A história da imagem perdida
E.T.A. Hoffmann
recebido em 25/03/2011 e aceito em 14/04/2011
E finalmente chegou o momento em que Erasmus Spikher pôde satisfazer o desejo nutrido em seu coração durante uma vida inteira. Com o coração alegre e a carteira bem cheia, sentou-se na carruagem a fim de abandonar o lar nórdico e viajar para a linda e quente terra de língua latina. Sua querida e devota esposa derramou milhares de lágrimas e, depois de limpar com esmero o nariz e a boca do pequeno Rasmus, ergueu-o em direção à carruagem, para que o pai pudesse ainda dar-lhe muitos beijos de despedida. “Adeus, meu querido Erasmus Spikher”, disse a mulher soluçando, “Vou cuidar bem da casa para ti, pense sempre em mim, seja-me fiel e não perca seu belo chapéu de viagem quando adormeceres com a cabeça para fora da janela, como bem costumas fazer”. Spikher prometeu isso. –
Na bela Florença, Erasmus conheceu alguns conterrâneos que cheios de ímpeto e vontade de viver gozavam de prazeres luxuriosos, oferecidos em abundância pela terra esplêndida. Erasmus se portou diante deles como um valente companheiro. Agradáveis banquetes de todos os tipos foram promovidos, aos quais o espírito muito vigoroso de Spikher e o seu talento para acrescentar significado aos loucos divertimentos acrescentavam um notável ânimo. Eis que os jovens (Erasmus, que contava então vinte e sete anos, estava incluído neste grupo) celebraram uma animada festa noturna em um arvoredo iluminado do magnífico e perfumado jardim. Com a única exceção de Erasmus, cada um dos jovens havia trazido uma encantadora donna. Os homens vestiam graciosos trajes teutônicos antigos, as mulheres coloridos e brilhantes vestidos, cada um de uma variedade diferente; estavam trajadas de modo tão fantástico que mais pareciam lindas flores a passear. Diante do murmúrio de cordas dos bandolins, uma ou outra cantava histórias de amor italianas, que os homens acompanharam sob o alegre tilintar dos copos fartos de siracusiano com uma vigorosa canção alemã de taverna. – Já que a Itália é de fato a terra do amor. A brisa do anoitecer soprava como em ansiosos suspiros, os perfumes de laranja e jasmim atravessavam o arvoredo como sonidos de amor, misturando-se ao jogo livre e provocante, iniciado pelas tão lindas quanto convidativas figuras femininas; todas pequenas e delicadas bufonistas, como o são apenas as mulheres italianas. Sempre mais viva e intensa crescia a volúpia. Friedrich, o mais fervoroso dos homens, levantou-se; com um braço envolveu sua donna, e com a outra mão balançando o copo cheio de siracusiano, gritou: “Onde, a não ser convosco, se encontra a alegria celeste e a felicidade? Vós, lindas e magníficas mulheres italianas, vós sois o próprio amor. – Mas tu, Erasmus”, continuou ele, voltando-se para Spikher, “não parece te sentires assim, pois contra todo o compromisso, toda a ordem e toda a tradição, não apenas deixastes de convidar uma dama para nossa festa, como também estás hoje tão tristonho e voltado para ti mesmo que, caso não tivesses ao menos bebido e dançado com bravura, eu pensaria que de repente haverias te tornado um tedioso melancólico” – “Preciso confessar-te, Friedrich”, respondeu Erasmus, “que eu dessa forma no momento não posso festejar. Vós sabeis bem que abandonei uma querida e devota mulher, que amo do fundo de minha alma, e com a qual eu cometeria uma traição caso escolhesse uma donna para o jogo livre, ainda que por uma única noite. Convosco, jovens sem mulher, é outra situação, mas eu, como pai de família...“ – Os rapazes riram abertamente, já que Erasmus, ao pronunciar a palavra “pai de família”, esforçou-se para forjar rugas de seriedade na jovial e receptiva fronte, as quais, de fato, saíram muito cômicas. A donna de Friedrich prestou-se a traduzir para o italiano o que Erasmus havia dito em alemão, depois lançou-lhe um olhar sério, e disse balançando devagar o dedo em riste: “Alemão frio, frio! – Aguarde bem, tu ainda não vistes Giulietta!”
No mesmo momento farfalhou na entrada do arvoredo e, vinda da noite escura, sob o brilho das velas, entrou ali uma maravilhosa figura de mulher. O vestido branco, cobrindo apenas a metade do busto, deixando ombros e pescoço à mostra, com fofas mangas caindo de leve até o cotovelo, deslizava para baixo em abundantes pregas, o cabelo estava repartido no meio da testa e atrás enlaçado em muitas tranças presas no alto. – Colares de ouro em volta do pescoço e pulseiras abundantes enlaçadas no pulso aperfeiçoavam o arcaico adorno da jovem mulher que se apresentava diante do olhos, como se ali se movimentasse um retrato feminino de Rubens ou do elegante Mieris. “Giulietta!” gritaram as moças de surpresa. Giulietta, cuja beleza angelical reluzia por tudo, disse em doce e encantadora voz: “Deixem-me participar de vossa festa, valentes rapazinhos alemães. Desejo ir até aquele que dentre vós está tão sem volúpia e sem amor.” Assim ela se moveu com grande graça até Erasmus e sentou-se na cadeira que permanecia vazia ao seu lado, já que havia sido estipulado que ele também deveria trazer uma donna. As moças murmuravam entre elas: “Oh, veja, veja como Giulietta hoje está de novo tão bela“ e os rapazes diziam: “O que se passa com Erasmus? Ele ganhou a mais bela e está a fazer troça conosco?”
Desde o primeiro olhar que lançou à Giulietta, Erasmus sentiu uma sensação tão estranha, que nem ele mesmo sabia o que de tão poderoso se agitava em seu íntimo. Quando ela se aproximou Erasmus foi tomado por uma estranha força e pressionou o peito para conter a respiração. Com a visão quase aprisionada em Giulietta e os lábios rijos, ele permaneceu ali sentado e não conseguiu trazer uma única palavra à tona, enquanto os rapazes elogiavam em voz alta a beleza e a doçura de Giulietta. Giulietta apanhou e ergueu um cálice cheio para alcançar com gentileza a Erasmus; ele agarrou o cálice, tocando de leve os delicados dedos de Giulietta. Erasmus bebeu e o furor correu por suas veias. Giulietta perguntou em tom jocoso: “Posso então ser a sua donna?” Erasmus lançou-se aos pés de Giulietta como em delírio, apertou as duas mãos dela contra seu peito e gritou: “Sim, tu já és, a ti eu amei desde sempre, a ti, tu, figura angelical! - A ti contemplei em meus sonhos, tu és minha sorte, minha bem-aventurança, minha mais nobre vida!“ Todos pensaram que o vinho havia subido à cabeça de Erasmus, pois nunca o tinham visto assim, ele parecia ter-se tornado outro. “Sim, tu - tu és minha vida, tu ardes em mim como furor em chamas! Deixa que eu me perca - que eu me perca apenas em ti, apenas em ti quero existir!” Assim gritou Erasmus, e Giulietta tocou-o de leve no braço; mais calmo, ele sentou-se ao lado dela, porém logo recomeçou o grande jogo de amor que havia sido interrompido por Giulietta e Erasmus, acompanhado de alegres gracejos e canções. Quando Giulietta cantava, era como se saíssem do fundo de seu peito sons celestes jamais conhecidos; apenas volúpia pressentida e em tudo inflamada. A sua esplêndida voz cristalina trazia consigo um ardor misterioso que intimidava por completo qualquer índole. Cada um dos rapazes agarrou com mais afinco sua donna, e com mais fogo a encarou olho no olho. Logo um brilho rubro anunciou a chegada da aurora, então Giullieta aconselhou que a festa fosse encerrada. Assim foi. Erasmus ofereceu-se para acompanhar Giulietta, ela recusou e o indicou a casa onde poderia encontrá-la mais tarde. Giulietta desapareceu do arvoredo durante as canções alemãs de taverna, cantadas pelos rapazes até o final da festa. Ela foi vista passando por um distante corredor de folhagens atrás de dois criados, que a antecediam com tochas. Erasmus não ousou segui-la. Os rapazes, todos de braços dados com suas donnas, andavam para longe cheios de luminosa volúpia. Arrebatado e destruído por dentro, tomado pelo anseio e pela dor de amor, por fim os seguiu Erasmus, cujo pequeno criado o iluminava com a tocha. Depois, ali onde os amigos o abandonaram, Erasmus seguiu por uma rua afastada que o levou até sua casa. A aurora já estava alta, o criado apagou a tocha no ladrilho, porém em meio às faíscas que pululavam surgiu de repente uma estranha figura diante de Erasmus, um homem alto e magro com um pontiagudo nariz de falcão, olhos brilhantes e boca curvada de um jeito malicioso, vestindo um casaco vermelho-fogo com radiantes botões de aço. Ele riu e gritou com uma desagradável voz estridente: “Hoho! - O Sr. parece perfeitamente saído de um velho livro ilustrado, vestindo este seu sobretudo, este seu justilho aberto e sua boina com penas. – o Sr. parece bastante indiscreto, Sr. Erasmus, mas gostaria de se tornar piada do povo nas ruas? Seria melhor voltar para seu livro de pergaminho.” – “O que tens com a minha roupa?“, disse Erasmus carrancudo e quis passar, empurrando o sujeito de vermelho para o lado, ele gritou para Erasmus: “Agora, agora – não há motivo para pressa, não podes ir até Giulietta no momento” Erasmus se voltou ligeiro para ele, “O que tem Giulietta?“. gritou ele com uma voz furiosa agarrando o sujeito de vermelho pelo peito. Este se virou veloz como uma flecha e desapareceu antes que Erasmus percebesse. Muito surpreso, Erasmus permaneceu ali com o botão de aço que havia arrancado do Rubro na mão. “Este era o curandeiro, Signor Dapertutto; o que ele queria com o Sr.?“ perguntou o criado, mas Erasmus teve um acesso de horror e se apressou para chegar em casa.
Giulietta recebeu Erasmus com a extraordinária graça e gentileza que lhe eram características. A insana paixão que inflamava Erasmus se opunha ao comportamento suave e equilibrado dela. Apenas vez que outra seus olhos brilhavam com mais intensidade, Erasmus sentia algo como um leve calafrio vindo de dentro a arrepiá-lo por fora, quando ela às vezes o lançava uma olhadela um tanto estranha. Ela nunca disse a ele que o amava, mas todo o seu modo de tratá-lo denotava isso com clareza, e assim laços cada vez mais e mais fortes o envolveram. Uma verdadeira vida de sol o arrebatou; aos amigos via pouco, já que Giullieta o conduziu para uma outra e estranha comunidade.
Uma vez ele topou com Friedrich, que o importunou sem cessar, e no momento em que finalmente Erasmus ficou comovido e saudoso o bastante, por conta das muitas recordações de sua pátria e de sua casa, então falou Friedrich: “Tu sabes, Spikher, que te envolvestes em um relacionamento bastante perigoso? Já deves haver notado que a bela Giulietta é uma das mais espertas cortesãs que existem. Ouve-se por aí muitas histórias peculiares, misteriosas, de que ela teria aparecido sob luzes bastante excepcionais. Diz-se que ela, quando quer, exerce um poder irresistível sobre os homens e os enreda em laços indissociáveis; vejo que tu estás um tanto alterado, que estás totalmente entregue à sedutora Giulietta, nem pensas mais na tua querida e devota mulher.” – Então Erasmus cobriu o rosto com as mãos, soluçou alto e gritou o nome de sua mulher. Friedrich percebeu que uma árdua luta interna ali tinha início. “Spikher“, ele prosseguiu, “vamos embora logo.” – “Sim, Friedrich,” gritou Spikher impetuoso, “tens razão. Eu não entendo como ideias tão sombrias e terríveis tomaram conta de mim de repente – preciso partir, partir ainda hoje.“ – Os dois amigos se apressaram rua afora, depararam-se então com o Signor Dapertutto, ele riu no rosto de Erasmus e gritou: “Ui, apresse-se, apresse-se logo, Giulietta já o está esperando, com o coração cheio de saudade, os olhos cheios de lágrimas – Ui, apresse-se, apresse-se logo!” Era como se Erasmus houvese tomado um susto. “Este sujeito”, disse Friedrich, “este ciarlatano me é detestável do fundo da alma, além do mais ele às vezes anda com Giulietta para cima e para baixo e vende a ela suas essências milagrosas.” – “O que?“ gritou Erasmus, “Este sujeito abominável com Giulietta – com Giulietta?“ – “Onde o Sr. estava durante tanto tempo, todos o estão esperando, o Sr. não pensou em mim?” Assim disse uma voz que vinha do alto de uma sacada. Era Giulietta, diante da casa de qual os amigos estavam parados sem terem percebido. Em um pulo Erasmus estava dentro da casa. “Ele agora entrou e não terá mais salvação“ disse Friedrich baixinho e foi embora devagar pela rua.
Giulietta nunca estivera tão adorável, vestia a mesma roupa daquela ocasião no jardim, brilhava em toda sua beleza e graça juvenil. Erasmus esqueçera tudo que havia conversado com Friedrich, mais do que nunca foi atingido por uma intensa alegria, diante do mais nobre e irresistível encanto. Nunca Giulietta havia se feito notar tão sem reservas em seu mais íntimo amor. Ela parecia ater-se apenas a ele, existir só para ele. – Uma festa foi celebrada em uma villa que Giullieta alugara para o verão. Todos estavam lá. Havia um jovem italiano de aspecto detestável e modos ainda mais detestáveis. Ele não media esforços para agradar Giulietta e despertou o ciúme de Erasmus, que possesso pela ira afastou-se dos outros e ficou caminhando de um lado para o outro em uma alameda lateral do jardim. Giulietta foi procurá-lo. “O que há contigo? – não és todo meu?“ Ela o envolveu em seus braços delicados e imprimiu-lhe um beijo nos lábios. Faíscas de fogo atravessaram seu corpo, em um acesso de fúria apaixonada ele pressionou a amada contra si e gritou: “Não, eu não te deixo, e por isso deveria perecer na mais deliciosa das perdições!” Giulietta riu de forma peculiar diante de tais palavras e lançou-lhe aquela olhadela estranha, que sempre provocava nele um arrepio interno. Eles voltaram para a festa. O insolente jovem italiano assumiu o papel de Erasmus; tomado pelo ciúme, ele disparou toda espécie de afiada e ofensiva conversa contra os teutões e especialmente contra Spikher. Ele não pôde mais aguentar e logo dirigiu-se ao italiano: “Pare”, disse ele “com as suas provocações ordinárias sobre os teutões e sobre mim, ou vou jogá-lo naquele lago e o Sr. poderá aventurar-se no nado.” No mesmo instante reluziu um punhal nas mãos do italiano, Erasmus o agarrou com fúria pela garganta, lançou-o para baixo e deu-lhe um violento pontapé na nuca com o qual o italiano, agonizante, entregou suas forças. – Tudo despencou sobre Erasmus, que perdeu a consciência – sentiu-se então apanhado e conduzido para longe dali. Quando acordou, como que de um grande entorpecimento, estava estendido em um pequeno gabinete aos pés de Giulietta que, com a cabeça inclinada sobre ele, segurava-o com os dois braços. “Tu, alemão malvado, malvado!” Disse ela infinitamente suave e meiga, “Que medo me fizestes sentir! Do próximo perigo te salvei, mas com certeza não estás a salvo aqui em Florença, nem na Itália. Tu precisas partir, e precisas deixar a mim, que tanto te amo.” A ideia do rompimento estraçalhou o íntimo de Erasmus com dor e lástima. “Deixa-me ficar!” ele gritou “Eu preferiria morrer. Afinal, é a morte pior do que ficar sem ti?“ Assim ele disse, quando uma distante e tênue voz chamou sofrida pelo seu nome. Ah, não! Era a voz da devota esposa alemã. Erasmus calou-se, e de um modo bastante peculiar, Giulietta perguntou: ”Estás pensando na tua esposa? – Ah, Erasmus, vais esquecer de mim muito em breve.“ – “Se eu pudesse ser teu para todo o sempre” disse Erasmus. Eles estavam agora diante de um belo e largo espelho, que fora colocado na parede do gabinete com velas muito iluminadas que queimavam de ambos os lados. Com mais firmeza e vigor Giulietta pressionou Erasmus contra si, e para ele levemente sussurrou: “Deixa comigo tua imagem, ó fervoroso amante, deixa para mim tua imagem, ela deve ser minha e permanecer comigo para sempre.” – “Giulietta”, gritou Erasmus muito surpreso, “o que queres dizer? – Minha imagem?“ – Ele olhou para o espelho, que o devolveu o reflexo dele e de Giulietta em um doce abraço de amor. “Como podes te apossar de minha imagem“, prosseguiu ele, “ela que anda comigo por todo lado e me encara diante de cada água transparente, de cada superfície bem polida?” – “Oh, nunca mais”, disse Giulietta, ”nunca mais será a mim permitido este sonho do teu Eu, assim como ele resplandece no espelho! Troçavas de mim quando dizias que querias ser meu em corpo e vida? Nunca mais tua imagem irrequieta deve ficar comigo e comigo andar pela miserável vida, esta vida da qual tu partes e que sem ti ficará sem volúpia e sem amor?” As lágrimas ardentes jorraram dos belos olhos escuros. Então, enlouquecido por uma mortal dor de amor, Erasmus gritou: “Devo ir para longe de ti? – Se devo ir, deixo então minha imagem contigo por todo o sempre. Nenhuma força – nem mesmo o diabo poderá arrancá-la de ti, até que me tenhas de corpo e alma.” – Os beijos de Giulietta ardiam como o fogo em sua boca quando assim falou, então ela desprendeu-se dele e estendeu os braços ansiosa em direção ao espelho. Erasmus viu como sua imagem moveu-se para fora independente de seus movimentos, deslizou para os braços de Giulietta, e sumiu acompanhada de estranha fragrância. Por todos os lados, vozes detestáveis resmungavam e riam em tom de escárnio diabólico; tomado pelo espasmo da morte vindo do mais profundo pavor, ele caiu inconsciente no chão, mas o tenebroso medo – o terror arrancou-o do entorpecimento; na densa e espessa escuridão ele cambaleou porta afora, escada abaixo. Em frente à casa ele foi capturado e colocado em uma carruagem que corria muito depressa. “A situação se alterou um pouco, como parece“, disse o homem que havia sentado ao seu lado, em alemão. “A situação se alterou um pouco, no entanto, tudo agora será excelente, basta que o senhor deseje entregar-se completamente a mim. Giuliettinha já fez o que cabia a ela e agora recomendou o Sr. a mim. Vossa Senhoria é também um caríssimo jovem e tem uma espantosa inclinação pelos agradáveis prazeres, do mesmo modo como também a nós, a mim e a Giulettinha, eles muito aprazem. Este foi para mim um bastante eficiente pontapé teutônico na nuca. O jeito como estava pendurada a língua azul-cereja do Amoroso – foi muito engraçado, e como ele grasnou e gemeu e não conseguiu correr a tempo – hahaha–“ A voz do homem era tão insolentemente desdenhosa, seus disparates tão terríveis, que as palavras foram como punhaladas direto no peito de Erasmus. “Seja o Sr. quem for,” disse Erasmus, “cale-se, cale-se sobre este apavorante crime do qual me arrependo!” – “Arrepender-se, arrepender-se!“ revidou o homem. “Arrepende-se também de ter conhecido Giulietta e conquistado seu doce amor?“ – “Ah, não, Giulietta, Giulietta!” suspirou Erasmus. “Agora,” prosseguiu o homem, “agora o Sr. está sendo infantil, o Sr. tem anseios e desejos, mas deixa que tudo fique nos mesmos caminhos planos de sempre. É fatídico que o Sr. deveria abandonar Giulietta, contudo, se permanecesse aqui, eu não só poderia sacar todos os punhais de seus perseguidores, como também fazer a estimada justiça.” A ideia de poder ficar com Giulietta apossou-se de Erasmus com violência. “Como isso seria possível?“ perguntou ele. – “Eu conheço”, continuou o homem, “uma simpatia capaz de levar seus perseguidores à cegueira; resumindo, o Sr. aparecerá para eles sempre com outra face e eles nunca mais poderão reconhecê-lo. Assim que raiar o dia, seria bom que o Sr. se contemplasse longa e atenciosamente no espelho, eu faria então as devidas operações com sua imagem, sem em nada danificá-la, assim o Sr. estaria protegido e poderia viver com Giulietta livre de todos os perigos, com toda a volúpia e alegria.” – “Tenebroso, Tenebroso!” urrou Erasmus. “O que é tenebroso, caríssimo?” perguntou o homem com escárnio. “Ah, não – eu – eu...“ começou Erasmus – “O Sr. entregou sua imagem“, completou o homem depressa, “entregou à Giulietta? – hahaha! Bravíssimo, meu caro! Então o Sr. pode correr para os campos e as florestas, pelas cidades e vilarejos, até encontrar sua mulher ao lado do pequeno Rasmus e novamente ser um pai de família, ainda que sem sua imagem, o que sua esposa não notará, pois terá o Sr. fisicamente, mas Giulietta terá para sempre apenas o seu resplandescende Eu-onírico.“– “Cale-se, horrível criatura!“, gritou Erasmus. Neste instante um alegre e cantante cortejo se aproximou com tochas que jogavam seu brilho na carruagem. Erasmus olhou no rosto de seu companheiro de viagem e reconheceu o detestável Dr. Dapertutto. Com um salto ele saiu da carruagem e correu em direção ao cortejo, pois já de longe havia reconhecido o melodioso baixo de Friedrich. Os amigos voltavam de um banquete campestre. Rapidamente Erasmus contou a Friedrich tudo que acontecera, e calou-se apenas sobre a perda de sua imagem. Friedrich apressou-se com ele em direção à cidade, e tão depressa tudo foi arranjado, que com a chegada da aurora Erasmus já estava montado em seu veloz cavalo, bem longe de Florença. – Spikher tomou nota de várias aventuras com as quais se deparou durante sua viagem. A mais interessante aconteceu da primeira vez que se sentiu muito estranho em relação à perda de sua imagem. Ele estava parando em uma cidade grande, apenas porque seu cavalo precisava de descanso, quando sentou-se despreocupado em uma mesa de taberna lotada, sem reparar, porém, que diante dele estava pendurado um belo e reluzente espelho. Um diabo de garçom, que estava parado atrás de sua cadeira, reparou lá adiante no espelho que a cadeira à sua frente estava vazia e nada refletia da pessoa sentada. Ele compartilhou sua observação com o homem ao lado de Erasmus, este por sua vez compartilhou com o homem ao seu lado, e assim isto correu por toda a mesa em murmúrios e sussurros; olhava-se para Erasmus, e depois para o espelho. Erasmus ainda não havia percebido que tudo aquilo era por sua causa, até que um homem de expressão muito séria levantou-se da mesa, conduziu-o até o espelho, olhou para ele e, então, virando-se para os outros, gritou alto: “É verdade, ele não tem imagem!” – “Ele não tem imagem! – Ele não tem imagem!“ gritavam uns por cima dos outros; “um mauvais sujet, um homo nefas, joguem o homem porta afora!” – Cheio de raiva e vergonha, Erasmus fugiu para o seu aposento; mas mal havia chegado e já foi interpelado pela polícia, que ordenou que ele comparecesse dentro de uma hora perante às autoridades, munido de sua completa e idêntica imagem. Ele se apressou para longe dali, perseguido pela plebe ociosa, pelos jovens arruaceiros que gritavam: “Lá vai ele cavalgando, ele que vendeu sua imagem ao demônio, lá vai ele!” – Por fim, ele conseguiu escapar. A partir de então por todos os lugares onde passava ele cobria depressa qualquer espelho, sob o pretexto de um natural desgoto relativo àquele reflexo. Por conta disso o apelidaram zombeteiramente de General Suwarow, o qual fazia algo semelhante.
Erasmus foi recebido com alegria pela querida esposa em companhia do pequeno Rasmus quando chegou à sua terra de origem, e logo a perda de sua imagem parecia estar superada no tranquilo e pacífico aconchego do lar. Aconteceu que, uma tarde, Spikher, que já havia retirado Giulietta dos pensamentos, brincava com o pequeno Rasmus, que tinha as mãos cheias de fuligem de forno e as estendeu até o rosto do pai. “Ah, não! Papai, papai, olhe aqui como te deixei preto!” Assim gritou o pequeno e, antes que Spikher pudesse evitar, ergueu um espelho e, ao mesmo tempo em que olhava para ele, colocou-o diante do pai. – Mas logo Rasmus deixou o espelho cair, chorando, e saiu correndo para o quarto. Pouco depois entrou a mulher, com uma expressão de susto e surpresa. “Rasmus me contou”, disse ela. “Que eu não tenho imagem, não é, meu amorzinho?” completou Erasmus com uma risada forjada e esforçando-se para provar o quão absurda era a ideia de que alguém poderia perder sua imagem, e, além do mais, se acontecesse, não muito estaria perdido, já que aquela imagem seria apenas uma ilusão, que a auto-contemplação conduziria à vaidade e que, além disso, tal figura desagregaria o próprio Eu da realidade e do sonho. Enquanto ele falava, a mulher já havia ido até um espelho dependurado na sala e depressa retirado um pano que o cobria. Ela olhou para o espelho, e como se um raio a houvesse atingido, desmaiou. Spikher a ergueu, porém ela nem bem havia recuperado a consciência quando empurrou Erasmus com desgosto para longe de si. “Deixa-me!” ela berrava, “Deixa-me, homem medonho! Tu não és meu marido, tu não és meu marido, não – tu és um espírito do inferno, que deseja acabar com minha felicidade, destruir-me. – Vá, deixa-me, tu não tens nenhum poder sobre mim, maldito!“ Sua voz ecoou pela sala, pelo salão principal; as pessoas da casa correram assustadas até eles, e Erasmus, tomado de fúria e desespero, correu para fora de casa. Como se estivesse movido por um forte arrebatamento, correu pela solitária trilha do parque ao lado da cidade. O vulto de Giulietta elevou-se diante dele em sua beleza angelical, e ele gritou bem alto: “Assim é que te vingas, Giulietta, porque eu te deixei e ao invés de mim mesmo te dei apenas minha imagem? Ah, Giulietta, eu quero ser teu com corpo, vida e alma, ela destruiu a mim, ela, pela qual eu te sacrifiquei. Giulietta, Giulietta, eu quero agora ser teu com corpo, vida e alma.“– “Isso o Sr. pode ser perfeitamente, meu caríssimo”, disse o Signor Dapertutto, que de sopetão aproximou-se dele com seu casaco escarlate de brilhantes botões de aço. Foram palavras acalentadoras para o infeliz Erasmus que, por conta disso, não prestou atenção no rosto cínico e detestável de Dapertutto, continuou ali parado e perguntou em tom bastante patético: ”Como eu posso então encontrá-la de novo? Ela, a quem perdi para sempre?” – “Nada disso,” revidou Dapertutto, “ela não está longe daqui e anseia terrivelmente pelo caríssimo Sr., logo, como o Sr. vê, uma imagem é apenas uma ilusão vil. A propósito, contanto que ela saiba com segurança que a sua valorosa pessoa a pertence com corpo, vida e alma, ela lhe devolverá sua respectiva imagem completa e intacta de bom grado.”– “Leve-me até ela – até onde ela está!“ gritou Erasmus, “Onde ela está?” – “Apenas mais um detalhe,” completou Dapertutto, “antes que o Sr. veja Giulietta e possa entregar-se a ela por inteiro em agradecimento à restituição de sua imagem. Aqueles que não poderão mais dispor da sua valorosa pessoa devem ser libertos, já que o senhor está preso pelos conhecidos laços. – Vossa querida mulher e o promissor filhinho.“ – “O que dizes?” Falou Erasmus furioso, “Uma despretensiosa dissolução destes laços,” continuou Dapertutto, “poderia ser realizada de modo humanamente bastante leve. O Sr. já ouviu falar, em Florença, que eu sei preparar medicamentos milagrosos, tanto que tenho aqui alguns ingredientes comigo. Aqueles que estão no caminho do Sr. e da querida Giulietta devem tomar apenas algumas gotas e logo perderão a vida sem grande estardalhaço. Chama-se isso de morte, e a morte pode ser amarga; mas também não é doce o gosto das amêndoas mais amargas? E apenas esta amargura tem a morte contida neste frasco. Logo após a tranquila morte, a caríssima família irá exalar um cheiro semelhante ao das amêndoas amargas. – Apanhe isso, meu honradíssimo Sr.” – Ele alcançou a Erasmus um pequeno frasco.
“Homem terrível!”, gritou este, “Devo então envenenar minha mulher e meu filho?” – “Quem falou em veneno?”, completou o Rubro, “O frasco contém apenas um saboroso remédio caseiro. A mim restaram outros meios de conseguir vossa liberdade, ofertá-la gratuitamente ao Sr., mas gostaria de impressioná-lo com minha naturalidade e humanidade, esse é meu passatempo. Tome sem receio, meu caro!“ – Erasmus tinha o frasco na mão, nem ele mesmo sabia como. Fora de si, correu para o quarto de sua casa. Sua mulher havia passado a noite inteira sob o domínio de milhares de medos e lamentações, ela continuava afirmando que o homem que regressou não era seu marido, mas sim um espírito do inferno que tomou a forma de seu marido. Assim que Spikher entrou em casa, todo o pavor voltou, apenas ao pequeno Rasmus ocorrreu aproximar-se do pai e perguntar de modo infantil porque ele não havia trazido junto sua imagem, desse jeito a mãe iria afligir-se até a morte. Erasmus encarou agitado o pequeno, ainda com o frasco de Dapertutto na mão. O pequeno trazia no braço sua pomba preferida, e foi então que ela com o bico aproximou-se do frasco e bicou a rolha. No mesmo momento, deixou cair a cabeça; estava morta. Assustado, Erasmus deu um pulo. “Traidor!“, gritou ele, “Não me conduzirás a um crime demoníaco!”– Ele atirou o frasco pela janela aberta, de modo que este arrebentou em mil pedaços nos ladrilhos do telhado. Um doce odor de amêndoa irrompeu e espalhou-se pela sala. O pequeno Rasmus correu dali apavorado. Spikher passou o dia todo torturado por milhares de lástimas, até o soar da meia-noite. Então a figura de Giulietta começou a revolver-lhe mais e mais o íntimo. Algum tempo atrás, havia estilhaçado-se diante dele um colar, feito daquelas pequenas e rubras contas que as mulheres usam como pérolas e Erasmus, tendo apanhado as contas, depressa escondeu uma, afinal ela havia tocado o pescoço de Giulietta. Ele guardou-a bem. Esta ele agora atirou e, olhando fixamente para ela, direcionou a mente e o pensamento para a amada perdida. Era como se da pérola saísse o aroma mágico que antes o envolvia quando próximo de Giulietta. “Ah, Giulietta, ver-te apenas mais uma única vez e então perder-me em estragos e ruína.” – Mal ele pronunciou estas palavras começaram a chegar leves sussuros e barulhos do corredor em frente à porta. Ele ouviu passos – alguém batia na porta da sala. A respiração de Erasmus parou diante do medo e da esperança pressentidos. Ele abriu. Giulietta entrou em altiva magnitude e delicadeza. Enlouquecido de amor e volúpia, ele a apertou nos braços. “Agora estou aqui, meu amado,” disse ela em voz baixa e suave, “veja como guardei fielmente tua imagem!” Ela retirou o pano do espelho. Erasmus viu sua figura encantado, aconchegando-se a Giulietta; sua imagem, contudo, independente dele próprio, não refletia nenhum dos seus movimentos. O horror apossou-se de Erasmus. “Giulietta,“ gritou ele “devo agora então enlouquecer devido ao meu amor por ti? – Devolva minha imagem, tome a mim mesmo com corpo, vida e alma.“ – “Ainda há algo entre nós, querido Erasmus”, disse Giulietta, “tu sabes disso – Dapertutto já não te disse“ – “Por Deus, Giulietta“, completou Erasmus, “se apenas assim posso ser teu, prefiro então morrer” – “Oh, não, Dapertutto não deve”, continuou Giulietta, “de forma alguma induzi-lo a isso. Naturalmente, é terrível que um voto e uma benção sacerdotal tenham tanto poder, mas deves dissolver este laço que te prende, ou então não serás jamais totalmente meu, e para tal existe um outro e melhor meio do que aquele que Dapertutto te aconselhou.“ – “Qual?” perguntou Erasmus bruscamente. Giulietta envolveu os braços em torno de sua nuca e com a cabeça deitada em seu peito, sussurrou baixinho: “Assines em uma pequena folha teu nome, Erasmus Spikher, embaixo destas poucas palavras: “Eu dou ao meu bom amigo Dapertutto poder sobre minha mulher e meu filho, para que ele os administre e dirija segundo sua escolha, e liberte o laço que me prende a eles, pois eu, daqui por diante, com meu corpo e minha alma imortal, quero pertencer a Giulietta, que escolhi para ser minha mulher e com a qual ainda quero por meio de um voto especial estar ligado para sempre“. Os nervos de Erasmus agitaram-se e contraíram-se compulsivamente. Beijos de fogo ardiam em seus lábios, ele tinha a pequena folha entregue por Giulietta na mão. Dapertutto apareceu por trás de Giulietta de repente, gigantesco, e o alcançou uma pena de metal. No mesmo momento saltou uma veia da mão direita de Erasmus e o sangue jorrou. “Embeba a pena no sangue – escreva, escreva“, grasnou o Rubro. – “Escreva, escreva, meu eterno e único amante”, ceceou Giulietta. Ele já tinha embebido a pena com sangue, sentou-se para escrever – então a porta se abriu, um vulto branco entrou, apontou seus olhos fantasmagóricos e fixos para Erasmus, e gritou magoado e com a voz embargada: “Erasmus, Erasmus, o que estás prestes a fazer? – Pelo que há de mais sagrado, abandone estas atitudes terríveis!“ – Erasmus, que no vulto repreensor reconheceu sua mulher, atirou a folha e a pena para longe de si. – Relâmpagos fosforescentes disparavam dos olhos de Giulietta, transfigurado de maneira terrível estava seu rosto, em fervor ardente seu corpo. “Saiam de perto de mim, plebe do inferno, a vós não concedo um único pedaço de minha alma. Em nome do que há de mais sagrado, corram para longe de mim, cobras! – O inferno está cheio de vós!” – Assim gritou Erasmus e com o forte punho afastou Giulietta, que ainda o envolvia nos braços. Neste momento ressoaram e uivaram cortantes dissonâncias, que como pequenas asas de corvo farfalhavam depressa por toda a sala. – Giulietta – Dapertutto sumiram em um espesso e mal cheiroso vapor, que parecia brotar das paredes, ofuscando as luzes. Por fim os raios da aurora irromperam da janela. Erasmus procurou imediatamente por sua esposa. Ele a encontrou muito tenra e tranquila. O pequeno Rasmus já estava desperto, sentado em sua cama; ela estendeu ao homem exausto a mão, dizendo: “Agora sei tudo de terrível que se passou contigo na Itália, e lamento por ti com todo o coração. A força do inimigo é muito grande, e como é resignada a todos os vícios possíveis, também rouba muito e não pôde resistir à cobiça de furtar de ti tua bela e idêntica imagem, de forma bastante maldosa. – Olhe mais uma vez naquele espelho, amado e bom marido!“ – Spikher, com o corpo inteiro tremendo e o rosto bastante triste, fez isso. Vazio e límpido permaneceu o espelho, nenhum Erasmus Spikher refletia ali. “Desta vez”, continuou a esposa, “é muito bom que o espelho não reflita tua imagem, pois pareces bastante tolo, querido Erasmus. De resto, compreenderás por ti mesmo que sem tua imagem és uma piada para o povo e não podes ser um bom e completo pai de família, o qual inspira respeito à esposa e ao filho. O pequeno Rasmus já debocha de ti e quer da próxima vez pintar-lhe um bigode com carvão no rosto, já que tu sequer poderias perceber. Vagueies um pouco pelo mundo e procures, quando convier, capturar do diabo tua imagem de volta. Quando a tiveres, então serás recebido por mim com todo o coração. Beija-me (Spikher fez isso), e agora – boa viagem! Mande ao pequeno Rasmus de vez em quando um par de novas calças porque ele se arrasta demais com o joelho no chão e precisa muito delas. Se vais a Nürnberg, faça como um bom pai amoroso e o presenteie também com uma colorida roupa de hussardo e um pão de especiarias. Cuide-se bem, querido Erasmus!“ – A esposa virou-se para o outro lado e dormiu. Spikher levantou o pequeno Rasmus e o apertou contra o peito; mas ele gritou muito, então Spikher colocou-o de volta no chão e partiu pelo vasto mundo. Uma vez ele encontrou um certo Peter Schlemihl, que havia vendido sua sombra; ambos quiseram se tornar comparsas, assim que Erasmus Spikher lançasse a sombra necessária, Peter Schlemihl por sua vez deveria lançar a respectiva imagem; mas o trato não deu em nada.