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Tempo de Escola ou Tempo de Aprender? lições de José Luiz

Resumo:

O artigo reflete sobre o tempo da escola no contexto da sociedade contemporânea, que exige processos contínuos de aprendizagens. O estudo faz-se a partir das vivências de José Luiz da Silva, que se tornou leitor e escritor de seu próprio texto sem frequentar educação básica escolar. Com base nos pressupostos da pesquisa (auto)biográfica em educação e da História Oral, apoiado no conceito de redes de tessituras, persigo os fios que constituíram as aprendizagens do colaborador, sobretudo seus processos de leituras e experiências escolares. Reflexiono sobre a forma que a escola vem sendo estruturada como espaço privilegiado de ensino-aprendizagem, mostrando que o tempo escola não deve limitar-se a uma fase específica da vida humana.

Palavras-chave:
Tempo da Escola; Protagonista Anônimo; Aprendizagens; Educação de Jovens, Adultos e Idosos

Abstract:

This article reflects about the school's time in the context of the contemporaneous society, which requires of their citizens continuous processes of learning. This study is made from the experiences of José Luiz da Silva, who became a reader and writer of his own text deprived of school K-12. I follow the lines which constituted the collaborator's learning, mainly his processes of reading and school experiences, based on the premises of (auto)biographical education research and Oral History, supported on the interwoven networks concept. I reflect about how school has been organized as a privileged space for teaching and learning, evidencing that the school's time should not be limited to a specific stage of human life.

Keywords:
Schools Time; Anonymous Protagonist; Learning; Readings; Youth, Adult and Aged Education

Introdução

Refletir no tema tempo de escola nos remete a vários questionamentos. Existe um tempo certo para estar na escola? Vivemos em uma época em que as aprendizagens são inalcançáveis em sua plenitude, pois a produção e multiplicação do saber tornaram-se muito maior com o desenvolvimento das ciências e das tecnologias exigindo constantes adaptações dos indivíduos aos saberes que essas tecnologias, mesmo as mais simples, requerem. Como delimitar um tempo para a escola na vida dos cidadãos? Devemos continuar condicionando à escola ao limite da oferta da educação básica, no contexto do mundo contemporâneo cujas demandas impõem desafios aos indivíduos e às sociedades? Seria a escola o locus privilegiado de construção dos saberes ou haveria outros espaços em que estes são possíveis de serem realizados? Em meio aos questionamentos frequentes sobre a qualidade da educação no país, haveria outros espaços de aprendizagens que contribuem com maior sucesso para a formação do sujeito cognoscente?

Pensando nas aprendizagens que se constituem fora do espaço escolar e que possível constatar na vida de alunos, particularmente da educação de jovens e adultos, e em sujeitos que encontro em espaços de convivência social, desenvolvi a pesquisa que tornou possível estudar e perceber o quanto as aprendizagens se constroem em redes que fogem à nossa possibilidade de enumerá-las e detectá-las dando-se, acima de tudo nas práticas sociais e práticas de leituras - de textos e de mundo. Trata-se de um estudo de caso envolvendo um protagonista anônimo da história, José Luiz, que não chegou a frequentar escola para a constituição da educação básica formal, ainda assim constituiu-se sujeito leitor e escritor de textos próprios.

A pesquisa situou-se no campo da História Oral, mas dialogou com as produções do campo de pesquisas (auto) biográficas de formação (Delory-Momberger, 2014DELORY-MOMBERGER, Christine. Biografia e Educação: figuras do indivíduo-projeto. 2. ed. Tradução de Maria da Conceição Passai, João Gomes da Silva Neto, Luís Passeggi. Natal: EdUFRN, 2014.). Contou com os relatos colhidos por meio de entrevistas semiestruturadas, gravadas e filmadas, e cotejados a bibliografias que permitiram maior aprofundamento nos contextos históricos da educação e sociedade brasileira emergentes nas narrativas do sujeito. A transcrição do material, realizada pelo próprio entrevistador-pesquisador, favoreceu o exame dos pormenores mais negligenciáveis (Ginzburg, 1989GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.). Outras fontes produzidas pelo colaborador foram estudadas: cadernos, agenda, folhas avulsas, livros lidos e suas marginálias; frutos de práticas de escritas e leituras pessoais não escolares.

Recorri também a documentos sobre a história da educação da Paraíba e Araruna, como um esforço de aproximação a uma realidade temporal e espacial exótica a minha experiência, mas sem a preocupação de descobrir lacunas ou distorções nos relatos do entrevistado. Apresentei para observação do Sr. José Luiz, como recurso mnemotécnico, imagens extraídas de sites que retratavam períodos correspondentes ao tempo em que viveu em Araruna - já que não dispunha de materiais imagéticos da época -, a fim de estimular lembranças adormecidas e tentar induzi-lo a "[...] pensar com instrumentos próprios de sua época" (Certeau, 1988CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novos problemas. Tradução de Theo Santiago. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. P. 17-48.).

No artigo apresento parte da história da vida do participante com o intuito de conhecer como se constituiu leitor-escritor, apesar dos processos de exclusão dos quais foi vítima, inclusive do direito à educação formal. Para acompanhar a trajetória de formação do sujeito percorri os fios entrelaçados a redes de tessituras sociais que o forjaram, em especial suas leituras, que tiveram a meu ver papel relevante nessa urdidura complexa. Descrevo como as narrativas construídas durante os encontros dialógicos permitiram uma aproximação à complexidade que envolveu seu processo de construção de conhecimento por meio das práticas sociais, à medida que durante as construções narrativas foi apoderando-se de seus territórios de passagem. Apesar da falta de objetos-monumentos das passagens escolares, o transbordamento da memória de um octogenário permitiu a (re)construção de suas experiências, revelando aspectos que assemelham sua história de vida a de outros sujeitos adultos: o momento em que o direito à educação na infância lhes é negado, (re)inventam outras formas de aprender e de participar da sociedade da cultura escrita.

As reflexões suscitadas pela pesquisa e as narrativas de vida desse sujeito propiciaram indagações, sobre o sentido de tempo de escola em perspectivas distintas: períodos de escolarização e memórias das trajetórias de formação do sujeito aprendente.

O Sujeito Coautor

José Luiz da Silva foi o sujeito encarnado que tomei como informante privilegiado para estudar processos de formação humana e de aprendizado por meio de práticas sociais e escolares. Nascido na cidade de Araruna, no estado da Paraíba, em 1929. Abandonado pelo pai desde os 12 anos, migra para o Rio de Janeiro aos 22 anos de idade em busca de melhores condições de vida para si e sua família. Alguém com pouca escolaridade provocada por situação econômica, política, social e cultural comum na região onde nascera, mostrando a ausência do Estado no atendimento a necessidades básicas dos cidadãos, que se constituíram massa alijada de direitos, inclusive o direito à educação formal.

No entanto, nos discursos produzidos pelo sujeito, percebe-se certa erudição que não condiz, em tese, com a falta de escolarização da qual foi vítima desde a infância. Mesmo tendo frequentado por menos de um ano uma classe promovida por instrutores particulares, quando tinha uns 11 anos de idade, adquiriu habilidades de leitura e rudimentos da escrita. O desejo de conhecimento e de ler o fez manter a habilidade adquirida, mesmo com uma formação inicial precária. Os folhetos de cordel eram os textos escritos que dispunha durante grande parte de sua adolescência para desenvolver a leitura. A educação formal só veio a acontecer aos 39 anos de idade quando frequentou um curso supletivo para tirar a certificação de ensino primário, a fim de garantir o emprego devido à exigência da lei federal promulgada no governo militar - a LDB n. 4.024/61 e a CF de 1967. Assim, após seis meses de curso, foi aprovado. Na empresa onde trabalhara teve contato com literaturas que permitiram o desenvolvimento de uma autoformação. Embora a Bíblia fosse a fonte primeira de inspiração à leitura mais sistemática, depois dos cordéis em sua cidade de origem, José Luiz lia o que lhe vinha às mãos, e algumas de suas primeiras leituras não se apagaram da memória, como as obras de Heródoto, por meio das quais teve contato com pensadores gregos antigos, e O Papa e o Concílio, de Rui Barbosa.

Na pesquisa, fixei o olhar sobre a capacidade de escrita, leitura, interpretação e apropriação desta, assim como o desejo insaciável de aprender de um sujeito, constituídos fora do espaço escolar formal. Isso me levou a indagar sobre o papel social dado à instituição escolar e sobre suas reais possibilidades de contribuição para a formação do sujeito aprendente e cidadão ativo.

Sem a pretensão de deslegitimar a escola em sua relevância para a sociedade contemporânea, reflexiono sobre a forma como esta vem sendo historicamente estruturada como instituição privilegiada de ensino-aprendizagem e como produz currículos, especialmente no que diz respeito à educação de jovens, adultos e idosos. Considero tanto os processos vivenciados na prática social como os processos escolares (Kalman, 2009KALMAN, Judith. O Acesso à Cultura Escrita: a participação social e a apropriação de conhecimentos em eventos cotidianos de leitura e escrita. In: OLIVEIRA, Inês Barbosa de; PAIVA, Jane (Org.). Educação de Jovens e Adultos. Rio de Janeiro: DP et alii, 2009. P. 72-95.), já que tratam de processos que jamais se excluem - embora em realidades sociais marcadas pelas desigualdades, nem todos os sujeitos têm acesso a processos escolares de aprendizagem -, e uma vez que a leitura e a escrita são atos sociais, mesmo quando produzidos por indivíduos isoladamente.

Alguns Fios Constituintes da Trama do Sujeito Aprendente

Os velhos desafios colocados como papel da educação escolar se renovam com as novas demandas do mundo contemporâneo, que impôs mudanças nas formas de se pensar a educação que não pode mais ser interpretada como restrita ao modelo tradicional de ensino-aprendizagem em espaços escolares formais, exigindo o reconhecimento de que esta transpõe os muros da escola, e se realiza em diferentes e diversos ambientes que, muitas vezes, têm-se apresentado mais atualizados do que a própria instituição escolar que, não raro, mantém-se resistente no seu interior aos próprios usos do que a modernidade tecnológica tem inventado.

A concepção de que a escola é a instituição por excelência onde se aprende, tornou-se um mito. Mais do que em qualquer outro tempo, diversos espaços sociais desempenham essa função. O mundo atual pressiona por atualizações diárias, as informações tornam-se rapidamente ultrapassadas e as realidades transmutadas exigem adequações e inovações teórico-conceituais para sua reflexividade, aproximação de decifração e habilidade para manuseios de aparelhos e programas. Nesse contexto de mudanças, a palavra aprendizagem parece ser "[...] a palavra chave no mundo contemporâneo e tema candente diante da complexidade das exigências que se põem diante dos sujeitos" (Paiva; Sales, 2013PAIVA, Jane; SALES, Sandra Regina. Contexto, perguntas, respostas: o que há de novo na Educação de Jovens e Adultos? Arquivos Analíticos de Políticas Educacionais, Rio de Janeiro, v. 21 n. 69, set. 2013., p. 2).

Delory-Momberger (2014DELORY-MOMBERGER, Christine. Biografia e Educação: figuras do indivíduo-projeto. 2. ed. Tradução de Maria da Conceição Passai, João Gomes da Silva Neto, Luís Passeggi. Natal: EdUFRN, 2014.) apresenta um breve histórico do conceito de educação ao longo da vida que vem dominando os documentos produzidos por instituições internacionais que discutem a educação de jovens, adultos e idosos. Na realidade, a noção de educação ao longo da vida já estava presente nas proposições de Comenius no início da modernidade, afirmando que havia predecessores na Antiguidade. A escola, na concepção dos gregos antigos, era uma entidade temporal - scholè - que designava o trabalho realizado por si mesmo e sobre si mesmo, no tempo livre, não uma atividade engajada a serviço da cidade. Constituía-se em tempo dedicado ao cuidado de si, envolvendo leituras, meditações a partir das circunstâncias de vida, encontro com amigos ou cuidado tomado com o corpo e a saúde. Não se associava somente à juventude ou a uma idade fixa, estendia-se ao longo de toda a vida, tendo desenvolvimento particular naqueles que se isolavam das tarefas da cidade, por sua sabedoria ou por idade avançada. A metodologia de ensino baseava-se na prática e sem um lugar específico para ocorrer, e se dava na vida cotidiana, quando se aprendia com o outro em interação próxima, por meio de experiências práticas e reflexivas sobre a própria vida com seus mistérios e dilemas.

Segundo Delory-Momberger (2014, p. 101-102), a preocupação de Comenius com a educação em todas as idades, presente nos movimentos pela educação popular nos séculos XIX e XX, e as proposições europeias para uma educação ao longo da vida são herdeiras da tradição protestante ligada à cultura de vocação pessoal, que conduz cada um a trabalhar no aperfeiçoamento de si e na realização de si mesmo. Somam-se a isso "[...] as considerações de natureza geopolítica, referentes ao lugar da Europa no mundo" e ao papel da educação no assegurar dessa posição.

Em uma sociedade que se estruturava pela relação cognitiva, isto é, pela posição de cada um no espaço do saber e da competência, a educação estendida a todas as idades, a todas as ocasiões de aprender e a todas as formas de conhecimento aparece como o principal instrumento de inserção social, de aptidão ao trabalho e ao desenvolvimento individual.

Para Delory-Momberger (2014DELORY-MOMBERGER, Christine. Biografia e Educação: figuras do indivíduo-projeto. 2. ed. Tradução de Maria da Conceição Passai, João Gomes da Silva Neto, Luís Passeggi. Natal: EdUFRN, 2014.) com a formação assumindo o caráter de processo contínuo, ao longo da vida, inscreve-se uma nova relação do indivíduo com o tempo e o ciclo de vida. Inverte-se a relação entre escola e vida ativa, entre infância e idade adulta, e põe-se em questão a tradicional representação da vida recortada em três idades distintas (formação, atividade profissional, aposentadoria), subvertendo o programa biográfico da sociedade industrial, que estabelece vínculos entre idade e forma específica de integração nos campos sociais.

É inegável que adquirimos saberes fora da escola, na vida, nas ações, com a experiência e aquisições que precisam ser reconhecidas na formação e na atividade profissional. Sabe-se que a ação é formadora, que a experiência produz saber. A autora toma as questões instigadas por Pineau a respeito da complexidade dos problemas colocados quando se assume a possibilidade de reconhecimento das aquisições da experiência. O questionamento incide sobre "[...] a compreensão das condições de produção desse saber e dos processos que permitem sua conscientização e sua formalização para fins de validação social". A realidade da experiência e dos saberes que comportam não é de fácil apreensão, pois atendem a outra lógica, "[...] impossíveis de serem modelados de modo mecânico, que permanecem hoje amplamente ignorados" (Delory-Momberger, 2014, p. 85-86).

Para que as aquisições da experiência possam ser reconhecidas socialmente é necessário, segundo Delory-Momberger, que os saberes constituídos na ação sejam nomeados previamente pelos próprios indivíduos e encontrem lugar em seu sistema de representação. É preciso que constituam linguagem nos universos simbólicos de seu mundo da vida e de sua construção biográfica. Uma das formas de apreendê-los é por meio da textualização dos percursos e das experiências feitas pelo indivíduo, por meio de ações que exigem retorno reflexivo sobre si mesmo e sobre seu percurso. É um trabalho de conceitualização da experiência, transformando os saberes da ação em saberes formalizados e reconhecidos.

Analisando essa questão, a partir da história de vida de um sujeito como José Luiz, constituído sábio, leitor e escritor sem a contribuição da educação formal oficial1 1 Mesmo considerado o fato de ter frequentado e ter sido certificado como concluinte do ensino primário em uma classe multisseriada aos 39/40 anos, porque legalmente essas classes não eram classificadas como educação regular. , fica mais claro perceber o quanto redes de tessituras sociais influenciam a formação do sujeito; no caso do meu colaborador foi por meio de suas práticas sociais, sobretudo, nos aspectos informais de sua formação que encontrei os fios que o constituíram um aprendente ao longo da vida, ou seja, alguém que desenvolveu autonomia na busca de suas aprendizagens, uma vez que as políticas públicas não o alcançaram como cidadão de direitos. Apesar da ineficácia do poder público, de acordo com Brandão (1985BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O Que é Educação. São Paulo: Abril Cultural Brasiliense, 1985., p. 7):

Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com a educação.

Entende-se que a socialização é um processo educativo que alimenta a formação do ser humano. Assim, a educação está em toda parte. Redes e estruturas sociais de transferência de saber de uma geração para outra são inerentes ao processo evolutivo da cultura humana, o que leva o ser humano a transmitir e construir o conhecimento, criando situações sociais que são fundamentais para a própria manutenção da espécie e da sociedade formada por ela.

No caso particular de sujeitos, como José Luiz, percebo que os aspectos informais e não formais da educação foram preponderantes na construção da identidade, mas isso se dá em razão de uma ausência de atendimento escolar na infância, pelos governos. Apesar de serem perceptíveis às habilidades intelectuais desenvolvidas pelo sujeito-coautor em sua quase autodidaxia2 2 Evito o termo autodidaxia por considerar que o conhecimento se constrói em interação com o outro, seja ele presente fisicamente ou não. Até porque a leitura de um texto é, de certa forma, uma interação entre o autor do texto que se faz ouvir e o leitor que toma contato com as ideias do autor, em condições talvez mais favorável com relação ao retrucar, mas com poucas possibilidades de feedback às suas colocações e interrogações. , a falta da escolarização produziu lacunas e dificuldades, algumas apontadas em suas narrativas, como a dificuldade da escrita em prosa, a dificuldade de ler alguns clássicos da literatura nacional, a possibilidade de melhor colocação no mercado de trabalho, o sempre presente sentimento de subalternidade e o fato de referir-se a si mesmo como alguém semianalfabeto. Constatações que reiteram a importância da garantia do termo constitucional vigente a todos os cidadãos sem exceções, o direito à educação com qualidade em qualquer idade.

A história de analfabetismo na família e na cidade onde nasceu José Luiz da Silva denuncia a realidade de um tempo não totalmente transformado, pois no presente há um número ainda grande de pessoas nas mesmas condições. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio - PNAD/2013 - são 13,04 milhões de pessoas com 15 anos ou mais não alfabetizados, no Brasil. Esses dados colocam em suspenso a ideia de idade certa para alfabetizar, não no sentido da desnecessidade de produzir aprendizagens significativas a crianças matriculadas nas escolas, instrumentalizando-as com a apreensão da leitura e da escrita, mas sem que esse discurso sirva para esconder os milhões de brasileiros não alcançados por políticas públicas educacionais. Como alerta Torres (2006TORRES, Rosa María. Alfabetización y aprendizaje a lo largo de toda la vida. Revista Interamericana de Educación de Adultos. México, n. 1, s.p., 2006.), a concepção de idade certa para a alfabetização vinculada à convenção social de que esta deve acontecer na infância pode carregar falsas ideias de que a sociedade assegura a todas as crianças o direito à educação escolar e que as escolas asseguram o direito de aprender.

Baseado no conceito de redes de tessituras (Alves, 2008ALVES, Nilda. Tecer conhecimento em rede. In: ALVES, Nilda; GARCIA, Regina Leite (Org.). Os Sentidos da Escola. 5. ed. Petrópolis: DP et alii, 2008, P.91-99. ; Oliveira 2008OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Boaventura & a Educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. ; 2009OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Organização Curricular e Práticas Pedagógicas na EJA: algumas reflexões. In: PAIVA, Jane; OLIVEIRA, Inês Barbosa (Org.). Educação de Jovens e Adultos. Petrópolis: DP et alii, 2009. P. 96-107., entre outros), busquei conhecer as trajetórias de formação de um sujeito leitor e escritor quase autodidata, a partir de algumas redes detectadas nos discursos do narrador: leituras, interações sociais, meios de comunicação e cursos não formais e semiformais que frequentou.

Parti do princípio de que não há um caminho único e obrigatório para todos os sujeitos em seus processos de aprendizagem. Os sentidos ou significados são construídos em conexão com os interesses, crenças, valores e saberes dos sujeitos envolvidos nesse processo. A ideia de tessitura de conhecimento em rede dá legitimidade ao "[...] conjunto de redes de saberes, poderes e fazeres presentes no cotidiano dos sujeitos, mas normalmente expulsos do ambiente escolar" (Oliveira, 2008OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Boaventura & a Educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. , p. 238). Oliveira, ao propor a construção de uma escola democrática, uma educação comprometida com as aprendizagens dos sujeitos diversos, defende a ideia de que se aprende muito mais nas práticas sociais e não apenas na escola. Penso uma educação que se desenvolve ao longo da vida, continuamente, condição inerente ao fato de que o desenvolvimento da pessoa humana é marcado pela incompletude, o que lhe coloca em processo continuado de formação. Abrangendo a aquisição de conhecimentos, aptidões, atitudes e valores, envolvendo todos os universos de experiência humana, o aprender - forma como se produzem conhecimentos - não é exclusivo de sistemas escolares, mas próprio de todos os espaços e práticas sociais. Incorporam-se, assim, em processos construídos em redes (Oliveira, 2009) os saberes que se produzem a partir dos cotidianos, como praticantes, que se abrem diuturnamente à construção de novas aprendizagens.

Contradizendo os discursos pautados na lógica ocidental moderna que reconhece os saberes formais como a única forma de saber legítimo, negando a validade de todas as outras formas de conhecimento, entendidas como inferiores ou inexistentes, a tessitura de conhecimento em rede enlaça todos os saberes - sejam escolares/acadêmicos, sejam do cotidiano de cada sujeito. Desse modo, altera-se a lógica que desqualifica os saberes locais quanto aos modos de estar no mundo de culturas subalternizadas, em benefício dos chamados globais e ocidentais, que supervalorizam o conhecimento científico.

Pretendendo conhecer o processo de formação desse sujeito comum, mas singular, busquei reconhecer a trama que o enredou, que teceu sua subjetividade, percorrendo os fios entrelaçados, emaranhados, articulados, entrecruzados que constituíram a complexidade de sua história de vida (Morin, 1996MORIN, Edgar. Epistemologia da Complexidade. In: SCHNITMAN, Dora Fried (Org.). Novos Paradigmas, Cultura e Subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. P. 274-289.).

Em busca da compreensão da complexidade que envolveu a formação de José Luiz, enredada nos fazeres e saberes produzidos a partir da cultura em que esteve inserido, ou seja, a partir dos cotidianos que forjaram sua subjetividade, procurei ir além da racionalidade instrumental da modernidade, atentando para os vestígios emergentes em seus discursos e práticas, em movimento de provocação às memórias e desinvisibilizando práticas e contextos que ajudaram a compreender o sujeito em sua individualidade, mas também perceber percursos comuns a outros que, assim como José Luiz, são hoje idosos. Dessa forma, contemplo a possibilidade de compreender grupos não atendidos pelas políticas públicas de diversos governos republicanos, com ênfase naqueles instituídos a partir de 1929, quando inicia em particular a peregrinação terrena desse sujeito que nasceu com as marcas da exclusão, sem acompanhamento médico pré e pós-nascimento e que permanece até a idade adulta sem ao menos um registro de nascimento para que se tornasse cidadão, ao menos no papel.

Para Oliveira (2008OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Boaventura & a Educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. ) compreender as lógicas das práticas sociais (Certeau, 2013CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: Artes de fazer. 20. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2013.) é muito importante para que se possam desenvolver formas de luta pela ampliação de ações democráticas. Assim, ao intentarmos desinvisibilizar práticas dos cotidianos dos sujeitos sociais, permitimos o que Santos (2002SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Sociologia das Ausências e uma Sociologia das Emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, São Leopoldo, n. 63, p. 237-280, out. 2002.) propõe ao discutir a Sociologia das Ausências, ampliar o presente, encurtado pela perspectiva teleológica do progresso técnico-científico; combater o desperdício de experiências que tiveram sucesso na articulação de sujeitos vítimas de inclusões excludentes (Cury, 2008CURY, Carlos Roberto Jamil. A educação escolar, a exclusão e seus destinatários. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 48, p. 205-22, 2008, ) na luta pela sobrevivência em situações desprivilegiadas.

José Luiz é um sujeito que, como muitos outros, teve ao longo de sua história os direitos mutilados por políticas que, muitas vezes, em sua origem, lograram beneficiar alguns grupos em detrimento de outros. Nos seus discursos, emergiram ações e práticas de direitos negados, que expuseram contradições operadas pelas políticas educacionais na República brasileira, principalmente no período do Estado Novo, e que permanecem não alcançando os menos favorecidos nos governos subsequentes.

Tempos de Aprendizagens de José Luiz da Silva: suas leituras

Esquadrinhando redes que formaram o protagonista, destaco aquela que percebi como fundamental na constituição da singularidade do coautor da pesquisa: suas leituras. Refleti sobre suas leituras a partir do estudo das narrativas produzidas nos encontros dialógicos e não na análise direta de seus objetos de leitura.

O interesse maior foi conhecer as reações do Sr. José Luiz às leituras que realizou ao longo da vida, ou pelo menos àquelas mais presentes em seus discursos, das quais apreendeu trechos, que recitou durante suas entrevistas. Busquei perceber até que ponto não foi um leitor intruso em obras que leu, como as de Rui Barbosa, mesmo que o texto impresso tivesse circulado em meios aos quais não imaginaria o autor ao escrevê-lo. Com o auxílio de Ginzburg (2006GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. Tradução de Maria Betânia Amoroso. Revisão Técnica Hilário Franco Jr. São Paulo: Cia. das Letras, 2006.), que ao estudar depoimentos inquisitoriais, forneceu algumas respostas sobre um leitor do século XVI, pude conhecer em parte a reação e/ou influência de alguns textos lidos por José Luiz, a fim de identificar aspectos de sua formação.

A farta documentação sobre o caso de Domenico Scandella - o Menocchio - permitiu a Ginzburg (2006GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. Tradução de Maria Betânia Amoroso. Revisão Técnica Hilário Franco Jr. São Paulo: Cia. das Letras, 2006.) conhecer as leituras, discussões, pensamentos e sentimentos desse sujeito comum. Seu estudo desvendou, mesmo que parcialmente, a cultura e o contexto social no qual o moleiro friulano se moldou. O historiador percebeu que o contato com a cultura escrita e a leitura de textos religiosos e clássicos, literaturas não reservadas a seu grupo social, foram filtradas pela cultura oral da época, século XVI. Apoiado no conceito de circularidade, de Mikhail Bakhtin, formulou a hipótese que perseguiu em seu texto, de que "[...] entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas existiu, na Europa pré-industrial, um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo" (Ginzburg, 2006, p. 12).

A possibilidade aberta por Ginzburg com esse trabalho traçou o caminho para a investigação com sujeitos oriundos de lugares sociais distintos daqueles tratados pela historiografia tradicional, sobretudo, aquelas preocupadas com o status científico da História. Seu conceito de circularidade cultural abriu precedentes para outros aprofundamentos dessa dinâmica da prática cultural. Com essa perspectiva, procurei conhecer o processo de formação de José Luiz, um homem comum, que como Menocchio, ousou ler clássicos e textos religiosos não destinados a consumidores com seu grau de instrução. Diferente do moleiro de Friulli que tinha como filtro de suas leituras as tradições culturais do campo, José Luiz faz leituras dos livros e da vida a partir da doutrina cristã, embora esta também participasse na configuração dos pensamentos de Menocchio. Como em O Queijo e os Vermes, percebi em suas narrativas, escritos e marginálias a circularidade da cultura erudita e da cultura popular - sob a influência dos meios rural e urbano que compuseram suas experiências -, com a cultura cristã (católica) e, depois, protestante. Foi na urdidura dessas leituras e vivências que se teceram suas subjetividades.

Deparar-me com literaturas do acervo do colaborador fez-me indagar, semelhantemente ao historiador italiano, ao identificar nos discursos de Menocchio a presença de leituras realizadas em contextos desfavoráveis: como esses textos eram lidos pelo sujeito? Como os contextos do seu tempo e a sua crença religiosa influenciaram na forma de apreensão dessas leituras?

Encontro eco às indagações de Ginzburg em Certeau (2013CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: Artes de fazer. 20. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2013.), quando este aponta lacunas ainda existentes nos estudos sobre leitura e critica a forma como tradicionalmente a elite intelectual coloca o consumidor de livros ou de qualquer outro produto, inclusive os midiáticos, na condição de receptáculos em atitude de passividade.

Não se podem negar as influências externas sobre os enunciados do sujeito. José Luiz é o resultado de suas leituras, vivências, religiosidade; mas não se reduz a mero reflexo dessas leituras ou dos diversos meios em que interagiu, porquanto, seu pensamento tem um tom de originalidade, não se manifestando como simples resultado dessas influências, pois as respostas que deu a essas provocações foram particularmente suas, engendradas a partir de sua própria percepção.

A intenção desse estudo de perceber as singularidades da história de um sujeito não escolarizado pôde elucidar, pelo menos em parte, o pouco sucesso de campanhas contra o analfabetismo e mesmo os limites da educação de jovens e adultos, quando não consideram as trajetórias de vida dos sujeitos e as aprendizagens que constituíram ao longo da vida. A aproximação do processo de formação e autoformação do sujeito, hoje idoso, ao desvelar seus interesses mesmo na avançada idade, demonstram possibilidades de execução de propostas educacionais visando à inclusão desses ao direito à educação.

Darnton (2011DARNTON, Robert. História da leitura. In: BURKER, Peter (Org.). A Escrita da História: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora Unesp, 2011. P. 203-241., p. 238) parte da premissa de que a leitura tem sua história, mas a problematiza levantando a questão de como recuperá-la: "[...] não há caminhos diretos ou atalhos, porque a leitura não é uma coisa distinta, como uma constituição ou uma ordem social, que pode ser rastreada através do tempo. É uma atividade que envolve uma relação peculiar - por um lado o leitor, por outro o texto" e ambos variaram muito no decorrer dos tempos, de acordo com as circunstâncias sociais e tecnológicas, assim como os sistemas interpretativos.

Darnton (2011DARNTON, Robert. História da leitura. In: BURKER, Peter (Org.). A Escrita da História: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora Unesp, 2011. P. 203-241., p. 222-223) aponta que: "[...] não descobrimos uma estratégia para o entendimento do processo interno, através do qual os leitores compreendem as palavras", uma vez que os processos cognitivos diferem de cultura para cultura, de sujeito para sujeito. Afinal, "[...] a leitura não é simplesmente uma habilidade, mas uma maneira de estabelecer significado, que deve variar de cultura para cultura. Seria estranho esperar uma fórmula que pudesse considerar todas essas variações". No entanto, pensa ser "[...] possível desenvolver um modo de estudar as mudanças na leitura da nossa própria cultura".

Os exemplos como os de Menocchio e Ranson, um comerciante da França do século XVIII e leitor da classe média, apaixonado pelas obras de Rousseau, estudado por Darnton (2011DARNTON, Robert. História da leitura. In: BURKER, Peter (Org.). A Escrita da História: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora Unesp, 2011. P. 203-241., p. 206), "[...] sugerem que a leitura e a vida, a elaboração de textos e a compreensão da vida, estavam muito mais intimamente relacionados no início do período moderno do que estão hoje". Para isso, o autor propõe um método de análise "[...] comparando os relatos dos leitores sobre sua experiência com os registros de leitura em seus livros e, quando possível, com seu comportamento", a fim de conferir sua tese (Darnton, 2011, p. 206).

Tentei compreender, como recomendado por Darnton, as mudanças nos processos internos da leitura por meio dos quais os leitores a compreendem. Darnton aproximava-se de Ginzburg, quando este procurava compreender como Menocchio lia os textos e o que influenciava as ideias que confrontavam a cultura dominante, embora transitasse marginalmente por ela. Encontrei algumas possibilidades de observação desses aspectos da leitura, nem tanto nos escritos de José Luiz, mas, nos seus relatos orais.

É possível identificar a relação profunda da vida e prática de leitura nas experiências de José Luiz, um homem do século XX/XXI. Suas construções narrativas revelam o quanto suas leituras influenciaram seu modo de pensar e comportamento. Há em seus discursos, uma forte influência da leitura de textos bíblicos, de leituras de Rui Barbosa e de John Wesley.

No tratamento das leituras apresentadas no discurso oral do sujeito, adotei procedimentos destacados por Darnton (2011DARNTON, Robert. História da leitura. In: BURKER, Peter (Org.). A Escrita da História: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora Unesp, 2011. P. 203-241.), buscando nas narrativas respostas a questões do autor: o quem, o quê, onde e quando, porquês e comos. A forma como Ginzburg perscrutou os discursos de Domenico Scandella serviu de experiência da qual lancei mão para tratar os discursos de José Luiz, também perscrutando suas leituras e influências sobre seu pensar e seu modo de ser, porque o que pensamos constitui o que somos. Ao apresentar o autor das narrativas como leitor de mundo e de textos, e autor de suas próprias ideias, comparo-o a Scandella, um sujeito singular, representante da cultura em que estava inserido, em diálogo com a cultura hegemônica. Portanto, há aproximações e distanciamentos impossíveis de serem negligenciados, até mesmo porque se tratam de sujeitos distintos, vivendo em temposespaços diferentes e com outras peculiaridades.

Refletindo sobre as narrativas de José Luiz, foi possível perceber a leitura que fazia dos textos escritos, assim como do mundo à sua volta e/ou a leitura de mundo a partir de suas leituras. A polifonia nos constitui e condiciona a maneira como interpretamos o que lemos, sentimos e vivemos. São as leituras que fazemos dos outros ou a partir dos outros, mediadas pelo que somos, que agem em nós, sendo capazes de nos afetar e nos impulsionar à produção de outras ideias e atitudes.

Tempo de Escola: desafio para não incluídos

Entre as lembranças do Sr. José Luiz estão as do tempo da infância e nelas encontra-se a escolinha doméstica que frequentou, ainda em Logradouro. Desde o primeiro encontro, o entrevistado afirmou não haver escolas regulares em sua cidade, fato que o levou a tentar matrícula em municípios distantes, inclusive pedindo ajuda ao padre local. Porém, não teve êxito em suas tentativas, mesmo quando apelou a um internato em Juazeiro do Norte, pois na época desejava tornar-se padre.

Em pesquisas sobre educação em Araruna, encontrei registros de que na cidade haviam sido fundadas, desde a época do Império, as chamadas cadeiras isoladas3 3 Para Pinheiro (2002, p. 72; p. 272), a implantação das cadeiras isoladas foi uma tentativa de criação de uma estrutura escolar pública laica, mediante os princípios do Iluminismo, mas ainda influenciada pela escolástica, tendências filosóficas transplantadas da Europa Ocidental. A princípio, as cadeiras isoladas funcionavam nas próprias residências dos professores. Funcionavam como "casas escolares": salas de visita de casas particulares, salões de casas-grandes de engenho e alpendres de sítios. Situação cômoda por parte das autoridades que não achavam justo o Tesouro Público ter despesas com casas para o ensino de primeiras letras. , ou seja, escolas que funcionavam na casa dos próprios professores, geralmente pessoas não diplomadas. O modelo preponderou no estado da Paraíba, com exclusividade, até os anos de 1916, quando é construído o primeiro grupo escolar no estado. Segundo Pinheiro (2002PINHEIRO, Antônio Carlos Ferreira. Da Era das Cadeiras Isoladas à Era dos Grupos Escolares na Paraíba. Campinas; São Paulo: Autores Associados; Universidade São Francisco, 2002. ), a partir dessa data, as cadeiras isoladas passaram a ser substituídas gradativamente pelo novo modelo, visto pelos políticos e intelectualidade paraibana com esperança, para reverter os índices de analfabetismo e de evasão escolar na região, além de favorecer a formação do novo cidadão republicano, preparado para contribuir com o desenvolvimento da nação e defesa da pátria.

Entre a era das cadeiras isoladas e a era dos grupos escolares, Pinheiro (2002PINHEIRO, Antônio Carlos Ferreira. Da Era das Cadeiras Isoladas à Era dos Grupos Escolares na Paraíba. Campinas; São Paulo: Autores Associados; Universidade São Francisco, 2002. ) distingue um período de passagem, que se inicia com a criação do primeiro grupo escolar (1916) e se estende até 1929, ano em que José Luiz nasce em Araruna, cidade que contou com uma cadeira isolada, já em 1864, e um grupo escolar em 1933, o Grupo Escolar Targino Pereira. Coexistiram os dois modelos de organização escolar, e em meio ao lento processo de substituição de um modelo pelo outro, surgiram as escolas reunidas ou agrupadas. Só a partir de 1930 o modelo de grupos escolares prevaleceu no estado da Paraíba. Mas, a nenhum dos modelos apontados teria tido acesso o Sr. José Luiz, que só frequentou por alguns meses uma escolinha doméstica privada, a fim de desasnar, e por iniciativa de sua mãe, que sacrificou para isso os parcos recursos da família.

Reiterando as informações de Pinheiro, o historiador ararunense Lucena (2004LUCENA, Humberto da Fonseca. As Raízes do Ensino em Araruna. João Pessoa: Fundação Casa de José Américo, 2004. ) descreve que, em 1932, no governo do interventor Antenor Navarro, iniciou-se a construção do Grupo Escolar Targino Pereira, em homenagem ao Coronel Gino, pai do então prefeito, Targino Pereira da Costa, de família detentora do poder na região. Lucena estudou nessa escola quando criança.

Diante das provas contundentes, a curiosidade me levou a indagar por que a presença da instituição escolar não ficara registrada na memória do José Luiz. Isso me incentivou a usar o recurso de imagens do antigo grupo escolar, no terceiro encontro de entrevista, para forcejar suas lembranças. Para minha surpresa, nem mesmo as imagens legendadas foram capazes de trazer registros dessa presença em seus arquivos mnemônicos. As reflexões de Bosi (1994BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1994., p. 414) ajudaram-me a compreender essa falta da memória:

As testemunhas que retificaram uma lembrança não conseguem sempre fazer-nos revivê-la. Podemos escutar, surpresos, o relato de uma cena de nosso passado sem conseguir revivê-la; descrevem nossa atuação e nos sentimos estranhos à narrativa. Se faltamos nós mesmos entre as testemunhas a lembrança não se realiza. Os outros podem precisar, mas também podem confundir nossas lembranças. [...] Se nos traçarem um quadro onde esquecemos nossa atuação, podemos reconstruí-lo, aceitar nossa parte nele, mas não nos enxergamos no fundo desse espelho embaçado, queremos sondá-lo e ele não devolve nosso rosto.

De antemão, previa possibilidades de estranhamento e mesmo conflitos prováveis entre as imagens selecionadas e as reminiscências do colaborador, uma vez que eram imagens construídas a partir do olhar de terceiros e selecionadas por mim e não pelo próprio sujeito. Mas, arrisquei o uso, por entender o possível estranhamento como virtualidade e não impedimento da pesquisa. Não se identificar com as apresentações visuais do material na tela do notebook poderia reforçar outras imagens interiorizadas no sujeito e, ao mesmo tempo, ajudar a desconstruir imagens erradas construídas mentalmente pelo entrevistador durante os diálogos. O que mais chamou a atenção, de ambos os participantes da pesquisa, foi o estranhamento com a imagem da escola inaugurada na primeira metade da década de 1930 e de imagens arquitetônicas da cidade. As imagens não conferiam com registros de memória do Sr. Jóse Luiz sobre o lugar onde vivera infância e juventude. A constatação ajudou-me a compreender que o nome Araruna, encontrado em sua carteira de identidade, representando seu município de origem, e aludido desde a primeira entrevista, representava uma realidade muito mais ampla, e que as experiências do sujeito se passaram em espaços do interior desse município paraibano, marcado por condições de não direito mais agudas, como era o caso de Logradouro, povoado onde nasceu e viveu até sua migração para o Sudeste.

Quanto à imagem não reconhecida da escola, as palavras do próprio autor bem traduzem o seu apagamento ou mesmo ausência em seus registros mnemônicos: "devia ser dos filhos do pessoal lá dos Targinos". Sua expressão demonstra bem as diferenças sociais presentes no município, colocando a família dos proprietários e políticos locais em condições de privilégio nos acessos a bens e serviços dentro e provavelmente fora da cidade; mostra o estado de isolamento de seu povoado; demarca a desfiliação (Castel, 1997CASTEL, Robert. Dinâmica dos Processos de Marginalização: da vulnerabilidade a "desfiliação". Caderno CRH, Salvador, n. 26/27, p. 19-40, jan./dez. 1997.) da população com relação aos direitos de cidadania, à falta de informação quanto à possibilidade de vagas para determinados grupos sociais naquela instituição escolar, construído para atender necessidades educacionais de indivíduos oriundos de camadas altas da sociedade local. Fatos que explicam a situação de exclusão em que grande parte da população vivia e ainda vive.

A Constituição promulgada em 1934 - apesar da curta duração, substituída na implantação do Estado Novo - preceituava a educação como direito de todos, devendo ser ministrada pela família e pelos poderes públicos (Art. 140), mas como afirmam Cury, Horta e Fávero (2001CURY, Carlos Roberto Jamil; HORTA, José Silvério Bahia, FÁVERO, Osmar. A Relação Educação-Sociedade-Estado pela Mediação Jurídico-Constitucional. In: FÁVERO, Osmar (Org.). A Educação nas Constituições Brasileiras 1823-1988. 2. ed. ver. amp. São Paulo: Autores Associados, 2001. P. 2-30., p. 22-26), essa codivisão de responsabilidades com relação à educação acabou criando brechas de desobrigação do Estado, que cobrava da família a matrícula dos filhos, mas não se obrigava a garantir vagas para todos.

Ainda tratando das não lembranças, Manguel (2001MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens. São Paulo: Cia. das Letras, 2001., p. 27) esclarece: "[...] só podemos ver as coisas para as quais já possuímos imagens identificáveis, assim como só podemos ler uma língua cuja sintaxe, gramática e vocabulário já conhecemos". O procedimento que usei permitiu um movimento possível pela história oral, ao trabalhar com memórias, mas expôs os limites desse enquadramento, pois um dos interesses na criação dos grupos escolares era marcar, no espaço da cidade, pela arquitetura, o imaginário social. Em José Luiz esse registro pretendido não se formou, por motivos explicados pelo próprio sujeito, e que em Pollak (1989POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2. n. 3, p. 3-15, 1989., p. 12) encontrei apoio:

Se a análise do trabalho de enquadramento de seus agentes e seus traços materiais é uma chave para estudar, de cima para baixo, como as memórias coletivas são construídas, desconstruídas e reconstruídas, o procedimento inverso, aquele que, com os instrumentos da história oral, parte das memórias individuais, faz aparecerem os limites desse trabalho de enquadramento e, ao mesmo tempo, revela um trabalho psicológico do indivíduo que tende a controlar feridas, as tensões e contradições entre a imagem oficial do passado e suas lembranças pessoais.

Do curso que fez depois de adulto, em 1969, no qual obteve a certificação do primário, guarda poucas memórias. O curso noturno, depois do trabalho, na zona Sul da cidade era distante para mais tarde retornar à casa, entretanto não há em seus discursos, ao tratar dessas lembranças, nenhuma reclamação sobre os infortúnios enfrentados durante a precária formação; embora já tivesse constituído família e morasse na Baixada Fluminense. Ficaram, desse tempo, os registros mnêmicos do diploma bonito que recebeu ao final, alguns textos usados nos trabalhos escolares e as aulas de matemática, pela dificuldade de acompanhá-las, uma vez que desenvolvera sua lógica na área a partir de rudimentos da tabuada aprendidos na infância e nas práticas cotidianas, ou como diz: na escola da vida. As experiências narradas sobre o curso assemelham-se à de muitos adultos matriculados na educação de jovens e adultos.

O certificado de curso primário, não qualifica os que apresentam esta formação a ingresso privilegiado no mercado de trabalho4 4 O conceito utilizado por Dubet (2003, p. 32) para estudar a educação republicana na França: o malthusianismo escolar ajuda a compreender, em parte, a conjugação entre escola e exclusão social no Brasil. Segundo o autor, foi o malthusianismo escolar que "protegeu durante longo tempo a escola do processo que acabou fazendo dela um fator de exclusão. [...] até o início da década de 70, os diplomas eram produzidos em quantidade menor ou igual à dos empregos qualificados a que correspondiam". O autor afirma que ninguém acusava a escola de ser responsável pelo desemprego há algumas décadas. . O processo de urbanização e industrialização, especialmente o avanço da tecnologia e da globalização, implicou a ampliação do acesso escolar e a exigência de maior grau de escolaridade para a empregabilidade. No entanto, o certificado possibilitou José Luiz fazer cursos de interesse pessoal, como os oferecidos por sua instituição religiosa para a preparação de líderes.

Em suas narrativas, deixa perceber que a alfabetização inicial, quando criança em sua cidade de origem, permitiram as conquistas presentes em sua história de vida. As experiências do colaborador revelaram que na trama de sua construção intelectual as práticas sociais que o envolveram foram fundamentais para sua constituição como ser aprendente e praticante cotidiano da leitura.

Reminiscências da Escola

Inexistem fontes escritas e visuais guardadas por José Luiz que indiquem como era o espaço onde iniciou-se na cultura escrita, e também materiais que fizeram parte de seu processo educativo. Fiz, então, uso das lembranças guardadas na memória e instigadas, em alguns momentos, por imagens de objetos comuns a materialidade escolar do período e de períodos anteriores, uma vez que as novidades proporcionadas pelas reformas de ensino e pela indústria sempre estiveram descompassadas, considerando-se o meio urbano e rural - materiais pesquisados por mim e apresentados ao entrevistado. A prática desse exercício permitiu perceber e compreender as permanências e esquecimentos de um tempo fundamental no processo de formação humana, no caso de José Luiz, seus primeiros passos no aprendizado da leitura e da escrita, e as marcas imprimidas em sua identidade.

Pelo acesso a textos escritos pelo relator e literaturas de seu acervo pessoal, procurei vestígios que indicassem as marcas e/ou ausências da escolarização em sua formação. Perscrutei textos produzidos na fase de sua vida adulta, que disponibilizou, e livros lidos observando suas impressões no corpo do texto e em suas margens.

É possível detectar, ao analisar seus escritos nos cadernos e agenda, dificuldade com a organização espacial e sequencial. Observei textos que não respeitam pautas e margens das folhas; há alguns registros quebrando a ordem das páginas, inclusive recomeçando de trás para frente. Esta dificuldade com a sequência das páginas encontra-se, com mais frequência nos cadernos com espiral de arame. No entanto, nas folhas avulsas onde escreve poesias, há uma estética resguardada, demonstrando maior familiaridade com esse tipo de escrita e com a própria formatação do texto poético - versos e estrofes. Atribuo isso, talvez, à experiência de leitura de cordéis desde sua adolescência.

As dificuldades encontradas no uso dos cadernos podem estar associadas à falta desse suporte de escrita durante a formação inicial, uma vez que sua introdução à cultura escrita se deu por meio do uso de folhas avulsas pautadas e, muitas vezes, praticada em papéis de embrulho, como ainda costuma fazer para a escrita de seus poemas. A falta de experiência de uso de cadernos escolares pode ter trazido dificuldades na utilização posterior. Corrobora a interpretação a fala do autor dos cadernos: "se tivesse tido oportunidade de estudar mais, poderia ter aperfeiçoado minha escrita".

Para o José Luiz o conceito de alfabetização não está ligado a simplesmente saber ler e escrever, mas ao fato de estudar em uma instituição de ensino e dar prosseguimento aos estudos. Assim, julga-se um semianalfabeto - usando um termo com o qual se referiu a si próprio.

Apesar da constatação de certas dificuldades no manejo da escrita em dispositivos encadernados, observei poucas falhas na ortografia, considerando-se as diversas mudanças de regras ortográficas ao longo dos anos e, de alguma forma, vividas pelo sujeito. A prática constante da leitura, possibilitando o contato com textos escritos, pode ter contribuído para esse resultado, uma vez que o José Luiz é leitor assíduo. Em seu discurso oral percebi poucas falhas nas concordâncias.

Ao analisar os suportes facultados à pesquisa, verifiquei mudanças no uso de fontes e formas para grafar as palavras. Escreve ora com letra cursiva ora com letra de forma. Além disso, há mudanças na caligrafia, o que pode ser influência da idade e/ou das circunstâncias em que o texto foi produzido. Porém, não se pode desconsiderar o método utilizado durante seu processo de iniciação à escrita.

Sua primeira cartilha foi o Abecedário ou ABC. O texto de Razzini (2008RAZZINI, Márcia de Paula Gregório. Instrumento de Escrita Elementar: tecnologia e práticas. In: MIGNOT, Ana Chrystina Venancio (Org.). Cadernos à Vista, Memória e Cultura Escrita. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008. P. 91-113.) nos ajuda a pensar sobre as transformações ocorridas nos objetos comuns da cultura escolar. Nele encontra-se alguns testemunhos de época, que podem também subsidiar o estudo de como se dava o processo de alfabetização nas escolinhas do interior, como o relato de Ananias Pereira de Sousa, nascido em 1943, e que cursou só o primeiro ano de uma escolinha na roça, do interior da Bahia, por volta de 1951. Conta que primeiro se aprendia as letras do abecedário para depois aprender a soletrá-las formando sílabas, isso através do uso de letras de imprensa maiúsculas. Não havia nenhuma prática de escrita. Dominada essa técnica, passava-se às letras minúsculas e, em seguida, às letras manuscritas.

Percebi que essa metodologia não foi muito diferente da usada pela professora Teresa Cassiano, responsável pela alfabetização do Sr. José Luiz, e que pode ter influenciado nas formas de escrita, misturando letra de imprensa maiúscula e letra cursiva, para quem passou a ter mais contato com textos impressos do que manuscritos, não tendo continuidade no processo de escolarização.

Também sua caligrafia pode ter sido influenciada pelo material usado para escrever, a caneta de pena, embora tenha dito, na primeira entrevista, que usou o lápis, antes da caneta.

Constatei que no uso da letra de forma há mais incidência de falta de letras. Nos textos escritos com letra cursiva a ortografia é quase perfeita, ainda que seja possível notar a troca de fonemas em palavras em que a pronúncia e a escrita se diferenciem como, por exemplo, trocas de O e U. Na maneira inicial de formação experimentada pelo Sr. José Luiz não havia o ensino da gramática propriamente dita e nem de regras de pontuação e acentuação, fato que registrou na entrevista ao dizer que o pouco que sabe de seus usos deu-se pela prática.

Em suas anotações encontrei definições que demonstram o uso de dicionário para a busca de significado de algumas palavras. Essa prática pode ter ajudado também a tirar dúvidas quanto à grafia de palavras, assim como o entendimento de seus significados e o emprego correto em contextos. Segundo José Luiz, ouvia sermões cotidianamente de pregadores antigos, o que julgou ter ajudado na compreensão de alguns conceitos e a verificar a correção de suas ideias, pelos menos, em sua forma de compreender o mundo - muito pautada na religiosidade protestante.

A influência marcante dos primeiros instrutores na vida de José Luiz pode ser confirmada não apenas pelas aprendizagens e falas que, de alguma forma, interferiram na formação de sua identidade, mas pela lembrança de minúcias de um tempo distante e do não esquecimento de seus nomes: Tereza Cassiano, sua alfabetizadora, e Manuel Puloquero, o professor de matemática. Ambos sem formação específica para lecionarem.

Era comum em regiões de carência de escolas, a instrução dada por pessoas que não portadoras de diploma, ensinavam porque sabiam ler, escrever e contar. Esse fato é destacado em relatos históricos sobre a educação no Brasil, principalmente do interior, e mencionados em relatórios do próprio governo. Getúlio Vargas, em 1952, quando se pronunciou a respeito do número reduzido de matrículas escolares no meio rural, declarou: "Tudo isso é, em parte, reflexo da carência de prédios escolares adequados e da falta de professores habilitados, para aludirmos apenas a dois importantes aspectos" (INEP, 1987INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS (INEP). A Educação nas Mensagens Presidenciais (1890-1986). Brasília: MEC, 1987. v. 1., p. 214).

Em suas memórias estão algumas práticas comuns no local onde estudava. Lembra-se do uso da palmatória como meio de repreender os alunos que cometiam atos considerados indisciplinares, que deixavam de cumprir tarefas ou quando não sabiam a lição no dia da argumentação.

As experiências e práticas educativas no cotidiano escolar de professores e alunos ainda estão para ser melhor conhecidas, como questionam Schueler e Magaldi (2009SCHUELER, Alessandra Frota Martinez; MAGALDI, Ana Maria Bandeira de Mello. Educação escolar na Primeira República: memória, história e perspectivas de pesquisa. Tempo, Niterói, v. 13, n. 26, p. 32-55, 2009., p. 55): "[...] que experiências, histórias, memórias, marcas inscritas em corpos e rostos foram deixadas pela escola? Que ausências, silêncios, medos, emoções, barreiras, exclusões, traumas e sensações experimentaram aqueles sujeitos que viveram e construíram as culturas escolares?". Contudo, começam a ganhar expressão os trabalhos que procuram conhecer as representações socioculturais sobre a forma escolar de educação realizadas por indivíduos e grupos sociais que permaneceram distantes da escola. Enfrentar o desafio de adentrar nesses campos é um risco, devido à falta de conservação de materiais que ajudem a aproximação do pesquisador.

No caso deste trabalho, o que contribuiu para o empreendimento foi o recurso das narrativas de um sujeito longevo, que mesmo não tendo posse de objetos ou imagens da cultura escolar de uma época pretérita, guarda reminiscências desse tempo, que procurei evocar, identificando registros guardados na memória.

Algumas Considerações a Respeito dos Sentidos Atribuídos a Tempo de Escola nas Vivências de José Luiz

Ao ir a busca do tempo de escola de José Luiz, materializei aspectos, de modo geral, pouco evidentes para os que se fazem convencidos de que a escola é o lugar de ensinar e de aprender. Encontrei um sujeito leitor-escritor e seu processo de formação, atravessado por contextos históricos adversos, constituído por fios que pouco cruzaram a escolarização formal. Nenhum dos fios se perdeu, ainda que tecidos em espaços cotidianos, trançados a leituras motivadas pela relação de José Luiz a diversos espaços sociais - trabalho, família, igreja, cursos de liderança religiosa e profissionalizante. Esses espaços sintetizaram sua relação com meios de comunicação e com a natureza, despertando interesse por saberes, possibilitando sua autoformação - a princípio denominada por mim como autodidaxia, termo que abandonei ao longo da investigação, por ser o conhecimento produzido em interação com múltiplos aspectos da realidade, e não como um simples exercício contemplativo e autorreflexivo do sujeito.

Entre as lembranças evocadas, as da escolinha particular doméstica em que se alfabetizou, vieram acompanhadas de detalhes e nomes que remontam a tempos tão distantes da vida do narrador octogenário, mostrando o quanto o tempo da escola é um período de experiências marcantes na constituição dos sujeitos que por ela passam, por muito ou pouco tempo, independente da estrutura física, de ser ela boa ou ruim.

O estudo de caso constatou que a constituição desse leitor e escritor se deu por meio de interações sócio-históricas - o que envolveu práticas sociais -, em espaços que extrapolaram o escolar, embora seja impossível desprezar a escolarização como forma de democratizar o processo de aquisição da leitura e da escrita.

O contato com o protagonista da pesquisa, oportunizou-me conhecer parte de seu processo de formação como sujeito e como leitor e escritor de seu próprio texto, apesar da pouca experiência escolar. Pude constatar uma rede de formação complexa que o constituiu, com fios que passaram por múltiplos lugares e tempos. Inúmeros fios constituíram suas redes de formação e autoformação e nem todos foram reconhecidos durante nossos longos encontros dialógicos, pois há fios que nos constituem que sequer nos damos conta de identificá-los.

As experiências adquiridas, a partir dessa investigação mostraram o quanto a formação de um indivíduo é complexa e se complexifica mais no contexto da sociedade tecnológica, globalizada e grafocêntrica. Apesar da heterodidaxia do sujeito, revelada em muitos aspectos de sua autoformação, concluí que a escola, como agência educadora, pode contribuir com fios importantes para a tessitura dessa trama, e também que sua não presença na vida dos cidadãos deixa muitas lacunas para quem participa de sociedades de cultura escrita.

Olhar para sujeitos como José Luiz, que se constituiu como leitor e escritor, e que se formou na vida, por não ter sido alcançado por políticas educacionais capazes de lhe assegurar o direito a uma educação mais completa no sentido acadêmico - mesmo que isso fortaleça o sentido de ser sujeito de si, de ser pessoa que se teceu por fios distantes do espaço escolar - confere-lhes em parte certa dignidade, mas não basta. Se foram capazes de aprender na vida, no mundo e, assim ousaram caminhar por conta própria a aventura do conhecimento, desbravando saberes de uma cultura historicamente produzida, não eximem o Estado e a sociedade da responsabilidade a eles devida, porque são cidadãos.

No caso de José Luiz, esse não direito promoveu algumas limitações que não pôde superar, como a fluência desejada na escrita, capaz de habilitá-lo a concretizar o desejo de biografar sua própria história. Limitado em aspectos relacionados ao reconhecimento social - situação experimentada comumente por sujeitos vítimas de preconceitos em uma sociedade herdeira da tradição eurocêntrica e marcada pelo que Santos (2007SANTOS, Boaventura de Sousa. Para Além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos, n. 79. São Paulo, nov. 2007. p. 71-94.) designa de pensamento abissal -, conhece a discriminação aos saberes populares e àqueles constituídos por lógicas destoantes dos padrões científicos ou filosóficos ocidentais. Junto a esse desapreço aos conhecimentos populares, inclui-se o reconhecimento de quanto a supervalorização dos títulos significa na sociedade escolarizada, competitiva e, no caso do Brasil, herdeira de uma tradição colonial que apenas troca o poder legitimado pelos títulos nobiliárquicos pelos acadêmicos e/ou de posses. Nesse contexto, sujeitos intelectuais sem escolarização e titulação acadêmica são geralmente discriminados, quando não incompreendidos, mesmo quando reproduzem conhecimentos pautados nas ciências modernas.

O trabalho tratou uma realidade subjetivada, dando nome ao sujeito e fazendo conhecidas suas experiências, tornando-as um espelho em que se possa não apenas encontrar virtualidades e defeitos. O objetivo maior foi poder fazer com que histórias de vida como essa possam ser conhecidas pelos que, ocupando lugares de poder na sociedade, (re)conheçam as virtualidades e as dificuldades do percurso, reflitam e venham a construir ações que minimizem, ao menos, os condicionantes promotores de exclusão. É impossível desconsiderar a importância do tempo da escola na infância para a formação dos indivíduos, mas é também preciso se estar consciente da necessidade de promoção de um tempo de escola em todas as fases da vida do cidadão contemporâneo, diante das novas realidades que esse tempo impõe a cada ser, sobretudo, a garantia desse tempo na vida daqueles que a ele nunca tiveram acesso.

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  • TORRES, Rosa María. Alfabetización y aprendizaje a lo largo de toda la vida. Revista Interamericana de Educación de Adultos. México, n. 1, s.p., 2006.
  • 1
    Mesmo considerado o fato de ter frequentado e ter sido certificado como concluinte do ensino primário em uma classe multisseriada aos 39/40 anos, porque legalmente essas classes não eram classificadas como educação regular.
  • 2
    Evito o termo autodidaxia por considerar que o conhecimento se constrói em interação com o outro, seja ele presente fisicamente ou não. Até porque a leitura de um texto é, de certa forma, uma interação entre o autor do texto que se faz ouvir e o leitor que toma contato com as ideias do autor, em condições talvez mais favorável com relação ao retrucar, mas com poucas possibilidades de feedback às suas colocações e interrogações.
  • 3
    Para Pinheiro (2002PINHEIRO, Antônio Carlos Ferreira. Da Era das Cadeiras Isoladas à Era dos Grupos Escolares na Paraíba. Campinas; São Paulo: Autores Associados; Universidade São Francisco, 2002. , p. 72; p. 272), a implantação das cadeiras isoladas foi uma tentativa de criação de uma estrutura escolar pública laica, mediante os princípios do Iluminismo, mas ainda influenciada pela escolástica, tendências filosóficas transplantadas da Europa Ocidental. A princípio, as cadeiras isoladas funcionavam nas próprias residências dos professores. Funcionavam como "casas escolares": salas de visita de casas particulares, salões de casas-grandes de engenho e alpendres de sítios. Situação cômoda por parte das autoridades que não achavam justo o Tesouro Público ter despesas com casas para o ensino de primeiras letras.
  • 4
    O conceito utilizado por Dubet (2003DUBET, François. A Escola e a Exclusão. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 119, p. 29-45, 2003., p. 32) para estudar a educação republicana na França: o malthusianismo escolar ajuda a compreender, em parte, a conjugação entre escola e exclusão social no Brasil. Segundo o autor, foi o malthusianismo escolar que "protegeu durante longo tempo a escola do processo que acabou fazendo dela um fator de exclusão. [...] até o início da década de 70, os diplomas eram produzidos em quantidade menor ou igual à dos empregos qualificados a que correspondiam". O autor afirma que ninguém acusava a escola de ser responsável pelo desemprego há algumas décadas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2015
  • Aceito
    30 Maio 2016
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