No diálogo com o outro, a crisálida pode tornar-se borboleta, a comunicação tem chance de acontecer:

sobre Martin Buber


Ciro Marcondes Filho


1 Um homem atípico
2 O primado da relação
3 As palavras-princípio Eu-Tu e Eu-Isso
Notas
Referências

RESUMO
Martin Buber introduziu na filosofia o tema do diálogo. Para ele, nem o Eu, nem o Tu estão no início de tudo; no princípio, está simplesmente a relação. A relação é o espaço “entre”, é esse ambiente comum, essa coisa que ata os homens numa interação social. E quando dialogam, os participantes devem realizar uma autêntica imersão, dissolver-se na cena, na relação, na troca, no instante. E é igualmente instantânea a relação que homens têm com as obras da cultura. Uma obra de arte, por exemplo, só se torna de fato obra pela ação do homem, que a realiza, que lhe dá um “poder eficaz”. Depende de nós realizarmos ou não as coisas. Podemos ver o mundo, o outro, as obras como um “Isso”, como algo que buscamos conhecer, dominar, entender; mas podemos vê-los, também, como um “Tu”, se deixarmos de lado a busca do conhecimento e nos entregarmos à relação. Só assim pode se realizar a comunicação.
PALAVRAS-CHAVE: Diálogo. Comunicação. Alteridade. Relação. Palavras-princípio, Eu-Tu.


1 Um homem atípico

A origem da tematização do diálogo como objeto filosófico não esteve somente a cargo do pensador lituano, naturalizado francês, Emmanuel Lévinas, que foi influenciado por Gabriel Marcel, na França, mas, acima de tudo, por Franz Rosenzweig, seu professor em Estrasburgo. Este último trabalhou na Alemanha muito próximo a Martin Buber, tendo sido ambos os responsáveis pela nova versão da Bíblia para o alemão, corrigindo deturpações gritantes do trabalho de Lutero. A obra, iniciada pelos dois, foi, contudo, concluída por Buber, pois, já que naquela altura, 1925, Rosenzweig não tinha condições de colaborar em virtude da deterioração de seu estado de saúde e de sua posterior morte.

Martin Buber sintetizou, de certa maneira, todo um movimento de ateísmo místico do início do século 20, do qual fizeram parte igualmente os membros fundadores da Escola de Frankfurt. Na cartilha de todos esses pensadores de origem judaica (Buber, Rosenzweig, Landauer, Scholem, Benjamin, Horkheimer e Adorno) tentava-se resgatar a noção de redenção e de irrupção catastrófica, ambas voltadas a um ideal de socialismo libertário e utópico. A fantasia revolucionária futurista, para eles, deveria compor com a restauração, realizando ambas, numa espécie de síntese hegeliana, esse tipo de socialismo[1].

A redenção deixava de ser, assim, um fenômeno meramente subjetivo, confessional, para se tornar um acontecimento histórico, sendo que essa “irrupção catastrófica” deveria separar a decomposição do presente das expectativas futuras de uma redenção. Ela é vista como proposição de uma religiosidade oposta ao clero oficial, sem mitologias nem superstições. Todos seus representantes incorporavam este tipo de messianismo judaico associado ao socialismo utópico; opunham cultura à civilização, sendo a primeira o espaço da ética, da estética, dos valores religiosos e comunitários, e a segunda, o lugar dos valores econômico-capitalistas e técnicos. Mesmo Marcuse e Habermas, já no pós-guerra, ainda carregam essa herança frankfurtiana e judaico-messiânica dos fundadores da Escola. É o caso também do ateísmo místico de Walter Benjamin, que, como os outros, hegelianamente conserva ao mesmo tempo que supera a dimensão religiosa. Um texto, por exemplo, de Gustav Landauer, de 1913, poderia muito bem ter sido escrito por Walter Benjamin: “[...] o arquiantigo que reencontramos em nossa alma é o caminho do devir da humanidade, e a tradição do nosso coração martirizado e nostálgico não é outra coisa senão a revolução e a regeneração da humanidade”.

Não obstante, a posição de Martin Buber não vai se concentrar na grande revolução, no investimento na mobilização das massas, sequer na politização dos oprimidos. Ele está preocupado, antes, com o homem, com a recuperação do humano numa sociedade cada vez mais técnica. E esta preocupação será traduzida no investimento da relação pessoal com o outro. Para isso, apóia-se primeiramente em estudiosos da linguagem como Hamman, Herder, W. von Humboldt, de um lado, e no crítico da religião, Ludwig Feuerbach, de outro. Os três primeiros representam uma espécie de “contra-iluminismo” antirracionalista, que, na opinião de Frank Hartmann, lança uma ponte ligando a teoria do conhecimento do século 18 com a filosofia da linguagem dos séculos 19 e 20. Os problemas gritantes que chegaram até a crise atual da filosofia já estariam em elaboração nesses autores, que se perguntam – wittgensteinianamente avant la lettre, diríamos nós – se os limites de meu pensamento, da minha visão de mundo são determinados pela minha linguagem.

De Ludwig Feuerbach, Buber extrai o “impulso decisivo” (ZUBEN, 2004)[2], quer dizer, a diferença que se tornaria fundamental em toda sua obra: o par Eu-Tu. Não obstante, para o filósofo da Essência do cristianismo esse par de conceitos estava voltado especialmente às relações homem-mulher, enquanto que para Buber a relação Eu-Tu valia para qualquer pessoa, inclusive para outros seres vivos. Por fim, Buber contagiou-se também, de passagem, pela magia da filosofia heideggeriana[3], ao dizer que os entes vivem em torno de você, mas, ao se aproximar de qualquer um deles, você distingue sempre o Ser. Von Zuben cita uma outra semelhança, a saber, no fato de o homem poder atender ao apelo do ser, decisão essa “essencialmente passiva e ativa”, de aceitação ou recusa.


2 O primado da relação

A descoberta da importância da alteridade foi feita por Buber em tenra idade, no contato com seu cavalo favorito, na casa de seu avô[4]. Num dado momento, diz ele, “algo aconteceu”, “algo foi dito”. Era um diálogo, o diálogo teria realmente acontecido. Mas, evidentemente, o filósofo não permaneceu nessa relação singular. A idéia do encontro, que é a mesma de Bachelard (“síntese do evento e da eternidade”), evoluiu para um princípio genuinamente filosófico em sua obra: Eu e Tu além de descrição das atitudes do homem em relação ao outro e ao mundo, além de fenomenologia da palavra, é essencialmente uma ontologia da relação.

No princípio está a relação, diz Buber, frase essa cujo eco pôdese ouvir mais de meio século depois em Humberto Maturana. Há, para Buber, duas atitudes do homem diante do mundo; a primeira e mais importante é pré-cognitiva e pré-reflexiva, a segunda é a atitude lingüística social. A linguagem, diz ele, no melhor estilo heideggeriano, não é conduzida pelo homem; antes, ela o conduz e o instaura no ser. A palavra é portadora do ser, através dela o homem introduz-se na existência visto que ela o conduz e o mantém no ser. Quando homem fala, quando profere palavras, quando enuncia, o ser se atualiza nele; através dela, ele “faz-se homem” e situa-se no mundo com os demais homens. O homem é basicamente um ser dia-logal e dia-pessoal. Entretanto, diante do outro, ele não precisa imediatamente conversar, pois, para Buber, a zona de silêncio é um suporte sobre o qual se inscreve a confiança no outro. O Eu-Tu faz parte do conjunto denominado por Buber de “palavras-princípio” (Grundwörter). Além dele, há também o Eu-Isso, onde o isso pode ser substituído por ele ou ela. (Voltaremos a isso mais à frente)

O diálogo é o lugar desse encontro e a palavra é essencialmente dialógica, quer dizer, algo que, conforme o prefixo dia-, atravessa, perpassa a relação. Dia-logos, uma relação, um discurso, uma razão que perpassa, que está no meio[5]. Para Buber, a categoria primordial da dialogicidade da palavra, portanto, é o entre. O entre é o lugar “onde o espírito habita” (BARTHOLO Jr., 2001), o lugar da relação, do encontro, do diálogo. E isso, também no amor. Diferente da concepção feuerbachiana da dualidade Eu- Tu, vista atrás, Buber diz que o amor não é algo possuído pelo Eu como se fosse um sentimento, pois, os sentimentos nós os possuímos, mas algo que acontece, está aquém do Eu e além do Tu, que ocorre no campo do “entre”. Como na linguagem, o homem habita o amor, isso que surgiu, como “terceiro incluído” na linguagem de Michel Serres, do encontro, do diálogo[6].

A relação dialógica entre duas pessoas supõe, obrigatoriamente, a imersão. “Não se pode permanecer na praia contemplando as espumas, as ondas: deve-se correr o risco, atirar-se na água e nadar”, diz ele em O problema do homem. A influência que se observa aqui é de Rosenzweig, que recusava a concepção moderna (hegeliana) de progresso na história, progresso como desenvolvimento infinito, substituindo-a pela idéia judaica do instante, o qual concentra em si – como no helenismo antigo – a plenitude da eternidade. A isso Buber chama de totalidade, o fato de o participante dever entregar-se totalmente ao momento e ao acontecimento dialógico[7].

Essa é também a saída para a questão filosoficamente recorrente do sentido da vida. Diferente da posição metafísica, que lança a existência numa totalidade de sentido de cunho transcendente, Buber sugere que o sentido está exatamente no momento, no instante presente e somente nele. “Viva cada evento e cada encontro de modo mais autêntico possível”, diz seu personagem Daniel, para descobrir a mensagem que ele traz: o sentido não é independente disso. Aqui se reconhece a presença do pensamento estóico, que Buber já havia mencionado indiretamente em outras passagens[8].

David Bohm, retoma, mais recentemente, a importância do diálogo. Para ele, diálogo é o lugar da criação do novo, uma relação de duas ou mais pessoas em que os interlocutores fazem algo em comum, dando espaço ao aparecimento desse novo. Não se trata, de forma alguma, de troca de idéias ou pontos de vista como fragmentos de informação, pois, neste caso, diz Bohm, o encontro fracassará, pois cada pessoa ouvirá a outra pelo filtro de seus pensamentos, os quais procurará conservar ou defender, não importando se verdadeiros ou coerentes.

O processo de travamento do diálogo ocorre, segundo Bohm, por causa de bloqueios e do medo. Uma pessoa que pretende se comunicar com outra acha que já está ouvindo a outra de modo adequado mas que essa outra, ao contrário, é preconceituosa e não ouve; que ela é “bloqueada” em relação a algumas questões. Quer dizer, sem perceber, a pessoa evita enfrentar o confronto com certas idéias que lhe são muito caras, tornando-se insensível, anestesiada dessas contradições. O que ocorre e que as pessoas não percebem é que jamais se está atento aos próprios bloqueios, pois, se assim o fizessem poderiam perceber que sensações fugazes de medo sempre aparecem junto com algumas questões, diz Bohm; essas são sensações que as impedem de refletir sobre elas. Ao mesmo tempo, contudo, há sensações de prazer que atraem seus pensamentos e os fazem voltar-se a outros assuntos[9].

Um diálogo, diz Bohm, não se faz para analisar coisas, ganhar a discussão ou trocar opiniões.


Seu propósito é suspender as opiniões e observá-las – ouvir os pontos de vista de todos, suspendê-los e a seguir perceber o que tudo isso significa. [...] Poderemos simplesmente compartilhar a apreciação dos resultados: e dessa totalidade a verdade emerge sem se anunciar, sem que a tenhamos escolhido” (BOHM, 2005, p. 65).

3 As palavras-princípio Eu-Tu e Eu-Isso

A palavra princípio Eu-Tu aplica-se ao encontro entre dois parceiros, marcado por reciprocidade e confirmação mútua; já a palavra princípio Eu-Isso é usada para caracterizar procedimentos em que nós experimentamos e nos utilizamos de objetos, idéias, pessoas, etc. Enquanto esta última refere-se a uma atitude cognitiva, objetivante, a primeira é ontológica. Esta duplicidade tem a ver com fato de que nas relações humanas não há o Eu isoladamente, de que todo início parte de um Tu. Tu é a fonte primordial e Isso é sempre posterior a ele[10].

Na origem está o Tu, o Isso vem depois, mas não se pode dizer que Tu seja só positividade, nem que Isso seja só negatividade. Tu não é uma pessoa, assim como Isso não é uma coisa nem um animal. O Tu é, em princípio, qualquer ser que esteja presente no face-a-face. Pode ser um homem, uma obra de arte, uma pedra, uma flor, uma peça musical, Deus. Por exemplo, ao observar uma árvore, se eu for levado a entrar em relação com ela, diz Buber, ela já deixará de ser um Isso. Ou então, uma obra de arte, que é uma forma que se defronta com o homem e anseia tornar-se obra por meio dele. Diz ele, que a obra de arte não é um produto de seu espírito mas uma aparição que surge diante dele exigindo-lhe um poder eficaz. É o homem que a realiza: se ele profere a palavra-princípio Eu-Tu, brotará a força eficaz e surgirá a obra.

E isso há de brotar de forma instantânea, como uma “totalidade” no sentido buberiano: uma melodia não se compõe de sons, nem os versos compõem-se de vocábulos, pois estes retalham e dilaceram; da mesma forma, a pessoa a quem eu digo Tu não se dilui em partes menores. No verdadeiro estilo do conhecimento metafísico de Henri Bergson, Buber diz que do homem a quem digo Tu posso extrair a cor de seus cabelos, o matiz de suas palavras ou de sua bondade, mas, quando assim procedo ele já não será mais um Tu.

O Isso é atitude do homem diante do mundo, relação em que ele opera conhecendo, transformando, intervindo. São as aquisições científicas, tecnológicas, estéticas. No dizer de Buber, o Isso é a crisálida de onde irá, eventualmente, brotar um Tu, a borboleta. Mas não se trata de estados que se alternam, adverte ele, mas de “processos que se entrelaçam confusamente numa profunda dualidade”.

O Isso, na medida em que significa ver o outro como objeto de uso, de conhecimento, de experiência, pode, por seu turno, também ser uma pessoa. Por exemplo, quando encontramos alguém e o saudamos, utilizando formas desgastadas como um “olá”, um “tudo bem?”, estaremos nos relacionando na forma Eu- Isso. É diferente se o saudarmos com algo mais próximo, íntimo, especial, como “lhe dando um cheiro”, diz Buber referindo-se aos americanos, ou, possivelmente a nós.

Sabemos que Emmanuel Lévinas se utiliza de Buber por considerá-lo um autor importante, pois elimina o fundamento gnoseológico do encontro: eu não me encontro com o outro para saber nada, para passar nada, eu me encontro com ele para participar de uma relação fundamental diádica, síntese de evento e eternidade, em que sou instaurado no ser, introduzido na existência a partir da relação, da linguagem, da “cena”. Também por ver nele o filósofo que eleva o Tu à categoria de absolutamente outro, excluindo, assim, o Nós da relação.

Lévinas adiciona à tese buberiana a idéia de que o Tu é o feminino, na medida que o feminino é a alteridade genuína e encontra, nessa tese, limitação no sentido de que, para ele, Buber não desdobra suficientemente as atribuições da relação Eu-Tu, não a conduz até a postura ética, a saber, à situação em que o Eu coloca-se diante do Tu sob uma relação de servidão (a “diaconia” lenivasiana).

É discutível essa crítica, por mais louvável que seja a posição de Lévinas ao exigir da atitude do humano uma participação mais significativa do que um mero estar presente no ato. Aqui, o pensamento de Lévinas pode ter sido contaminado pela ética da religião, que exige de cada um uma contribuição de maior peso do que simplesmente estar junto na relação. Mas Buber busca escapar da religião, assim como de uma fixação de um Estado para o povo judaico. Na tradição do pensamento messiânico-socialista e de um ateísmo místico que apostava numa fantasia internacionalista de libertação, o que importa, de fato, é a forma como o homem se relaciona com seu semelhante, como considera essa alteridade, como sai de si e entrega-se à relação a partir do reconhecimento do outro. É o próprio Buber quem diz: “Tomo a quem me ouve pela mão e o encaminho à janela. Abro a janela e aponto para o que está lá fora. Não tenho nenhuma doutrina, mas mantenho uma conversação” (BUBER, 1991, p.693).


In the dialogue with the other, the chrysalis may become a butterfly, communication has a chance of happening: about Martin Buber
ABSTRACT
Martin Buber introduced in the philosophy the subject of the dialogue. For him, nor I, nor You are at the beginning of everything; in the principle is simply the relation. Relation is the space “between”, it is the ordinary atmosphere, something that ties people in a social interaction. And when they dialogue, the participants must carry through an authentic immersion, become fluid themselves in the scene, in the relation, in the exchange, in the instant. And it is equally instantaneous the relation that men have with the works of culture. A work of art, for example, only becomes in fact workmanship for the action of the man, who carries through it, who gives it a power “to be efficient”. It depends on us to carry through or not the things. We can see the world, the other, the workmanships as a “This”, as something that we search to know, to dominate, to understand; but we can see them, also, as an “You”, if we leave apart the search of the knowledge and deliver ourselves to the relation. Only acting like this can we let communication happens.
KEYWORDS: Dialogue. Communication. Relation. Principlewords. I-You.


En el diálogo con el otro, la crisálida puede convertirse en mariposa, la comunicación tiene chance de acontecer: sobre Martin Buber
RESUMEN
Martin Buber introdujo en la filosofía el tema del diálogo. Para él, ni el “Yo”, o el “Tú” están en el inicio de todo; en el principio, está simplemente la relación. La relación es el espacio “entre”, es ese ambiente común, esa cosa que ata a los hombres en una interacción social. Y cuando dialogan, los participantes deben realizar una auténtica inmersión, disolverse en la escena, en la relación, en el cambio, en el instante. Y es igualmente instantánea la relación que los hombres tienen con las obras de la cultura. Una obra de arte, por ejemplo, sólo se convierte de hecho en obra por la acción del hombre, que la realiza, que le da un “poder eficaz”. Depende de que nosotros realicemos o no las cosas. Podemos ver el mundo, el otro, las obras como un “Eso”, como algo que buscamos conocer, dominar, entender; pero podemos verlos, también, como un “Tú”, si dejamos de un lado la búsqueda del conocimiento y nos entregamos a la relación. Sólo así se puede realizar la comunicación.
PALABRAS CLAVE: Diálogo. Comunicación. Alteridad. Relación. Palabras-principio, Yo-Tú.


Notas

[1]Buber e a Escola de Frankfurt: um messianismo judaico associado a um socialismo utópico e internacionalista. “... característica distintiva do messianismo judaico é que a redenção não constitui um evento subjetivo, processado apenas no estado de alma dos crentes, mas um acontecimento eminentemente histórico, visível, sensório, objetivo. Entre o presente estado de degradação e a redenção há uma ruptura, uma verdadeira ‘irrupção catastrófica’ ”(BARTHOLO Jr., 2001, p. 31) “No romantismo centro-europeu se entrelaçam a utopia revolucionária futurista e a restauração, como pano de fundo ético-cultural da dinamização da afinidade eletiva entre o messianismo judaico e o socialismo utópico-libertário” (BARTHOLO Jr., 2001, p. 32). “Tema central na crítica romântica é a oposição entre Kultur (domínio de valores éticos, estéticos, religiosos, comunitários, vitais) e Zivilisation (domínio dos valores econômico-mercantis, técnicos, materialistas, mecânicos)”. (BARTHOLO Jr., 2001, p. 33). “Outro elemento do mesmo contexto é a forte atração da intelectualidade judaica pelo ideário socialista internacionalista” (BARTHOLO Jr., 2001, 2004, p. 36). Ver também Lövy: “A maioria deles [judeus parias-rebeldes-românticos da Europa Central] opta ‘... pela recusa de todos os nacionalismos e por uma utopia romântica anticapitalista internacionalista na qual as desigualdades sociais e nacionais seriam radicalmente abolidas: o anarquismo, o anarcossindicalismo ou uma interpretação romântica e libertária do marxismo. É tamanha a força desse ideal que ele influencia até os próprios sionistas Buber, Hans Kohn, Scholem’ ” (LÖWY, 1989, p. 40). É também o caso de Landauer: “Sua perspectiva [de Landauer] é bastante próxima à do anarcocristianismo de autores como Tolstoi, ‘... trazendo uma mensagem de redenção social, uma religião oposta às Igrejas, sem mitologias e sem superstições’ ” (BERTHOLDO Jr, 2004, citando Tolstoi (1994, p. 119) e depois Löwy (1989, p. 115), pela ordem). Walter Benjamin bebeu nesta mesma fonte: “O messianismo judaico não será em Landauer secularizado, no sentido vulgar da palavra. Ocorre uma verdadeira Aufhebung (superação) hegeliana, que dialeticamente conserva e supera a dimensão religiosa, permitindo que ela permaneça presente no imaginário político como um ateísmo místico” (BARTHOLO Jr, 2004, p. 46). A citação de Landauer que lembra Benjamin está em Landauer (1921, p. 196, apud BARTHOLO Jr, 2004, p. 46).

[2]Feuerbach, o impulso decisivo para a obra de Buber. (ZUBEN, 2004, p. 19-20). Feuerbach atribuía importância fundamental ao amor. “As relações humanas deduzem-se particularmente do amor sexual. O verdadeiro eu não é assexuado, ele é, seja do sexo masculino, seja do sexo feminino, um ser complementar dum outro ser. Até esse momento, a filosofia não tinha levado em conta a diferença sexual, como se esta estivesse limitada ao próprio sexo. Entretanto, todo meu ser reflete minha qualidade de homem ou de mulher. Sabendo-me homem, eu reconheço a existência de um outro ser, ao mesmo tempo diferente e complementar, e que contribui para me determinar. Logo, não sou um ser autônomo, mas, por natureza, um ser ligado a outro ser. O verdadeiro princípio do ser é a união do eu com o tu. É sobre esta união original que repousa toda a vida social. ‘O indivíduo por si mesmo não possui em si mesmo a essência do homem nem enquanto ser moral, nem enquanto ser pensante. A essência do homem só está contida na comunidade, na unidade do homem com o homem – uma unidade entretanto que só se apóia na realidade da diferença do eu e do tu’.” (ARVON, 1998, p. 542).

[3]Sobre a influência heideggeriana, consultar Buber, 1923, p. 62 e Zuben, 2004, p. 33.

[4]A alteridade, o cavalo: Consultar Zuben, 2004, p. 19. Sobre a ontologia da relação, ver Zuben, 2004, p. 29. O primado do pré-reflexivo está em Zuben, 2004, p. 23 e a questão do silêncio em von Zuben, 2004, p. 15. Sobre a palavra-princípio, consultar Buber, 1923, p. 53.

[5]Sobre o diálogo. Encontro como um evento “que acontece”, consultar Zuben, 2004, p. 18.

[6]Sobre o “entre”: consultar Zuben, 2004, p. 30 e Bartholo Jr., 2001, p. 24-25.

[7]Sobre a “imersão”, ver Zuben, 2004, p. 22: “A abordagem própria à antropologia filosófica deve ser realizada como um ato vital. ‘Aí não se conhecerá’, diz Buber referindo-se à abordagem antropológica, ‘permanecendo na praia contemplando as espumas das ondas. Deve-se correr o risco, é necessário atirar-se na água e nadar’ ” (Cf. O problema do homem, trad. francesa, p. 18).

[8]O pensamento estóico em Martin Buber. Inicialmente a alusão indireta ao Incorpóreo: “Neste livro [Prolegômenos, de Kant] ele verificou que o espaço e o tempo não são mais que formas através das quais efetuamos a percepção das coisas e que elas em nada afetam o ser das coisas existentes” (ZUBEN, 2004, p. 13). E também aqui: “A prece não se situa no tempo mas o tempo na prece” (BUBER, 1923, p. 57). Depois, a concepção de carpe diem, também presente nos estóicos: “A vida é realizada e confirmada somente na concretude do ‘cada-dia’ ”( ZUBEN, 2004, p. 22).

[9]O diálogo segundo Bohm. É criação do novo (BOHM, 2005, p. 29), a presença do filtro está em Bohm, (2005, p. 30). Os movimentos de bloqueio, medo e prazer estão em Bohm, (2005, p. 31-32).

[10]Sobre o Eu-Tu e o Eu-Isso. “A primeira [atitude] é um ato essencial do homem, atitude de encontro entre dois parceiros na reciprocidade e na confirmação mútua. A segunda é a experiência e a utilização, atitude objetivante. Uma é atitude cognoscitiva e a outra atitude ontológica” (ZUBEN, 2004, p. 32). E ainda: “As torrentes caudalosas que brotam do Isso, das coisas, provêm de um modo convergente da fonte primordial que é o Tu. O Tu é primordial e conseqüentemente o Isso é posterior ao Tu” (ZUBEN, 2004, p. 33). Unidade doTu é como o conhecimento metafísico de Bergson: “Assim como a melodia não se compõe de sons, nem os versos de vocábulos ou a estátua de linhas – a sua unidade só poderia ser reduzida a uma mutiplicidade por um retalhamento ou um dilaceramento – assim também o homem a quem eu digo Tu. Posso extrair a cor de seus cabelos, o matiz de suas palavras ou de sua bondade; devo fazer isso sem cessar, porém ele já não é mais meu Tu” Ver: Buber, 1923, p. 57. Crisálida e borboleta: “O Isso é a crisálida, o Tu a borboleta. Porém, não como se fossem sempre estados que se alternam nitidamente, mas, amiúde, são processos que se entrelaçam confusamente numa profunda dualidade”. (BUBER, 2004, p. 63). Tu não é pessoa, Isso não é coisa. “Eu-Tu não é exclusivamente a relação inter-humana. Há muitas maneiras de Eu-Tu e o Tu pode ser qualquer ser que esteja presente no face-a-face: homem, Deus, uma obra de arte, uma pedra, uma flor, uma peça musical. Assim como o Isso pode ser qualquer ser que é considerado um objeto de uso, de conhecimento, de experiência de um Eu, Eu e Tu não aceita a distinção familiar entre as coisas e as pessoas”. Consultar para isso: Zuben, 2004, p. 38. A árvore pode ser um Tu: “...Pode acontecer que simultaneamente, por vontade própria e por uma graça, ao observar uma árvore, eu seja levado a entrar em relação com ela; ela já não é mais um Isso. A força de sua exclusividade apoderou-se de mim” (BUBER, 2004, p. 56). É o homem que atualiza a arte. “Uma forma defronta-se com o homem e anseia tornar-se obra por meio dele. Ela não é um produto de seu espírito, mas uma aparição que se lhe apresenta exigindo dele um poder eficaz. Trata-se de um ato essencial do homem: se ele a realiza, proferindo de todo o seu ser a palavra-princípio Eu-Tu à forma que lhe aparece, aí então brota a força eficaz e a obra surge”. Conf. Buber, 2004, p. 58. Sobre o vazio das comunicações formais versus o “Lhe dou um cheiro”. “Ao encontrarmos alguém, nós o saudamos, desejando-lhe o bem ou assegurando-lhe a nossa dedicação ou recomendando-a. Porém, quão mediatas e desgastadas são essas formas (o que se sente ainda do ‘Heil’ daquela força originária radiante?) se comparadas àquela saudação relacional sempre jovem e autêntica dos Cafres: ‘Eu o vejo’ – ou à sua variante americana, a expressão, embora ridícula, sublime: ‘cheire-me’ ” (BUBER, 2004, p. 64).


Referências
ARVON, Henri. Ludwig Feuerbach In : DICTIONNAIRE des Philosophes. Paris: Albin-Michel, 1998.
BALADIER, Charles. Martin Buber. In : DICTIONNAIRE des Philosophes. Paris: Albin-Michel, 1998.
BARTHOLO Jr., Roberto. Você e eu: Martin Buber, presença palavra. Rio de Janeiro: Garamond, 2001.

[<]BOHM, David. Diálogo: comunicação e redes de convivência. São Paulo: Palas Athena, 2005

BUBER, Martin. Eu e Tu. Tradução, introdução e notas de Newton Aquiles von Zuben. São Paulo: Centauro, 2004.

[<]BUBER Martin. Replies to my Critics. In: SCHILPP, P. A. ; FRIEDMAN, M. (Orgs). The Philosophy of Martin Buber. La Salle/Ill.: Open Court, 1991. (The Library of Living Philosophers, v.12).

LANDAUER, G. Sind das Ketzergedanken? In: _____. Der Werdende Mensch: Aufsätze über Leben und Schriften. Potsdam: Gustav Kiepenhauer, 1921.
LÖWY, M. Redenção e utopia: o judaismo libertário na Europa Central (um estudo de afinidade eletiva). São Paulo: Cia. das Letras, 1989.

[<]ZUBEN, Newton Aquiles von. Introdução. In: BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2004.


Ciro Marcondes Filho
Professor Titular da ECA/USP
E-mail:cjrmfilh@usp.br
Curriculo Lattes