivo e com os direitos do cidadão, refletido no senso de igualdade, interesse em favorecer a participação e a justiça social que seus protagonistas carregam em comum, pode dar unidade ou identidade a um canal comunitário numa metrópole, desde que sua programação dê significativa visibilidade a tais princípios.

Ao canal comunitário não basta ser local. Suas práticas de gestão e sua programação devem traduzir posturas de cunho coletivo, facilitar a participação ampliada do cidadão e das organizações que o representam em todos os níveis, assim como disponibilizar programas voltados para o desenvolvimento da educação, da cultura, das artes e da cidadania, sempre colocando o interesse público acima dos interesses particulares e de grupos.

Na prática, muitas limitações dificultam as operações dos canais comunitários no Brasil, entre elas: a falta de recursos; a impossibilidade de contratação de funcionários (com exceções); não existência de um centro de produção coletiva; restrição ao acesso do cidadão (o acesso principal é garantido somente a entidades associadas, ou àquelas que compõem o conselho gestor ou que costumam ler o Diário Oficial e têm recursos para pagar a veiculação); sub-utilização (por entidades e cidadãos) dos espaços abertos para a veiculação de programas e para a participação na programação de livre acesso, produzidos pelos canais; exibição de programas distantes da perspectiva comunitária; sofrível produção de grande parte dos conteúdos veiculados; conflitos de interesses existentes no âmbito interno dificultam a gestão e provocam a morosidade nas decisões e na incorporação de inovações; cobrança de taxas para veiculação de programas por parte de alguns canais; falta de planejamento sistemático do canal como um todo, mas principalmente no que se refere à sua comunicação e às formas mais profissionalizadas de captação de recursos; e transmissão restrita ao sistema a cabo de televisão.

Para fazer frente a tantos problemas, além de garantir o cumprimento da Lei de TV a Cabo em todo o território nacional e congregar os canais comunitários de TV por assinatura ou abertos de todo o País, foi criada, em 2001, a Associação Brasileira dos Canais Comunitários (ABCCom)[6], cuja sede está localizada em Brasília, em instalações cedidas pelo Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal. Entre suas bandeiras recentes de luta está a reivindicação para colocar os canais comunitários também no sistema de televisão aberta.

Os canais comunitários se configuram como um movimento social que busca soluções para seus problemas e o aperfeiçoamento contínuo de suas práticas. Sem a pretensão de passar receitas e enfatizando que muito do que segue, de certa forma já faz parte do debate ou da ação concreta de alguns canais, apontamos aspectos de possíveis ações pró-ativas visando contribuir para o avanço dos canais, quais sejam: mobilização social para maior empoderamento da mídia comunitária; criação de centros coletivos de produção audiovisual; criação de estúdios montados pelas operadoras; constituição de fundo público; ampliação do acesso popular; capacitação de jovens e lideranças populares; planejamento e visibilidade pública; cuidados com a qualidade da programação; montagem da grade de programação por gêneros e temas; e a ampliação da representatividade social.

Por fim, a comunicação comunitária no Brasil, e no seu interior, a televisão comunitária, vem contribuindo para gestar um novo modelo de comunicação pública, o público-popular. Novo por que não se trata do modelo público-estatal, nem o público de alta cultura, nem o educativo-cultural controlados pelos governos, por órgãos de gestão com representação civil e/ou pública ou por grupos privados, respectivamente. É uma comunicação que parte da sociedade civil, no âmbito das organizações comunitárias e de outros matizes, voltadas para o desenvolvimento social e ampliação do exercício da cidadania. Ele se diferencia dos modelos tradicionais porque se caracteriza como um lugar de acesso e protagonismo popular-comunitário e conseqüente partilha do poder de gerenciar, informar, educar e divertir a partir fontes e conteúdos não priorizados pela grande mídia.

Trata-se de um modelo em construção que parece indicar a possibilidade de se fazer uma nova televisão que se baseia nos princípios de participação popular ativa e de gestão coletiva, enfim do empoderamento social da mídia para uso público. Um meio de comunicação público também porque respeita a pluralidade e serve de canal de expressão dos segmentos alijados do poder de comunicar por meio das tecnologias de comunicação disponíveis na sociedade. A geração do modelo público-popular não significa a negação dos outros modelos vigentes. Pelo contrário, estes podem funcionar paralelamente porque seus perfis são diferentes e complementares.


6 Conclusão

Em meio a crises, distorções e avanços, os canais comunitários representam um passo significativo na democratização da comunicação no País. Eles apresentam alguns sentidos em comum, mas na realidade têm suas especificidades que tornam cada um, único. A particularidade de cada canal é construída em decorrência da história vivida por cada um; das políticas de ação delineadas pelos grupos que o colocam em funcionamento; da experiência e perspectiva democrática de suas lideranças; da conjuntura em que está inserido (se a cidade é grande ou pequena, se existem ou não organizações populares fortes e mobilizadas etc.); do grau de interesse das organizações civis sem fins lucrativos pelo uso público dos meios de comunicação; do nível de consciência e organização dos movimentos sociais da região; do tipo de correlação de forças postas em contato quando da criação e gestão de cada canal; das condições infra-estruturais disponíveis; do tipo de gestão e de estratégia traçada para arrecadação de recursos, entre outros fatores.


Community television: social mobilization to democratize communication
ABSTRACT
Synthesis of a study on community television in Brazil. Based upon bibliographical and documental research, as well as on interviews with coordinators of pioneer community channels, this study aims to identify the forms of popular participation in community channels in the cable television system in Brazil, and also to recover the origins of this type of audio-visual production ever since its street TV format. The conclusion is that despite crises, distortions, and advancements, such means of communication represent a significant step in the democratization of the country’s media and in the configuration of a new model of public television.
KEYWORDS:Communication. Street television. Community channel. Participative management. Participation. Public acess.


Televisión comunitaria: movilización social para democratizar la comunicación en Brasil
RESUMEN
Síntesis de estudio sobre la televisión comunitaria en Brasil. Basado en investigación bibliográfica, documental y en entrevistas junto a coordinadores de canales comunitarios pioneros, el estudio tiene como objetivos: identificar las modalidades de participación popular en los canales comunitarios en el sistema cabo de televisión en Brasil, además de rescatar los orígenes de ese tipo de producción audiovisual desde su formato de tele callejera. Se concluye que en medio crisis, distorsiones y avances, tales medios de comunicación representan un paso significativo en la democratización de los media en el país y en la configuración de un nuevo modelo de televisión pública.
PALABRAS CLAVE: Comunicación. Televisión callejera. Canal Comunitario. Participación en la gestión. Participación popular. Acceso Público.


Notas
[1] Trata-se de uma aproximação geral ao conteúdo da obra Televisão comunitária: dimensão pública e participação cidadã na mídia local, da autora, publicado pela Editora Mauad, Rio de Janeiro, em 2007.
[2]VHF (Very High Frequency) e UHF (Ultra High Frequency).
[3]Ver Peruzzo (2004).
[4] O trabalho de Merino Utreras sistematiza os princípios da participação na comunicação aprovados em reunião sobre autogestão, realizada em Belgrado em 1977, e em Seminário do CIESPAL/UNESCO, em 1978, apresentando-a como participação na produção, no planejamento e na gestão.
[5] A partir de 2005 foi incluído uma emissora do poder executivo – a NBR, TV Nacional Brasil, transmitida por satélite e por cabo – e que teve sua inclusão no cabo aprovada pela Comissão de Comunicação da Câmara dos Deputados.
[6] Ver www.abccom.org.br .

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Cicilia M.Krohling Peruzzo
Professora / UMESP
Doutora em Ciências da Comunicação / USP
Mestre em Comunicação Social / UMESP
Graduada em Comunicação Social / Anhembi Morumbi
E-mail: kperuzzo@uol.com.br
Curriculo Lattes