A CULTURA MATERIAL NA ROTA DA SEDA:
FONTES PARA PESQUISA EM HISTÓRIA MEDIEVAL

Carmen Lícia Palazzo 1

 

 

Resumo: O objetivo desta comunicação é o de apresentar algumas fontes disponíveis para a análise do intercâmbio ocorrido durante toda a Idade Média numa vasta área geográfica, do interior da China até os portos do Mediterrâneo, atravessando a Ásia Central e o Oriente Médio e que, no período oitocentista, ficou conhecida como Rota da Seda. Demos ênfase aos objetos da cultura material e à arquitetura e destacamos: os motivos gregos na metalurgia sassânida e a circulação de jarras zoomorfas entre a Pérsia e a China; o mudejarismo como elemento da arquitetura hispano-muçulmana; os arabismos na arte italiana do final da Idade Média. Tais fontes se constituem em elementos de grande importância para o estudo dos múltiplos aportes entre etnias e culturas distintas.

Palavras-chave:Rota da Seda; Cultura material; Intercâmbio cultural.

Introdução

O termo Rota da Seda refere-se a uma ampla rede de estradas, caminhos e oásis que se estendia da China até os portos do Mediterrâneo e por onde circularam, principalmente entre os séculos I e XV, mercadores, missionários, peregrinos e conquistadores das mais diversas etnias e culturas. Trata-se de uma denominação surgida no século XIX que reflete bem a época na qual era forte a influência do romantismo nas mentalidades europeias. O interesse pelo Oriente aguçava o imaginário ocidental e inúmeras descobertas arqueológicas oitocentistas reavivavam uma história que havia ficado adormecida por muitos séculos.
A excessiva valorização das chamadas Grandes Navegações por parte dos historiadores favoreceu, durante muito tempo, pesquisas que davam ênfase a um expansionismo de caráter eurocêntrico muitas vezes desconsiderando o rico intercâmbio que, no decorrer de toda a Idade Média, ligou o Oriente ao Ocidente. É grande e diversificada a documentação disponível para os que se dedicam ao estudo da Rota da Seda. As fontes que nos remetem à cultura material, tais como objetos de uso diário, têxteis variados, metalurgia, cerâmicas, mosaicos, azulejaria, telas, etc., têm especial relevância pois são representativas de um riquíssimo cruzamento, tanto de ideias quanto de técnicas de elaboração. Aqui examinaremos alguns exemplos de tais fontes, apontando para possibilidades de pesquisa que se encontram em aberto, algumas delas ainda bastante incipientes.

Objetos sassânidas: um encontro de múltiplas culturas

O império persa sassânida, tomado pelos árabes no século VII, possuía uma cultura que foi muito admirada pelos conquistadores a tal ponto que a arte, a literatura, a arquitetura e até mesmo as formas de administração que eram tradicionais da Pérsia passaram a fazer parte da nascente comunidade islâmica. Os persas destacaram-se nos trabalhos de metalurgia, e uma grande variedade de pratos e jarras com elaboradas cenas em prata e detalhes dourados eram muito apreciados em todo o Oriente Médio, na Europa e na China. Diversos exemplares da prataria persa foram encontrados em toda a extensão da Rota da Seda o que aponta para um intenso intercâmbio destes produtos.
Um prato que, de acordo com análises especializadas, teria sido produzido entre os séculos V e VII, e que atualmente faz parte do acervo da Smithsonian Institution, em Washington, D.C. 2 demonstra que o intercâmbio se estendia também à temática e aos estilos artísticos. Nele observa-se uma cena de clara influência grega. A figura central do referido prato é o deus andrógino Dionísio, sentado junto à princesa Ariadne, tendo ao lado Hercules com sua clava. A existência de temas gregos em numerosos objetos produzidos no Oriente, mesmo apos a conquista muçulmana, remonta à Antiguidade e às conquistas de Alexandre mas continuou presente no decorrer de grande parte da Idade Média em virtude do intenso intercâmbio comercial no mediterrâneo.
A incorporação de influências externas era uma constante em toda a extensão da Rota da Seda e as trocas iam muito além das mercadorias, alcançando também as ideias e os comportamentos. Mesmo as religiosidades eram mais fluidas e mais permeáveis à aceitação da imensa variedade de crenças que circulavam entre os caravaneiros.  Um exemplo que merece ser lembrado e que evidencia o alcance de tal diversidade é o de Chang-an, capital da dinastia chinesa Tang. No século VIII, naquela cidade, alem dos tradicionais templos budistas e taoístas, havia uma igreja síria nestoriana, uma igreja maniqueísta e um templo zoroastrista que atendiam não somente a um constante fluxo de mercadores vindos do Oriente Médio mas também a conversos da própria China. (HAYASHI, 1975, p.87).
Se, por um lado, a marcante presença grega na metalurgia persa aponta para um dos caminhos do intercâmbio artístico através da Rota da Seda, por outro lado estes mesmos objetos também circularam em outras direções e foram muito apreciados pelos chineses. Um dos casos mais interessantes a ser observado é o das jarras zoomorfas. As jarras para água ou vinho com bicos que representavam claramente cabeças de animais (quase sempre pássaros ou dragões), ou que apenas os evocavam, foram produzidas tanto na Pérsia quanto na China. Mas, para os chineses, principalmente no decorrer de todo o século VIII, possuir objetos persas era sinal de grande refinamento e as referidas jarras fizeram parte do acervo da corte Tang. (HAYASHI, 1975, p.92-95). O fato de ter havido, além das importações, uma importante produção chinesa, reforça a importância da cultura sassânida como indicativa de luxo, o que, aliás, continuou a ocorrer mesmo após a total islamização do território persa.

O mudejarismo na Península Ibérica

A presença muçulmana na Espanha foi longa, durou quase oito séculos, de 711 até a conquista cristã de Granada, em 1492. Tempo, portanto, para que germinasse e amadurecesse uma cultura única em relação ao resto da Europa. As relações entre a Espanha islâmica e o Oriente bizantino foram um capítulo importante desta história de muitos encontros, não apenas no âmbito das ideias mas também na concretização de projetos arquitetônicos, dos quais um dos melhores exemplos é o da mesquita de Córdoba.
Embora ainda hoje seja corrente a ideia de conflitos acirrados entre o Império cristão Bizantino e o Islã, o Califado em Al-Andalus não apenas manteve contatos com o imperador romano do Oriente mas dele recebeu apoio técnico e material para a construção da obra-prima da religiosidade muçulmana na Europa, a grande mesquita de Córdoba. Para a decoração interna da mesquita o califa Abd-al-Rahman III solicitou ao imperador bizantino Nicephoros Phocas os préstimos de um especialista em mosaicos, no que foi prontamente atendido. O imperador enviou um artesão altamente qualificado e também uma considerável quantidade de pedras que foram utilizadas na execução do mosaico do excepcional mihrab (nicho de oração) da mesquita 3.
No entanto, nada mais importante para evocar a convivência, o intercâmbio entre muçulmanos e cristãos na Península Ibérica do que a chamada arte mudéjar, um estilo que conseguiu florescer mesmo numa época na qual a Europa estava impregnada da ideia de Cruzada. Quando motivos islâmicos passaram a ser adotados em obras arquitetônicas encomendadas por cristãos surgia o que ficou conhecido como estilo mudéjar 4 nascido provavelmente em Toledo, após a conquista da cidade por Alfonso VI. O monarca intitulava-se “imperador das três religiões”, referindo-se assim à sua vontade de manter muçulmanos e judeus entre seus súditos numa época em que a convivência entre as “três culturas do livros” ainda era viável.
Muitas são as fontes para o estudo do mudejarismo na Espanha e as cerâmicas em geral podem ser apontadas como documentos privilegiados do rico encontro entre o Ocidente e o Oriente em terras andaluzas. Uma análise que contemple apenas a documentação escrita para o estudo da Península Ibérica no Período medieval corre o risco de acentuar a fratura ocorrida por ocasião da Reconquista centrando-se mais nos embates militares e nas conversões forçadas de muçulmanos ao cristianismo. No entanto, uma observação atenta do mudejarismo abre portas para uma visão com mais nuances da convivência interreligiosa.
O rei cristão de Sevilha que passou à história sob o nome de Pedro, o Cruel, contratou para a decoração de seu Alcázar não apenas artesãos mudéjares da região por ele reconquistada mas também muçulmanos do reino de Granada que era então um reduto do Islã em terras ibéricas. O resultado foi a utilização de magníficas cerâmicas que passaram a ser cobiçadas bem além da Espanha. Tanto residências de nobres na França quanto o Palácio dos Papas em Avignon foram decorados com maestria por especialistas muçulmanos na arte dos mosaicos. (DE GEORGE; PORTER, 2001, p. 65-66).
Os caminhos seguidos pela decoração de cerâmicas em geral e particularmente  azulejaria não tomavam apenas a direção do Oriente para o Ocidente, ou seja, do Levante para Al-Andalus, o extremo ocidente da Rota da Seda. Foram igualmente importantes algumas soluções de decoração e mesmo de construção da arquitetura hispano-muçulmana adotadas no Marrocos e na Argélia a partir de exemplos ibéricos. Todo este trânsito artístico, se atentamente mapeado, pode nos conduzir a uma vasta área de intercâmbio cuja história só muito recentemente começou a ser explorada 5. (GONZÁLES FERRÍN, 2007).

Arabismos na arte italiana

O intercâmbio comercial entre o Oriente e a Itália não apenas foi intenso mas também se revestiu de características muito peculiares já que os mercadores italianos desfrutavam de um estatuto muitas vezes privilegiado nos portos levantinos. Nos séculos XIII, XIV e XV os muçulmanos eram parceiros importantes nos negócios com cidades como Veneza, Nápoles e Gênova. Tornou-se bastante comum, no rastro de tais relacionamentos, a apropriação de elementos decorativos de origem árabe e turca para incorporá-los em objetos de arte italianos.
Pintores passaram a reproduzir em suas telas os tapetes orientais nos mais variados contextos. O artista, assim, conferia à sua obra um imediato sentido de luxo, de riqueza. Mesmo que a cena em questão não tivesse nada de orientalista e nem pretendesse remeter a algum tipo concreto de encontro entre o Ocidente e o Oriente, a presença do tapete oriental era, muitas vezes, um recurso para demonstrar a importância dos personagens ali retratados.
No século XIV, Simoni Martini pintou uma cena da coroação do rei de Nápoles, Roberto de Anjou, tendo no piso um magnífico tapete oriental que certamente era uma das mercadorias mais prezadas pela nobreza europeia para demonstrar seu status 6. Outro exemplo marcante é o de uma pintura de Antonello da Messina, do século XV, com a figura de São Sebastião em primeiro plano. Ao fundo, em uma passagem aberta, entre duas torres, estão dependurados dois tapetes orientais com padronagens distintas mas ambas muito elaboradas. Uma delas corresponde claramente ao que hoje denominamos tapetes da Anatólia 7.
Além dos tapetes, foi a caligrafia árabe que se destacou como um importante testemunho do quanto o Oriente, mesmo considerado “terra dos infiéis”, era cobiçado e imitado através de belas imagens. A presença da escrita árabe ou, melhor dizendo, pseudo-árabe, dava a impressão de que o texto poderia ser lido por quem conhecesse aquele idioma. (MACK, 2002, p. 51). Na verdade, porém, tratava-se apenas de um expediente decorativo bastante usado pelos pintores italianos, ou seja, a imitação de um alfabeto não latino em busca do efeito exótico. Giotto e Gentile da Fabriano 8, entre outros, fizeram uso da escrita pseudo-árabe para ornamentar os halos de madonas e anjos, bem como para as bordas das vestes de vários de seus personagens.
Rosamond E. Mack, ao analisar os halos nas pinturas de Giotto, pretende descartar o que chama de um efeito “puramente decorativo” e considera possível que o artista tenha pretendido associar as cenas de suas obras à Terra Santa e ao início da era cristã, enfatizando o que denomina o “programa internacional da Igreja”, de propagação de uma fé universal. (MACK, 2002, p. 69). No entanto, parece-nos que Mack, com tais conjeturas, minimiza a importância do fascínio ocidental pelo Oriente e, sobretudo, pela estética oriental. E, ao buscar explicações internas ao cristianismo para os arabismos na arte europeia estaria deixando de explorar outras leituras que poderiam levar em conta uma presença maior do Islã nas representações europeias.
O cenário oriental era bastante familiar à elite italiana e principalmente à de Veneza. Uma tela de um pintor anônimo veneziano provavelmente do século XV 9 e atualmente no Museu do Louvre retrata uma recepção dada em Damasco para embaixadores ocidentais. Nessa obra as referências à arquitetura da cidade são bastante conformes à realidade o que nos faz supor que ou o artista viajou com os europeus até à Síria ou teve acesso a desenhos de alguém que empreendeu alguma viagem semelhante e documentou o que viu.

Conclusão

O que pretendemos, nessa comunicação, foi chamar a atenção para o fato de que há uma significativa disponibilidade de fontes para pesquisas relativas ao intercâmbio cultural entre o Ocidente e o Oriente envolvendo a circulação de mercadorias e de ideias através da milenar Rota da Seda. Rastrear o percurso seguido pelos objetos que foram parte deste intercâmbio e identificar múltiplos aportes e referências cruzadas  leva-nos a considerações importantes sobre a convivência e até mesmo a admiração que se desenvolveu entre povos e culturas distintas durante a Idade Média.
Nessa perspectiva, os elementos da cultura material devem ser tratados não como um complemento ilustrativo de outros documentos mas como fontes primárias em pé de igualdade com relatos de viajantes e com outros escritos já que muitas vezes demonstram que a aceitação da diferença não apenas ocorreu, mas também levou a transformações importantes nem sempre muito claras nos textos oficiais. Apontamos apenas alguns dos muitos exemplos que se abrem atualmente à pesquisa e nosso intuito foi o de sinalizar caminhos a serem explorados para um melhor conhecimento da Rota da Seda e de seus reflexos na Idade Media ocidental.

 

Material Culture along the Silk Road: Research Sources for Medieval History.

Abstract:The goal of this paper is to present some available sources for the analysis of the interactions which occurred all along the Middle Ages in a vast geographical area, from Inner China to the Mediterranean ports, through Central Asia and the Middle East. In the 1800s, this area was known as the Silk Road. I emphasized objects from material culture and architecture and point out: Greek motifs in Sassanian metallurgy and the circulation of zoomorphic jars between Persia and China; mudejarism as an element of Hispano-Islamic culture; arabisms in late Medieval Italian art. Such sources are capital elements for the study of the manifold exchanges among distinct cultures and ethnic groups.

Keywords:Silk Road. Material culture. Cultural exchange.

 

1 Doutora em História pela Universidade de Brasília, UnB. Pesquisadora convidada e professora do curso de Especialização em História do Centro Universitário de Brasília, UniCeub. Endereço eletrônico:   carmenlicia@yahoo.com

2 Acervo da Smithsonian Institution, Washington, D.C. Coleção de objetos sassânidas. Freer and Sackler Gallery, F 1964.10.

3 Análises acuradas da mesquita de Córdoba e da arquitetura da Espanha islâmica podem ser encontradas em diversas obras de Oleg Grabar e especialmente em  GRABAR e ETTINGHAUSEN, 1994.

4 A palavra origina-se do termo árabe cujo significado é “deixado/permitido ficar”. Não tem o sentido de submissão, já que remete aos muçulmanos que continuavam a viver na Península Ibérica depois da Reconquista e ainda sem a obrigatoriedade da conversão. Livres para exercerem tanto sua religião quanto suas atividades profissionais..

5 A grande maioria dos trabalhos sobre o mudejarismo e sobre outros aspectos da arte hispano-muçulmana tem sido realizada por historiadores da arte e são raras as análises de história cultural.  Ver, para uma discussão importante sobre a islamização da Espanha medieval, GONZÁLES FERRÍN, 2007.

6 Acervo do museu Capodimonte, Nápoles, Itália

7 Acervo da Gemäldegalerie de Dresden, Alemanha.

8 Ver GIOTTO, Coroação da Virgem na Igreja de Santa Croce em Florença. GENTILE DA FABRIANO, Madonna, acervo do Museu Nacional de San Matteo, Pisa.

9 ANÔNIMO VENEZIANO. A recepção para embaixadores venezianos em Damasco. A cena refere-se ao período da dinastia dos mamelucos, anterior, portanto, à conquista otomana.

 

Referências:

DE GEORGE, Gerard; PORTER, Yves. L’Art de la Céramique dans l’architecture musulmane. Paris: Flammarion, 2001.

GONZÁLEZ FERRÍN, Emílio. Historia General de Al-Andalus. Córdoba: Almuzara, 2007.

GRABAR, Oleg; ETTINGHAUSEN, Richard. The art and the architecture of Islam. New Haven: Yale University Press, 1994.

HAYASHI, Ryoichi. The Silk Road and the Shoso-in. New York/Tokyo: Weatherhill/Heibonsha, 1975.

MACKE, Rosamond E. Bazar to Piazza. Berkeley: University of California Press, 2002.